Folha de S. Paulo

Vinicius Torres Freire: Governo fala em 'imprimir dinheiro', mas ideia está longe de chegar à prática

Ministro disse que pode acontecer, mas é hipótese teórica ou o governo já pensa em agir?

Paulo Guedes afirmou que o governo pode “imprimir dinheiro”, maneira “pop” de dizer que o Banco Central pode criar moeda do nada a fim de comprar títulos públicos. Isto é, emprestar dinheiro para o governo. Na prática, grosso modo, o endividamento extra seria financiado com dinheiro criado do nada, para ir no popular.

O troço é mais enrolado, mas a questão mais importante nem é explicar a aparente mágica.

As perguntas são:

1. Guedes apenas mencionou uma hipótese teórica de uma política extraordinária, adotada no Japão dos anos 1990, nos EUA e na Europa depois da crise de 2008 e agora outra vez, por causa da ruína da epidemia?

2. O ministro choveu no molhado, porque o BC já admitiu que pode em tese recorrer a tal política, faz mais de três semanas? Aliás, o instrumento que permite ao BC comprar títulos do Tesouro foi negociado com o Congresso faz um mês;

3. Os economistas do governo já pensam em partir para a ação (embora a decisão, oficialmente, caiba ao BC)?

Até para economistas-padrão, quando a taxa básica de juros da economia, de curto prazo, chega a zero ou perto disso, e a atividade econômica continua morta ou quase isso, uma opção restante para o Banco Central é reduzir as taxas de juro de prazo mais longo. Para fazê-lo, compra títulos do Tesouro, elevando seus preços, derrubando a taxa (é a mesma coisa). Grosso modo, foi o que Guedes disse.

A taxa de curto, a “taxa do BC”, é a Selic, está em 3,75% ao ano, muito e exageradamente longe de zero. Há gente na praça financeira fazendo campanha para evitar que a Selic caia mais. Dizem que mais capital fugiria do país, o dólar ficaria ainda mais caro, não adiantaria nada para reavivar a economia etc. Bidu.

Desde que a pandemia abalou as finanças do mundo, as taxas de longo prazo no Brasil subiram, o que tem dificultado o financiamento e a rolagem da dívida pública, entre outros problemas.

Enfim, Guedes falou no assunto e Roberto Campos, presidente do BC, já admitiu comprar títulos do Tesouro para achatar a curva de juros. A permissão para fazê-lo será em breve concedida pela aprovação da PEC do Orçamento de guerra. O que vai acontecer, então?

O BC vai acelerar a campanha de redução da Selic, até porque as perspectivas são de inflação mínima ou na prática nula, apesar de as expectativas do mercado serem ainda loucamente altas?

O BC poderia tentar reduzir os juros longos (comprando títulos), na marra, mesmo antes da Selic ir a perto de zero? Difícil, seria meio escandaloso entre economistas-padrão e causaria salseiro no mercado.

A política extraordinária do BC poderia ter o efeito óbvio de, no fim das contas, financiar o governo a juro zero ou perto disso, fazendo de resto que a dívida pública seja rolada no curto prazo. A economia continuaria catatônica, mas o déficit e a dívida públicos cresceriam menos, reduzindo o tamanho da desgraça a ser resolvida no futuro.

Dificilmente a gente vai escapar de algo assim, dado o desastre previsto na economia e nas contas públicas. Mas essa não é uma conversa fácil para economistas como esses que estão no governo.

O achatamento da curva de juros, a redução dos juros longos, dificilmente terá efeito na atividade econômica, asfixiada pela pandemia (quem vai investir ou emprestar muito dinheiro, dada a perspectiva de ruína?).

Então, vai ter dinheiro caindo do céu? Vai ter “impressão de dinheiro”? Ou se trata apenas de arma guardada para o Armagedom, de uma ruína terminal do pós-pandemia?


Reinaldo Azevedo: É preciso cultivar nosso jardim e punir os anjos da morte

Estamos esmagados sob a égide de espíritos homicidas, mas nem tudo está perdido

Sinto desconforto ao ter de escrever sobre certas vigarices políticas quando o caos da Covid-19 já engolfou Manaus e Belém, avizinha-se de Fortaleza e São Luís, preparando-se para tragar Rio e São Paulo. Desconforto e sensação de impotência. Como todo mundo. Nada disso está bem. É preciso, então, cultivar nosso jardim. Volto ao ponto mais adiante, depois de tratar do fim de uma quimera, de que o triunfo da morte é parte.

