Folha de S. Paulo

Alvaro Costa e Silva: Rainha de Copas

Bolsonaro corta cabeças para proteger filhos e convoca o próprio impeachment

O que eu gosto mais, francamente, é que toda crise é cheia de oportunidade." A platitude foi dita pelo empresário suíço-brasileiro Jorge Paulo Lemann, referindo-se à pandemia de coronavírus, do alto de seus bilhões de dólares. O pessoal saiu correndo atrás de uma oportunidade. Pois o último a chegar é mulher do padre.

Um grupo de chineses foi preso em São Paulo tentado vender a preços milionários 15 mil testes rápidos para detectar a Covid-19; os testes tinham sido furtados. Funerárias cariocas estão cobrando por um enterro simples, em cova rasa, até R$ 3,8 mil. A médica Ligia Kogos, conhecida como "a rainha do botox", invocou o juramento de Hipócrates para manter aberta a sua clínica de estética.

Estes são casos menores e particulares diante da farra de dinheiro que pode ocorrer sob o disfarce de compras emergenciais para combater a pandemia. O governo do Rio fez trocas suspeitas na estrutura da Secretaria de Saúde em meio à crise e dificulta o acesso a informações sobre contratos. Wilson Witzel aproveitou para enviar mensagem à Assembleia Legislativa retomando um programa de desestatização. O novo projeto de lei contempla sociedades de economia mista (como a Cedae), empresas públicas, fundações e até universidades (Uerj, Uezo e Uenf).

Cada um aproveita a chance a seu modo doentio. Weintraub, o ministro da Educação, fez piada no Twitter debochando da morte de pessoas. O chanceler Ernesto Araújo, para não ficar atrás, escreveu no seu blog que o "comunavírus" é mais perigoso que a Covid-19.

Mas quem está "oportunizando" a valer é Bolsonaro. Corta cabeças como a Rainha de Copas (decapitado, Moro retorna à República de Curitiba), age para proteger os filhos de investigações na PF, realimenta as milícias liberando munições e avança no seu projeto autocrático. Outra grande oportunidade, para ele, é o impeachment.

Alvaro Costa e Silva é jornalista, atuou como repórter e editor. É autor de "Dicionário Amoroso do Rio de Janeiro".


Demétrio Magnoli: Ciência serve para políticos fugirem à responsabilidade por suas decisões

Na guerra, o poder deve ser transferido aos generais? Na emergência sanitária, devemos recorrer ao 'governo dos epidemiologistas'? A resposta democrática é duas vezes 'não'

O físico Neils Bohr, um dos fundadores da teoria quântica, sabia o que não sabia. “A predição é muito difícil, especialmente sobre o futuro”, afirmou ironicamente, para explicar que a ciência cuida, essencialmente, da descrição. É útil recordar sua frase, nesses tempos em que líderes políticos —com o apoio de não poucos cientistas presunçosos— enchem a boca para dizer que suas decisões sobre a emergência sanitária fundamentam-se “na ciência”.

João Doria decidiu, “com base em ciência”, conservar regras lineares de isolamento social no estado de São Paulo, até 10 de maio. Já Eduardo Leite, do Rio Grande do Sul, resolveu flexibilizar as restrições no interior de seu estado —claro, “com base em ciência”. Os cenários são similares, embora não idênticos. A ciência também poderia ser invocada por cada um deles para adotar as iniciativas do outro.

O finado Mandetta justificou o isolamento social com o argumento de evitar o colapso hospitalar, um raciocínio que propicia flexibilizações em áreas de baixa pressão sobre leitos e UTIs.

O neurocientista Miguel Nicolelis, que assessora os governadores do Nordeste no mapeamento da epidemia, discorda veementemente. Segundo ele, em entrevista à TV, o isolamento social tem a finalidade muito mais ambiciosa de “evitar contágios”, o que exigiria rígidas quarentenas em todos os lugares, por período indefinido. Os dois falam —adivinhe!— em nome “da ciência”.

A ciência está na moda —o que é sempre bom, e melhor ainda nessa era de Bolsoneros, rezas coletivas para assustar o vírus, presidentes que receitam remédios, teorias conspiratórias veiculadas por ignorantes com cargo público. Contudo, o fetiche da ciência não ajuda a ciência e, sobretudo, serve como vereda para os políticos fugirem à responsabilidade por suas decisões, que são sempre políticas.

A ciência faz descrições e, no limite, formula hipóteses probabilísticas sobre o futuro. Um modelo sobre a pandemia da Universidade de Washington recomenda que nenhum estado dos EUA reabra a economia antes de maio —e que alguns deles só o façam no longínquo julho. Mas, rejeitando o fetichismo, o responsável pelo estudo disse que “se fosse um governador, certamente não tomaria decisões baseadas apenas no nosso modelo”.

O modelo da Universidade de Washington reflete, exclusivamente, uma especialidade científica: a epidemiologia. Não desapareceram, contudo, na tempestade viral, outros campos do conhecimento, como a sociologia e a economia (a “ciência sombria”, na definição de Thomas Carlyle). Essas ciências têm algo a dizer sobre os efeitos não epidemiológicos do congelamento prolongado de amplos setores da produção e do consumo.

A maior depressão mundial desde a Grande Depressão terá fortes implicações sobre a saúde pública. A ONU alerta para o risco de uma “fome de proporções bíblicas” em países pobres, como resultado da ruptura do sistema econômico. Investigações (científicas!) realizadas nos EUA indicam que o desemprego de longa duração corta a expectativa de vida em algo entre cinco e dez anos. Há mais coisas sob o sol do que o vírus.

O fundamentalismo epidemiológico (“evitar contágios”) pode ser tão desastroso quanto a negligência criminosa (“uma gripezinha”). A saída encontra-se na ciência desfetichizada —ou seja, numa visão holística da emergência sanitária.

A Alemanha, com folga no sistema de saúde, reduz paulatinamente as restrições na hora em que ainda se registram milhares de novos contágios diários. É uma decisão política, certa ou errada, tomada pelos representantes eleitos, não por epidemiologistas.

Na guerra, o poder deve ser transferido aos generais? Na emergência sanitária, devemos recorrer ao “governo dos epidemiologistas”? A resposta democrática é duas vezes “não”. No segundo caso, inclusive, para não converter a ciência em superstição.

*Demétrio Magnoli é sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Folha de S. Paulo: Moro diz que Bolsonaro queria mexer na PF para ter acesso a relatórios de inteligência

Moro largou carreira de juiz federal para virar ministro e disse ter aceitado convite de Bolsonaro em 2018 por estar 'cansado de tomar bola nas costas'

Ao anunciar sua demissão do governo federal nesta sexta-feira (24), o ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, criticou a insistência do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) para a troca do comando da Polícia Federal, sem apresentar causas que fossem aceitáveis.

