Folha de S. Paulo

Bruno Boghossian: Com oferta ao centrão, Bolsonaro usa cargos para expandir poderes

Presidente alimenta paranoia e vai em busca de um seguro-impeachment falsificado 

Jair Bolsonaro se lançou no mercado político em busca de um seguro-impeachment falsificado. Depois de alardear que há planos malignos para tirá-lo do poder, o presidente chamou líderes do centrão para o chá da tarde. Na saída, eles passaram a negociar cargos com ministros do Palácio do Planalto.

Ainda que Bolsonaro tenha praticado barbaridades suficientes para justificar uma dezena de processos do tipo, não existe articulação real para removê-lo do cargo. O presidente sabe, mas alimenta a paranoia para tentar expandir seus poderes.

Demonizados por Bolsonaro, os partidos do centrão se tornaram uma peça desse jogo. O governo acenou a PP, PL, PRB e outras siglas com o comando de órgãos como Banco do Nordeste, Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação e até secretarias do Ministério da Saúde.

Junto com legendas nanicas e os bolsonaristas do PSL, o bloco somaria 190 deputados —ultrapassando os 172 votos que poderiam barrar um eventual processo de impeachment. Com 206, o Planalto ainda conseguiria impedir a Câmara de aprovar mudanças na Constituição.

Para levar o plano adiante, Bolsonaro precisaria acertar as contas com uma base que aplaude sua retórica antipolítica. Ao sugerir que o objetivo da manobra é evitar uma conspiração para tirá-lo do cargo, ele espera amenizar a própria hipocrisia.

O Planalto apresentou um mapa de cargos para Valdemar Costa Neto. Depois, Bolsonaro foi a um comício golpista, chamou políticos de patifes e disse que não queria "negociar nada". De volta para casa, assistiu a um vídeo de Roberto Jefferson, que pode ser beneficiado pela partilha.

O governo já tentou oferecer cargos para esses partidos em abril de 2019. Bolsonaro não segurou a língua, atacou as legendas e implodiu o projeto. Alguns políticos que estiveram com o presidente acreditam que o mesmo pode acontecer agora.

O melhor seguro contra o impeachment que um presidente pode ter é governar. Bolsonaro já se mostrou incapaz de desempenhar esse papel.

Bruno Boghossian é jornalista, foi repórter da Sucursal de Brasília. É mestre em ciência política pela Universidade Columbia (EUA).


Conrado Hübner Mendes: A democracia não é para sempre, e a revolução autoritária não será promulgada

O negacionismo político é mais perigoso que o sanitário 

Pioneiro do rock russo, Andrei Makarevich contou em suas memórias que nunca lhe ocorrera que "qualquer coisa pudesse mudar na União Soviética". Recordava-se do conforto de pensar que "tudo era para sempre", de "viver num Estado eterno". O colapso não cabia na sua imaginação.

O mesmo se passa com democracias. A ideia de que nada é tão ruim quanto parece, ou de que a história está do seu lado, pouco importa o que fazemos, tende a produzir resignação e passividade em democratas.

Dois séculos atrás Alexis de Tocqueville chamou a atenção para esse "fatalismo democrático". David Runciman o chamou de "armadilha da confiança": quanto mais se confia na permanência, maior o risco de pôr tudo a perder.

Democracias do mundo, nos últimos 20 anos, sofreram significativa queda de qualidade. A quantidade de cidadãos insatisfeitos com o regime não parou de crescer. Relatório do Centro para o Futuro da Democracia, da Universidade de Cambridge, mostra que a proporção de insatisfeitos atingiu o pico de 57,5% em 2020, marco da "recessão democrática".

O ano de 2020 também nos levou ao pico da "terceira onda de autocratização" no mundo, segundo relatório do Centro V-Dem, da Universidade de Gotemburgo. Pela primeira vez desde o relatório inaugural, de 2001, há mais países autocráticos que democráticos no mundo. O Brasil, descrito como país "em via de autocratização", é um dos destaques negativos.

Apesar de tudo isso, logo após as eleições de 2018, surgiu aqui a legião dos profetas da democracia risco-zero. Vieram para nos proteger contra os alarmistas, aqueles que acenderam a luz amarela ao olhar não só para as palavras e atos de Bolsonaro em 30 anos de carreira, mas para a violência concreta e simbólica do movimento que ele incita.

Os profetas, grupo eclético que reuniu de Ives Gandra a FHC, de Luís Roberto Barroso a Aloysio Nunes, e um pequeno grupo de acadêmicos, afirmavam que tudo não passava de "choro dos perdedores".

O cientista político Carlos Pereira não nos poupou de provocação assim que o governo Bolsonaro completou seu primeiro ano. Em texto com título jocoso —"Ih... a democracia não ruiu"— voltou a nos ensinar que "as chances de erosão da democracia brasileira são quase nulas", uma "quimera".

Sua evidência científica era um famoso estudo da década de 1990, que relacionava estabilidade democrática e faixa de renda. Foi só. Não se deu sequer ao luxo de ouvir o que os autores daquele estudo, Fernando Limongi e Adam Przeworski, dizem hoje. Não permitiu a nuance, nem a dúvida.

O negacionismo político, que desfila cheio de soberba e verniz retórico, não foi só precipitado. Ao se apressar na resposta, não teve tempo de entender a pergunta. Não olhou para os lados, não ouviu os gritos dos fatos, dos números e das redes. Não observou as ruas, as periferias, as terras indígenas; nem as salas de aula, os laboratórios, as Redações de jornal. Mal examinou a integridade das instituições.

