Folha de S. Paulo

Nabil Bonduki: Bolsonaro quer dar um autogolpe?

A história mostra que inúmeros autogolpes que geraram regimes autoritários foram justificados por supostas tentativas de golpes

Em 16 de março, após o presidente participar de atos contra o Congresso e o STF, e se misturar com os manifestantes, quando se iniciava o isolamento social e ainda não tínhamos nenhum morto por coronavírus no país, escrevi uma coluna com o título “Crimes de responsabilidade de Bolsonaro não podem ficar sem resposta”. Ficaram, pois o país vive um impasse político onde nem o presidente nem os que a ele se opõem têm força suficiente para se impor.

Cinco semanas depois, quando o país registra, pelos subestimados dados oficiais, 2,5 mil mortes e mais de 30 mil casos, ainda longe de atingir o pico, ele dobrou a aposta em uma manifestação claramente golpista. Nesse domingo (19), enquanto carreatas percorriam as ruas de várias cidades em seu apoio, Bolsonaro afrontou a democracia junto com manifestantes que pediam intervenção militar e AI-5. Incitou o povo contra a chamada “velha política” e sinalizou um autogolpe autoritário, falando em “fazer o possível para mudar o destino do Brasil”. E, ainda, defendeu o fim do isolamento, única forma de proteger a vida de pessoas frente ao inevitável avanço da Covid 19.

Embora esteja contrariando as recomendações do OMS, do Ministério da Saúde e dos especialistas e isolado politicamente, em conflito com governadores e parte significativa da classe política, limitado pelo STF, questionado por quase toda a mídia e entidades tradicionais da sociedade civil e sofrendo uma oposição de amplo leque político da centro direita à esquerda, com panelaços diários, Bolsonaro continua contando com expressivo apoio popular.

Pesquisa do Datafolha de 17/4 mostrou que 36% dos brasileiros consideram “ótimo e bom” seu desempenho em relação ao coronavírus enquanto que 23% consideram regular. E mais: 52% acreditam que ele tem capacidade de liderar o país. É necessário reconhecer que o discurso do presidente na crise sanitária sensibiliza segmentos expressivos da sociedade. Nada menos do que 52% dos empresários apoiam seu desempenho, enquanto que seu discurso agrada os que estão descontentes com o fechamento do comercio e com a falta de trabalho e renda.

Por outro lado, é forte o sentimento do “Fora Bolsonaro”, que une os que sempre o rejeitaram com os que se arrependeram do voto. Além de representar um risco à democracia e ao combate à pandemia, o presidente já cometeu crimes de responsabilidade suficientes para justificar a abertura de um processo de impeachment. Mas, com esse apoio popular, é uma temeridade falar, nesse momento, em impeachment.

Ademais, ele conta com o apoio de vários segmentos das forças de segurança, como as policiais militares e as patentes inferiores do exército, além das milícias, todos bastante contaminados pelo “bolsonavirus”. Frequenta com assiduidade os quartéis e não se intimidou em atacar a democracia em frente ao Quartel General do Exército. Inúmeros generais ocupam cargos de alto escalão no governo, embora não se saiba bem qual seria a posição da cúpula do exército no caso de uma crise aguda.

Não por acaso, na semana passada, Bolsonaro acusou o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, o governador de São Paulo, João Dória, e o STF de estarem preparando um golpe para tirá-lo do governo. Estaria buscando um pretexto para dar um autogolpe? A história revela que inúmeros autogolpes que geraram regimes autoritários foram justificados por supostas tentativas de golpes contra os governantes.

Em 1933, Hitler, recém empossado chanceler, utilizou o incêndio do parlamento alemão como pretexto para acusar uma suposta ameaça comunista e eliminar a democracia. As liberdades foram abolidas e 25 mil pessoas foram presas. 0 governo ganhou poderes para intervir nos estados.

Recentemente, em 2015, o presidente turco, Erdogan, usou uma tentativa frustrada de golpe para criar um estado de emergência, eliminar a liberdade de imprensa e reprimir a oposição. Cerca de 150 mil pessoas foram demitidas do serviço público e 50 mil foram detidas.

Entre nós, o presidente Getúlio Vargas, em 1937, acusou os comunistas de estarem preparando um golpe (Plano Cohen) como pretexto para permanecer no governo e acabar com a frágil democracia. Todos os legislativos do país foram fechados, a liberdade de expressão suprimida e foi decretada a intervenção nos estados. Foi como nasceu o Estado Novo.

Um processo de impeachment mal articulado pode servir de pretexto para uma aventura autoritária. O país está conflagrado, em um impasse político. O presidente não tem força para impor suas concepções antidemocráticas mas, por outro lado, sem maior apoio popular e sem coesão das forças políticas que a ele se opõem, não há possibilidade de removê-lo, ainda mais em meio a uma pandemia.

Mais do que nunca uma frente ampla democrática é essencial para o país se contrapor a qualquer tentativa autoritária.

A pandemia avança sem que haja uma coordenação nacional capaz de enfrentar a crise sanitária e econômica. A situação exige que se estruture formas de governança inovadoras que possam, ao menos parcialmente, cumprir tarefas que caberiam ao governo federal.