Moro afirmou ainda que Bolsonaro queria ter acesso a informações e relatórios confidenciais de inteligência da PF. "Não tenho condições de persistir aqui, sem condições de trabalho." E disse que "sempre estará à disposição do país".

"Não são aceitáveis indicações políticas." Moro falou em "violação de uma promessa que me foi feita inicialmente de que eu teria uma carta branca". "Haveria abalo na credibilidade do governo com a lei."

Moro disse ter o dever de proteger a instituição da PF, por isso afirmou ter buscado uma solução alternativa para o comando da corporação, o que não conseguiu. "Fiquei sabendo pelo Diário Oficial, não assinei esse decreto." O agora ex-ministro disse que isso foi algo "ofensivo" e que "foi surpreendido". "Esse último ato foi uma sinalização de que o presidente me quer fora do cargo."

Ele enalteceu seu papel na busca pela autonomia da Polícia Federal e destacou essa característica da corporação nos governos dos ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, ambos do PT.

Moro destacou a autonomia da PF nas gestões federais do PT, mesmo com "inúmeros defeitos" e envolvimentos em casos de corrupção. Relembrou promessa de "carta branca" recebida pelo então presidente eleito Jair Bolsonaro para nomear todos os assessores, inclusive na Polícia Federal.

O ex-juiz da Lava Jato disse que nunca houve condição para ser ministro em troca de indicação para uma vaga de ministro do STF (Supremo Tribunal Federal). A ideia, segundo Moro, era buscar um nível de formulação de políticas públicas, de aprofundar o combate à corrupção e levar maior efetividade em relação à criminalidade violenta e ao crime organizado.

Moro diz que somente colocou uma condição a Bolsonaro para que assumisse o cargo. "Se algo me acontecesse, uma pensão para a família." No cargo, Moro cuidava também da segurança pública.

"Me via, estando no governo, como um garantidor da lei e da imparcialidade e autonomia destas instituições", afirmou o ministro, em seu pronunciamento.

Em sua fala, Moro lamentou sua saída em meio à pandemia do coronavírus, com centenas de mortes no país, enalteceu sua carreira como juiz federal com atuação na Operação Lava Jato de Curitiba.

demissão de Moro foi antecipada pela Folha. Ele decidiu entregar o cargo nesta sexta-feira e deixar o governo após a exoneração do diretor-geral da Polícia Federal, Maurício Valeixo, ter sido publicada nesta madrugada no Diário Oficial da União. Ele anunciou a saída do governo a pessoas próximas.

Conforme a Folha revelou, Moro pediu demissão a Bolsonaro na manhã desta quinta (23) quando foi informado pelo presidente da decisão de demitir Valeixo. O ministro avisou o presidente que não ficaria no governo com a saída do diretor-geral, escolhido por Moro para comandar a PF.

A exoneração foi publicada como "a pedido" de Valeixo no Diário Oficial, com as assinaturas eletrônicas de Bolsonaro e Moro. Segundo a Folha apurou, porém, o ministro não assinou a medida formalmente nem foi avisado oficialmente pelo Planalto de sua publicação.

O nome de Moro foi incluído no ato de exoneração pelo fato de o diretor da PF ser subordinado a ele. É uma formalidade do Planalto.

Na avaliação de aliados de Moro, Bolsonaro atropelou de vez o ministro ao ter publicado a demissão de Valeixo durante as discussões que ainda ocorriam nos bastidores sobre a troca na PF e sua permanência no cargo de ministro. Diante desse cenário, sua permanência no governo ficou insustentável, e Moro decidiu deixar o governo.

Moro topou largar a carreira de juiz federal, que lhe deu fama de herói pela condução da Lava Jato, para virar ministro. Ele disse ter aceitado o convite de Bolsonaro, entre outras coisas, por estar "cansado de tomar bola nas costas".

Tomou posse com o discurso de que teria total autonomia e com status de superministro. Desde que assumiu, porém, acumulou série de recuos e derrotas.

Moro se firmou como o ministro mais popular do governo Bolsonaro, com aprovação superior à do próprio presidente, segundo o Datafolha.

Pesquisa realizada no início de dezembro de 2019 mostrou que 53% da população avalia como ótima/boa a gestão do ex-juiz no Ministério da Justiça. Outros 23% a consideram regular, e 21% ruim/péssima. Bolsonaro tinha números mais modestos, com 30% de ótimo/bom, 32% de regular e 36% de ruim/péssimo.

O ministro, nos bastidores, vinha se mostrando insatisfeito com a condução do combate à pandemia do coronavírus por parte de Bolsonaro. Moro, por exemplo, atuou a favor de Luiz Henrique Mandetta (ex-titular da Saúde) na crise com o presidente.

Aliados de Moro avaliam que ele foi um dos alvos da recente declaração de Bolsonaro de que usaria a caneta contra "estrelas" do governo.

"[De] algumas pessoas do meu governo, algo subiu à cabeça deles. Estão se achando demais. Eram pessoas normais, mas, de repente, viraram estrelas, falam pelos cotovelos, tem provocações. A hora D não chegou ainda não. Vai chegar a hora deles, porque a minha caneta funciona", afirmou Bolsonaro, no início do mês, a um grupo de religiosos que se aglomerou diante do Palácio da Alvorada.

Com a saída de Moro do governo, o chefe da Secretaria-Geral, Jorge Oliveira, passou a ser um dos mais cotados para substituí-lo.

Num cenário ainda incerto, um dos desenhos no Palácio do Planalto é de que haja a cisão de Justiça e Segurança Pública, desejo antigo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

Se isso se confirmar, a probabilidade maior é que Jorge assuma Segurança Pública por ser policial militar da reserva do Distrito Federal. Há, contudo, uma possibilidade e que ele vá para Justiça, mas considerada menor.

Já para a Justiça, o nome mais forte é o do secretário de Segurança Pública do Distrito Federal, Anderson França, que tem se aproximado de Bolsonaro. Lateralmente, há uma possibilidade de o ex-deputado Alberto Fraga (DEM-DF) ser escolhido.

Fraga, que é amigo pessoal do presidente, poderia ainda ser indicado para a Secretaria-Geral, no lugar de Jorge. Com isso, o governo ganha um político no Planalto para auxiliar na articulação com o Congresso. Hoje, há apenas militares nas quatro pastas que ficam no prédio da Presidência.

Essas mudanças foram tratadas pelo presidente com o governo do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB), que esteve no Planalto na última quarta-feira (22).


Reinaldo Azevedo: Na guerra planaltina, ninguém merece ganhar; todo mundo tem de perder

Senhores de Brasília são de fino trato 'no tocante' à grana, mas não à moral

Jair Bolsonaro resolveu lutar por seu mandato sob gerenciamento dos fardados do Planalto. Provocou desastres novos ao combater o isolamento social praticando isolamento político. Tentou uma cartada no domingo. Foi a última no gênero.

