Folha de S. Paulo

Celso Rocha de Barros: Bolsonaro perdeu a Lava Jato

Sem imagem de cruzada moral, governo passará a ser julgado como os outros

A saída de Sergio Moro do Ministério da Justiça alterou o equilíbrio político estabelecido pela eleição de 2018. Bolsonarismo e lavajatismo aproximaram-se na campanha de 2018, com consequências trágicas para o Brasil. Romperam na última sexta-feira (24). Não foi pacífico.

Em seu discurso de demissão, Sergio Moro começou lembrando que sob os governos petistas a Polícia Federal tinha mais autonomia que sob Bolsonaro. Doeu porque é verdade, Jair. Moro fez denúncias muito graves. Horas depois, o Jornal Nacional mostrou a conversa de WhatsApp em que Bolsonaro pediu a Moro a demissão do diretor da PF porque deputados bolsonaristas estavam sendo investigados. Na mesma semana em que Bolsonaro rompeu com Sergio Moro, aproximou-se de notórios acusados de corrupção como Valdemar Costa Neto, Roberto Jefferson e Arthur Lira.

Agora vamos descobrir se o autoritarismo de Bolsonaro consegue se promover sem parasitar a indignação criada pelas revelações da Lava Jato.

O discurso de guerra às instituições só foi viável em 2018 porque havia uma percepção generalizada de que o sistema era corrupto. Blindado pela facada e por toda uma vida dedicada à irrelevância, Bolsonaro conseguiu se tornar a tela em branco onde todas as fantasias moralizadoras foram projetadas.

Foi um senhor feito; não o subestimem. Mas era tudo mentira. Bolsonaro nunca teve qualquer atuação no combate à corrupção, e a nova aliança com Jefferson e Costa Neto é uma volta para casa.

Da mesma forma, o entusiasmo bolsonarista sempre foi alimentado por notícias falsas e crimes cometidos em redes virtuais, mas a raiva que ali se manipulava tinha um substrato real: os escândalos de corrupção revelados em Curitiba. Agora vamos descobrir se a máquina de crime virtual funciona tão bem jogando sem, ou contra, essa indignação preexistente.

Não há dúvida de que a Lava Jato também cometeu abusos, como ficou claro após as revelações da Vaza Jato. Essa disposição messiânica para passar por cima das regras, manifesta sobretudo no julgamento de Lula, certamente ajudou na aproximação com o bolsonarismo. Mas hoje está claro que Bolsonaro nunca se interessou pelo combate à corrupção, e que, da Lava Jato, Bolsonaro só gostava dos abusos.

Sem a imagem de cruzada moral, o governo Bolsonaro passará a ser julgado como os outros governos, por seus resultados. Como andam os resultados, Jair? Pois é.

Encurralado, Bolsonaro também pode tentar dobrar a aposta autoritária. É bem possível, mas, repito: teria que fazê-lo sem o entusiasmo antissistema que a Lava Jato lhe emprestava.

No momento, o governo tenta se reorganizar com militares e centrão. É cedo para dizer se funciona, mas noto que os militares não morreriam para evitar um governo Mourão. E o centrão não morre por ninguém.

Enquanto isso, tentam vender a tese do “Moro traidor”. O bolsonarista Alexandre Garcia postou que “a facada do Adélio foi pela frente”. A referência é oportuna, porque o bolsonarismo corre o sério risco de voltar aos níveis de popularidade pré-facada. Se acontecer, Bolsonaro pode cair. Se resolverem não derrubar, lembrem-se: isso tudo ele fez, durante a pandemia, porque achou que sobreviveu bem à queda de Mandetta. Imagine o que vai fazer se sobreviver à queda de Moro?

*Celso Rocha de Barros, Servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).


Leandro Colon: Demissão de Valeixo não foi única rasteira de Bolsonaro em Moro via Diário Oficial

Sanção de pacote anticrime no dia de Natal também desagradou o ex-ministro

A demissão surpresa de Maurício Valeixo da direção da Polícia Federal não foi a única rasteira via Diário Oficial de Jair Bolsonaro em Sergio Moro.

O ex-ministro nunca engoliu o gesto do presidente de publicar na virada de 24 para 25 de dezembro, em pleno dia de Natal, a sanção do pacote anticrime, uma bandeira de Moro.

Bolsonaro ignorou a maioria dos pedidos do então ministro e fez mais: manteve a criação do juiz das garantias, algo a que Moro se opunha.

Assim como no caso da exoneração de Valeixo, Moro, que estava no exterior naquele dia, foi surpreendido pela publicação no Diário Oficial.

O Ministério da Justiça havia entregado um parecer ao Planalto recomendando a derrubada de 38 pontos. Bolsonaro levou em conta só quatro.

Esse episódio está nas “pontuais divergências” citadas por Moro no discurso de sexta-feira (24) em que anunciou sua demissão do cargo.

“Mas não vou aqui falar dessas outras divergências. Isso fica para uma outra ocasião”, disse ele.

Moro ainda externou a aliados frustração pelo fato de Bolsonaro não ter respaldado a bandeira a favor da prisão de condenados em segunda instância.

Na visão do entorno do ministro, o Planalto nunca embarcou nas propostas de combate à corrupção.

Na fala de sexta ele deixou claro que no dia do “sim” a Bolsonaro, em 1º de novembro de 2018, obteve o compromisso sobre o tema.

Por fim, nas últimas semanas, não caíram bem na equipe de Moro os movimentos de aproximação dos partidos do chamado centrão com Jair Bolsonaro.

São políticos ambiciosos por verbas e cargos, tendo alguns deles sido alvo da própria Lava Jato.

Na despedida, o ex-juiz citou, por exemplo, a pressão de Bolsonaro para mexer na PF em Pernambuco.

O Planalto tem sido cobrado pelo líder do governo no Senado, Fernando Bezerra (MDB-PE), sobre ações da polícia contra ele e familiares.