O bem sucedido consórcio dos governos estaduais do Nordeste talvez possa servir de referência para um consorcio mais amplo, que reúna todos os estados, para estruturar uma estratégia e uma ação coordenada para enfrentar a pandemia, como a compra de equipamentos e uma cooperação intergovernamental. Algo semelhante poderia ser pensado em relação à inevitável crise econômica. A nível nacional, o protagonismo do Congresso é essencial.

Para concretizar essa frente democrática, é necessário maior tolerância em relação às diferenças partidárias e ideológicas, especialmente as que dividem o centro da esquerda. Talvez uma experiência concreta para enfrentar a crise sanitária possa servir de ensaio para uma articulação que torne possível, a médio prazo, eliminar o risco autoritário representado pelo presidente.

*Nabil Bonduki é professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.


Nelson de Sá: China se volta para o risco crescente da soja brasileira

'É fundamental resolver dependência e expandir canais de importação para diversificar riscos', reporta o financeiro Yicai 

Ecoada por portais chineses, extensa reportagem no Yicai, site de notícias financeiras do Grupo de Mídia de Xangai, destaca que “a estabilidade da importação de soja se tornou foco de atenção generalizada”.

O avanço do coronavírus no Brasil, EUA e Argentina, maiores exportadores ao mercado chinês, “vai trazer incerteza maior nos próximos meses”.

O Brasil responde por 65%, daí a atenção maior, a ponto de detalhar a cobrança do sindicato dos portuários de Santos por “equipamentos de proteção” e o risco de greve dos caminhoneiros, que podem “paralisar mais de metade do transporte de soja, dado o transporte ferroviário subdesenvolvido”.

Em suma, citando fontes diversas, “é fundamental resolver o problema da dependência, ampliar a autossuficiência e expandir os canais de importação de soja para diversificar os riscos”.

SORTE
Despacho da agência Xinhua mostra banda brasileira que se apresentaria em Xiam, na China, foi surpreendida pelo isolamento e ficou por lá. "No início, achamos azar, mas agora parece que tivemos muita sorte", afirma músico.

ETNOCÍDIO
O New York Times, com fotos de Victor Moriyama, foi à tribo dos Uru Eu Wau Wau para noticiar que "Bolsonaro cumpre promessas para Amazônia e indígenas temem etnocídio". Ele abre "agressivamente" a floresta à agricultura "no momento em que coronavírus apresenta ameaça mortal".

TESTES, TESTES
NYT, Wall Street Journal e Washington Post atravessaram o fim de semana voltados para, no dizer do WSJ, o quadro de “desordem, escassez, atrasos” nos testes do coronavírus no país.

Nova York e Nova Jersey, “epicentros”, pressionam Washington por testes, mirando-se na Alemanha, que segundo o NYT busca sair da quarentena com testes de anticorpos.

CHINA, CHINA
Também por NYT e WP, respectivamente, “Republicanos visam fazer da China o bode expiatório” e “Campanha de Trump vê vantagem em ligar Biden à China”, com nova propaganda. A campanha democrata já respondeu, com anúncio ligando Trump a Xi Jinping.

Os dois candidatos reagem a pesquisas que, segundo o Los Angeles Times, apontam que a maioria dos americanos quer até compensação financeira da China pela pandemia.

*Nelson de Sá é jornalista, cobre mídia e política na Folha desde a eleição de 1989.


Igor Gielow: Bolsonaro faz apelo golpista e coloca Forças Armadas em saia justa

Governadores veem ensaio de golpe sem apoio pelo presidente, isolado na crise do coronavírus

SÃO PAULO - A demonstração de apoio do presidente Jair Bolsonaro a uma manifestação que pedia intervenção militar e "um AI-5" na frente do quartel-general do Exército fez a crise política inserida na pandemia do coronavírus subir de patamar.

Como se isso fosse possível, notou um governador de populoso estado ainda no princípio do embate com a Covid-19. A agressividade estava na conta, mas Bolsonaro ainda consegue chocar alguns, a começar por integrantes da cúpula militar da ativa que trocaram mensagens durante o domingo (19).

A escolha minuciosa do local e da data, o Dia do Exército, colocou as Forças Armadas ante um impasse que juravam querer evitar desde que pactuaram apoio tácito ao pleito presidencial de Bolsonaro no segundo turno de 2018. Agora, os fardados terão de se posicionar sobre as intenções de seu comandante nominal.

Bolsonaro foi claro em sua fala: quer uma ruptura ao estilo Hugo Chávez, de "povo no poder", desde que, claro, o poder seja exercido por ele. Olimpicamente isolado dos outros Poderes, seus instrumentos para tal missão são parcos.

Congresso, apesar dos planos mirabolantes de atração do centrão decantados, está fora de alcance. O Supremo Tribunal Federal, que não engole a família Bolsonaro direito desde que o filho Eduardo chutou a necessidade de um "cabo e um soldado" para fechá-lo, idem.

Fritar de forma desastrada Luiz Henrique Mandetta no Ministério da Saúde só levou a outros titulares da Esplanada a certeza de que o próximo poderá ser um deles ou delas.

Logo, nada mais natural que dobrar seu apelo aos militares que, aos poucos, aceitaram serem abduzidos para dentro de seu governo na crença de que poderiam ditar os rumos de um capitão que saiu pelas portas dos fundos do Exército no fim dos anos 1980, insubordinado nato que era.