Deu uma de vivandeira e foi aos bivaques bulir com os granadeiros. Em frente ao QG do Exército, em Brasília, conclamou os militares da ativa a sustentar seu autogolpe. Levou como troco uma banana. Se tentarem impichá-lo segundo os rigores da lei, vai cair. Na palavra de um fardado graúdo, “o Brasil tem uma Constituição, e o artigo 79 assegura a posse do vice”. E agora?

Assistimos a uma espécie de “Feios, Sujos e Malvados” do “andar de cima”, pedindo licença a Elio Gaspari. Recomendo, diga-se, o filme de Ettore Scola para ocupar os dias de quarentena. Os senhores de Brasília em questão são de bem mais fino trato “no tocante” à grana, mas não à moral.

Fosse um filme, não há empatia possível; fosse uma luta, teríamos de torcer pelo impossível: um empate, com a derrota de todos —aí já é filme de Tarantino. Bolsonaro quer Sergio Moro fora do Ministério da Justiça? Desde o segundo mês de governo. Percebeu o apetite do doutor pelo poder. O tabaréu tem as suas próprias aspirações no terreno da extrema direita. Sempre foi uma questão de tempo.

Torcer por Moro? Ah, não! Vejam o comportamento desse senhor na crise. Inventou o oportunismo da ausência. Nunca as lentes da lei foram tão necessárias como agora, com o vírus tendendo a relativizar todos os absolutos legais e até constitucionais. Cadê? Quando vieram me falar sobre sua possível saída, reagi: “Mas ele ainda é ministro?”

Desde sempre, Bolsonaro sabe que seu auxiliar só espera o chefe se estabacar para subir no palanque e liderar o fel da súcia. Um confronto só depende da hora. O empate é o resultado justo. Mas há economia...

Alguém com o senso de realismo que Paulo Guedes não tem deve ter advertido Bolsonaro que seu ministro não dispõe de plano de voo para o pós-crise. A luta estúpida em torno da compensação do ICMS aos estados indica um estágio irreversível de alienação.

Eis que o “dispositivo militar” do presidente aparece com o tal plano Pró-Brasil. Trata-se de uma nova versão do PAC de Dilma Rousseff até na pretensão de tocar obras que atravessem mandatos. Surgiu um keynesianismo de farda para se contrapor ao “liberalismo Simca Chambord” de Guedes —em que pobre não cabe.

Pouco ou nada se sabe a respeito do plano, a começar da autoria. Se Guedes ficar, vai ter de engolir uma agenda que não é sua em nome da tentativa de reeleição do presidente. Reacionários travestidos de liberais estão em prantos. Mas esperem: afinal, que alternativa o ministro apresentou para a crise? De novo, o empate é um resultado justo.

Bolsonaro foi malsucedido com os granadeiros. Se não quer cair, que tente arrumar ao menos 144 deputados na Câmara para se livrar do impeachment. O “Mito” foi à caça. As credenciais do comprador determinam a qualidade da coisa adquirida. Não consegue conviver com Rodrigo Maia, mas pode encontrar em Arthur Lira, Roberto Jefferson, Valdemar Costa Neto e patriotas afins a tábua de salvação.

Este Congresso lhe deu a reforma da Previdência, incluindo a dos militares, com plano de carreira, privilégio que não teve nenhum antecessor seu. Na crise do coronavírus, presenteou-o com a PEC do Orçamento Paralelo. Não cobrou quase nada, a não ser um pouco de compostura.

O presidente preferiu testar o autogolpe. Falhou. Os militares palacianos pediram licença —não impuseram porque a escolha segue sendo de Bolsonaro— para governar o país e deixaram por sua conta conquistar aos menos aqueles 144 deputados. Acho que Lira, Jefferson e Costa Neto podem fazer isso por ele.

Depois de Bolsonaro ter testado o velho modo de fazer nova política, vamos ver como se sai com o novo modo de fazer velha política. E Moro? Enquanto escrevo, fica como o crocodilo às margens daquele rio no Quênia, à espera de abocanhar o gnu.


Vinicius Torres Freire: 'Plano Marshall', cloroquina econômica

Projeto nem existe nem tem dinheiro, mas já é atacado por críticas liberalóides

Não existe “plano estatal” do governo para fazer a economia andar se e quando passar a epidemia. Não existe plano Jair Bolsonaro de “resgate do Estado”. Não existe um programa baseado na “retomada do investimento público”. Não existe um programa baseado na “retomada do investimento público”.

Algum plano de reativação econômica será necessário, no entanto. Quem, de antemão, faz campanha liberaloide para dinamitar a ideia já pode apresentar suas projeções de como e quando a economia vai se recuperar da depressão só com investimento privado. Vai ser o caso de um morto que tenta se levantar puxando os cabelos.

Ainda que se gastassem R$ 16 bilhões extras por ano, até 2022, o plano mal existiria como “resgate do Estado” ou mesmo com medida de estímulo relevante.

Essa estimativa de despesa pública extra, que deve ser apresentada na reunião ministerial desta sexta (24), é café pequeno perto das necessidades da economia arruinada.

O Ministério da Economia vai cair matando na proposta dos “pragmáticos”: Braga Netto (Casa Civil), Rogerio Marinho (Desenvolvimento Regional) e Tarcísio de Freitas (Infraestrutura).

Esse dinheiro seria pouco até para reanimar aquele país que, antes da epidemia, se arrastava ao ritmo de crescimento de 1% ao ano, desde 2017. R$ 16 bilhões equivalem a uns 5% do gasto extra do governo federal, até agora, para aliviar a ruína em curso.

No entanto, a mera e vaga sugestão de que será necessário um programa de reativação econômica causa as reações estereotipadas de costume.

“É o PAC”, “é Dilma 3”, eram as piadas tolas. É acabar com o “ajuste fiscal”. Que ajuste? Mesmo sem epidemia, teríamos déficit até o Dia de São Nunca de Tarde. “O investimento terá de ser privado." Que investimento? Aquele que não aparecia até fevereiro de 2020?

Ataca-se um espantalho oco (essa tolice de “Marshall”) sem discutir um fracasso executivo e econômico (reformas microeconômicas e fiscais) e sem que se pense como se vai tirar o país da pior depressão da história de que se tem registro.

Para começar, antes de falar em reconstrução, mal se tomaram as medidas de economia de guerra: 1) fabricação de equipamentos e financiamento da saúde; 2) proteção de micro, pequenas e médias empresas, que fecham aos montes; 3) fazer o crédito fluir para as empresas mais remediadas.