Sergio Moro deixou o Ministério da Justiça ambicionando o papel de mocinho no duelo com Jair Bolsonaro. Um completo ausente em tempos de coronavírus, demitiu-se cinco dias antes de o Monitor da Violência apontar nova escalada de homicídios. O índice cresceu 8% no país —22% no Nordeste— em janeiro e fevereiro na comparação com igual período do ano passado. A incompetência é apanágio da mistificação.

Saiu atirando contra o chefe, com quem formalizou uma aliança de pornografia política explícita há meros 17 meses. O rompimento foi didático. Expôs sem filtro a natureza da Lava Jato e o seu poder de corromper instituições sob o pretexto de caçar corruptos. Foi aquele serpentário que nos relegou às trevas.

A aliança informal da operação com a extrema direita antecedia em muito o novembro de 2018, quando o então presidente eleito convidou o juiz para o cargo. No ministério, Moro condescendeu com o obscurantismo armamentista de Bolsonaro —e o resultado, tudo indica, já se traduz em corpos—, fez a defesa esganiçada e cruenta da licença para matar e se opôs ao juiz de garantias.

Os bolso-moro-fascistoides iam às ruas cobrar o emparedamento militar do Congresso e do Supremo, e o ministro se limitava ao sorriso de uma Monalisa sem mistérios. Apostava que Bolsonaro, cedo ou tarde, iria se confrontar com a sua biografia e a da família, e ele, Moro, herdaria o lamaçal de memes e a indústria de difamação. Afinal, o chefe havia sido tolo o bastante para entregar ao subordinado o controle do Papol (Partido da Polícia).

Na greve de setores da PM do Ceará, passou a mão na cabeça de criminosos amotinados e armados, apontando o seu cavalheirismo. Imperdoável e irredimível sob qualquer parâmetro civilizado que se queira! Mas eu o saúdo ao menos na derrocada. O rompimento foi útil à República. Crimes de acusado e acusador vieram à luz.

O rififi na extrema direita teve outro desdobramento positivo. Contribuiu para que o Supremo lembrasse, como quer Jacques Chevallier —citado pelo ministro Alexandre de Moraes ao impedir a posse de Alexandre Ramagem como diretor-geral da PF— que “o objetivo do Estado de Direito é limitar o Estado pelo direito”. Estamos esmagados por uma montanha de mortos e sob a égide de espíritos homicidas, mas nem tudo está perdido. É preciso cultivar nosso jardim.

A exemplo de todo mundo, tenho repetido que um dia isso passa, mas exorto desde já a que façamos da memória uma arma de ajuste de contas com a história. Em benefício dos que estão por vir. E em memória dos que se foram. Pareceu barateamento de retórica jacobina? A proposta é muito objetiva. Se há óbices legais, e os há, para a criação de um Tribunal Penal Especial para punir os criminosos da Covid-19, nada impede que se instale um Tribunal Russell para os Crimes da Pandemia.


Bruno Boghossian: Bolsonaro força atrito com Supremo para encobrir interferência na PF

Presidente não reclamou do STF quando ministros decidiram a favor de Flávio e do governo

Não houve chiadeira no Palácio da Alvorada quando Luiz Fux aproveitou o recesso do STF e decidiu, sozinho, suspender as investigações do caso Fabrício Queiroz, no início do ano passado. Ninguém saiu à portaria para dizer que aquele era um juízo político ou que o ministro abusava do poder de sua caneta.

Seria ingenuidade esperar coerência de Jair Bolsonaro. O presidente bateu palmas quando o Supremo tomou decisões que beneficiavam sua família e o governo. Agora, força uma confusão com a corte para encobrir sua tentativa escancarada de interferir na Polícia Federal.

Depois que Alexandre de Moraes barrou a nomeação de seu escolhido para o comando do órgão, o presidente disse que o ministro impedira a posse só porque Alexandre Ramagem era seu amigo: "Por que não posso prestigiar uma pessoa que eu conhecia com essa profundidade?".

Não era nada daquilo. Bolsonaro foi impedido de trocar a chefia da PF porque demonstrou interesse em intervir politicamente em investigações que rondam seus filhos e aliados. As relações com Ramagem surgiram apenas como agravantes.

Bolsonaro atacou Moraes para embaralhar essas circunstâncias e posar de vítima de uma intromissão do Judiciário sobre seus poderes. Acrescentou que não seria "refém de decisões monocráticas de quem quer que seja", em referência aos despachos emitidos por um único juiz.