Bezerra é investigado por desvio de dinheiro público no Nordeste.


Bruno Boghossian: Uma república a seus pés

Presidente admitiu que trabalha para transformar Polícia Federal em milícia particular

Jair Bolsonaro admitiu que trabalha para transformar a Polícia Federal em milícia particular. Sem muito constrangimento, o presidente confessou que mandou delegados investigarem casos de seu interesse e que ameaçou o chefe do órgão de demissão por interesses pessoais.

A crise que culminou na saída de Sergio Moro exibiu de maneira explícita o modo como Bolsonaro enxerga o poder. O presidente se acomodou tanto na cadeira que nem tenta disfarçar a intenção de explorar o governo como uma máquina a serviço de sua família e de aliados.

Bolsonaro decidiu atropelar a independência da Polícia Federal e pagar o preço de um choque com uma das estrelas de seu governo simplesmente para blindar seu grupo político.

Uma conversa divulgada por Moro mostra que o presidente demitiu Maurício Valeixo do órgão para barrar investigações sobre a fábrica montada pelo Planalto para atacar autoridades. No diálogo, Bolsonaro cita a notícia de uma apuração contra deputados amigos e completa: "Mais um motivo para a troca".

Na sexta (24), quando quis se defender da delação de Moro, o presidente reconheceu que tentou interferir ao menos três vezes em investigações da PF e que pediu ao ministro acesso diário a relatórios do órgão. Talvez ele devesse procurar uma agência de detetives particulares.

Bolsonaro confunde comando com subserviência. Na semana passada, soltou um "minhas Forças Armadas" e, depois, questionou se um presidente não pode cobrar informações "da sua Polícia Federal".

Essa é a lógica que rege suas relações com o aparelho público. Bolsonaro é o político que embolsava auxílio-moradia enquanto tinha apartamento próprio em Brasília. Agora, finge austeridade e pede confetes ao anunciar que desligou o aquecedor da piscina do Palácio da Alvorada.

O presidente quer convencer seus seguidores de que a eleição lhe conferiu poderes para impor suas vontades e submeter estruturas independentes a seus desejos. Bolsonaro quer uma república a seus pés.


Hélio Schwartsman: O vírus chinês

Doenças mudam, mas o ser humano continua o mesmo

As doenças mudam, mas o ser humano continua o mesmo. Duas de nossas obsessões são equiparar nossos inimigos a agentes infecciosos e batizar agentes infecciosos com o nome de nossos inimigos. Não surpreende, portanto, que representantes da direita nacionalista se apressem em culpar a China pela Covid-19. Numa só tacada, acham o seu bode expiatório, que ainda calha de ser comunista.

A história da sífilis se encaixa nessa tendência de forma tão conspicuamente bem documentada que adquire uma dimensão até cômica. Infectologistas ainda debatem a real origem dessa doença, que adquiriu características epidêmicas na Europa no século 16. Mas não há dúvida de que ela era uma arma de propaganda perfeita contra inimigo ou desafetos.

Os franceses rapidamente a batizaram de "mal de Nápoles", enquanto os italianos a chamaram de "mal francês" ou, no bom latim corrente à época, "morbus gallicus". Cada nação que era afetada pela moléstia a denominava com o objetivo de responsabilizar o outro. "Mal germânico", "mal polonês", "mal espanhol" e "mal cristão" foram alguns dos nomes que o treponema recebeu.

O termo "sífilis", que soa quase poético, foi cunhado justamente num poema, escrito em 1530 por Girolamo Fracastoro, sobre a história do jovem pastor Syphilus, que recebeu uma doença horrível --a sífilis-- como punição por ter insultado Apolo. Fracastoro é um daqueles gênios do Renascimento, que antecipou a teoria do contágio por partículas infecciosas e criou o termo "fômites", usado até hoje em infectologia. Mas Fracastoro também era italiano e, por isso, intitulou seu poema "Syphilis sive morbus gallicus", que se lê "Sífilis ou o mal francês".

Obviamente, essa guerra de palavras nada fez para conter a epidemia, que só foi parcialmente controlada quando a ciência desenvolveu medicamentos eficazes. Entre seus impulsos atávicos e a ciência, fique com a ciência.


Elio Gaspari: Bolsonaro sonha com o fim do mundo

Desde a chegada da pandemia, assombrado pelo medo de que seu governo possa acabar, Bolsonaro cultiva um radicalismo delirante

Os eleitores de Jair Bolsonaro viveram o suficiente para ver o ex-juiz Sergio Moro lembrando que durante a Operação Lava-Jato a presidente Dilma Rousseff não procurou intervir nas investigações que corroíam seu governo. Isso na mesma fala em que denunciou a interferência do presidente Jair Bolsonaro na Polícia Federal e o uso essencialmente fraudulento de sua assinatura eletrônica na exoneração “a pedido” do delegado Maurício Valeixo. A pedido de quem?

Formalmente, Moro pediu demissão. No mundo real, ele foi expulso do governo por Jair Bolsonaro. O ministro procurou negociar a substituição de Valeixo, mas esse caminho foi bloqueado no escurinho de Brasília. Sua saída agrava uma crise que Bolsonaro deliberadamente estimula.

Desde a chegada da pandemia, assombrado pelo medo de que seu governo possa acabar, Bolsonaro cultiva um radicalismo delirante. Demitiu o ministro da Saúde, foi para o portão do QG para estimular golpistas, apadrinhou uma mirabolância econômica que transforma o ministro Paulo Guedes em adereço de passista. Se tudo isso fosse pouco, avançou na jugular de Sergio Moro.