Restaurantes, serviços pessoais, entretenimento, esporte, turismo, aviação, entre outros, serão setores que, com sorte, mal e mal sairão da tumba.

A retomada será lenta porque haverá milhões de baixas, desempregados e falidos, porque os cuidados com a epidemia devem criar ineficiências e porque a confiança e as poupanças estarão no chão ou debaixo da terra.

Alguém pode argumentar que, com descontrole da doença e um morticínio grande, se pode criar imunidade em massa, um país livre para ser reaberto e passear sobre cadáveres.

Um plano de reativação da economia ou de colocar dinheiro certo em obras certas é complexo. Vem dando errado pelo menos desde 2010. Bancar essa conta é difícil, mas achar que a dívida será paga com décadas de controle de gasto, apenas, parece hipótese heroica, para dizer o mínimo. Algum financiamento monetário do governo (“imprimir dinheiro”) pode ser em parte inevitável e é incerto que cause inflação.

Como fazê-lo é questão para economistas. Achar que voltaremos, sem mais, a esse passado recente (de resto fracassado) de ajuste e se recusar a pensar um problema catastroficamente novo é brincar com o risco de convulsão social e política, além de obnubilação intelectual.
Postado por Gilvan Cavalcanti de Mel


Folha de S. Paulo: Sergio Moro, o juiz da Lava Jato, anuncia sua demissão do governo Bolsonaro

Moro largou carreira de juiz federal para virar ministro e disse ter aceitado o convite de Bolsonaro por estar 'cansado de tomar bola nas costas'

Leandro Colon, da Folha de S. Paulo

O ministro Sergio Moro (Justiça) decidiu entregar o cargo nesta sexta-feira (24) e deixar o governo de Jair Bolsonaro após a exoneração do diretor-geral da Polícia Federal, Maurício Valeixo, ter sido publicada nesta madrugada no Diário Oficial da União. Ele anunciou a saída do governo a pessoas próximas.

Conforme a Folha revelou, Moro pediu demissão a Bolsonaro na manhã desta quinta (23) quando foi informado pelo presidente da decisão de demitir Valeixo. O ministro avisou o presidente que não ficaria no governo com a saída do diretor-geral, escolhido por Moro para comandar a PF.

Após Moro anunciar um pronunciamento às 11h desta sexta, o Planalto enviou emissários para tentar convencer o ministro a ficar. Em vão. Moro não aceitou, mostrou-se irredutível. Nas palavras de um aliado, "os bombeiros fracassaram".

O contexto da exoneração de Valeixo foi considerado decisivo para o ministro bater o martelo.

A exoneração foi publicada como "a pedido" de Valeixo no Diário Oficial, com as assinaturas eletrônicas de Bolsonaro e Moro. Segundo a Folha apurou, porém, o ministro não assinou a medida formalmente nem foi avisado oficialmente pelo Planalto de sua publicação.

O nome de Moro foi incluído no ato de exoneração pelo fato de o diretor da PF ser subordinado a ele. É uma formalidade do Planalto.

Na avaliação de aliados de Moro, Bolsonaro atropelou de vez o ministro ao ter publicado a demissão de Valeixo durante as discussões que ainda ocorriam nos bastidores sobre a troca na PF e sua permanência no cargo de ministro. Diante desse cenário, sua permanência no governo ficou insustentável, e Moro decidiu deixar o governo.

Membros da Polícia Federal e do Ministério da Justiça, ouvidos pela Folha na condição de anonimato, afirmam que o movimento de Bolsonaro que resultou no pedido de demissão feito por Moro tem como o pano de fundo a tentativa de o presidente controlar as ações e as investigações da corporação no país.

Para pessoas próximas ao ministro, os alvos são variados, mas o foco está em apurações que podem resultar em problemas para a família presidencial e para sua rede de apoio. E na falta de ações contudentes contra adversários políticos. Como as que envolvem a disseminação de fake news por parte da rede de apoio bolsonarista.

Moro topou largar a carreira de juiz federal, que lhe deu fama de herói pela condução da Lava Jato, para virar ministro. Ele disse ter aceitado o convite de Bolsonaro, entre outras coisas, por estar "cansado de tomar bola nas costas".

Tomou posse com o discurso de que teria total autonomia e com status de superministro. Desde que assumiu, porém, acumulou série de recuos e derrotas.

Moro se firmou como o ministro mais popular do governo Bolsonaro, com aprovação superior à do próprio presidente, segundo o Datafolha.

Pesquisa realizada no início de dezembro de 2019 mostrou que 53% da população avalia como ótima/boa a gestão do ex-juiz no Ministério da Justiça. Outros 23% a consideram regular, e 21% ruim/péssima. Bolsonaro tinha números mais modestos, com 30% de ótimo/bom, 32% de regular e 36% de ruim/péssimo.

O ministro, nos bastidores, vinha se mostrando insatisfeito com a condução do combate à pandemia do coronavírus por parte de Bolsonaro. Moro, por exemplo, atuou a favor de Luiz Henrique Mandetta (ex-titular da Saúde) na crise com o presidente.

Aliados de Moro avaliam que ele foi um dos alvos da recente declaração de Bolsonaro de que usaria a caneta contra "estrelas" do governo.

"[De] algumas pessoas do meu governo, algo subiu à cabeça deles. Estão se achando demais. Eram pessoas normais, mas, de repente, viraram estrelas, falam pelos cotovelos, tem provocações. A hora D não chegou ainda não. Vai chegar a hora deles, porque a minha caneta funciona", afirmou Bolsonaro, no início do mês, a um grupo de religiosos que se aglomerou diante do Palácio da Alvorada.

​Sob o comando de Moro, a Polícia Federal viveu clima de instabilidade no ano passado, quando Bolsonaro anunciou uma troca no comando da superintendência do órgão no Rio e ameaçou trocar o diretor-geral.

No meio da polêmica, o presidente chegou a citar um delegado que assumiria a chefia do Rio, mas foi rebatido pela Polícia Federal, que divulgou outro nome, o de Carlos Henrique de Oliveira, da confiança da atual gestão. Após meses de turbulência, o delegado assumiu o cargo de superintendente, em dezembro.

No fim de janeiro, o presidente colocou de volta o assunto na mesa, quando incentivou um movimento que pedia a recriação do Ministério da Segurança Pública. Isso poderia impactar diretamente a polícia, que poderia ser desligada da pasta da Justiça e ficaria, portanto, sob responsabilidade de outro ministro.

Bolsonaro depois voltou atrás e disse que a chance de uma mudança nesse sentido era zero, ao menos neste momento.

Com a demissão, Moro vê mais distante a possibilidade de ser indicado pelo presidente para uma vaga no STF (Supremo Tribunal Federal). Sobre isso, Moro já respondeu que essa é uma "perspectiva interessante" e que seria como ganhar na loteria.