Ele não se incomodou com esse detalhe quando Fux, Gilmar Mendes ou Dias Toffoli assinaram decisões que aliviaram temporariamente a barra de Flávio Bolsonaro nos inquéritos sobre o esquema da "rachadinha". Ninguém fez campanha nas redes contra os ministros.

O presidente também não criou atrito com Moraes quando o ministro aceitou (sozinho) torcer a Lei de Responsabilidade Fiscal e autorizou Bolsonaro a criar despesas sem apontar a origem das receitas durante a crise do coronavírus. O pedido havia sido feito pelo próprio governo. Ninguém chamou um cabo e um soldado para fechar o Supremo.


Hélio Schwartsman: Brasil fracassa na pandemia

Fracassamos no preparo, nos testes e até na contagem mortos

Hesitei muito antes de escrever esta coluna, mas acho que não há mais como adiar: a forma como o Brasil vem enfrentando a Covid-19 só pode ser classificada como um fracasso completo. Para mencionar apenas os pontos mais essenciais, fracassamos no preparo para lidar com a pandemia, fracassamos em testar nos níveis necessários para identificar os doentes e eliminar cadeias de contágio e fracassamos até mesmo em contar os mortos direito e enterrá-los com dignidade.

Não ignoro que a dificuldade é global. Faltam insumos no mundo inteiro. A carência atinge desde os sempre lembrados ventiladores até reagentes para os testes e itens de proteção pessoal como máscaras e viseiras. Faltam também produtos menos óbvios, como o swab, o "cotonete" usado nos exames moleculares.

Onde estão o governo e os engenheiros de produção? Por que o poder público não negociou com setores da indústria que estão ociosos a conversão de suas linhas para a produção emergencial de alguns desses itens?

Tampouco desconsidero o esforço, com enorme risco pessoal, das equipes de saúde. Minha mulher, Josiane, que é médica intensivista e cardiologista, já pegou o bicho e se recuperou, mas vários de seus colegas estão internados em estado crítico. A incapacidade das autoridades em fornecer equipamentos adequados de proteção custa vidas e desfalca as equipes num momento em que isso não poderia ocorrer.

Profissionais de saúde treinados para atuar em ambiente de UTI são outro gargalo importante.

O mais grave, porém, é nosso fracasso em testar de forma ampla para produzir números que permitam entender o que está acontecendo em cada área do país. Sem boas estatísticas fica impossível planejar os próximos passos, seja para ampliar o isolamento, seja para relaxá-lo, conforme a necessidade. Pior, sem testes em profusão, fica muito mais difícil promover uma estratégia de retomada controlada.


Mariliz Pereira Jorge: O que eu quero, Bolsonaro?

Obrigada por ter perguntado, presidente

Jair Bolsonaro insiste na narrativa de que não tem nada a ver com as mortes causadas pela Covid-19. Vai que cola. "E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê?", ele pergunta. Obrigada por ter perguntado, presidente. Aqui vão algumas sugestões do que fazer, visto que o senhor parece meio sem ideia.

Uma medida urgente é que você pare de brincar de roleta russa com a vida do brasileiro. O Imperial College diz que o Brasil tem a maior taxa de contágio do coranavírus do mundo e prevê mais de 5.000 mortes, na próxima semana. Diferentemente do que você disse, se insistir em abrir o comércio, quem corre risco é o povo. O único risco a que você se expõe é ser tachado de genocida. Mas e daí?

O que eu quero, Bolsonaro? Que você peça desculpas por ter dito que é gripezinha, histeria, fantasia. Que o vírus está indo embora, que está superdimensionado, que brasileiro pula em esgoto e não pega nada, que todo mundo vai morrer um dia.

O que mais eu quero? Que você pare de tentar interferir nas investigações da Polícia Federal para proteger seus filhos, que mostre os resultados de todos os seus exames para Covid-19, que trate jornalistas sem parecer um cavalo, que não cumprimente as pessoas com a mão cheia de perdigotos, que desista de estimular e de participar de atos golpistas. Entenda, você até "manda", mas não é dono do país.

Por fim, deixe que os governadores façam o que você não tem feito, tentar preservar vidas. Já dizia qualquer avó: se não for para ajudar, não atrapalhe. Aproveite e demita o incompetente do Weintraub e também o Ricardo Salles, antes que não sobre uma árvore em pé na Amazônia. Antes que eu me esqueça, conta pra gente, cadê o Queiroz?