Para um general ouvido, o presidente apenas quis tensionar o ambiente em um momento de fragilidade, conforme seu estilo. Para o oficial, da cúpula da ativa, as Forças Armadas não farão nada que fira seu papel constitucional.

Outro oficial, de um setor Marinha mais afastado do governo, preferiu a comparação com a tentativa frustrada de autogolpe de Jânio Quadros em 1961, que redundou na renúncia do presidente.

Tal sentimento é compartilhado por governadores de estado, que passaram a tarde trocando impressões sobre o insólito acontecimento deste domingo. Dois deles afirmaram categoricamente que Bolsonaro quer dar um golpe, embora duvidem das condições objetivas para tal.

A união da classe é, como já foi dito, inédita. No sábado, o Fórum Nacional dos Governadores divulgou carta defendendo os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), dos ataques recebidos durante a semana de Bolsonaro.

Os sinais da tibieza bolsonarista são claros. As carreatas em favor das ideias intervencionistas foram mínimas, em termos de adesão. Não houve uma mobilização popular comparável, digamos, à Marcha da Família com Deus pela Liberdade de 1964, para ficar num exemplo extremo.

A família do presidente, essa novidade na vida política nacional, ajudou, postando ao longo do dia em redes sociais apoios dos mais bizarros e ameaçadores: a cereja foi dada pelo vereador Carlos, replicando um vídeo de pessoas atirando em apoio a Bolsonaro. Não é preciso nem semiótica para entender a mensagem.

Se a frustração popular com as limitações da quarentena é compreensível, não havia uma multidão na rua. Havia, sim, as mesmas franjas que pediam "SOS Forças Armadas" nos atos pelo impeachment de Dilma Rousseff em 2016.

São pessoas que acham correto buzinar na frente de hospitais com pessoas morrendo da mesma doença que eles negam a gravidade, sob inspiração de Bolsonaro. Mesmo quem quer encerrar as limitações, sem necessariamente fazer parte do grupo, são só 22% da população, mostrou o Datafolha.

Assim como não há empresariado em massa a favor do governo central. Novamente, a pergunta fica: e os militares?

Não há uma ordem unida entre as Forças, para começar. Não se vê um integrante da Força Aérea com destaque no governo, até porque o "homem do vermífugo", o astronauta-ministro Marcos Pontes, não é considerado da cota fardada apesar de ser militar.

A ativa, após angaraiar prestígio ao governo cedendo quadros, tenta ao longo da crise do coronavírus se distanciar da politização fomentada por Bolsonaro contra governadores, João Doria (PSDB-SP) à frente.

E as manifestações, públicas ou não, têm sido no sentido de que a Constituição será soberana. Bom, em 1964 isso também era argumento, mas os tempos são outros.

A classe política está se sentindo empoderada, para usar o clichê. Depois de ter sido escorraçada pelas urnas em 2018, a instabilidade de um presidente acuado a colocou em evidência. Pesquisas internas de partidos mostram, contudo, que Congresso e Judiciário continuam com suas imagens no chão.

É com isso e com o fato de que as Forças Armadas são ainda vistas com respeito que Bolsonaro conta. A ala militar dentro do governo, o líder Fernando Azevedo (Defesa) à frente, acreditava que seria possível moderar o chefe e conduzir o manejo da emergência sanitária.

Este domingo provou, pela enésima vez, que isso é impossível. Pior, Bolsonaro colocou os fardados em xeque no tabuleiro da política. Isso adensa a crise a um novo nível, e a perspectiva não é das melhores para o isolado mandatário.


Samuel Pessôa: Longo inverno

É bem possível que o mundo posterior à pandemia seja pior do que o FMI projeta

A maior diferença da crise atual  em relação à crise das hipotecas norte-americana, também conhecida por grande crise global (GCG) e que explodiu em setembro de 2008, é que a atual se iniciou no setor real da economia, enquanto a fonte da CGC foi o forte desequilíbrio nos bancos. Aquela foi uma crise financeira, fruto de regulação deficiente.

Assim, na crise atual os mercados financeiros foram muito menos atingidos do que em 2008. Por exemplo, a queda da Bolsa norte-americana entre janeiro de 2008 e março de 2009 foi de 52%. No evento atual, entre 12 de dezembro e 23 de março, a queda foi de 34%. Por aqui, a Bovespa caiu 60% em 2008, ante 47% no atual episódio.

Se olharmos o impacto sobre as taxas de juros, tanto no mercado de empréstimos entre bancos, também chamado de mercado de moedas, quanto no de títulos de dívida emitidos por empresas com pior qualidade de crédito, a alta no atual episódio foi muito menor do que na crise financeira global.

Apesar de o impacto no setor financeiro ter sido muito menor, aparentemente o impacto na economia real da atual crise é, na melhor das hipóteses, equivalente ao da crise anterior.

Na semana passada, o FMI divulgou suas novas projeções de crescimento econômico. A economia mundial deve recuar 3%, uma piora de cenário, em comparação ao que prevalecia antes do agravamento da crise, de 6,3 pontos percentuais.

No biênio 2008-2009 —lembremos que a crise estourou no fim de 2008—, o crescimento, com relação à tendência anterior, reduziu-se em 7 pontos percentuais.

