Nabil Bonduki: Bolsonaro quer dar um autogolpe?

A história mostra que inúmeros autogolpes que geraram regimes autoritários foram justificados por supostas tentativas de golpes.
Foto: Alan Santos/PR
Foto: Alan Santos/PR

A história mostra que inúmeros autogolpes que geraram regimes autoritários foram justificados por supostas tentativas de golpes

Em 16 de março, após o presidente participar de atos contra o Congresso e o STF, e se misturar com os manifestantes, quando se iniciava o isolamento social e ainda não tínhamos nenhum morto por coronavírus no país, escrevi uma coluna com o título “Crimes de responsabilidade de Bolsonaro não podem ficar sem resposta”. Ficaram, pois o país vive um impasse político onde nem o presidente nem os que a ele se opõem têm força suficiente para se impor.

Cinco semanas depois, quando o país registra, pelos subestimados dados oficiais, 2,5 mil mortes e mais de 30 mil casos, ainda longe de atingir o pico, ele dobrou a aposta em uma manifestação claramente golpista. Nesse domingo (19), enquanto carreatas percorriam as ruas de várias cidades em seu apoio, Bolsonaro afrontou a democracia junto com manifestantes que pediam intervenção militar e AI-5. Incitou o povo contra a chamada “velha política” e sinalizou um autogolpe autoritário, falando em “fazer o possível para mudar o destino do Brasil”. E, ainda, defendeu o fim do isolamento, única forma de proteger a vida de pessoas frente ao inevitável avanço da Covid 19.

Embora esteja contrariando as recomendações do OMS, do Ministério da Saúde e dos especialistas e isolado politicamente, em conflito com governadores e parte significativa da classe política, limitado pelo STF, questionado por quase toda a mídia e entidades tradicionais da sociedade civil e sofrendo uma oposição de amplo leque político da centro direita à esquerda, com panelaços diários, Bolsonaro continua contando com expressivo apoio popular.

Pesquisa do Datafolha de 17/4 mostrou que 36% dos brasileiros consideram “ótimo e bom” seu desempenho em relação ao coronavírus enquanto que 23% consideram regular. E mais: 52% acreditam que ele tem capacidade de liderar o país. É necessário reconhecer que o discurso do presidente na crise sanitária sensibiliza segmentos expressivos da sociedade. Nada menos do que 52% dos empresários apoiam seu desempenho, enquanto que seu discurso agrada os que estão descontentes com o fechamento do comercio e com a falta de trabalho e renda.

Por outro lado, é forte o sentimento do “Fora Bolsonaro”, que une os que sempre o rejeitaram com os que se arrependeram do voto. Além de representar um risco à democracia e ao combate à pandemia, o presidente já cometeu crimes de responsabilidade suficientes para justificar a abertura de um processo de impeachment. Mas, com esse apoio popular, é uma temeridade falar, nesse momento, em impeachment.

Ademais, ele conta com o apoio de vários segmentos das forças de segurança, como as policiais militares e as patentes inferiores do exército, além das milícias, todos bastante contaminados pelo “bolsonavirus”. Frequenta com assiduidade os quartéis e não se intimidou em atacar a democracia em frente ao Quartel General do Exército. Inúmeros generais ocupam cargos de alto escalão no governo, embora não se saiba bem qual seria a posição da cúpula do exército no caso de uma crise aguda.

Não por acaso, na semana passada, Bolsonaro acusou o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, o governador de São Paulo, João Dória, e o STF de estarem preparando um golpe para tirá-lo do governo. Estaria buscando um pretexto para dar um autogolpe? A história revela que inúmeros autogolpes que geraram regimes autoritários foram justificados por supostas tentativas de golpes contra os governantes.

Em 1933, Hitler, recém empossado chanceler, utilizou o incêndio do parlamento alemão como pretexto para acusar uma suposta ameaça comunista e eliminar a democracia. As liberdades foram abolidas e 25 mil pessoas foram presas. 0 governo ganhou poderes para intervir nos estados.

Recentemente, em 2015, o presidente turco, Erdogan, usou uma tentativa frustrada de golpe para criar um estado de emergência, eliminar a liberdade de imprensa e reprimir a oposição. Cerca de 150 mil pessoas foram demitidas do serviço público e 50 mil foram detidas.

Entre nós, o presidente Getúlio Vargas, em 1937, acusou os comunistas de estarem preparando um golpe (Plano Cohen) como pretexto para permanecer no governo e acabar com a frágil democracia. Todos os legislativos do país foram fechados, a liberdade de expressão suprimida e foi decretada a intervenção nos estados. Foi como nasceu o Estado Novo.

Um processo de impeachment mal articulado pode servir de pretexto para uma aventura autoritária. O país está conflagrado, em um impasse político. O presidente não tem força para impor suas concepções antidemocráticas mas, por outro lado, sem maior apoio popular e sem coesão das forças políticas que a ele se opõem, não há possibilidade de removê-lo, ainda mais em meio a uma pandemia.

Mais do que nunca uma frente ampla democrática é essencial para o país se contrapor a qualquer tentativa autoritária.

A pandemia avança sem que haja uma coordenação nacional capaz de enfrentar a crise sanitária e econômica. A situação exige que se estruture formas de governança inovadoras que possam, ao menos parcialmente, cumprir tarefas que caberiam ao governo federal.

O bem sucedido consórcio dos governos estaduais do Nordeste talvez possa servir de referência para um consorcio mais amplo, que reúna todos os estados, para estruturar uma estratégia e uma ação coordenada para enfrentar a pandemia, como a compra de equipamentos e uma cooperação intergovernamental. Algo semelhante poderia ser pensado em relação à inevitável crise econômica. A nível nacional, o protagonismo do Congresso é essencial.

Para concretizar essa frente democrática, é necessário maior tolerância em relação às diferenças partidárias e ideológicas, especialmente as que dividem o centro da esquerda. Talvez uma experiência concreta para enfrentar a crise sanitária possa servir de ensaio para uma articulação que torne possível, a médio prazo, eliminar o risco autoritário representado pelo presidente.

*Nabil Bonduki é professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

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