Se nada disso for possível, tenho uma sugestão muito mais simples. Renuncie. E, por favor, leve junto para o inferno os zeros à esquerda dos seus filhos. Se Deus realmente existe, é para lá que vocês vão.


Bruno Boghossian: Bolsonaro busca brinquedos antigos para distrair suas bases

Bolsonaro busca brinquedos antigos para distrair suas bases

Jair Bolsonaro deve ter se cansado de cometer erros na crise do coronavírus. Depois de prever só 800 mortes no país, de insistir no poder milagroso de um remédio e de atazanar governantes que tomaram medidas de isolamento, o presidente decidiu fingir que não tem mais nada a ver com isso.

A curva de mortes está em disparada, mas Bolsonaro afirma que o problema é de governadores e prefeitos. Já o ministro da Saúde admitiu que está "navegando às cegas" e que ninguém sabe quando vai ser o pico da contaminação, embora seu chefe tenha dito há pouco mais de duas semanas que estava "começando a ir embora a questão da pandemia".

Bolsonaro comprovou sua incompetência para lidar com a crise e, agora, resolveu abrir um baú de brinquedos antigos para distrair suas bases.

Como se não existisse uma doença devastadora, ele voltou a acenar a redutos conservadores com uma pauta voltada à segurança pública e sua conhecida cartilha ideológica.

Na semana passada, depois de acertar a demissão do diretor da Polícia Federal, Bolsonaro pegou carona numa manifestação de grupos evangélicos e publicou um vídeo em que crianças diziam ser contra o aborto. O tuíte teve mais de 85 mil interações entre seus seguidores.

O presidente ainda tentou reviver a ameaça fantasma da esquerda na educação. Em dois eventos sem relação com a área, Bolsonaro elogiou o ministro Abraham Weintraub e reclamou da "doutrinação de décadas" nas escolas brasileiras.

A ideia é mudar de assunto e reforçar seu vínculo com grupos que poderiam ficar perturbados com a escalada de mortes ou a saída de Sergio Moro do governo. Para isso, vale buscar também seu adormecido discurso linha-dura na segurança.

Nesta quarta (29), o novo ministro da Justiça exagerou na propaganda e disse que o presidente é "um profeta no combate à criminalidade". O deputado Bolsonaro jamais aprovou um projeto de lei sobre o tema. No Planalto, não desenvolveu nenhuma política pública relevante na área.


Vinicius Torres Freire: Epidemia voltou a piorar no Brasil?

Ritmo de aumento do número de novos casos vinha caindo até a semana passada; não mais

O número de mortes por Covid-19 no Brasil e em São Paulo parecia crescer mais devagar até o começo da semana passada, por aí. Até então, com todas as ressalvas de praxe, parecia haver uma despiora, como vinha acontecendo em países grandes da Europa, no que diz respeito à redução do ritmo do avanço do número de casos e mortes, considerados dias equivalentes de duração da epidemia.

Desde a semana passada, embatucamos. O ritmo parou de diminuir.

O que houve? Há mais registros de casos e mortes porque há mais testes ou notificações mais rápidas? Ou há um problema na contenção da doença, programa que mal e mal parecia funcionar?

Como está claro, epidemiologistas e outros estudiosos da doença estão com dificuldades ou indisposição de avançar opiniões, que dirá análises ou projeções. Mas alguns deles dizem temer que a desordem no distanciamento social possa ter abalado a tendência de despiora no ritmo de avanço da doença. Mas esperariam mais uma semana, pelo menos, antes de assinar o comentário.

As medições disponíveis de isolamento caíram, cidades reabrem a atividade econômica ou jamais as fecharam de fato, há propaganda federal contra o isolamento. Pessoas mais pobres, sem auxílio, procuram meios de ganhar vida, as pessoas em geral começam a se cansar do isolamento e fogem. Para piorar, ainda estamos muito longe de ter um sistema amplo e ágil de rastreamento de doentes e possíveis contaminados.

Temos ainda problemas com os dados mais elementares. Não sabemos quando as pessoas ficaram doentes (com sintomas) ou morreram. As notificações diárias são de confirmações de casos que podem ter ocorrido faz dias.

O problema vai, pois, muito além da subnotificação, que sempre há e haverá. E subnotificação do quê? De infecções em geral, de doentes leves, de casos hospitalares, de mortes? De resto, uma subnotificação mais ou menos constante permite que se acompanhe o ritmo da progressão da doença, embora não o nível do número de casos.