Adicionalmente, hoje sabemos que o crescimento da economia no período logo anterior à crise de 2008 era insustentável. A crise, de certa forma, resultou dos desequilíbrios produzidos na década anterior.

Mesmo o cenário básico de FMI, de retração da economia mundial de 3% em 2020, com crescimento de 5,8% em 2021, pode ser muito otimista. Supõe que haverá devolução de boa parcela da perda do ano anterior.

Mas é bem possível que o mundo posterior à pandemia seja pior do que o FMI projeta. De fato, o próprio Fundo considerou outros três cenários, todos eles piores do que o cenário básico. Em todos eles a taxa de crescimento da economia ainda seria negativa em 2021.

Com a informação que temos agora, é muito difícil saber como será o desempenho da economia no período posterior à saída da política extrema de distanciamento social. Em algumas semanas, teremos as projeções para o desempenho da China no segundo trimestre, que poderá dar uma ideia.

Por aqui o Congresso Nacional tem trabalhado. A Câmara aprovou um pacote de ajuda aos estados e municípios. A ideia foi promover um seguro por seis meses em razão da queda de arrecadação de ICMS e de ISS que já ocorre.

Devido ao nosso federalismo truncado —os entes subnacionais não são integralmente responsáveis pelos seus atos, e, portanto, não são autorizados a contrair dívidas—, a União cobrirá parte das perdas.

Pela nova legislação, a União assegurará a receita nominal observada em 2019. O grande risco com o seguro é os estados serem estimulados a conceder desonerações, dado que a compensação será de acordo com a receita observada.

O projeto aprovado na Câmara está na direção correta, mas há espaço para aperfeiçoamento no Senado.

O professor da Universidade de Brasília José Luis Oreiro fez inúmeras críticas à minha coluna anterior em seu blog. Reagi a elas no Blog do Ibre.

Samuel Pessôa é pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.


Janio de Freitas: Festa no hospício

 Bolsonaro e seu incentivo mortífero estão configurados na legislação criminal 

A substituição, em meio a uma pandemia, de um ministro que segue a Organização Mundial da Saúde e as práticas bem-sucedidas em numerosos países é, em qualquer caso, jogar a vida alheia em uma aposta cega e cruel. Homicida ou genocida, potencialmente. No caso brasileiro, o ato é ainda mais grave no desprezo egoísta por todos os demais, todo um povo.

O ministro que chega traz muita incerteza e confiança rala. Está há muito afastado da prática médica (“fui médico”, disse na posse), nem teve, jamais, alguma experiência com serviços de medicina pública. Como pessoa, sua fala de escolhido foi uma enrolação ininteligível.

Afundou na dupla má intenção: pôr-se tanto como adepto do isolamento recomendado pelas melhores competências médicas —e também por ele defendido em texto de 13 dias antes— como anunciar-se “em alinhamento completo” com Bolsonaro, ou contra aquelas recomendações.

Essas credenciais inversas foram as aprovadas pelo trio de autoridades no assunto que, escolhidas por Bolsonaro, submeteram Nelson Teich a avaliação: um dono de construtura, Meyer Nigri; o publicitário Fabio Wajngarten, tido como distribuidor do coronavírus na Casa Branca e no Planalto, e um dos três vice-presidentes informais-efetivos, Flávio Bolsonaro.

As afirmações de que Bolsonaro retirou Mandetta por interesse eleitoreiro mereceram, por parte de Sergio Moro, uma confirmação traidora: não há, diz ele, “ninguém em sã consciência preocupado com popularidade”. Sendo notório que Bolsonaro não tem consciência sã, Moro o acusa de eleitoralismo. E o faz, não esqueçamos, como íntimo conhecedor de tal consciência.

Apesar do cuidado na escolha de um companheiro para Damares, Weintraub, Ernesto Araújo, Augusto Heleno, Ricardo Salles, Wajngarten e cia., uma possibilidade ficou sem resposta: por que não um general, mais um? Na reunião ministerial que antecedeu por horas a demissão de Mandetta, Bolsonaro quis lembrar aos presentes que foi eleito presidente, algo esquecido no próprio governo.

E daí partiu para o apelo patético de que os ministros ouçam suas opiniões. Pois então, ninguém mais do que os generais do governo, e parece que também de fora, ouve, aceita, concorda, apoia e defende o que Bolsonaro diz e faz.

Com um ou com outro, importa é o que Bolsonaro diz à multidão dos inquietos com o isolamento protetor: “Está começando a ir embora essa questão dos vírus”. Por isso, “tem que abrir o comércio, voltar à normalidade”, “tem que enfrentar o vírus, não adianta ficar dentro de casa”. Com mais ênfase, “tem que voltar à escola”.

A exigência de Bolsonaro contrasta com a situação calamitosa da mistura de mortos e doentes em Manaus, por explosão das contaminações e óbitos. Na constatação da Folha, seis dias atrás, 178 prefeituras de São Paulo já somavam mais de 1.000 casos de contaminação e 100 mortes além do total apresentado pelo governo paulista. O mesmo, por certo, se dá em vários estados, se não em todos. O Brasil não tem preparo nem para contabilizar seus mortos e doentes.