Pelo critério de aposentadoria compulsória aos 75 anos dos ministros do Supremo, as próximas vagas serão as de Celso de Mello, em novembro, e Marco Aurélio Mello, em julho de 2021. A indicação de ministros do Supremo é uma atribuição do presidente que depois precisa ser aprovada pelo Senado.

Esse caminho de Moro ao Supremo já estava enfraquecido especialmente depois da divulgação de mensagens privadas que trocou com procuradores da Lava Jato.

As mensagens obtidas pelo Intercept e divulgadas até este momento pelo site e por outros órgãos de imprensa, como a Folha, expuseram a proximidade entre Moro e os procuradores da Lava Jato e colocaram em dúvida a imparcialidade como juiz do atual ministro da Justiça no julgamento dos processos da operação.

Quando as primeiras mensagens vieram à tona, em 9 de junho do ano passado, o Intercept informou que obteve o material de uma fonte anônima, que pediu sigilo. O pacote inclui mensagens privadas e de grupos da força-tarefa da Operação Lava Jato em Curitiba, no aplicativo Telegram, a partir de 2015.

Em resumo, no contato com os procuradores, Moro indicou testemunha que poderia colaborar para a apuração sobre o ex-presidente Lula, orientou a inclusão de prova contra um réu em denúncia que já havia sido oferecida pelo Ministério Público Federal, sugeriu alterar a ordem de fases da operação Lava Jato e antecipou ao menos uma decisão judicial.

Caso haja entendimento de que Moro estava comprometido com a Procuradoria (ou seja, era suspeito), as sentenças proferidas por ele poderão ser anuladas. Isso inclui o processo contra Lula no caso do tríplex de Guarujá, que levou o petistas à prisão em 2018, está sendo avaliado pelo STF e pode ser julgado ainda neste ano.

Segundo o Código de Processo Penal, “o juiz dar-se-á por suspeito, e, se não o fizer, poderá ser recusado por qualquer das partes” se “tiver aconselhado qualquer das partes”. Afirma ainda que sentenças proferidas por juízes suspeitos podem ser anuladas.

Já o Código de Ética da Magistratura afirma que "o magistrado imparcial” é aquele que mantém “ao longo de todo o processo uma distância equivalente das partes e evita todo o tipo de comportamento que possa refletir favoritismo, predisposição ou preconceito".

Moro tem repetido que não reconhece a autenticidade das mensagens, mas que, se verdadeiras, não contêm ilegalidades.

RECUOS E DERROTAS DO 'SUPERMINISTRO'

Ministério da Segurança Pública - Bolsonaro afirmou que pode recriar a pasta da Segurança Pública, que hoje integra o Ministério da Justiça. Com isso, a área sairia da alçada de Moro. O ministro, contudo, tem usado como principal vitrine da sua gestão a redução de homicídios, que foi iniciada no governo de Michel Temer (MDB).

Prisão após condenação em 2ª instância - Em novembro, o Supremo Tribunal Federal voltou a barrar a prisão de condenados logo após a segunda instância. Decisão permitiu a soltura do ex-presidente Lula, condenado pelo ex-juiz. Ponto muito defendido pelo ministro, a execução antecipada da pena foi tirada do pacote anticrime pela comissão que analisou o texto na Câmara. Por outro lado, Moro tem liderado esforço no Congresso para a elaboração de nova lei que permita a medida.

Pacote anticrime - O projeto aprovado pelo Congresso e sancionado por Bolsonaro foi um tanto diferente daquele apresentado por Moro à Câmara no início de 2019. Para além da prisão após segunda instância, a ampliação das causas excludentes de ilicitude, que poderia isentar de punição policiais que matassem em serviço, também foi removida. Das 38 sugestões de vetos que constavam em parecer do Ministério da Justiça, quatro foram atendidas por Bolsonaro de forma integral e uma de forma parcial. Meses antes, o presidente havia dito que o pacote, considerado prioridade para Moro, não era visto com urgência pelo governo.

Juiz das garantias - Aprovada junto com o pacote anticrime, a medida, que prevê a divisão de processos penais entre dois juízes, foi criticada por Moro. Bolsonaro, contudo, sancionou o projeto e não vetou o instituto.

STF - Bolsonaro havia afirmado que prometeu a Moro uma vaga no STF ao convidá-lo para assumir o ministério da Justiça. Depois, voltou atrás e afirmou que não houve combinado. O presidente também tem afirmado que pretende indicar alguém "terrivelmente evangélico" para uma das duas vagas que devem ser abertas até 2022 e deu a entender que pode nomear o atual ministro da Advocacia-Geral da União, André Luiz Mendonça.

Mensagens da Lava Jato - Mensagens obtidas pelo site The Intercept Brasil e publicadas por diversos veículos, entre eles a Folha, revelam que Moro, enquanto juiz da Lava Jato, aconselhou e colaborou com a Procuradoria. Segundo a lei, contudo, um magistrado deve se manter imparcial diante das partes de um processo.

Confiança de Bolsonaro - Após a divulgação das primeiras mensagens, em junho, Bolsonaro deu declarações de apoio ao ministro, mas também disse que não existe 100% de confiança.

Destruição de provas - Logo que a Polícia Federal prendeu quatro suspeitos de hackear autoridades e captar suas mensagens no aplicativo Telegram, Moro disse que o material apreendido seria destruído. Tanto a PF quanto Bolsonaro afirmaram que essa decisão não cabia ao ministro —essa competência é da Justiça.

Polícia Federal - Bolsonaro anunciou que Ricardo Saadi seria substituído por Alexandre Silva Saraiva na Superintendência da PF no RJ. A direção da PF, contudo, havia escolhido o delegado Carlos Henrique Oliveira Sousa, da Superintendência de Pernambuco. O anúncio de Bolsonaro foi malvisto pela corporação como uma interferência do presidente em assuntos internos. Desde então, Bolsonaro deu diversas declarações reforçando a intenção de intervir na Polícia Federal. Também alfinetou Moro ao afirmar que cabe a ele, e não ao ministro, fazer nomeações no órgão.

Perda do Coaf - Criado em 1998, o Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) é um órgão de inteligência financeira que investiga operações suspeitas. Ao assumir a Presidência, Bolsonaro tirou o Coaf do Ministério da Economia (antiga Fazenda) e o colocou na pasta de Moro, a Justiça.

ex-juiz acabou derrotado depois que o Congresso devolveu o Coaf à Economia (sob Paulo Guedes) ao analisar a MP da reforma administrativa do governo federal.

Depois, o Coaf foi transferido para o Banco Central. O chefe do órgão e aliado de Moro, Roberto Leonel, foi substituído por Ricardo Liáo, funcionário de carreira do BC.