Há agora uma corrida para saber da subnotificação _é útil, ajuda a pressionar os governos a fornecerem dados melhores. Vários dados indicam subnotificação, mas não dizem muito mais do que isso.

No estado de São Paulo, o número geral de mortes em março de 2020 superou a média dos últimos quatro anos em 1.481. O número oficial de mortes por Covid-19 naquele mês foi de 731, mas várias mortes ainda estavam pendentes de confirmação ainda em abril (os dados de mortalidade de abril ainda são imprestáveis, por vários motivos).

O que podemos concluir? Nada além do óbvio. Existem mais casos, não se sabe bem quantos, quando e em que ritmo de notificação ou sub.

Além do risco do fetiche do número da subnotificação, falta qualidade nos dados elementares da doença. Parece que o país se cansou de falar no assunto, saiu de moda, embora o problema esteja explodindo. Ainda não temos informação precisa de UTIs, ventiladores, testes, detalhamento da gravidade dos casos e da evolução desses números.

Compramos mais, produzimos mais, temos mais equipamentos?

Deveria haver equipes supervisionando isso com precisão, de modo a tentar evitar mais desgraça. Que essas informações não existam ou que os governos se recusem a divulga-las, COMO TEM FEITO, é um escândalo que deveria ser objeto de campanha, talvez campanha do Ministério Público.

É uma zorra criminosa.


Folha de S. Paulo: Alexandre de Moraes suspende nomeação de Ramagem na PF

Nomeação de amigo do clã Bolsonaro para PF gerou resistência no Congresso e ações judiciais

Bruno Boghossian, da Folha de S. Paulo

O ministro Alexandre de Moraes, do STF, suspendeu a nomeação de Alexandre Ramagem para diretoria-geral da Polícia Federal feita um dia antes pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido). A posse estava marcada para a tarde desta quarta-feira (29).

Moraes atendeu a um pedido do PDT, que entrou com um mandado de segurança no STF alegando "abuso de poder por desvio de finalidade" com a nomeação do delegado para a PF.

nomeação de Ramagem, amigo do clã Bolsonaro que era diretor-geral da Abin (Agência Brasileira de Inteligência), motivou uma ofensiva judicial para barrá-la, tendo em vista os interesses da família e de aliados do presidente em investigações da Polícia Federal.

Após a saída de Sergio Moro do governo sob a alegação de interferência política na Polícia Federal, a nomeação do novo diretor-geral da corporação virou alvo de uma série de ações na Justiça e de resistência no Congresso.

Bolsonaro oficializou no Diário Oficial da União desta terça-feira (29) os nomes do advogado André de Almeida Mendonça, 47, para substituir Moro no Ministério da Justiça, e do delegado Ramagem, 48, para a vaga de Maurício Valeixo na Diretoria-Geral da PF.

O plano de troca da chefia da PF foi estopim da saída de Moro. O ex-ministro disse que Bolsonaro queria ter uma pessoa do contato pessoal dele no comando da corporação para poder "colher informações" e "relatórios" diretamente.

Diante da nomeação de Ramagem, partidos e movimentos políticos entraram com ações judiciais para tentar impedir a posse, que estava marcada para as 15h desta quarta. Eles alegam "abuso de poder" e "desvio de finalidade" na escolha.

No final da tarde desta terça, havia ao menos seis processos pedindo a suspensão da nomeação de Ramagem, alegando que Bolsonaro praticou "aparelhamento particular" ao indicá-lo para a função. A base dos pedidos é a denúncia de Moro alegando interferência do presidente da República na Polícia Federal.

Diferentemente dos elogios ao nome do novo ministro da Justiça, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, disse que Ramagem terá "dificuldade na corporação, na forma como ficou polêmica a sua nomeação".

"A gente sabe que a Polícia Federal é uma corporação muito unida, que trabalha de forma muito independente. Qualquer tipo de interferência é sempre rechaçado. A gente viu em outros governos que foi assim. Mas eu não conheço [Ramagem]", disse à Band o presidente da Câmara.

Ramagem se aproximou da família Bolsonaro durante a campanha de 2018, quando comandou a segurança do então candidato a presidente depois do episódio da facada.

O vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos) é um dos seus principais fiadores e esteve à frente da decisão que levou Ramagem ao comando da Abin.