O repórter Gerson Camarotti sintetizou a conduta de Bolsonaro: ele entrou no “modo desespero”. Isso existe. Bernard Madoff era visto como um mago da finança americana e havia presidido a bolsa de tecnologia de Nova York. Em 2001, seu fundo de investimentos, um negócio de US$ 65 bilhões, rendia 10% ao ano, alegrando granfinos, inclusive alguns brasileiros. Era tudo mentira e sua explosão, questão de tempo. Ele passou a torcer para que o mundo acabasse. Assim ninguém saberia que ele era um vigarista. No dia 11 de setembro de 2001 ele viu o atentado da torres gêmeas e aliviou-se: “Ali poderia estar a saída”.

Não estava. Ele foi apanhado anos depois e está na cadeia, cumprindo uma pena de 150 anos de prisão. Um de seus filhos matou-se e todos os seus bens foram a leilão, inclusive os chinelos.
Num país assolado pela pandemia e por uma recessão econômica, assombrado e dispersivo, Jair Bolsonaro sonha com o fim do mundo.

O pandemônio presidencial
Paulo Guedes, o poderoso Posto Ipiranga, disse que seu projeto foi atingido por um “meteoro”. Tinha razão, mas depois do meteoro da Covid-19 veio o Pró-Brasil, uma fantasia de R$ 30 bilhões de investimentos que criaria um milhão de empregos e duraria dez anos. Guedes honrou o evento com sua ausência.

Para um ex-aluno da Universidade de Chicago, Guedes vive um pesadelo ao ouvir gente dizendo que o Pró-Brasil é um “Plano Marshall”. Quem acha isso confunde guindaste com girafa. O chefe da Casa Civil condenou o paralelo, mas infelizmente não conseguiu detalhar o plano.

Noutra analogia, o programa seria comparável ao “New Deal” americano dos anos 30 do século passado. Para isso, seria necessário colocar no mesmo pódio Jair Bolsonaro (que extinguiu o Ministério do Trabalho) e o presidente Franklin Roosevelt, que redesenhou as relações trabalhistas americanas. Quem quiser brincar de “New Deal” em Pindorama, deve saber que o presidente americano criou uma Previdência Social que ampara todos os cidadãos. Aqui há 40 milhões de invisíveis.

O Pró-Brasil é também uma vaga prestidigitação econômica. Os doutores falaram em investimentos do setor privado no mesmo dia em que o secretário de Desestatização revelou que não cumprirá sua meta de privatizações. O setor privado nacional está asfixiado e o internacional precisa ser convencido a investir num país governado por um negacionista que flerta com a quebra da ordem constitucional.

Atingido por uma crise que não provocou, Paulo Guedes está agora num governo que pretende desfilar o Pró-Brasil em ritmo de samba, enquanto ele continuará a dançar sua valsa na comissão de frente.

O Pró-Brasil é um neto torto do II Plano Nacional de Desenvolvimento, de 1975. Quando perguntaram ao então ministro da Fazenda Mário Henrique Simonsen o que ele achava do PND, publicado num livrinho de capa azul, ele foi breve: “Não leio ficção”.

Ninguém se incomodou porque sabia-se que era verdade.

Receita de ruína
Governos que não tiveram um ou mais generais no Planalto estrelando espetáculos foram estáveis e, às vezes, bem-sucedidos. A saber: os governos de Lula, Fernando Henrique, José Sarney e Emílio Médici. Todos tiveram chefes militares no comando do Exército.

Dois governos desastrosos tiveram generais buliçosos no palácio. A saber: as presidências de João Figueiredo e Costa e Silva.

Isso, deixando-se de lado o governo de João Goulart, com o poderoso “dispositivo militar”do general Assis Brasil.

Digital
Pode ter sido coincidência, mas a técnica de manifestação em frente a um quartel tem a digital do capitão Jair Bolsonaro.

Em 1992 ele era deputado e foi para o portão da Academia Militar das Agulhas Negras no dia da cerimônia de entrega dos espadins aos aspirantes. Pretendia distribuir panfletos aos convidados.

A bagunça foi contornada quando o comando mandou o major Luiz Eduardo Ramos negociar com Bolsonaro para que ele se distanciasse do portão.

Ramos, que hoje é ministro do capitão, rememorou o episódio para a repórter Maria Cristina Fernandes:

“Estava em uniforme de gala, mas subi na moto e fui encontrá-lo. ‘P... Jair, aqui não dá’. (...) Jair, me ajuda, eu recebi uma ordem. (...) Aí consegui que ele continuasse a distribuir os panfletos, só que em outro lugar que não ficava no caminho das autoridades. Todo mundo feliz e não deu mais problema.”

Não deu problema, naquele dia.

Eremildo, o idiota
Eremildo é um idiota e acredita que se Bolsonaro entregar ao centrão as arcas da Funasa e do FNDE, a parlamentares da estirpe do notório Valdemar Costa Neto, eles honrarão seus compromissos.

O cretino empolgou-se com o grito de guerra do presidente na porta do QG do Exército: “Acabou a época da patifaria”. O que ele não entende é por que ainda não se sabe quem fez o edital de agosto passado do FNDE pretendendo comprar 1,3 milhão de computadores, notebooks e laptops para a rede pública de ensino a um custo de R$ 3 bilhões.

A Advocacia-Geral da União mostrou que o certame parecia viciado e que os 250 alunos de uma escola de Minas Gerais ganhariam 30 mil laptops. Outros 355 colégios receberiam mais de um equipamento para cada estudante. A licitação foi suspensa em setembro e cancelada em outubro.

Os mecanismos de controle da Viúva funcionaram, mas a patifaria persiste, porque até hoje não se revelou quem (e por quê?) botou o jabuti na forquilha.

Eleição
A eleição municipal de outubro poderá ser adiada para novembro ou dezembro.

Uma coisa é certa, ela acontecerá neste ano.

Os interessados na prorrogação dos mandatos dos prefeitos devem tirar o cavalo da chuva.