Decreto das armas - O primeiro revés foi ainda em janeiro. O ministro tentou se desvincular da autoria da ideia de flexibilizar a posse de armas, dizendo nos bastidores estar apenas cumprindo ordens do presidente. Teve ignorada sua sugestão de limitar o registro por pessoa a duas armas —o decreto fixou o número em quatro.

Laranjas - No caso do escândalo de candidaturas de laranjas, enquanto Moro deu declarações evasivas, dizendo que a PF iria investigar se “houvesse necessidade” e que não sabia se havia consistência nas denúncias, Bolsonaro determinou dias depois, de forma enfática, a abertura de investigações para apurar o esquema. Denunciado pelo Ministério Público por envolvimento no caso, Marcelo Álvaro Antônio permanece no cargo de ministro do Turismo.

Ilona Szabó - Moro teve de demitir a especialista em segurança pública por determinação do presidente, após repercussão negativa da nomeação. Ilona Szabó já se disse contrária ao afrouxamento das regras de acesso a armas e criticou a ideia de ampliação do direito à legítima defesa que está no projeto do ministro. Até hoje, Moro não nomeou um substituto.


Vinicius Torres Freire: Governo reage, militares contra-atacam na economia, na saúde e no Congresso

Na frente político-partidária, a contraofensiva ataca governadores e o parlamentarismo branco de Rodrigo Maia

O governo parece que tenta governar, sob o comando do ministro-general Braga Netto (Casa Civil). É uma ação coordenada na política, é o controle do Ministério da Saúde, é uma tentativa de articulação administrativa de ministérios e outra de fazer com que a equipe econômica reaja de modo rápido e “proativo”, digamos.

Na frente político-partidária, a contraofensiva ataca governadores e o “parlamentarismo branco” de Rodrigo Maia, o que antes fazia na maior parte por meio de “ruas” e milícias digitais. Trata-se de minar parte da força de Maia, obriga-lo a negociar, influenciar a eleição do próximo comando da Câmara (em 2021) e, no mínimo, criar um bloquinho parlamentar com tamanho suficiente para barrar um processo de impeachment.

Um instrumento desse combate, como se viu, é a oferta de cargos para partidos que formaram o núcleo do mensalão e do petrolão, o que já estimula outras legendas a correrem para o balcão de barganhas.

Outra pressão veio dos ministros militares do Planalto, que se queixaram em discursos públicos de que a cúpula do Legislativo e Judiciário podam o governo. Nos mesmos discursos ou entrevistas, reafirmavam compromissos democráticos _punham panos frios no comício autoritário de Jair Bolsonaro.

Na economia, Braga Netto e seus colegas apresentaram um pré-plano de reconstrução. Por ora, parece modesto, para dizer o menos, embora seja um sinal de que também no Planalto “sob nova administração” considera-se que a reação do Ministério da Economia é insuficiente, “técnica, mas tímida e com uma visão pré-crise da economia”, como disse um ministro militar que prefere não dizer seu nome.

Mais uma vez, anunciou-se que haverá centenas de bilhões de investimentos via concessões para a iniciativa privada, além do conserto da legislação que trava negócios, o que mal andava mesmo antes da epidemia.

Antes da coronacrise, tais dinheiros privados já eram mera hipótese, projetos que viriam a se tornar obras talvez em 2022. Agora, a hipótese parece fantástica, pois não se sabe o que restará da iniciativa privada, das poupanças, da demanda e de quando o ânimo de investir voltará a respirar.

O anúncio de investimentos públicos foi vago e, dado o tamanho da ruína, minúsculo —R$ 30 bilhões extras até 2022, no que foi possível entender. No entanto, parece haver alguma luz sobre o tamanho do desastre que terá de ser enfrentado também na economia, que exigirá revolução de ideias econômicas e capacidade executiva, ora mais escassas que equipamentos para proteção do pessoal que batalha nos hospitais.

A conversa de que, em um eventual e distante pós-corona, volta-se ao caminho das “reformas e do ajuste fiscal” demonstra inconsciência do desastre, uma reação estereotipada e apego a um pensamento econômico que já era velho mesmo no mundo “a.C”, antes do corona. Será necessário pensar o impensável, como diz por aí qualquer Nobel de economia civilizado.

Ressalte-se que a contraofensiva começou com a demissão do ministro da Saúde e com o comício autoritário em que Bolsonaro reforçou o ataque aos governadores, titilou a pulsão de morte de parte do país e lasseou ainda mais a democracia.

No sapato roto, sujo e alargado da democracia brasileira, cabem agora discursos presidenciais para uma aglomeração que pede ditadura. Ou seja, as tropas da contraofensiva avançam protegidas por cortina de fumaça antidemocrática e com o apoio de bombardeio contra “as instituições que estão funcionando”.


Fernando Schüler: O ódio e a tribalização cresceram durante a pandemia

A tribalização cresceu durante a pandemia

Haters são tipos antigos. Ainda lembro da leitura de Robert Darnton e seu belo “O Diabo na Água Benta”, contando a história dos caluniadores profissionais na França do século 18.

Muitos viviam no exílio, em torno da Grub Street e no submundo literário londrino, fazendo fluir a partir daí uma rede sórdida de libelos e panfletos que está na raiz da moderna imprensa sensacionalista.

No mundo atual tudo se vulgarizou. Pesquisa conduzida pelo Pew Reseach Center mostra que 41% das pessoas já sofreram algum tipo de bullying digital e que a orientação política é, de longe, o maior motivo.

O hater tende a ser um dualista moral. Ele imagina, como tentaram mostrar Jonathan Haidt e Greg Lukianoff em seu “The Coddling of American Mind”, que a vida é uma luta entre pessoas do bem e pessoas do mal, entre a verdade e o erro, e que ele representa o primeiro time. Vem daí, em última instância, seu direito de julgar e ofender.

O hater é, em regra, um covarde. Seu primeiro esconderijo é o anonimato. Isso vem de longe, mas ganhou escala infinita no mundo digital. Seu segundo esconderijo é a irrelevância. Agride porque tem pouco a perder. Ninguém lhe dará muita bola nem lhe cobrará nada. Seu terceiro esconderijo é a tribo. Ele fala e escreve para a turma dos “especialistas na própria opinião”. Vive em uma banheira morna feita de viés de confirmação.

Haters não pertencem a esta ou àquela ideologia. No Brasil de hoje, é uma experiência antropológica interessante visitar grupos de radicais governistas e antigovernistas e ver como o haterismo se comporta.

Em ambos, o sistema está prestes a ruir. A divergência é para que lado. A linguagem é surpreendentemente parecida. Os palavrões variam, mas são sempre abundantes. Há alusões a animais (gado, jumento) e à tediosa terminologia do século 20 (comunistas, neoliberais).