Na noite de segunda (27), Bolsonaro disse não haver esquema de notícias falsas. "Meu Deus do céu. Isso é liberdade de expressão. Vocês deveriam ser os primeiros a ser contra a CPI das Fake News. O tempo todo o objetivo da CPI é me desgastar", afirmou Bolsonaro, ao ser questionado sobre possíveis prejuízos que a troca no comando da Polícia Federal traria à investigação sobre as fake news.

A Rede Sustentabilidade também entrou no STF contra a nomeação de Ramagem. O partido apresentou ADPF (Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental) afirmando que conversa por aplicativo entre Bolsonaro e Moro "demonstram de forma inequívoca a vontade de interferência em investigações".

Para o senador Randolfe Rodrigues (AP), líder da sigla no Senado, apesar de preencher os requisitos estritamente legais, a nomeação é "uma tentativa de Bolsonaro controlar e abafar investigações da instituição que envolvem seus familiares e conhecidos".

Randolfe, ao lado do senador Fabiano Contarato (ES), é autor de outra ação no Judiciário. Os parlamentares pediram para que fosse anulada a exoneração de Valeixo e suspensas novas nomeações. A ofensiva, porém, foi rejeitada pelo juiz Ed Leal, da 22ª Vara Federal Cível do DF. Os advogados da Rede avisaram que irão recorrer.

O PSOL, através do deputado federal Marcelo Freixo (RJ), entrou com ação, mas preferiu contestar a nomeação à primeira instância da Justiça. "Não permitiremos que o presidente transforme a PF numa polícia política a serviço da família", afirmou.

A deputada Tabata Amaral (PDT-SP) ingressou com ação na Justiça Federal em Brasília pedindo para que Ramagem seja proibido de assumir. O coordenador do Movimento Brasil Livre (MBL), Rubinho Nunes, confirmou que o grupo político também entrou com ação contra a posse.


Hélio Schwartsman: Cuidado com as comparações

É preciso atenção para não cair em armadilhas que podem causar confusão

Jornalistas adoramos rankings e comparações entre países —e por bons motivos. A contextualização costuma ser uma rota eficaz para a compreensão. É preciso, porém, cuidado para não cair na armadilha das comparações que confundem mais do que esclarecem.

É o caso, infelizmente, das tabelas e gráficos que põem lado a lado o número de casos e de mortes por Covid-19 em vários países. Esses dados, frise-se, são importantes para uma série de mensurações, mas a comparação direta deles revela pouco.

O ponto central é a testagem. Como cada país tem uma política diferente de testagem, o número de casos confirmados e outros indicadores que dependem dele, como a morbidade por 100 mil habitantes e a taxa de letalidade, se tornam incomensuráveis. Um país que só teste doentes graves terá, por definição, uma letalidade alta, enquanto um que vá atrás até de pacientes assintomáticos apresentará um índice mais baixo (e mais próximo do real). Há que considerar ainda que diferentes países estão em diferentes fases da epidemia.

Contar só os mortos em vez dos doentes diminui o espaço para o erro, mas não o elimina. É difícil desaparecer com o cadáver, mas dá para fazer muita bagunça com a causa da morte. O governo da Bélgica, por exemplo, afirma que a alta mortalidade por Covid-19 registrada no país se deve à transparência com que apresenta os números. Ele contabiliza na coluna dos óbitos todos os casos suspeitos, mesmo sem confirmação laboratorial.

Uma comparação objetiva do desempenho de cada país poderá ser feita depois que epidemiologistas, de posse dos dados relevantes, como o excesso de mortes e os resultados das investigações sorológicas, traçarem o quadro completo de como cada nação se saiu.

O que dá para dizer por ora é que países que conseguiram evitar o colapso dos sistemas de saúde estão lidando melhor com a crise do que os que deixaram suas UTIs lotarem.


Ranier Bragon: O bolsonarismo está nu

Sob a máscara de Jair Bolsonaro sempre esteve Jair Bolsonaro

O bolsonarismo raiz, fanatizado, sempre tentou esconder seu verdadeiro rosto. Essa gente que tem aversão a pobres, exala ódio, ignorância, racismo, misoginia, homofobia, xenofobia, autoritarismo e um sem-fim de ignomínias sabia que não podia sair ao sol com sua pavorosa face sem algum manto de cobertura.

Com isso, pilantras os mais variados, que não pensariam duas vezes em embolsar o troco a mais no caixa de supermercado, passaram a propagar a sua arenga anticorrupção.

Todos de braços dados no conhecido último refúgio dos canalhas, em uma orgia verde e amarela de uma devoção tão incontida à pátria que só lhes faltava deitar ao chão e enfiar torrões de terra goela adentro. E, nesse teatro, os canastrões da própria vida buscavam convencer o mundo e a si mesmos da sua nobreza de sentimentos.

Mas agora a pornografia está explícita. Bolsonaro está nu. E o bolsonarismo terá que defender seu asqueroso modo de pensar a vida sem a desculpa esfarrapada de que quer um Brasil livre de corrupção.

A mamata acabou. Não necessariamente pela saída de Sergio Moro. O xerife da Lava Jato tem sérias contas a prestar com a história por ter pulado na nau bolsonarista logo após a eleição, quando nenhum adulto com mais de três neurônios poderia alegar inocência sobre quem era Jair Bolsonaro e o que ele representava.

Refiro-me especialmente a dois outros fatores: o primeiro, a aliança que o capitão busca agora com o centrão, que há anos ele tratou como coisa mais suja do que pão que o diabo amassou com o rabo. Velha política corrupta. Agora querem ser um só. Saem os bonecões infláveis de Moro super-homem e entram os de Roberto Jefferson, o vingador. O segundo, a escancarada tentativa de manietar a Polícia Federal em nome de interesses inconfessáveis.

Outra vez recorro a João Montanaro e sua charge em que Scooby-Doo e sua turma revelam a real face do presidente. Sob a máscara de Jair Bolsonaro sempre esteve Jair Bolsonaro. Todos sabiam disso.


Pablo Ortellado: Uma política para o rastreamento digital

Tecnologias que monitoram a cadeia de contaminação do coronavírus precisam respeitar a privacidade

Para planejarmos a saída do isolamento, provavelmente precisaremos adotar políticas de rastreamento digital, seja para acompanhar a dinâmica de movimentação das pessoas, de maneira agregada e anonimizada, seja para acompanhar a movimentação individual.

Esse monitoramento agregado e supostamente anonimizado já está sendo feito. Ele é a base dos relatórios com índices de isolamento social produzidos por empresas como a Google ou pelos governos a partir de dados das empresas telefônicas. Se realizado de maneira agregada, anonimizada e incluindo ruídos para impedir que se identifiquem indivíduos, pode conciliar proteção à privacidade e capacidade de retratar com precisão a adesão ao isolamento social.

Mas começam a emergir tecnologias para monitorar individualmente a infecção e controlar a cadeia de transmissão. Essas tecnologias apresentam riscos muito maiores à privacidade e são particularmente preocupantes quando adotadas por governos com vocação autoritária, como é o caso do governo brasileiro.

Governos europeus começaram a discutir a adoção de políticas de rastreamento individual que sejam compatíveis com um alto nível de proteção à privacidade.

A abordagem mais promissora consiste em adotar um protocolo que utiliza o bluetooth dos celulares para registrar contatos próximos entre usuários. Sempre que celulares se aproximam, o software registra a distância e o tempo de contato. Caso o usuário descubra que foi infectado pelo coronavírus, ele informa um software que então aciona um alerta para todos os contatos prolongados registrados nos últimos dias para que façam um teste e guardem quarentena. Nem mesmo o usuário infectado sabe para quem o alerta foi disparado.

A virtude dessa abordagem --em oposição a outras centralizadas-- é que o registro dos contatos é anonimizado, armazenado em cada aparelho (e não em um servidor central) e governos e empresas não têm acesso a esses dados individuais sensíveis. Embora desenhado para uso voluntário, se tiver ampla adoção pode ajudar a controlar a cadeia de transmissão da doença.

Precisamos começar a discutir qual tipo de tecnologia adotaremos por aqui. O governo Bolsonaro já deu sinais de que não respeita a privacidade, propondo adiar a entrada em vigor da lei de proteção de dados pessoais e emitindo medida provisória que entrega cadastros telefônicos sem restrição ao IBGE.

Organizações de direitos civis se preocupam com razão que dados desse tipo possam ser utilizados por órgãos de inteligência ou pelo gabinete do ódio para os mais sinistros propósitos.

*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.


Luiz Felipe Pondé: Menosprezamos o vínculo entre retórica científica e regimes de exceção

Exercício ficcional imagina mundo cinco anos depois do surgimento da Covid-19

Esse exercício ficcional do futuro é dedicado a quem defende uma sociabilidade com a Covid-19 baseada em métodos de controle epidemiológicos e a quem faz marketing de si mesmo "torcendo pelo vírus".