Vinicius Torres Freire: Governos acabam, mas sobrevivem

Ainda está em aberto o destino de Bolsonaro, embora seja certo que o país vai acabar mal

Governos acabam, mas sobrevivem. O governo de Michel Temer acabou no “Joesley Day” e se arrastou até o fim do seu mandato. Mesmo o governo Dilma Rousseff 2, acabado em março de 2015 por falta de apoio popular, parlamentar e uma campanha de deposição, caminhou no passo do zumbi por um ano, até o impeachment.

Não é uma regra ou lei. É uma hipótese, uma história aberta, que pode até acabar em desgraça maior, no entanto.

Quanto ao governo de Jair Bolsonaro, nem se pode dizer que acabou, por não ter propriamente começado e porque, dados os últimos acontecimentos, o juízo sobre o seu primeiro fim estava em suspenso na sexta-feira. Assim pode ficar por um tempo.

O destino imediato da crise estava em suspenso porque, para começar, as próprias lideranças do Congresso deixaram como está para ver como é que fica –note-se o silêncio de Rodrigo Maia.

O bloquinho dos mensaleiros e petroleiros, sublegenda do centrão, ainda espera tirar um cascão de um governo que, antes de mais nada, procura se defender do impeachment e precisa arrebanhar uns 150 deputados extras.

Apesar das palavras de “pesar e profunda consternação” pelo passamento de Sergio Moro, os generais que procuravam governar o governo (sic) ainda estão longe de debandar e jogar a toalha. O noivado do governo militar com os mensaleiros continua.

Falta saber ainda como vai ser cozido outro ingrediente da receita habitual do impeachment, o prestígio popular. O efeito da queda de Moro pode ser lento ou talvez não chegue a ser decisivo. E se Bolsonaro mantiver, digamos, mais de 20% de popularidade?

Decerto do outro lado da trincheira há canhões apontados para Bolsonaro.

O morticínio da epidemia vai piorar até o fim da primeira semana de maio, na mais otimista das hipóteses. O aumento do desemprego de milhões, do corte dos salários de outros tantos e das falências não tem data para acabar.

O Supremo decidiu que parte da Polícia Federal permanecerá autônoma, investigando as “fake news” e os comícios da ditadura, inquéritos que ameaçam a filhocracia e o bolsonarismo parlamentar e empresarial.

Outro inquérito já no STF vai apurar as denúncias de Moro, que por sua vez insinua ter bala na agulha, talvez com uma reserva de dossiês, talvez com ações de apoio de seus amigos lavajatistas. Parte da PF pode escancarar o dossiê miliciano da familiocracia.

Nesta semana, o ministro-general Braga Netto parecia ter assumido a governança da terra arrasada. É outra incógnita maior. Os generais vão até o fim na dança do caixão de Bolsonaro? Por ora e sem outros escândalos, parecem dispostos a continuar.

É uma gente dada persistente, tenaz e, desculpem a obviedade, dada à guerra. Além do mais, estão de tal maneira identificados a Jair Bolsonaro que parecem sem alternativa que não seja o combate –não há espaço para a retirada e precisam de uma justificativa forte e honrosa para a rendição (um vexame, escândalo ou crime ainda mais indisfarçável dos Bolsonaro).

Note-se a disposição: não se vexaram de abalar Paulo Guedes e de negociar com o bloquinho mensaleiro.

A elite econômica, colaboracionista ou omissa, na maior parte, em parte também ora depende de socorros e favores do governo; não tem liderança ou articulação política para encontrar uma saída para este desastre que patrocinou, aplaudiu ou sobre o qual se calou. A oposição inexiste. Não há “ruas”.

Bolsonaro, ele mesmo, não tem limite. O jogo da morte continua.


Angela Alonso: Andar de cima demora a cansar de Bolsonaro

Esquerda sozinha não fará verão em tentativa de impeachment de presidente

Cloroquinistas desfilaram de carro, e AI-cinquistas aglomeraram-se à roda do presidente, que tossia. É imponderável se sobreviverão à epidemia e ao desgoverno Bolsonaro, mas é certo que se creem invulneráveis ao vírus e às leis. O primeiro tem sido mais eficaz que as segundas em enquadrá-los.

O inusitado é duplo: são manifestações de rua em tempo de confinamento e usam técnica democrática contra a democracia.

Intriga pouco a sintonia entre AI-cinquistas e seu eleito. Discursos e ações de Bolsonaro ao longo de suas carreiras, a exitosa de político e a gorada de militar, testemunham, cristalinos, a devoção por ideias, líderes e métodos da ditadura. Quem votou nele concordou ou encheu os ouvidos de cera. O presidente horroriza, mas não surpreende.

Intrigante é a ausência de manifestação concertada dos contrários. O sentimento antigoverno de cerca de metade dos brasileiros não gerou grandes protestos de rua antes da Covid-19.

Os organizadores habituais de protestos nos últimos anos são de três campos, que ora ocupam a rua sozinhos, ora em pares e, excepcionalmente (em 2013), em trio. O autonomista, de movimentos sociais recentes em torno de identidades sexuais, liberação de costumes e direitos sociais, tem pouca representatividade, com predomínio de ativistas saídos de um estrato da elite social —jovem, branco, cosmopolita, altamente educado. É antibolsonarista, mas carece de capilaridade.

Quem é representativo e sempre levou gente à rua é a esquerda socialista, campo de muitos movimentos em torno de direitos do trabalho e da redistribuição. Anda, porém, em crise. Durante os governos petistas, vários líderes seus viraram formuladores ou administradores de políticas. Tanta gestão secou o ímpeto de mobilização.

Pós-Dilma, veio um duplo baque. Uns foram atrás de emprego fora da política. Outros viram-se penalizados financeiramente, com a mudança da legislação sindical. Esse campo, então, tem as razões para contestar o governo, mas carece dos meios para orquestrar grandes eventos.