A incitação ao risco maior e à desobediência às recomendações preventivas tem, é óbvio, fácil penetração nos segmentos menos instruídos. Sem dúvida, é causa de parte do aumento de aglomerações pelo país afora, com avanço das contaminações.

Bolsonaro e seu incentivo mortífero estão configurados com clareza na legislação criminal. Inaplicável porque a carência de caráter se impõe à legislação. Mas daí não resulta que crime deixe de ser crime e criminoso deixe de ser criminoso.

Por tudo o que disse até agora, o recém-ministro Nelson Teich subscreve, com repetição sobre repetição, estar “em alinhamento completo” com Bolsonaro. Torna-se de repente convicto da “gripezinha”, portanto, e do que a leva até o Código Penal. Disposto a acabar com o isolamento preventivo, mas não com a falácia: nada vai “mudar de forma brusca”. Logo, vai mudar. Mudança brusca basta-lhe a sua.

A OMS e a ciência médica contrariam a “vingança de satanás”, a “gripezinha”, a economia, o interesse eleitoral de Bolsonaro e incontáveis coronavírus. A turma do Planalto e as cúpulas dos ministérios mostram-se aliviadas, sem exceção incômoda, na terra sempre e toda plana.

Janio de Freitas é jornalista.


Hélio Schwartsman: Previsões pós-pandêmicas

Temos a tendência de reagir exageradamente a crises que evoquem ameaça existencial

Leio com doses iguais de interesse e ceticismo as opiniões de filósofos, cientistas políticos e economistas sobre as grandes mudanças sociais que a pandemia deixará como herança. É claro que algumas coisas vão mudar. Como dizia Heráclito, nunca tomamos banho duas vezes no mesmo rio. Mas receio que previsões feitas no olho do furacão carreguem uma probabilidade ainda maior do que o normal de dar com os burros n’água.

Humanos temos a tendência de reagir de forma exagerada a crises que evoquem algum tipo de ameaça existencial. E temos bons motivos para isso. Todos os que caminhamos hoje sobre a Terra somos descendentes diretos daqueles que não brincavam com o perigo, ainda que eventualmente tenham pagado mico por correr da própria sombra. Nossos parentes mais relaxados não deixaram progênie.

Aqui temos de tomar cuidado para não misturar as estações. O fato de termos uma propensão inata ao superdimensionamento não implica necessariamente que haja histeria com a Covid-19, como sugere o presidente. É preciso separar nossos impulsos valorativos daquilo que efetivamente sabemos sobre a doença, que é pouco.

As estimativas para os parâmetros epidemiológicos do vírus variam enormemente. Podemos estar tanto diante de um cenário em que a Covid-19 se mostrará de três a quatro vezes pior do que uma gripe sazonal até algo mais próximo da gripe espanhola. Realmente, não se sabe ainda.

O que já dá para descartar é que estejamos lidando com uma peste negra, que ceifou 1/3 da população da Europa e da Ásia no século 14. Essa, sim, foi uma epidemia que deixou marcas profundas e duradouras na sociedade. Outros surtos produziram efeitos reais, mas bem mais sutis.

A imagem que me vem à cabeça é a dos motoristas apressados. Depois que veem um acidente grave na estrada, costumam respeitar os limites de velocidade, mas o bom comportamento só dura alguns quilômetros.

Hélio Schwartsman é jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…".


Bruno Boghossia: Bolsonaro aposta em jogo de espera mórbido na crise do coronavírus

Presidente faz ameaça vazia enquanto aguarda consequências econômicas da pandemia 

Há três semanas, Jair Bolsonaro acordou “com vontade de baixar um decreto” para atropelar governadores, forçar a reabertura do comércio e derrubar medidas de isolamento contra o coronavírus. Ele explicou, dias depois, que o documento estava “pronto para assinar”, mas disse que ainda estava “esperando o povo pedir mais”.

Para um presidente acostumado a jogar para a plateia, a espera foi um tanto frustrante. Desde então, Bolsonaro assistiu ao agravamento da epidemia, foi proibido pelo Supremo de interferir nas restrições impostas pelos estados e viu pesquisas que mostraram que mais de 70% dos brasileiros apoiam essas decisões.

O presidente Jair Bolsonaro no anúncio o novo ministro da Saúde, Nelson Teich - Pedro Ladeira - 16.abr.20/Folhapress
Ao sustentar a ameaça por tanto tempo, o presidente aposta num jogo de espera mórbido. Bolsonaro sabe que um plano de retorno imediato à normalidade é inexequível e não tem apoio dos cidadãos, mas ele espera que o jogo mude quando, inevitavelmente, as consequências econômicas da crise se tornarem cada vez mais dramáticas para a população.

A intimidação já nasceu vazia. Quando o presidente lançou a ideia de desmantelar o isolamento, governadores e prefeitos discutiram uma reação conjunta. Muitos combinaram que, se aquilo ocorresse, manteriam as medidas e ignorariam Bolsonaro. Na sequência, o STF ainda decidiu que os gestores locais têm autonomia para aplicar essas regras.