Passaram-se cinco anos desde que a hoje chamada "gripe coronial" surgiu. No início achava-se que começara na China, hoje já não se tem mais certeza de nada acerca da sua origem. Uns creem ter sido lançada no mundo pelos seres extraterrestres que nos criaram e que desistiram do experimento. Outros defendem que a natureza decidiu dar um basta em nossa ganância.

Ilustração em tons amarelos representa um homem de óculos deitado sobre um divã. Sobre sua cabeça uma câmera de vigilância com um olho o observa. Pela janela um grande olho o observa pela janela pairando sobre a cidade do lado de fora

A verdade é que muito se escreveu sobre a epidemia nesses cinco anos. Mas, pela saturação de narrativas, depois de algum tempo, esse acúmulo de dados científicos circulando em meio a um público sem nenhuma condição de avaliá-los acabou por se transformar na nova normalidade. Quase ninguém mais se interessa por nada que não tenha a ver com a segurança epidemiológica.

Agora começa a ficar claro como menosprezamos o vínculo entre retórica científica e regimes de exceção.

No Brasil de cinco anos atrás, o então presidente, um idiota desastrado, clamava por violência contra a democracia. Esse fato ridículo nos distraiu para o verdadeiro processo transformador em curso: a aceitação tranquila do regime em que agora vivemos, onde nada se pode fazer que não seja posto sob modelos epidemiológicos de segurança. Não há um nome para esse regime. Não ouso mentir.

Os primeiros indícios surgiram quando os cidadãos conscientes começaram a brigar nas ruas cobrando pessoas irresponsáveis que não usavam máscaras. Depois passaram a cobrar roupas especiais de segurança (que hoje são objetos da nova moda, batizada de "estilo cuidado"), assim como não dizer "bom dia" para as outras pessoas se tornou a norma, já que alguns artigos afirmaram por um tempo que o vírus podia entrar pela boca enquanto você falava.

Mesmo que esses artigos hoje tenham desaparecido no mapa infinito de produções científicas, a memória social os manteve ativos. Agora o silêncio social é uma prova de adesão aos modos corretos, e artistas postam fofamente #fiquedebocafechada.

Outro indício foi a decisão que grupos de riscos perderiam o direito a liberdade de ir e vir. Depois de sucessivas tentativas de controlar o vírus, governos, munidos de todas as formas do que agora chamamos de "tecnologias democráticas do cuidado" (em inglês, CDT) chegaram, graças ao desenvolvimento tecnológico dentro da nova normalidade, a uma capacidade de gestão quase absoluta da mobilidade urbana.

No começo, esse controle era feito por pessoas mobilizadas pela causa da luta contra o vírus, mas agora os aplicativos do cuidado avisam onde existem grupos de riscos rompendo o novo contrato social. Não se sabe ao certo aonde vão essas pessoas, mas, seguramente, creem os crentes, devem ir a lugares onde serão cuidadas apropriadamente e onde não colocarão em risco o sistema mundial de cuidado em que todos vivemos.

Um problema, mas que hoje parece pertencente ao passado (a sensação de aceleração da nova normalidade foi muito alta nos primeiros dois anos), foi a superação do modelo familiar patriarcal, como era chamado.

As pessoas que agora chegaram aos 30 anos moram basicamente sozinhas com seus pets. Essa tendência, que antes era uma questão de escolha, se radicalizou quando a ciência determinou definitivamente que animais não eram transmissores do vírus.

A vida atualmente é controlada remotamente. O mercado, como sempre, se acomodou à nova normalidade. Onde estará a vacina?

O grande debate agora é a submissão da reprodução humana aos novos modelos epidemiológicos de segurança. Já que o sexo praticamente não existe (atividade de risco, identificada como tal logo no primeiro ano), a reprodução assistida hoje é objeto de ceticismo por parte das autoridades, já que, possivelmente, novos seres humanos seriam novos hospedeiros para o vírus.

A pobreza generalizada, finalmente, encerrou o hábito de consumo. A vida é simples agora. As pessoas hoje praticam mindfulness remotamente, livres do "fetiche do presencial". Lindo, né?

*Luiz Felipe Pondé é escritor e ensaísta, autor de “Dez Mandamentos” e “Marketing Existencial”. É doutor em filosofia pela USP.