A deterioração democrática não chegou com Bolsonaro, mas ganhou com ele magnitude e velocidade desconhecidas. O presidente não só continua a apoiar o pedido de golpe militar e o fechamento do Congresso e do STF, como embarcou sem volta no negacionismo sanitário, contra tudo que diz a ciência e a experiência mundial. É negacionismo estratégico, pois lhe interessa o destino político, não as mortes.

Há duas maneiras de instituições responderem. Uma é repousar no negacionismo político e emitir notas de repúdio. Outra é explorar vias políticas e jurídicas para preservar o mínimo democrático que nos resta, acima de projetos eleitorais de curto prazo. Ou alguma combinação criativa que não estamos vendo.

A revolução autoritária não será promulgada. Nem sairá no Diário Oficial.

*Conrado Hübner Mendes é professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.


Vinicius Torres Freire: Montadoras perdem 80% das vendas e esperam que governo destrave crédito

Quase nenhuma montadora prevê reiniciar a produção de veículos antes de maio 

Uma semana antes do paradão, em meados de março, no Brasil se compravam cerca de 11 mil veículos por dia. A média de abril, até dia 20, era de 2.250 veículos por dia, baixa de uns 80%. A queda em relação a abril do ano passado também anda pela casa dos 80%.

Já foi pior. Na semana final de março, os licenciamentos não passavam de 1.300 por dia.

Quase nenhuma montadora prevê reiniciar a produção de veículos antes de maio. A retomada da atividade deve ser postergada e lenta mesmo nessas mais otimistas. Várias devem voltar pouco antes do início de junho.

Sobram estoques, não se sabe o futuro da epidemia em cada região onde estão as fábricas (mais de 40% da produção é na Grande São Paulo) nem as diretrizes dos governos para o comércio, por exemplo.

Por ora, as empresas adaptam as fábricas ao mundo da epidemia. As linhas de produção ficarão mais lentas, por falta de demanda e porque precisarão ser ajustadas para evitar contaminações. Serão necessários mais ônibus para transportar trabalhadores (para evitar lotação). Será preciso repensar refeitórios que chegam a servir milhares de refeições por dia, comprar máscaras e instalar medidores de temperatura (para detectar febris), conta Luiz Carlos Moraes, presidente da Anfavea, a associação das montadoras.

No mais, a preocupação central da indústria é com o crédito: financiar capital de giro e prolongar o prazo de pagamento de empréstimos já contraídos. O caixa míngua, como no país quase inteiro. Além do mais, é preciso fazer com que o socorro chegue a toda cadeia, de fornecedores a concessionárias, afirma Moraes.

O problema com o crédito vai além. Aumentou o custo de captação dos bancos das montadoras, instituições que financiavam 45% dos veículos vendidos antes da epidemia _isto é, o crédito pode ficar mais caro.

Dinheiro há, o Banco Central aumentou a liquidez. Mas os bancos estão na retranca porque a perspectiva de inadimplência é enorme, em geral. Faltam, pois garantias. De algum modo, isso pode vir do governo, que assumiria parte do risco.

Segundo Moraes, há conversas avançadas entre ministério da Economia, BNDES, bancos privados e montadoras, caso a caso, e com a Anfavea. As empresas precisam da solução “para ontem”; Moraes acredita em algum acordo até o final desta semana. As suspensões de contrato, reduções de salário e outras medidas do gênero já começaram.

As montadoras de veículos e máquinas agrícolas empregam diretamente 123 mil trabalhadores em 10 estados e 40 cidades. Têm peso de 10% na indústria, atrás apenas da indústria de alimentos e do setor de petróleo e combustíveis, mas são o ramo que, para cima ou para baixo, arrasta consigo a cadeia produtiva mais longa e extensa. No geral, a indústria de transformação como um todo “puxa” mais o PIB do que qualquer outro setor da economia.

O governo ainda anda devagar no planejamento das medidas contra a ruína. Ainda não tem medidas para microempresas, para empresas que faturam mais de R$ 10 milhões e para grandes empresas especialmente abaladas pelo paradão.

Decerto não se pode fazer favor para graúdos bem de vida. Mas a desgraça é geral, em micro, pequenas, médias e grandes. A redução do consumo do desempregado da grande ou da pequena afeta a economia da mesma maneira.

A destruição de empresas e poupanças tornará a retomada ainda mais difícil. Acreditar que, num distante “depois da crise”, basta voltar a “reformas e ajuste fiscal” é mistura de loucura e incompetência.​

*Vinicius Torres Freire é jornalista, foi secretário de Redação da Folha. É mestre em administração pública pela Universidade Harvard (EUA).


Hélio Schwartsman: E a África, gente?

Muitos países africanos que têm mais ministérios do que leitos de UTI 

Sem uma vacina que possa ser aplicada em larga escala, essa pandemia só vai acabar depois que a maioria dos terrestres tiver sido contaminada pelo Sars-Cov-2 e tornar-se imune a ele. Não vou considerar aqui a hipótese mais trágica, mas que não pode ser inteiramente descartada, de que infecções prévias não confiram proteção pelo menos parcial ao paciente.

Isso significa que, a menos que sua confiança na chegada relativamente rápida da vacina seja de 100%, as políticas de isolamento social que a grande maioria dos países abraçou precisam ser fortes o suficiente para evitar o colapso dos sistemas de saúde, mas não tão draconianas que impeçam o aparecimento gradual da chamada imunidade de rebanho.