O presidente ainda fingiu preservar alguma autoridade nos últimos dias. Disse que enviaria um projeto de lei ao Congresso para flexibilizar o distanciamento, mesmo sabendo que os parlamentares não aprovariam esse texto. Depois, insistiu na reabertura do comércio e completou: “É um risco que eu corro, porque, se agravar, vem para o meu colo”.

Como o isolamento está de pé, já se sabe que o presidente não vai abraçar essa responsabilidade. Ele continua pintando outros políticos como inimigos, enquanto aguarda para debitar na conta deles o custo econômico da pandemia. Para Bolsonaro, esse conflito é muito mais útil do que qualquer ação prática.

Bruno Boghossian é jornalista, foi repórter da Sucursal de Brasília. É mestre em ciência política pela Universidade Columbia (EUA).


Demétrio Magnoli: Na pandemia, sociedades atemorizadas por monstros entregam sua sorte aos médicos

Polarização política no Brasil e nos EUA destila polêmica estúpida, mas não é assim na Alemanha

Nos EUA, é Anthony Fauci; no Brasil, Mandetta. Os dois médicos ocuparam o centro dos palcos, ofuscando Trump e Bolsonaro. O presidente americano resiste prudentemente ao perigoso instinto de demitir o diretor dos Institutos Nacionais de Saúde. O brasileiro, comandado por sua própria seita de sicários de redes sociais, acaba de dispensar o ministro da Saúde.

Lá, como aqui, ainda que em tons menos primitivos, a polarização política destila uma polêmica estúpida que contrapõe saúde pública e economia. Não é assim na Alemanha, onde ninguém discute que os dois elementos pertencem à mesma equação.

A pandemia oferece um curso inteiro sobre os efeitos do populismo. Trump e Bolsonaro falaram numa "gripezinha". As sociedades reagiram, atemorizadas pelos monstros, entregando sua sorte aos médicos.

Nesse passo, enquanto a direita populista agrupava-se atrás do estandarte da "economia", todos os demais constituíam uma frente ampla em defesa da "vida". A quarentena converteu-se em programa político e, quanto mais à esquerda, mais radical é a convocação ao isolamento social.

Há uma certa lógica na atração da esquerda pela quarentena. A China fez a mais completa delas. Quarentenas reforçam o poder estatal, em detrimento das liberdades públicas e individuais. É a hora da polícia: a emergência propicia o controle da informação, a mordaça à imprensa. A paralisia econômica demanda agressivas políticas de distribuição de fundos públicos. A "mão invisível" do mercado cede lugar à mão bem visível do Estado. O fechamento de fronteiras promove desglobalização.

Contudo, diante dos monstros, a atração estende-se bem além da esquerda. Quem quer ficar à mercê de ideólogos descontrolados, santos guerreiros da salvação pela cloroquina? Como tolerar governantes que se associam a bispos de negócios empenhados na restauração da prática medieval de preces coletivas para expulsar a peste? Daí, a escolha majoritária pelo "governo dos médicos".

O populismo está longe do núcleo do poder na Alemanha. Por lá, o colchão de um robusto sistema de saúde pública propiciou a adoção de medidas de isolamento social menos draconianas que as da Itália ou da Espanha. O governo central e os governos estaduais operaram em estreita cooperação, ouvindo recomendações de equipes de especialistas. O sistema federal provou que é capaz de agir. A curva de óbitos foi achatada em níveis relativamente baixos. No processo, os médicos nunca tomaram o lugar dos representantes eleitos pelo povo.

A transição para a reabertura começou numa reunião da primeira-ministra Angela Merkel com os governadores. Merkel guiou-se por um relatório encomendado à Academia Nacional de Ciências. O roteiro foi preparado por 26 experts "“entre os quais, além de médicos, contam-se economistas, sociólogos, juristas e filósofos. A frase-chave diz que as medidas emergenciais devem ser gradualmente removidas "por razões constitucionais". A equação alemã tenta equilibrar não dois, mas três imperativos: saúde, economia, liberdades constitucionais.

Não é o paraíso, a morada dos anjos. Há divergências, dissonâncias, tensões, acesos debates políticos. Mas, por lá, praticamente ninguém discute sobre o valor relativo da vida e do dólar (ou do euro), pois dá-se como óbvio que economia é vida e, também, que os negócios não podem decolar em meio à instabilidade gerada por um colapso hospitalar.

"Saúde ótima e a rápida retomada da vida social não são fundamentalmente incompatíveis entre si, mas mutuamente dependentes", escreveram os experts, sintetizando um consenso nacional.

Na ausência do personagem do monstro, a novela sobre o médico e o monstro ficou fora das telas alemãs. A diferença não está na "cultura" dos alemães, mas numa paisagem política menos envenenada pelo populismo. Lá, o vírus é, exclusivamente, um microrganismo.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Julianna Sofia: Dez anos na UTI

Guedes entregará ao próximo presidente eleito um rombo

Há um rombo errante nas contas públicas federais neste ano. Segundo cálculos oficiais, já está em R$ 600 bilhões e com tendência a se aprofundar. Frente à catástrofe generalizada provocada pela pandemia na vida das famílias e nas empresas, é mais que aceitável romper os limites fiscais, mesmo com o custo elevado que será apresentado à sociedade brasileira nos anos que se seguirão.

Diante das incertezas sobre o impacto da crise, o governo de Jair Bolsonaro foi obrigado a abandonar uma meta fixa para o resultado primário em 2021 (sem os encargos da dívida). A impossibilidade de projetar o comportamento da arrecadação levou a equipe econômica a ancorar sua política fiscal no teto de gastos --dispositivo que limita o avanço das despesas à inflação.

Espera-se um déficit de R$ 127,5 bilhões para 2022, último ano do mandato de Jair Bolsonaro. Nada mais irônico para um ministro da Economia, de orientação ultraliberal e que chegou a prever zerar o déficit público já no primeiro ano da gestão bolsonarista, não conhecer o azul de perto.

Paulo Guedes entregará ao próximo presidente eleito um rombo a ser administrado. Seus técnicos estimam para 2023: saldo no vermelho equivalente a R$ 83,3 bilhões e dívida pública a se aproximar de 90% do PIB (Produto Interno Bruto). Profecia realizada, o país terá atravessado um período de dez anos com as contas na UTI --martírio iniciado na administração de Dilma Rousseff em 2014.

Por ora, a estratégia é reforçar o discurso da diligência fiscal e retomar o ímpeto reformista e privatizante quando o mundo superar a crise. Na prática, porém, Guedes e o presidente semeiam uma guerra improfícua com o Legislativo. O clima conflagrado tornará a execução dessa agenda mais difícil no pós-coronavírus. De imediato, medidas emergenciais enviadas pelo Executivo ao Parlamento são submetidas a doses cavalares de anabolizante fiscal.


Hélio Schwartsman: Dá para ignorar o presidente?

Não é simples para a imprensa aderir à estratégia de tornar Bolsonaro insignificante

Respondo hoje à provocação do leitor Jean Claude Villari: “Está muito claro que nosso presidente não é capaz de fazer leituras de cenários, por mais simples que sejam. Comete erros muito graves e inadmissíveis. A minha pergunta é por que a imprensa cede tanto espaço a essa figura?”.

Villari está entre os que acham que a mídia deveria somar-se a forças como Congresso, STF e até parte dos ministros que promovem uma espécie de boicote informal da Presidência, fazendo gestões para minorar os estragos que o voluntarismo irresponsável de Bolsonaro produz.

A causa é justa, mas receio que o papel institucional da imprensa seja um pouco diferente do das outras forças citadas. Não é tão simples para os meios de comunicação aderir à estratégia de tornar o presidente insignificante.

A missão da imprensa é dupla. De um lado, devemos proceder a uma espécie de curadoria da informação, zelando por sua veracidade, exatidão e relevância. Boa parte das declarações de Bolsonaro não passa por nenhum dos três filtros. De outro, precisamos registrar os principais acontecimentos do dia, sem tentar exercer poderes censórios. O jornalismo é, como diz o chavão, o primeiro rascunho da história.

Enquanto Bolsonaro era só um deputado do baixo clero, não era difícil ignorar as estultices que nunca deixou de proferir e noticiá-las apenas quando batiam algum recorde. Agora que é o presidente, é mais complicado adotar essa política. Sua caneta tem força.

Os dois objetivos da imprensa nem sempre são compatíveis, o que frequentemente nos deixa numa sinuca de bico. Se dermos ênfase à primeira missão, falhamos na segunda, e vice-versa. Penso que erraremos menos se noticiarmos sem filtros tudo o que o presidente diz e faz. Pode-se até argumentar que foi a insistência da mídia em divulgar seus desatinos que possibilitou a articulação de forças que vai tornando a crise mais administrável.


Reinaldo Azevedo: Queda de Mandetta é o menor dos problemas; a bolha de irrealismo é bem maior

No mundo paralelo de Bolsonaro e Guedes, a realidade deve ser banida em nome da convicção

Luiz Henrique Mandetta não é mais ministro da Saúde. Jogo jogado. O embate mais importante em Brasília é outro. Já chego lá. Que caminho adotará Nelson Teich? Ou o país segue alinhado com a parte do mundo que adota graus variados de isolamento social ou escolhe a companhia de Nicarágua, Belarus e Turcomenistão, grupo no qual The Economist e Washington Post incluem o Brasil. O estrago do bolsovírus vai além de 2022.

Há outras escolhas a fazer. Ou o SUS mantém a sua vocação de sistema universal ou escolhe lançar velhos e outros vulneráveis ao mar de vírus e outras pestilências. Para o arrivismo ignorante de certo empresariado que trafica bugigangas também ideológicas e que faz a cabeça do presidente, o Brasil é bom demais para os seus pobres.

É certo que Mandetta cometeu erros, mas não caiu por causa deles. Foi a coragem de desconsertar, por meio do endosso ao distanciamento social, a irrealidade do "guedo-bolsonarismo" que o derrubou. Um certo "Uzmercádu" inventou um suposto Paulo Guedes iluminista em oposição ao Bolsonaro das trevas.
Esse bifrontismo nunca existiu. São uma mesma bolha de ineficiência, comprovada bem antes de o coronavírus nos assombrar. O patógeno só escancarou o engodo. A Economia está mais doente do que a Saúde. Querem ver?

A tal PEC do Orçamento de Guerra dá ao governo um cheque em branco. Defendi a medida, que ofereceu uma saída a um Guedes catatônico. Mas e os estados e municípios, que vão efetivamente tratar dos doentes? Eis a questão relevante.