Como previsível, ambos os grupos consideram que o estranho e a barbárie ficam sempre do outro lado. A alusão ao debate politico brasileiro é lateral. O haterismo não depende de conteúdo. É um problema de forma.

Sua expressão mais banal é a falácia ad hominem, atestado mais claro de que alguém não dispõe de argumento nenhum. Curiosamente, ela é o pão de cada dia de nosso debate público. Para ver a enrascada em que nos encontramos. E lembrar de Umberto Eco.

Há uma ampla literatura sobre as raízes do haterismo na psicologia humana. Uma boa referência é o livro de Hugo Mercier e Dan Sperber, “The Enigma of Reason”. Sua tese diz que a mente humana evoluiu para guerrear por ideias, para justificar nossas ações, conduzir a tribo e destruir a tribo do outro.

O kantismo e sua racionalidade universalista, apelo à imparcialidade e à disciplina no “uso público da razão” seriam uma espécie de antinatureza. A razão iluminista pode expressar o que temos de melhor, mas é rara. Aqui no chão rondamos o estado de natureza.

A internet, por fim, piorou tudo. Sua marca é a reação imediata e não reflexiva. No mundo pré-digital, as instituições produziam alguma moderação nas opiniões. Seu tempo era diferente e nos obrigava a filtros e a algum tempo de espera.

Nas mídias sociais de hoje, muito antes de baixar a curva da raiva já tuitamos duas ou três vezes. Tudo em um ambiente de baixa empatia, destituído de pessoas de carne e osso, que olham na nossa cara, transpiram e com a qual podemos nos identificar.

Por fim, uma máquina de não esquecimento. O inferno de Nietzsche, feito da permanente lembrança de velhos ressentimentos. Estranho mundo em que os contextos mudam, mas as imagens e palavras estão lá congeladas no tempo. Cada gesto, cada erro ou acerto, tudo pronto a ser retirado do freezer, ao sabor da raiva da hora.

No início dessa crise, escrevi que a raiva e a tribalização da vida iriam crescer. As pessoas perderiam muito do contato pessoal e o país de cada um, pouco a pouco, se confundiria mais e mais com sua timeline.

Talvez tenha exagerado, mas temo que não.

*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.


Mariliz Pereira Jorge: Reféns da extrema direita

Como permitimos que a extrema-direita sequestrasse nossos maiores símbolos nacionais?

Ao ver as imagens de um homem vestido de verde e amarelo agredir um casal com camisetas vermelhas, nas manifestações de domingo (19), pensei: como permitimos que a extrema direita sequestrasse nossos maiores símbolos nacionais?

Professor de relações internacionais da FGV, Oliver Stuenkel, escreveu no ano passado sobre essa tendência ao redor do mundo. "Os radicais têm se apropriado de bandeiras nacionais para poder chamar vozes discordantes de inimigos da pátria". Não por acaso, é assim que Jair Bolsonaro, parlamentares aliados e apoiadores se referem a qualquer pessoa que faça oposição ao presidente.

Stuenkel dá como exemplo o leão e a cruz, imagens nacionais na Finlândia, hoje associados a grupos xenófobos. A tentativa de Trump em se apropriar da bandeira americana. A mesma tática do partido de extrema direita AfD, na Alemanha, que acusa os demais de terem vergonha dos símbolos alemães.

No Brasil, nossas cores encheram as ruas em favor do impeachment de Dilma como contraponto ao vermelho, marca registrada do PT. A partir daí, bandeira, hino e o verde e amarelo passaram a ser evitados por pessoas contrárias ao afastamento e hoje também por opositores do governo, atitude que acabou dando de bandeja parte da identidade do país aos radicais, que os fizeram reféns da estética cafona-bolsonarista.

A maioria dos perfis bolsonaristas nas redes sociais tem nossa bandeira como marca registrada. Tomamos horror ao uniforme verde e amarelo. O hino nacional virou trilha sonora de passeatas que pedem intervenção militar e também resposta às panelas que gritam "fora, Bolsonaro".

Ao nos afastarmos dos símbolos, segundo o que escreveu Stuenkel, "facilitamos o trabalho da extrema direita, a qual busca estabelecer uma falsa dicotomia entre cidadãos 'verdadeiros' e aqueles menos comprometidos com a nação". Ainda que não seja uma competição, talvez esteja na hora de mudar esse jogo.


Bruno Boghossian: Governadores temem que pressão leve a relaxamento precoce de isolamento

Ataques de Bolsonaro a regras e aperto econômico podem precipitar flexibilização de regras

Um animado saxofonista recebeu clientes de um shopping de Blumenau nesta quarta (22). Graças à decisão do governador Carlos Moisés de reabrir as lojas de Santa Catarina, idosos e crianças vestiram máscaras e se aglomeraram no centro comercial, enquanto vendedores batiam palmas nos corredores.

O estado adotou o isolamento contra o coronavírus há mais de um mês. Registrou 37 mortes e, agora, se tornou uma das primeiras unidades da federação a flexibilizar as regras de maneira significativa. Outros governadores temem que os catarinenses puxem a fila de um relaxamento apressado, com potencial trágico.

Líderes que decidiram manter o distanciamento enxergam um processo precipitado de retomada. Eles atribuem o movimento a pressões econômicas e políticas que se acumularam nas últimas semanas.

Para parte desses governadores, Jair Bolsonaro conseguiu constranger gestores regionais ao atacar o isolamento. O peso político se somou à cobrança de empresários que se viram respaldados pelo presidente.

Além disso, o aperto no bolso de trabalhadores informais, que demoram a receber o auxílio emergencial prometido em Brasília, e a resistência do governo federal em compensar estados e municípios que perderam arrecadação com o esfriamento da economia completam o pacote.

A pressão se torna um projeto com a entrada de Nelson Teich no Ministério da Saúde. Em sua primeira entrevista coletiva, ele ressaltou que acabou de chegar ao governo, mas já prometeu um "plano de saída" do isolamento para a próxima semana.

Alguns governadores dizem que ainda é cedo para a discussão. "No momento em que estamos com 90% dos leitos de UTI ocupados, com o sistema da capital colapsado, falar em relaxamento seria uma irresponsabilidade", diz Helder Barbalho (Pará).

As cenas do shopping de Blumenau foram motivo de comemoração no Planalto. De lá, não se ouviu lamento público diante das imagens da abertura de valas coletivas para enterrar os mortos de Manaus.


Ricardo Lewandowski: Covid-19 e federalismo

À União compete coordenar ações, estabelecer regras e ofertar apoio material 

A pandemia desencadeada pela Covid-19, que em poucos meses infectou e matou dezenas de milhares de pessoas em todo o mundo revelou, dentre outras coisas, as fraquezas e virtudes das diferentes formas de governança. Entre nós, serviu para testar os limites do federalismo adotado pela Constituição de 1988.