O terceiro campo é colcha de muitos retalhos antipetistas: movimentos de defesa da propriedade, por segurança, redução da intervenção do Estado na economia e na vida privada, costumes tradicionais, combate à corrupção. Aqui a equação é inversa: abundam recursos, mas há menos motivos.

Sua facção liberal não saiu à rua por estar de acordo com a condução de economia. A ala conservadora viu-se atendida pelo foco moral de Damares e similares. Já a patota autoritária anda feliz da vida. São os AI-cinquistas da carreata de domingo passado. Sectários de Bolsonaro, aferram-se a mesmas crenças e métodos.

Não são esses os janeleiros. É fácil saber contra quem as panelas batem e as hashtags sobem, mas é difícil coordenar o protesto. Até aqui, líderes socialistas e autonomistas não chamaram a si o serviço.
Talvez porque quem também paneleia agora são os que panelaram contra Dilma. Arrepiados com o trote autoritário, tiraram de novo o inox do armário. Porém, lideranças liberais e conservadoras, que poderiam coordená-los, embora imersos nas panelas financeira e midiática, não fritaram Bolsonaro com o fogo alto que acenderam no “tchau, querida”.

E o farão? Parte dos líderes de movimentos liberais e conservadores são empresários ou com eles se conectam. E não estão sendo empurrados por essa sua base. Sondagem Datafolha aferiu que 65% dos empresários seguiam vendo no presidente um líder no começo do mês. No pós-Mandetta, escalaram a 70%. O andar de cima demora a cansar de Bolsonaro.

Assim, falta uma peça do quebra-cabeças dos bem sucedidos impeachments de Collor e Dilma: apoio amplo do empresariado. Pode ser que com a queda de Moro e o esvaziamento de Guedes o vento mude.

O mexe-mexe no governo pode encaixar a outra peça, o laço entre mobilização social e sistema político. Até aqui a frente de políticos abertamente contra Bolsonaro era de esquerda, o que limitava sua penetração social. Mesmo sua capilaridade nos movimentos autonomistas e socialistas era relativa, já que os primeiros desconfiam de instituições e os demais se dividiam entre seus pequenos partidos e o PT. Mas agora o PT se candidatou a liderá-los, ao abraçar o impeachment.

Contudo, a esquerda sozinha não fará verão. Quando o longo inverno do isolamento acabar, quem, deste lado, quiser lotar a rua contra o presidente vai ter que engolir o “eu avisei”, para persuadir líderes liberais e conservadores. Estes últimos, por sua vez, terão de engolir sapos —com barba ou sem— se quiserem salvar o Estado de Direito. Aliança abstrusa, mas, nestes tempos, o inverossímil adquiriu plausibilidade. O 1º de Maio será um ensaio dessa concertação, da CUT a Maia, de FHC a Lula.

Isso, claro, se até lá sobrevivermos à pandemia, como indivíduos e como democracia.

*Angela Alonso, professora de sociologia da USP e pesquisadora sênior do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento.


Arminio Fraga: Respostas a uma tempestade perfeita

A sinalização de que existe solução viável para a crise ajuda a reverter o pessimismo

Há décadas tenho me dedicado ao estudo das crises econômicas. Nesse período convivi com o tema atuando aqui e no exterior como economista, professor e gestor de investimentos. Tive inclusive a ocasião de trabalhar duas vezes no Banco Central, ambas abundantes em crises.

A atual é a mais desafiadora que já vi. No nosso caso, trata-se de uma verdadeira tempestade perfeita. Isto porque temos que lidar ao mesmo tempo com três graves crises: sanitária, econômica e política.

As três vêm sendo objeto de intensa cobertura e debate. Por isso, vou apenas resumir o quadro, para a seguir focar no que fazer a respeito (em tese, pelo menos).

A pandemia vem exigindo relevante isolamento social, em parte por determinação oficial, em parte por medo da doença. Seus impactos já se mostram dramáticos e heterogêneos. Sofrem como sempre mais (e muito) os mais pobres, assim como as empresas que lidam diretamente com clientes, sobretudo as pequenas e médias.

O desemprego, que já vinha alto, vai aumentar muito. O crescimento, que já era anêmico, vai virar queda substancial no PIB. Esse quadro de doença e desemprego é motivo de ansiedade geral. Infelizmente, falta ainda uma estratégia clara e de âmbito nacional para se lidar com a pandemia.

Na economia, medidas vêm sendo tomadas na direção de amortecer a perda de renda de milhões de pessoas e a falta de crédito para as PMEs mais atingidas. Com o (necessário) aumento dos gastos ligados à crise e com a queda na arrecadação decorrente da recessão, as necessidades de financiamento do Estado vão crescer muito.

Os mercados terão que absorver muita dívida. Paira no ar o medo de que gastos temporários se tornem permanentes, hoje uma ameaça concreta, como uma bactéria oportunista.

Essa dupla incerteza sanitária e econômica é paralisante, e ameaça se transformar em uma perigosa espiral recessiva. A ficha precisa cair quanto a esse grave risco.

Como se não bastasse o massacre social e econômico que está encomendado, o quadro político vem se complicando com repetidos sinais de desprezo pela democracia e pela ciência emitidos pelo Executivo federal, acompanhados por desentendimentos entre os Poderes e relevantes trocas de comando nos altos escalões do governo federal.

Como consequência da tempestade perfeita, a Bolsa vem caindo e o dólar e os juros de longo prazo vêm subindo.

O que fazer então? Crises econômicas em geral se resolvem quando se vislumbra um caminho de saída viável, em direção a objetivos bem definidos e plausíveis. Esse caminho tem que ser construído. Nos piores momentos de uma crise, tudo parece impossível.

Mas a sinalização de que existe uma solução viável em geral ajuda a reverter as expectativas mais pessimistas. Na medida em que as expectativas comecem a ser confirmadas por ações concretas, a crise tende a amainar, e a economia a se recuperar. O que podemos plausivelmente esperar do nosso caso?

Na saúde, busca-se o fim da pandemia com o menor custo possível em termos de vidas e sofrimento. As experiências internacionais recomendam que um grau elevado de isolamento social seja mantido até que as curvas de contaminação e óbitos claramente se invertam. Estamos longe desse ponto.

Para minimizar o dano, urge reforçar as equipes médicas e seus equipamentos, assim como massificar o uso de máscaras, de testes e de rastreamento de casos. Apesar de contarmos com a ampla rede do SUS, do ponto de vista das ferramentas necessárias estamos bem atrasados.

Muito provavelmente a pandemia só será debelada quando vacina e/ou cura chegarem. Esse horizonte longo complica deveras o encaminhamento das soluções.

Portanto, parece certo que o elevado estresse social também durará bastante tempo e exigirá a continuidade das políticas assistenciais, provavelmente adentrando 2021. Digno de menção aqui o extraordinário esforço da sociedade através do terceiro setor.

As demandas sobre o Estado já são enormes e tendem a crescer. Nesse contexto, ideias exóticas como moratórias de pagamentos e empréstimos compulsórios vêm sendo cogitadas. Ora, as cadeias de pagamento em uma economia moderna são extensas e complexas. Há que se tomar cuidado aqui. Propostas mal desenhadas podem acrescentar uma crise financeira às já existentes nas áreas sanitária e econômica.

O enfrentamento de um desafio destas dimensões requer necessariamente que o Executivo federal assuma seu papel institucional de liderança e coordenação, algo que não vem ocorrendo. Não basta o importante esforço de governadores e prefeitos.

Urge um bom diálogo com o Congresso, para adequar as pautas às urgências do momento. É necessário também definir prioridades para os gastos correntes, limitando-os às necessidades temporárias da crise.

E, por fim, o Executivo precisa deixar claro que, uma vez superada a crise sanitária, a busca do equilíbrio fiscal estrutural será retomada. Estes são desafios enormes para qualquer governo, que dirá para um em crise política.

*Arminio Fraga, sócio da Gávea Investimentos, é presidente do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS).


Marcos Mendes: Plano Marshall?

Fórmula parece não diferir da política instituída em 2010, que levou país à queda de 7%

O governo anunciou um “Plano Marshall” para recuperar a economia após a pandemia.

O Plano Marshall é visto como uma bem-sucedida injeção de dinheiro público na reconstrução da infraestrutura da Europa após a 2ª Guerra Mundial, que teria aberto as portas para mais de duas décadas de crescimento acelerado.

O primeiro esboço do plano brasileiro aponta para aumento do investimento público, isentando projetos prioritários do teto de gastos. Há sugestão de pular etapas do processo de planejamento para os investimentos saírem mais rápido. Serão colhidas opiniões de empresários sobre os incentivos a setores considerados prioritários.

Essa fórmula parece não diferir da política instituída a partir de 2010, que levou o país à queda de 7% no PIB entre 2014 e 2016. O que se viu foi investimento público malfeito, com base em projetos apressados, queda de produtividade e disparada da dívida pública.

Naquela ocasião, estávamos em melhor forma fiscal, colhíamos os benefícios do boom de commodities, e a economia mundial estava em crescimento. Será que daria certo agora, em condições mais adversas?

Não só o diagnóstico que embasa a proposta parece equivocado. Também inadequada é a sua comparação com o Plano Marshall.

Esse plano representou uma injeção de dinheiro dos EUA nos países da Europa. Que país seria o patrono do Brasil?

Nós, mesmos, é que vamos financiar os projetos? Mas vamos sair da pandemia com a dívida e o déficit do governo em 90% e 8% do PIB, respectivamente!

Não contabilizar os investimentos no limite de gastos não significa que eles não vão aumentar a dívida. Haverá, isso sim, descrédito dos indicadores fiscais. Outro problema da fracassada tentativa recente.
Pressionar ainda mais o Tesouro provocará fuga de capital e aumento do custo de financiamento da dívida, travando a retomada do crescimento.

J. Bradford de Long e Barry Eichengreen mostram que a real importância do Plano Marshall foi ter funcionado como um atrativo oferecido pelos EUA para induzir a Europa Ocidental a retornar para a economia de mercado.

Durante a guerra, os governos se acostumaram a políticas intervencionistas. Havia o temor de que deixar o mercado voltar a funcionar poderia gerar outra depressão, como a dos anos 1930.

O comunismo prosperava na vizinhança e induzia os políticos a manter as práticas de guerra, tais como controles de preços, racionamentos de divisas e o planejamento central.

Na Europa pós-guerra, todos os segmentos sociais queriam recuperar renda e patrimônio destruídos e pressionavam seus governos por ajudas e subvenções, levando a endividamento público e inflação.

O dinheiro dos EUA aumentou o tamanho do bolo, permitindo uma distribuição de perdas menos draconiana entre os diversos setores da sociedade. Viabilizou a estabilização macroeconômica, a construção de um novo pacto social e reformas pró-mercado.

Muito pouco foi gasto em infraestrutura. A maior parte da ajuda financiou déficit preexistente.

Ao lado da “cenoura”, a ajuda havia um “porrete”. O uso do dinheiro tinha que ser aprovado pelos americanos, que eram os gestores do plano, e o faziam com mão de ferro. A França teve seus fundos retidos enquanto não adotou uma política de equilíbrio fiscal. Da Alemanha exigiu-se o saneamento da estatal de transporte ferroviário.

Os gestores do plano também induziram a abertura econômica e a integração dos países europeus, bem como a construção de um bom ambiente de negócios. O investimento privado e a produtividade dispararam. O setor privado foi o responsável pelo sucesso econômico.

O Plano Marshall foi indutor das reformas de que o Brasil precisa. Teremos que fazê-las por iniciativa própria, sem a tutela de um interventor externo. Não será fácil desenhar um acordo social de repartição dos custos com a renda em contração. Fundamental não reincidir em erro que cometemos tão recentemente.

*Marcos Mendes é pesquisador associado do Insper, é autor de 'Por que É Difícil Fazer Reformas Econômicas no Brasil?'


Roberto Simon: Roteiro da queda de Moro tem trechos plagiados da Casa Branca

Assim como nos EUA, havia crença no Brasil de que superministros seriam os adultos na sala

O general John Kelly era secretário de Segurança Doméstica quando foi puxado para a Casa Branca, em julho de 2017. Kelly virou chefe de gabinete de Donald Trump –cargo comparável, no Brasil, ao de ministro-chefe da Casa Civil–, com a missão de botar ordem na Presidência.

Conteria os extremos de Trump e organizaria o governo. Seria um “adulto na sala”, dizia-se.

Àquela altura, a sala de Trump supostamente já tinha outros adultos. Gente como o general James Mattis, chefe do Pentágono, e Gary Cohn, ex-executivo do Goldman Sachs e principal assessor econômico da Presidência.

A eles também caberia segurar o presidente e garantir que a burocracia operasse com um mínimo de eficiência.

Durou pouco. Apesar de Kelly, o governo seguiu disfuncional, imprevisível e extremado. Apesar de Mattis, Trump continuou a destroçar as alianças militares que formam a base do poder global americano. Apesar de Cohn, a Casa Branca se lançou numa aventura protecionista sem precedentes.

Nenhum deles conseguiu controlar o presidente. Pior ainda, no caminho, ficou claro que nenhum era tão adulto assim. Antes de saírem batendo a porta, todos foram coniventes com decisões e políticas que traíam os valores que eles diziam encarnar.

Tornaram-se, afinal, forças para legitimar Trump.

A melhor tradução de “adulto na sala” para o vernáculo bolsonarista é “superministro”. O significado é quase o mesmo: o indivíduo virtuoso e técnico que dominará uma área estratégica do governo, a conter os extremos do presidente e a gerir uma burocracia eficiente.

Lava-jatistas ganharam Sergio Moro. O dito “mercado” ganhou Paulo Guedes.

O presidente Donald Trump ao lado de John Kelly, na Casa Branca - Yuri Gripas - 5.out.2017/Reuters
Ambos se enfraqueceram em pouco mais de um ano (prazo, aliás, similar ao de Kelly, Mattis e Cohn). Em vez de controlar o presidente, bolsonarizaram-se, validando decisões que traíam suas supostas virtudes.

Antes de cair, o herói da Lava Jato foi ministro do governo que mais tentou interferir e sabotar órgãos de controle na nossa história recente.

Pioramos em nossa capacidade de lutar contra a corrupção. O Chicago Oldie, depois de desprezar a ameaça da Covid-19, está sendo trocado por um PAC de farda.

A lição geral é a mesma: não existe governo “apesar” do presidente, Trump ou Bolsonaro.

No entanto, há uma diferença crucial entre ter adultos na sala, em Washington, e superministros, em Brasília. A saída dos assessores “moderados” de Trump não abalou o governo ou o país.

Naquele mundo pré-coronavírus, mesmo sem eles, os EUA continuaram a ter uma economia de quase pleno emprego, com a bolsa de valores em alta e a vida que seguia. Politicamente, a popularidade de Trump manteve-se estável. Seu poder sobre o Partido Republicano, inconteste.

No Brasil, o jogo é outro. A saída de Moro é, sem dúvida, um golpe na credibilidade de Bolsonaro entre seus apoiadores, e mesmo entre os que se mantinham neutros em relação ao seu governo.

A depender do caminho que o ex-juiz seguir, Bolsonaro também pode se deparar com um poderoso antagonista.

Com a economia brasileira a afundar recessão adentro, uma saída de Guedes também poderia ter consequências enormes.

No final, a força institucional dos EUA é outra. E nossa fraqueza nos torna ainda mais vulneráveis à mitologia dos ministros salvadores.

Roberto Simon é diretor sênior de política do Council of the Americas e mestre em políticas públicas pela Universidade Harvard


Julianna Sofia: Quem sobe e quem desce na crise da pandemia

Perda de dois ministros exprime deterioração acelerada da gestão bolsonarista

Causa aturdimento a perda de dois populares ministros do governo Bolsonaro num lapso inferior a dez dias. A exoneração de Luiz Henrique Mandetta (Saúde) e a saída de Sergio Moro (Justiça e Segurança Pública), subprodutos do capricho e da inépcia presidenciais, exprimem a deterioração acelerada da gestão bolsonarista em meio à pandemia. São frenéticos os movimentos da gangorra do poder.

Caiu o diretor-geral da Polícia Federal, Maurício Valeixo, depois de nove meses de fritura e 48 horas após o STF autorizar inquérito para apurar quem está por trás do protesto pró-ditadura militar do qual participou o presidente. À queda se seguiu o pronunciamento apocalíptico do agora ex-ministro e ex-juiz. Moro acusou o presidente de tentativa de interferência na PF e de fraude no ato de demissão de Valeixo.

Também em baixa, o ungido Paulo Guedes (Economia). O Posto Ipiranga pena para deglutir sete slides de intervencionismo estatal em estado bruto, chamado Pró-Brasil. Enquanto Guedes repisa o script das reformas estruturais e privatizações para o pós-crise, a ala militar do governo recicla o PAC, programa petista para gerar crescimento.

Até ontem poderoso "primeiro-ministro", Rodrigo Maia é outro a tocar o chão. Visto como o homem a apertar o botão do impeachment, ele vem sendo isolado pelo Planalto, que oferece cargos aos partidos do fisiológico centrão em troca de votos.