A proposta de reposição do ICMS da Câmara é correta. A reposição das perdas segundo a arrecadação de igual período do ano passado é um critério objetivo. Arbitrários são os R$ 22 bilhões de Guedes. É mentira que sejam R$ 40 bilhões.

Os dias não andam fáceis. A arte da argumentação perdeu eficácia na era da afasia da razão, do anacoluto da lógica, da falência da objetividade. O governo diz rejeitar a proposta da Câmara porque não se vai lidar com um número fechado, já que não se sabe o tamanho da queda da arrecadação.

A menos que estejamos fazendo matemática no hospício, isso explica por que os deputados fizeram a escolha certa. Em essência, as despesas dos estados seguem sendo as mesmas, havendo pouca margem para corte nestes dias, com os brutais desembolsos adicionais, ainda incertos, decorrentes do combate ao coronavírus.

Os R$ 22 bilhões correspondem a 1/23 do total do ICMS de 2019. O desdobramento óbvio seria um só: Estados quebrados, com dificuldade de pagar policiais militares e profissionais de saúde. A república federativa iria para o lixo, restando o governo com o cheque em branco, sob o comando daquele que a Economist apelidou de "BolsoNero". O isolamento pode ter enlouquecido alguns. Prefiro a lucidez.

"Ah, mas os governadores, assim, podem usar esse dinheiro para praticar generosidades indevidas". O texto aprovado tem uma salvaguarda contra tal prática. Que seja reforçada se necessário. Mais: pretende-se impor, em meio ao caos, um ajuste de salários do funcionalismo nos estados, com corte ou congelamento.

A mão de obra essencial de atendimento aos doentes é estadual e municipal, não federal. É uma boa hora para esse debate? Gita Gopinath, economista-chefe do FMI, diz que não. Ela lembrou a necessidade de reformas, mas destacou que a prioridade é o combate ao vírus. Terá o FMI se deslocado excessivamente à esquerda?

Os estados estão sendo demonizados pelas lentes de um vidente que, há dois meses-- não dois anos--, apontava as virtudes de um dólar nas alturas, congratulando-se com o fato de que domésticas não mais podiam viajar à Disney. Sua primeira resposta à crise, há um mês, foi um pacote de rearranjo de dívidas, sem dinheiro novo, de R$ 147 bilhões.

Depois vieram as três parcelas de R$ 200 para informais e a MP que rompia contrato de trabalho sem compensação.

No mundo paralelo do guedo-bolsonarismo, a realidade deve ser banida em nome da convicção. O conservador Mandetta não cabe lá. Nem a matemática elementar.

Reinaldo Azevedo é jornalista, autor de “O País dos Petralhas”.


Bruno Boghossian: Bolsonaro quer um ministro que dê verniz técnico a suas vontades

Presidente fingiu equilíbrio, mas logo provou que não vai abandonar convicções 

Há duas semanas, Nelson Teich afirmava que a conduta das autoridades de saúde no combate ao coronavírus era perfeita. O oncologista escreveu um artigo em que defendeu medidas de isolamento adotadas nos estados e atestou: “É a melhor estratégia no momento”.

O país ainda não chegou ao ponto mais crítico da pandemia, mas o doutor já mudou o tom. Depois de se encontrar com Jair Bolsonaro, ele evitou repetir a avaliação. “Chegar agora e dar uma opinião seria algo quase irresponsável”, disse, em entrevista ao SBT —enquanto o novo chefe o observava da poltrona ao lado.

O presidente Jair Bolsonaro e o novo ministro da saúde, Nelson Teich, no Palácio do planalto - Pedro Ladeira/Folhapress
Depois de 11 dias de ameaças, Bolsonaro finalmente decidiu pagar o preço da demissão Henrique Mandetta. Livrou-se de um subordinado que o contrariava publicamente e escolheu um substituto com perfil técnico, mas aparentemente disposto a se adaptar a seus comandos.

O novo ministro estreou com um idioma mais parecido com o do presidente. Disse que não mudará a orientação de isolamento de forma brusca, mas indicou que essa será uma de suas missões. Alinhou-se ao discurso de Bolsonaro a favor da proteção da economia, embora já tenha indicado que a preservação de vidas deveria ser prioridade absoluta.

“Qualquer escolha e ação, seja ela da saúde, econômica ou social, tem que ter na mortalidade o seu desfecho final, por mais difícil que seja chegar a esses números”, escreveu o oncologista, no início de abril.

Ao anunciar o nome de Teich, o presidente tentou demonstrar equilíbrio, mas logo provou que não vai abandonar suas convicções. Em transmissão nas redes, ele insistiu que a política de saúde deve mudar e voltou a criticar o isolamento. “Tem que começar a abrir o comércio e voltar à normalidade”, repetiu.

O presidente não cometeu a insanidade de nomear um negacionista do coronavírus ou um vendedor de cloroquina, mas deixou claro o que espera da pasta. Bolsonaro quer um ministro que dê verniz técnico a suas vontades. Não se sabe se Teich vai cumprir esse papel.

*Bruno Boghossian é jornalista, foi repórter da Sucursal de Brasília. É mestre em ciência política pela Universidade Columbia (EUA).