O ritmo em que devem ocorrer tanto o isolamento como a retomada só pode ser calculado em nível local, levando em consideração itens tão variados como a capacidade da rede hospitalar e da realização de testes, a adesão da população às recomendações sanitárias, perfil demográfico, densidade urbana, hábitos de interação social etc.

Se tem lógica para a Suécia, onde mais da metade das residências é ocupada por apenas um morador, adotar uma forma mais relaxada de distanciamento —grande parte das infecções ocorre dentro de
casa—, essa mesma abordagem pode revelar-se desastrosa numa favela brasileira, onde quatro ou mais pessoas vivem num único cômodo, sem água corrente para a lavagem das mãos.

E a coisa pode ficar ainda pior. O que fazer no caso dos muitos países africanos que têm mais ministérios do que leitos de UTI? Não estou exagerando. Dez países africanos não têm nenhum ventilador; outros quatro contam com não mais que meia dúzia. Neste caso, a carência é tamanha que o próprio objetivo de proteger o sistema de saúde perde parte do sentido. Pode-se ainda defender o isolamento na esperança de que surja a vacina ou um remédio eficaz, mas aí já vira mais aposta do que gestão.

Hélio Schwartsman é jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…".


Nelson de Sá: China toma lugar dos EUA na América Latina, alertam 'think tanks'

Washington deveria enviar assistência humanitária, como Pequim, não 'destroieres da Marinha', diz artigo no NYT

Na chamada do New York Times, "Gracias China!!!". Artigo de representantes de dois "think tanks" do establishment de política externa, Council on Foreign Relations e Inter-American Dialogue, destaca que Argentina e México agradecem Pequim pelo apoio contra a Covid-19 --e até "Jair Bolsonaro minimiza sua retórica", embora mais para manter a venda de soja.

Enquanto isso, Donald Trump "anuncia aumento de ativos militares no Caribe e costa do Pacífico", quando, "em vez de destroieres da Marinha, os EUA deveriam prestar assistência humanitária a nossos vizinhos", como faz a China. Em suma, no subtítulo, "Liderança dos EUA na América Latina é questionada e Pequim se posiciona para ficar com o manto".

O consultor americano Ian Bremmer, da Eurasia, voltada para risco geopolítico, falou na mesma linha ao podcast do âncora da NBC Chuck Todd. Relatou que a cadeia de suprimentos da China já está em 70% e atinge "funcionamento total" em maio. "Ou seja, enquanto os americanos ainda estiverem parados, os chineses estarão prontos para ser a fábrica do mundo de novo."

Por toda parte, conclui ele, "os cidadãos começam a dizer: 'Por que estamos seguindo os EUA?'. Você vê isso no Sudeste Asiático, na África, na Europa e até na América do Sul".

POLÍTICA INDUSTRIAL LÁ
Também no NYT, o senador republicano Marco Rubio propõe "uma abrangente política industrial pró-americana", depois de "décadas priorizando ganhos financeiros sobre a produção de bens físicos".

O modelo --e concorrente-- é a China, onde "o Partido Comunista apoiou as empresas no desenvolvimento do capital produtivo de longo prazo". Em suma: "Por que não tivemos máscaras e ventiladores? Porque são ações que não maximizam retorno financeiro" em Wall Street.

CHINA AVISOU
Reportagem do Financial Times sobre a "guerra de mídia social" de Eduardo Bolsonaro e Abraham Weintraub com a China ouve, de "autoridade de comércio" brasileira: "O pior é que isso pode plantar uma semente de desconfiança, criar uma imagem negativa do Brasil como fornecedor de produtos à China".

E de "diplomata sênior" brasileiro: "Já danificou as relações. Os chineses já sinalizaram que, se continuarem, os danos podem ser mais tangíveis. Essas mensagens já foram enviadas".

COLAPSO
Com mais de um mês em quarentena e o "colapso" de hospitais e crematórios em Lima, sites peruanos noticiam que a "Polícia bloqueia rodovia enquanto pessoas tentam fugir" da capital (imagem acima).

Na manchete do El Comercio, o país passou de 17 mil casos, o segundo na América Latina, e "Lima reporta mais mortos que todo o Chile", o terceiro. O ministro peruano da Saúde declarou: "Queremos evitar o que se viu em Guayaquil", corpos nas ruas.

Washington Post e o site chinês NetEase já acenderam o sinal vermelho sobre o Peru, com o segundo destacando o temor da América do Sul de se tornar "o próximo campo de batalha" da pandemia.

Nelson de Sá é jornalista, cobre mídia e política na Folha desde a eleição de 1989.


Igor Gielow: Ala militar nega golpismo, mas apoia Bolsonaro no embate com Poderes

Presidentes de Legislativo e Judiciário conversaram com ministro da Defesa após ato do domingo

A ala militar do governo negou às cúpulas do Congresso e do Judiciário haver qualquer risco de ruptura democrática por parte de Jair Bolsonaro, mas também fez questão de dizer que considera que os Poderes têm agido de forma a cercear o presidente na crise do coronavírus.

A impressão foi registrada pelos presidentes da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), e do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli. Os três conversaram com o ministro da Defesa, Fernando Azevedo, ao longo do domingo (19).

Naquele dia, Bolsonaro decidiu após almoçar com os filhos ir encontrar manifestantes pedindo intervenção militar e edição de "um AI-5" em frente ao quartel-general do Exército, em Brasília.

A cena foi desenhada para chocar o mundo político e supor o apoio dos militares ao governo e a eventuais arroubos autoritários do presidente. Ato contínuo, Toffoli procurou Azevedo, que já foi seu assessor e com quem mantém interlocução frequente.

Tanto o ministro do Supremo como os presidentes das Casas do Congresso, em telefonemas separados, cobraram um posicionamento das Forças Armadas. Azevedo é um ponto de contato tanto com os militares dentro do governo quanto com o oficialato da ativa, de quem é superior hierárquico.

Ouviram a negativa de intenções golpistas e a promessa de que Bolsonaro iria baixar o tom, o que de fato aconteceu na manhã seguinte.

Além disso, o próprio general Azevedo divulgou nota reiterando o comprometimento das Forças Armadas com a Constituição e priorizando o combate ao coronavírus "e suas consequências sociais" —uma deixa não casual, alinhada à ênfase que Bolsonaro faz do impacto econômico da pandemia.

Os interlocutores do ministro da Defesa compreenderam que a ala militar do governo não reprova a irritação de Bolsonaro, ao contrário. Isso alarmou atores políticos em Brasília, que passaram a segunda trocando impressões sobre quais podem ser os próximos passos da crise.

Na avaliação dos fardados do governo, o Congresso tem agido sistematicamente contra Bolsonaro, tolhendo suas iniciativas. O Supremo também colabora com o clima de cerco ao Planalto com suas decisões em prol dos governadores e prefeitos na emergência sanitária.

A visão do presidente na crise vai além: o mandatário máximo acha que estados, liderados por São Paulo do rival João Doria (PSDB), estão aliados a Maia e a setores do Supremo para buscar seu impedimento. Isso o fez subir o tom no domingo, como de resto já previam adversários políticos ao analisar seu isolamento na crise.

Se a ala militar foi compreensiva com o gesto do chefe, o mesmo não se pode dizer da ativa das Forças Armadas. Alguns membros do Alto Comando do Exército, usualmente simpáticos a Bolsonaro, se disseram chocados com o uso simbólico do QG da Força para o proselitismo do presidente.

Assim, é possível dizer que o delicado equilíbrio entre um governo loteado por militares e os fardados da ativa sofreu um abalo significativo. A defesa constitucional feita por Azevedo foi pactuada para acalmar ânimos, mas as fissuras devem continuar.

Do lado dos Poderes, há diferenças de tons. Na romaria de políticos à casa de Maia na noite de domingo, depois negada pelo presidente da Câmara, mais de um dos presentes observou que o deputado estava mais incomodado do que Alcolumbre com a escalada da crise.

Isso se explica porque Maia foi eleito o alvo preferencial das redes bolsonaristas em seu protestos. Mas também há, subjacente, a intenção presumida de Alcolumbre de sair da sombra do politicamente mais denso colega da Câmara.

Já Toffoli, que viu outros ministros se manifestarem contra Bolsonaro no domingo, só fez uma fala sobre o episódio na segunda, quando a situação estava mais clara. Marcou posição, mas como é o árbitro final de muitos conflitos que ainda podem surgir, deverá manter o perfil mais discreto.

Para um participante das tratativas do domingo, a inflexão da ala militar precisa ser acompanhada de perto. Desde que recuperou prestígio no governo, no começo do ano, ela servia mais de anteparo ao radicalismo de Bolsonaro do que de amplificador de crises.

Do ponto de vista institucional, todos parecem convencidos de que não há riscos reais de ruptura, até porque o presidente não tem força para isso —não há amplo apoio social, empresarial ou de militares a quaisquer aventuras.

Mas também é claro o método de Bolsonaro em seus flertes autoritários. O presidente faz um gesto, é repreendido e modera o tom no dia seguinte. Mas a corda foi esticada mais alguns centímetros.

Na opinião desse político, se o presidente se sentir amparado pelos militares do governo, novos episódios são inescapáveis. Com o agravante de que os elementos de mediação evaporam aos poucos.


Nelson de Sá: De NYT a La Stampa, atenção para o apoio a 'golpe militar'

Chinês Xin Jing Bao vê governo dividido e avalia que 'perspectivas do Brasil na pandemia não são otimistas'

Sem chamada em home page, New York Times, o alemão Süddeutsche Zeitung e o italiano La Stampa (reproduzidos abaixo), entre vários outros, trazem enunciados e fotos sublinhando o apelo às Forças Armadas na manifestação de domingo. Pela ordem:

"Presidente do Brasil dá vivas a protesto que pedia governo militar."
"Apoiadores do governo no Brasil conclamam intervenção militar."
"No Brasil, Bolsonaro discursa a militares que louvam golpe militar."

Em Pequim, o Xin Jing Bao já traz extensa análise de Yanran Xu, professora de relações internacionais da Universidade Renmin da China. Ela escreve que, "antes de mais nada, a atitude de Bolsonaro contra o isolamento tem motivação ideológica: quer estar perto dos EUA, pode-se dizer que 'veste as calças de Trump'".

No trecho mais significativo:
"A matriz de poder do governo Bolsonaro é composta de cinco forças, os militares, ruralistas, economistas liberais, evangélicos e participantes da 'Lava Jato'. As cinco têm opiniões diferentes em questões específicas. A maior contradição agora vem dos militares e dos evangélicos. No ato, Bolsonaro gritou slogans, se opõs às medidas de isolamento sustentadas pelo Supremo e por membros do Congresso —e também apoiou intervenção militar. Isso causou forte preocupação. Há também a opinião de que suas declarações inflamatórias, feitas do lado de fora do quartel-general do Exército, não queriam instigar golpe, mas mais manter a 'positividade' de seus seguidores."

Ela conclui dizendo, quanto ao isolamento, que "a maioria não concorda com Bolsonaro, cuja taxa de apoio continua caindo". Que "o governo está seriamente dividido e as perspectivas do Brasil no combate à pandemia não são otimistas".

*Nelson de Sá é jornalista, cobre mídia e política na Folha desde a eleição de 1989.


Breno Altman: Fora Bolsonaro e Mourão

Governo representa o perigo maior na guerra contra a pandemia e na reconstrução nacional

O Brasil atravessa a hora mais decisiva de sua história recente. A expansão do coronavírus desmascarou o governo como inimigo do povo, da pátria e da vida. Constituem provas de sua pérfida natureza a sabotagem contra o isolamento social e a fragilidade do socorro à imensa maioria da população, ao mesmo tempo em que recursos praticamente ilimitados são ofertados aos grandes bancos. Outro dos delitos cometidos é a permanente ameaça de solapar o que resta da institucionalidade, estabelecendo um regime ditatorial escancarado.

O senhor Jair Bolsonaro, de fato, sintetiza a fusão entre neofascismo e neoliberalismo. As elites brasileiras, incapazes de impor seu plano econômico através das velhas legendas partidárias da burguesia, abriram alas para que a extrema-direita fizesse o serviço sujo.

Ao bolsonarismo caberia concluir a transição para um Estado policial, travestido de democracia formal, que eliminasse o protagonismo das correntes de esquerda, destruindo ou aleijando partidos, sindicatos e organizações desse campo político.

O ponto de largada desse percurso foi o golpe contra a ex-presidente Dilma Rousseff (PT). A pavimentação da estrada esteve a cargo dos bandos que conduziram a Operação Lava Jato, até que se lograsse a prisão e a interdição do ex-presidente Lula (PT). Estavam postas, assim, as condições fraudulentas para a eleição do ex-capitão.

Forjou-se uma aliança entre grandes capitalistas, chefes das Forças Armadas e setores do sistema de Justiça, abençoada pelas frações mais reacionárias dos neopentecostais e tutelada pelos interesses geopolíticos da Casa Branca. Essa coalizão tem como meta a redução drástica dos custos diretos e indiretos das grandes corporações. Salários, direitos sociais e previdenciários, regulamentações estatais, serviços públicos e impostos patronais deveriam ser arrochados para a prosperidade dos mais ricos ser a locomotiva de uma falaciosa prosperidade.

Tal lógica tem impulsionado, desde 2016, a desidratação financeira do Sistema Único de Saúde, condenado a ser ofertado como carniça aos abutres da medicina empresarial, desonerando o Estado e transferindo verbas orçamentárias para o cassino do rentismo.

O atual governo radicalizou essa política. Tornou o país vulnerável à pandemia em curso. A leniência de Bolsonaro frente ao vírus mortal é apenas um dos crimes de responsabilidade que cometeu. Servil aos objetivos capitalistas mais nefastos, o líder neofascista representa o maior dos perigos para a guerra contra a pandemia e a reconstrução nacional.

Ele tem que ser colocado para fora, o mais rápido possível. Mas não se trata de substituí-lo por alguém que represente a mesma política, como é o caso de seu vice. Ou de colocar os rumos da nação sob as manobras de um Parlamento oligárquico, pilotando infindável processo de impeachment.

Apenas haverá saída democrática se o povo exercer sua soberania, com a derrocada do governo Bolsonaro-Mourão e a antecipação das eleições presidenciais, precedidas do cancelamento das farsas judiciais que impedem a participação de Lula.

Não há tempo a perder. Só uma ruptura com o processo que nos trouxe à beira do precipício pode impedir que um desastre irreparável seja o nosso destino.

*Breno Altman é jornalista e fundador do site Opera Mundi


Hélio Schwartsman: É ético torcer para que Bolsonaro adoeça?

Ele continua a atrapalhar o trabalho das autoridades sanitárias
 
Ele fez de novo. Em plena pandemia, participou de um protesto com pauta golpista e provocou aglomeração. Ao final de seu discurso, apareceu uma tossezinha suspeita. A pergunta que se impõe é se é ético torcer para que Bolsonaro contraia uma forma grave de Covid-19 e deixe de atrapalhar o trabalho das autoridades sanitárias.

A resposta depende do tipo de ética que você abraça. Para o consequencialista, que valora as ações pelos resultados que elas produzem, até a morte de um líder inepto pode ser classificada como positiva, se ela, por exemplo, acarretar mais vidas poupadas do que perdidas. O bonito das éticas consequencialistas é que elas são perfeitamente igualitárias. A vida do presidente vale o mesmo que a de um mendigo viciado em crack.

Assim, aqueles que estão convencidos de que a atitude de Bolsonaro, ao fragilizar o isolamento, resultará em mais doença e mais mortes estão filosoficamente legitimados a torcer para que ele experimente o seu "resfriadinho".

Embora eu creia que o consequencialismo é mais consistente do que os sistemas éticos rivais, é fato que ele não é inteiramente satisfatório. Poucos julgarão ética a conduta do médico que sacrifica um paciente saudável para, transplantando seus órgãos, salvar cinco vidas.

E isso abre o flanco para éticas deontológicas, que são aquelas que definem princípios fundamentais, como os de não matar ou não fazer nem desejar mal ao próximo, e os convertem em regras fortes. Nessa matriz, acalentar mesmo secretamente um pensamento de morte envolvendo o presidente já cheira a pecado.

Como disse, meus instintos são consequencialistas, mas tenho um lado, que podemos chamar de humanista ou até de carola, que faz com que me repugne a ideia de torcer pelo sofrimento ou a morte de alguém, por mais desprezível que seja essa pessoa. É claro que, se Bolsonaro insistir, meu lado nerd acabará dobrando o humanista.

*Hélio Schwartsman é jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…".


Ivan Marsiglia: No Twitter, bolhas disputam lugar de vírus e anticorpos do golpismo

Governistas e oposicionistas acusam-se mutuamente após Bolsonaro participar de ato pró-ditadura 

Após @jairbolsonaro chegar –no melhor estilo Hugo Chávez– de camisa vermelha e montado numa picape num ato pró-ditadura neste domingo (19) em frente ao QG do Exército em Brasília, o barulho nas redes foi tal que até o procurador-geral da República acordou.

Manifestações de repúdio por parte de parlamentares, governadores, ex-presidentes e ministros do Supremo parecem enfim ter perturbado o sono do indicado do presidente à PGR, Augusto Aras, que pediu, na segunda-feira (20), abertura de inquérito ao STF.

Um jornalista da Revista Fórum resumiu a solicitação num tuíte: @GeorgMarques “Aras suspeita que congressistas patrocinaram a manifestação deste domingo em defesa do AI-5. Ele aponta violação à Lei de Segurança Nacional (7.170/1983). Se se confirmado patrocínio político para confecção de faixas ou do trio, caberia fácil cassação do mandato, no mínimo.”

O fato, porém, de o pedido do procurador omitir a participação do presidente da República também foi notado na plataforma. Para o deputado federal Alexandre Frota (PSDB-SP), @alefrota77, “O Aras foi a única pessoa no Brasil que não viu o Bolsonaro na caçamba da pick up.”

Ainda assim, o presidente parece ter sentido –com perdão do trocadilho– o golpe.

Se no dia anterior fizera questão de reforçar, compartilhando em sua conta no Twitter, e marcando inclusive o perfil do Exército, um vídeo em que brada, diante de faixas padronizadas pedindo intervenção militar e um novo AI-5, “eu estou aqui porque acredito em vocês”, na segunda (20) mudou o discurso.

Na saída do Alvorada, repreendeu um apoiador que gritou pedindo o fechamento do STF. No registro do portal de notícias @Metropoles “‘Aqui não tem essa conversa de fechar nada, dá licença aí. Aqui é democracia, aqui é respeito à Constituição brasileira, e aqui é a minha casa e tua casa. Então, eu peço, por favor, que não fale isso aqui. Nós estamos no governo, não vamos aceitar provocações baixas’, irritou-se.”

Cientista político e professor da FGV-SP, @claudio_couto viu no suposto recuo a confirmação de um modus operandi: “BolsoNero segue a toada que é a forma mais constante de sua longa trajetória: morde-assopra. Num dia, diz ou perpetra absurdos, que empolgam seus seguidores e ultrajam os demais; noutro dia, desdiz o que disse, fala algo invertido, faz um gesto oposto. Sempre sai pela tangente”.

Entre as bolhas do Twitter, ao menos, o sopro presidencial não foi suficiente para aplacar a mordida.

Ao longo do dia, governistas e oposicionistas acusavam-se mutuamente de golpismo. No meio da tarde, enquanto 399 mil menções à palavra “democracia” protestavam, em sua esmagadora maioria, contra as ações do presidente no domingo, duas hashtags, #FechadosComBolsonaro, com 234 mil tuítes, e #EuApoioBolsonaro, com 54,7 mil, foram levantadas para denunciar uma suposta conspiração do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, para derrubar o “mito”.

A jornalista carioca Hildegard Angel, fundadora do Instituto Zuzu Angel, exasperou-se: @hilde_angel “O que mais esperam para votar o impedimento desse celerado? Que saia em cima do Trio Elétrico pedindo a intervenção militar, como já fez diante do Palácio? Metralhe e prédio do Congresso? Não há democracia que sobreviva sem coragem. Congresso, STF, tudo decorativo? É isso?”

Já o publicitário e autor do manifesto do partido Aliança pelo Brasil, Felipe Cruz Pedri, olavista recentemente exonerado da Casa Civil pelo general Braga Netto, viu golpe em outro lugar: a live em que um certo ex-deputado do PTB alega haver um plano para derrubar Bolsonaro.

@FelipePedri “As denúncias gravíssimas de Roberto Jefferson não podem ficar impunes. O mais espantoso é que a trama é facilmente percebida por qualquer um que tente ligar os pontos. Rodrigo Maia merece no mínimo uma comissão de ética ou uma CPI do Golpe que investigue seus crimes contra a nação.”

Em resposta a um seguidor inconformado, o deputado oposicionista @MarceloFreixo (PSOL-RJ) deu números ao impasse: “Em resposta a @MarioCesarMR e @psolnacamara Há pedidos de impeachment com Maia. Mas a oposição é só 1/3 do Congresso, fazemos barulho, mas somos minoria. E Bolsonaro negocia cargos pra ter o centrão. O presidente ainda tem apoio de 38%. Collor e Dilma quando caíram não tinham nem 10%. O cenário não é simples como você imagina.”

Embora autoridades militares tenham assegurado, em conversas reservadas com jornalistas, seu “compromisso com as instituições democráticas”, a falta de um posicionamento claro deu margem a dúvidas. Um dos raros que se manifestou pelo Twitter, o general Santos Cruz, demitido do governo após bater de frente com Carlos Bolsonaro, tampouco foi assertivo.

@GenSantosCruz “O Exército é instituição do Estado. Não participa das disputas de rotina. Democracia se faz com disputas civilizadas, equilíbrio de Poderes e aperfeiçoamento das instituições o EB (@exercitooficial) tem prestígio porque é exemplar, honrado e um dos pilares da democracia.”

O ex-Secretário Nacional de Justiça de Dilma Rousseff e diretor da ONG Open Society, @pedroabramovay, lembrou outra ocasião em que os fardados não se furtaram a participar das tais “disputas de rotina”: “Militares dizem em ‘off’ que estão incomodados com o Presidente por ter, no dia do Exército, em frente ao QG do Exército, participado de manifestação contra a democracia. Menos incomodados do que no julgamento de Lula. Naquela vez sentiram que precisaram ameaçar.”

Das voltas que a história dá às diferenças que ocultam semelhanças, coube a outro professor da FGV-SP, o pesquisador de relações internacionais alemão @OliverStuenkel, compartilhar a capa –desconfortável a muita gente de ambos os lados da dicotomia no Twitter– do livro do jornalista britânico especializado em América Latina Will Grant:

“Nem os bolsonaristas nem os chavistas gostarão da capa deste novo livro de @will_grant. Mas é importante que os apoiadores do governo brasileiro e venezuelano entendam que um número crescente de observadores internacionais coloca os dois na mesma categoria.”

O OUTRO VÍRUS
Enquanto o Brasil perdia tempo tentando imunizar-se contra o autoritarismo, uma entrevista do médico Drauzio Varella à BBC escalava os trending topics do Twitter.

A editora da @BBCNewsBrasil Ligia Guimarães foi uma das que compartilhou a conversa: "@laigous Todos nós vamos perder amigos, muitos vão perder pessoas da família, e isso vai nos ensinar que não é possível viver como nós vivíamos até aqui. Drauzio Varella prevê ‘tragédia nacional’ por #coronavirusbrasil. ‘Brasil vai pagar o preço da desigualdade”.

Em um trecho, o maior comunicador da área médica no Brasil explica o que deveria estar claro na mensagem pró-isolamento social: “Quando você ouve dizer que na Itália os médicos têm que decidir quais são os que vão para a UTI, quem vai ter entubação ou não, quer dizer que os outros morrem de falta de ar. Essa é a situação real e é isso que tem que ser colocado para a população. Não é que vai morrer gente. Vai morrer gente com um enorme sofrimento. Por isso que os médicos defendem: vamos segurar, para que as pessoas não tenham que morrer desse jeito, que é um jeito inaceitável.”

Ivan Marsiglia é jornalista e bacharel em ciências sociais, Ivan Marsiglia é autor de “A Poeira dos Outros”.


Manuela Cantuária: O Mito e a Morte

Em sua homenagem, o presidente estuda lançar a campanha Morre que Passa

Circula no Planalto a informação de que Nelson Teich não era a primeira opção de Jair Bolsonaro para substituir Mandetta no Ministério da Saúde. O presidente vinha negociando com uma importante aliada de seu governo: a Morte. A candidata tinha o apoio da ala militar e de uma pequena parte da população, que vem fazendo carreatas em sua defesa.

Ilustração Silvia Rodrigues publicada na ilustrada na coluna da Manuela Cantuaria, nela um presidente Bolsonaro aperta a mão da morte.
Silvia Rodrigues/Folhapress
Apesar do clima amistoso e cordial entre ambos, a Morte não pôde aceitar o convite para fazer parte do governo. A pandemia tem ocupado a maior parte de seu tempo.

Onde os outros enxergam uma crise, a Morte vê uma oportunidade, assim como Jorge Paulo Lemann, Jeff Bezos e Gabriela Pugliesi. Mas ninguém no planeta está lucrando como a ceifadora. Nem os fabricantes de álcool em gel tiveram tanta sorte nos negócios.

Talvez não durasse muito no cargo. A Morte roubaria os holofotes ainda mais do que Mandetta. Já estampa jornais no mundo inteiro, circula entre celebridades e em comunidades carentes. Seu nome está na boca do povo. É respeitada e temida como Bolsonaro gostaria de ser. Nem o torturador Brilhante Ustra é digno de tamanha admiração pelo presidente.

Auxiliares palacianos disseram que a última reunião dos dois foi realizada por videoconferência, na semana passada. O encontro entre Bolsonaro e a Morte foi marcado por uma intensa troca de elogios. Desde 2018, os dois têm formado uma dupla e tanto.

A Morte agradeceu a Bolsonaro mais uma vez pela reforma da Previdência, pela flexibilização do uso de cadeirinhas de bebê nos carros, pela liberação de agrotóxicos proibidos, pela suspensão do uso de radares nas estradas, por revogar o sistema de fiscalização de armas e facilitar sua posse, por todas as medidas contra a população indígena, pela agenda brutal de segurança pública e outros mimos que tanto beneficiam seu trabalho.

Bolsonaro também pediu conselhos para a gestão da crise atual. A Morte sempre lhe pareceu a melhor saída para essa “cuestão” do coronavírus. Um remédio até mais eficiente do que a cloroquina. Em sua homenagem, o presidente estuda lançar a campanha Morre que Passa, uma colaboração inédita entre os ministérios da Saúde e da Economia.

A rasgação de seda não parou por aí. A Morte exaltou a demissão de Mandetta e acredita que o novo ministro fará um ótimo trabalho.

Reforçou a importância de continuar combatendo o isolamento social, furando a quarentena, participando de manifestações e defendendo a reabertura do comércio.

A parceria entre o “Mito” e a Morte promete ir ainda mais longe.

*Manuela Cantuária é roteirista e escritora, faz parte da equipe do canal Porta dos Fundos


Luis Felipe Salomão e Daniel Carnio Costa: Coronavírus e a recuperação de empresas

Momento excepcional exige sensibilidade a fim de preservar função social

A pandemia do novo coronavírus desafia as autoridades públicas a tomarem decisões necessárias para minimizar os seus efeitos devastadores sobre o sistema de saúde do país.

Essas medidas causam impacto também no funcionamento da economia e na vida das empresas. A análise desses reflexos nos países que já enfrentam o problema há mais tempo demonstra a gravidade da situação. Houve queda de cerca de 30% nos principais índices de mercados do mundo (Nikkei, Dow Jones e FTSE). A China divulgou que sua produção industrial despencou 13,5% em janeiro e fevereiro deste ano em relação ao mesmo período do ano anterior. Em todo o primeiro trimestre, o PIB chinês encolheu 6,8%.

O ministro Luis Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça - Marcus Leoni - 5.mai.19/Folhapress
No Brasil, tomando como exemplo as empresas aéreas, algumas apontam para quedas de até 90% na compra de passagens de voos domésticos e internacionais. O setor de serviços começa a sofrer dramáticas consequências do combate ao coronavírus, sem nenhuma previsão para a sua retomada.

As empresas de saúde privada, responsáveis por boa parte de atendimentos e leitos hospitalares em nosso país, diante do aporte elevado e inesperado de recursos, poderão sofrer desequilíbrios sérios.

É certo que o governo federal já anunciou medidas de auxílio financeiro para empresas e comerciantes autônomos no curto prazo.

Entretanto, não se pode esquecer que o Brasil ainda sente os efeitos da crise econômica iniciada em 2014, que fez com que o PIB nacional recuasse aproximadamente 7% nos anos de 2015 e 2016.

O estudo dos números de empresas em recuperação ajuda a entender o funcionamento da economia. Houve, a partir do ano de 2016, um aumento exponencial dos pedidos de recuperação judicial. Em abril daquele ano, por exemplo, registrou-se um aumento histórico de 94,8% no número de distribuição desses pedidos. Os índices de distribuição de processos de insolvência mantiveram-se crescentes desde 2015 até meados de 2017, conforme demonstram os indicadores da Boa Vista SCPC.

O tempo médio para aprovação do plano de recuperação judicial no estado de São Paulo pode chegar a 650 dias, e a lei impõe dois anos de fiscalização judicial do cumprimento do plano —é por isso que muitos desses processos ainda se encontram em andamento até os dias atuais.

Os efeitos econômicos colaterais do combate à pandemia também afetam com mais intensidade essas empresas que tentam a recuperação com o auxílio do Poder Judiciário.

O agravamento da crise da empresa em recuperação judicial, em decorrência do combate ao coronavírus, poderá representar motivo de força maior, de modo a justificar o descumprimento das obrigações por ela assumidas no plano de recuperação judicial e impedir a decretação da falência, podendo o juiz se valer da mediação para renegociação das dívidas.

A comissão que cuida desse assunto no âmbito do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) apresentou medidas, aprovadas pelo plenário, apontando ao menos quatro consequências imediatas do combate ao coronavírus nos processos de recuperação judicial de empresas em andamento na Justiça: a) suspensão de prazos; b) adiamento de Assembleia Geral de Credores (AGC) ou sua realização por meio de videoconferência; c) possibilidade de prorrogação do prazo de suspensão das ações e execuções movidas pelos credores contra a devedora em recuperação judicial (“stay period”); e d) a utilização da força maior para determinar a renegociação de planos já aprovados pelos credores, abrandando os efeitos do descumprimento de obrigações assumidas pela devedora.

Fornecedores e agentes financeiros deverão ter a sensibilidade para a renegociação de seus créditos, esperando-se, para as novas demandas, a utilização em larga escala do sistema de recuperação extrajudicial (ferramenta prévia à recuperação judicial, que permite a negociação direta e extrajudicial da devedora com seus credores).

O momento excepcional vivenciado pelo país impõe que se tenha a necessária sensibilidade para analisar os impactos da pandemia nos processos de recuperação judicial, a fim de que se possa preservar a função social das empresas e salvaguardar o empreendedorismo, com manutenção dos benefícios econômicos e sociais que decorrem de suas atividades (empregos, renda, produtos, serviços e tributos).

Luis Felipe Salomão
Ministro do Superior Tribunal de Justiça e presidente da Comissão de Recuperação Judicial do CNJ (Conselho Nacional de Justiça)

Daniel Carnio Costa
Juiz titular da 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo (atuando como juiz auxiliar da Corregedoria Nacional de Justiça)