No jogo da alternância, sobem: 1) Rogério Marinho (Desenvolvimento Regional), o ex-auxiliar de Guedes virou a casaca e tornou-se defensor do Pró-Brasil; 2) Braga Netto (Casa Civil), com amplos poderes, articula a criação de uma base de apoio parlamentar, tutela a Saúde no combate à crise e é o principal curador do novo PAC; 3) Líderes do centrão —prestes a ganhar cargos, já farejam dinheiro para obras rumo a 2022; 4) Jorge Oliveira (Secretaria Geral) é cotado para o lugar de Moro na Justiça e também para a vaga que poderia ter sido do ex-juiz no STF —não fosse o balanço da gangorra.

*Julianna Sofia é jornalista, secretária de Redação da Sucursal de Brasília.


Mario Sergio Conti: O inferno são os outros, e os outros fazem carreatas em defesa da peste

Antes do Plano Marshall, estreou em Paris uma peça de Sartre que desde o título expressa a peste e o confinamento, 'Entre Quatro Paredes'

A peste pegou em cheio a linguagem pública e a particular. A pública porque ela é manipulada pelo poder para perverter a realidade. A particular porque, apinhados e à míngua entre quatro paredes, os pobres foram silenciados. A verborreia dos dominantes mantém a mudez dos dominados.

Ilustração de carros verdes enfileirados dando a volta em um quadrado amarelo. O quadrado parece um cômodo vazio com uma pessoa deitada no chão. Há um círculo azul na imagem e algumas bandeiras do Brasil em alguns carros.

A perturbação linguística desmoraliza clichês da idade clássica. Caso do Rubicão, o rio que generais eram proibidos de cruzar para não se acercarem com tropas do coração do império, Roma. Júlio César o cruzou e disse: “A sorte está lançada”. Deu-se bem e virou ditador.

Bolsolígula disse que a peste era gripezinha e o confinamento, asneira. Propagou perdigotos. Pregou a ditadura nas barbas do Supremo e do Congresso, exortando a tropa a atropelá-los. Enxotou o ministro da Saúde e depois o da Justiça, cortesãos sebosos que tantos serviços lhe prestaram.

Toda vez que Bolsonero atravessou o Rubicão, ouviu-se a algaravia da indignação oficialesca, acompanhada por semblantes graves. Mas sobressaiu na cacofonia o vagido ameno, o bacharelês castiço, o dó de peito impotente dos potentados: “Lamentável sob todos os aspectos etc.”.

Já não há Rubicões: eis a novidade além-linguagem. Ele foi cruzado tantas vezes que quase dispensa uma boa quartelada. Na republiqueta do Messias, milicos mandam e paisanos obedecem. Antes, contudo, as vestais de toga encaram os fardados e, altivas, questionam: “Quer um café, general?”.

A última azeitona verde-oliva na empada do Planalto é o interventor na Saúde. Ele logo avisou: “Vou como instituição, não como Eduardo Pazuello”. Ao funéreo ministro nominal, o chofer do rabecão, cabe olhar o chefe nos olhos e indagar: “Que tal uma fatia de bolo, general?”.

Militares na política têm uma vantagem crucial sobre políticos civis. Como não querem votos, e sim cargos e salários, não posam de Miss Simpatia. Dirigem suas piscadelas coquetes apenas ao capitãozinho que tem a caneta.

Mas a má fé dos de quepe é idêntica à dos sem-quepe.

Mal chegados ao Planalto, os generais já prometeram um Plano Marshall. Há 81 anos, o plano original respondeu à pressão dos povos europeus que venceram o nazismo.

Em 1945, houve guerras civis na Grécia e nos Balcãs; insurreições na França e na Itália; expropriações no Leste.

O Plano Marshall respondeu também ao interesse americano em reconstruir a Europa. Os Estados Unidos investiram ali o equivalente a US$ 100 bilhões. Pois bem. Existe pressão popular hoje? Há interesse em pôr capital produtivo no Brasil? Alguém vê US$ 100 bilhões à disposição?

A quimera militar, pois, é como a mitológica: tem cabeça de leão, corpo de cabra e cauda de serpente. É uma figura especiosa da retórica, uma mentira troncha para enganar os trouxas. Como diz o vulgo, é uma fake news —um meticuloso amálgama do simbólico com o real.

Antes do Plano Marshall, estreou em Paris uma peça de Sartre que desde o título expressa a peste e o confinamento, “Entre Quatro Paredes”. Ela se passa dentro de um quarto, onde se digladiam um escritor heroico que se acovarda, uma patroa infanticida e uma funcionária ressentida.

Sem referências rombudas, por meio de uma linguagem estupenda, se percebe que, fora do quarto, rondam os lobos acinzentados, os nazistas, os colaboracionistas da ocupação. No fim, se revela que, sem demônios de tridente, enxofre e labaredas dramáticas, o quarto é na verdade o inferno.

As três personagens estão condenadas a se atormentarem por toda a eternidade. A última fala da peça marcou época: “O inferno são os outros”. Ao contrário do clichê que se tornou, ela mostra o primado da vida social, a interdependência entre o ser e os outros, e não sua solidão infinita.

Ela pode ser completada por duas outras frases de Sartre: “a existência precede a essência” e “o marxismo é a filosofia insuperável de nosso tempo”. Enquanto a sociedade estiver dividida em classes, a liberdade será motivo de engajamento, um devir. O inferno são os outros.

Alguns outros. Os lobos promovem carreatas pela peste na avenida Paulista e Brasil afora. Seguem ordens do presidente e de seu clã, dos seus generais, empresários e milicianos. A linguagem deles não é a da lei nem a da urbanidade. É a da mentira, da força, da agressão. São fascistas.

Eles devem ser enfrentados como tais. Com firmeza, união e audácia, e não com nhenhenhém. A existência da peste, vivida entre quatro paredes, ensina o que está na essência de Bolsonaro e sua gangue: a vontade de destruir e dominar.

*Mario Sergio Conti é jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".