Do ponto de vista estrutural, existem basicamente dois tipos de Estado: “unitários” e “compostos”. Os primeiros apresentam apenas um centro de impulsão política. Seus súditos submetem-se a um único governo e ordenamento legal. As circunscrições em que se subdividem só possuem autonomia administrativa. Predominam em países com dimensões territoriais ou demográficas modestas e populações homogêneas.

Os compostos, sobretudo os federais, geralmente prevalecem em nações com tamanho maior e composição mais heterogênea. Fracionam-se em unidades territoriais dotadas de autonomia política. Por isso, seus cidadãos sujeitam-se simultaneamente às autoridades centrais, regionais e locais, cujas determinações e leis são obrigados a observar.

A federação é uma novidade histórica. Resultou da associação das 13 ex-colônias britânicas na América do Norte, tornadas independentes em 1776. Foi concebida para assegurar aos associados as vantagens da unidade, sem prejuízo de preservar as distintas particularidades. Mais tarde, constatou-se que também contribui para fortalecer a democracia, pois promove a desconcentração do poder e facilita a aproximação do povo com os governantes.

Inspirado na experiência dos EUA, o Brasil adotou o modelo em 1891, na primeira Constituição republicana. A partir de então, todas as Cartas políticas subsequentes o incorporaram, exceto a de 1937, sob a qual vicejou a ditadura getulista.

Ocorre que os estados-membros, desde quando foram instituídos, em substituição às antigas províncias imperiais, jamais foram dotados de poder e recursos compatíveis com suas necessidades, permanentemente concentrados no governo central. Já os municípios, embora também vítimas de uma crônica carência de meios, sempre dispuseram de considerável autoridade para regular assuntos de interesse local.

Para sanar esse desequilíbrio, a nova ordem constitucional adotou o denominado “federalismo cooperativo”, no qual União, estados e municípios passaram a compartilhar competências e rendas para buscar um desenvolvimento harmônico e integrado.

Tal evolução, à toda evidência, precisa ser levada em conta pelos diferentes níveis político-administrativos no combate à Covid-19. À União compete coordenar as ações, mediante o estabelecimento de regras gerais e a oferta de apoio material, porque lhe incumbe, a teor do artigo 21, inciso XVIII, da Lei Maior, “planejar e promover a defesa permanente contra calamidades públicas”.

Os entes regionais e locais não podem ser alijados dessa batalha, porquanto têm a obrigação de tomas as medidas necessárias para enfrentar a doença. Além de outras competências comuns que compartilham com a União, cabe-lhes “cuidar da saúde e assistência publica”, bem como “organizar o abastecimento alimentar” nos respectivos âmbitos de atuação, segundo o artigo 23, incisos II e VIII, do texto constitucional.

O federalismo cooperativo, longe de ser mera peça retórica, exige que seus integrantes se apoiem mutuamente, deixando de lado as divergências ideológicas ou partidárias dos respectivos governantes. A grave crise sanitária e econômica na qual nos debatemos atualmente demanda juízo, ponderação e responsabilidade de todos.

*Ricardo Lewandowski é ministro do Supremo Tribunal Federal e professor titular de teoria do Estado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo


Elio Gaspari: O presidente virou vivandeira

Nem todos os eleitores de Bolsonaro eram golpistas, mas todos os golpistas votaram nele

Vivandeira é uma palavra bonita que designa coisa feia. A expressão foi usada em agosto de 1964 pelo marechal-presidente Humberto Castello Branco, numa memorável lição:

“Há mesmo críticas tendenciosas e sem fundamento na opinião pública de que o poder militar se desmanda em incursões militaristas. Mas quem as faz são sempre os que se amoitaram em meios militares. Felizmente nunca rondaram os portões das organizações do Exército que chefiei. Mas eu os identifico a todos. E são muitos deles, os mesmos que, desde 1930, como vivandeiras alvoroçadas, vêm aos bivaques bolir com os granadeiros e provocar extravagâncias do poder militar”.

O presidente Jair Bolsonaro amoitou-se diante do quartel-general do Exército, onde havia uma aglomeração de vivandeiras que pediam extravagâncias do poder militar. No dia seguinte, disse que não tinha nada a ver com as faixas que pediam o fechamento do Congresso, do Supremo Tribunal Federal e uma volta à ditadura escancarada do Ato Institucional nº 5.

O capitão disse também que “eu sou, realmente, a Constituição”. Não é. Dias antes, falou em “minhas Forças Armadas”. Minhas?

Deve-se voltar ao marechal Castello Branco. Como chefe do Estado-Maior do Exército, no dia 20 de março de 1964, uma semana depois do comício do João Goulart ao lado do quartel-general enfeitado por tanques, ele assinou uma circular reservada para os comandos. Disse que “os meios militares nacionais e permanentes não são propriamente para defender programas de governo, muito menos a sua propaganda, mas para garantir os Poderes constitucionais, o seu funcionamento e a aplicação da lei”.

Mais: “Não sendo milícia, as Forças Armadas não são armas para empreendimentos antidemocráticos”.

Castello Branco era um general francês. Já o seu colega Aurélio de Lyra Tavares, subchefe do Estado-Maior do Exército, era qualquer outra coisa. No dia seguinte, mandou-lhe uma carta na qual dizia que havia lido a circular depois de sua expedição. (Portanto não tinha nada a ver com aquilo). Informou que percebia um clima de apreensão “pela leitura dos jornais”. (Maldita imprensa.)

Em qualquer corporação há Castellos e há Lyras. O general viria a ser o desastroso ministro do Exército do presidente Costa e Silva e integrante da patética junta militar de 1969. Deu no que deu.

Nem todos os eleitores de Jair Bolsonaro eram golpistas, mas todos os golpistas votaram no capitão. Em janeiro de 2019, quando ele entrou no Planalto com seus 58 milhões de votos, poderia haver o sonho de um emparedamento do Congresso. Passado um ano, o Executivo ficou menor que o Parlamento. Atingido pela pandemia, o capitão meteu-se num negacionismo pueril e viu-se atirado ao olho de uma crise econômica que não provocou e que não mostra competência para administrar. Nas suas palavras: “Se acabar economia, acaba qualquer governo. Acaba o meu governo. É uma luta de poder”. Não é uma luta de poder, nem acaba qualquer governo e o dele deve continuar até 31 de dezembro de 2022.

Se o presidente nada teve a ver com a vivandagem, torna-se impossível encaixar o Bolsonaro de domingo (19) no Bolsonaro da segunda-feira (20). Do alto da caçamba de uma camionete ele disse que “não queremos negociar nada. (...) É agora o povo no poder”.

Sem golpe, não haverá como.

Elio Gaspari é jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada".