Ana Dubeux : Democracia, sim. Ditadura, nunca

Não se espera pela paz, constrói-se a paz. Dia a dia, passo a passo. A cada pequeno gesto de solidariedade e de gentileza, a cada olhar em direção ao outro, a cada vez que o silêncio permite a reflexão, a cada recuo no ímpeto de agredir e maltratar quem está perto. Da mesma forma, a democracia é feita tijolo por tijolo — ou, para entrar de cara no nosso tema, diria: voto a voto.

Nesta semana, os 30 anos da Constituição que marcou o fim de duas décadas de ditadura nos lembraram o quanto foi longa a caminhada até aqui. Não dá para jogar os dados e arriscar pisar naquele quadradinho que diz: “volte tantas casas para trás” ou “fique uma rodada sem jogar”. Só tem um jeito de o Brasil vencer: manter as conquistas já garantidas e avançar. Nossa única arma é voto, a bala de prata de trajetória certeira. Não dá para errar a pontaria desta vez.

Aqui e ali, surgem os rumores de reforma geral da Constituição. Lá e acolá, rufam os tambores que anunciam salvadores da pátria perdida, como se perdidos estivéssemos. O Brasil vive uma crise, sim. Econômica, política e ética. Partidos dilacerados, corrupção para todos os lados, desalento da população e uma perigosa polarização do “não”.

Em vez de escolhermos quem queremos ver comandando o país e representando nossa voz nas decisões executivas e legislativas, estamos apontando para quem não queremos ver nessas posições. O tal voto útil é uma espécie de fogo amigo, que atenta contra a sua própria vontade, embora não deixe de ser uma estratégia compreensível neste momento. Não somos mais fulano ou cicrano, somos “anti”a este ou aquele.

Mas todo labirinto tem saída. Encontrá-la é questão de paciência e jogadas certas. Simplesmente voltar para a porta de entrada é inadmissível. Sei que parecemos desorientados, mas já estivemos em condições piores. Há muito pouco tempo, habitamos o escuro. Nos porões da ditadura, pessoas foram silenciadas, torturadas e mortas.

Não reconhecer o quanto esse tempo foi nefasto é um erro grave e recorrente no Brasil. Boa parte da população não faz ideia dos horrores que ocorreram em nome da ordem, dos bons costumes, da família. É preciso olhar para a história, reconhecê-la e entender que retroceder em relação à democracia terá um preço altíssimo para o país. É hoje, Brasil! A luz de alerta máximo está acesa. Toda atenção é pouca.


Ricardo Noblat: Lula contra Lula

Segundo turno no primeiro

Hoje ou no dia 28, data de um eventual segundo turno, o maior risco que corre o deputado Jair Bolsonaro (PSL) é se eleger presidente da República. O risco de Fernando Haddad (PT) é mínimo.

Bolsonaro foi o único candidato que cresceu nas pesquisas de intenção de voto do Ibope e do Datafolha divulgadas ontem à noite. Haddad e Ciro Gomes (PDT) permaneceram onde estavam.

Nas últimas 48 horas, Ciro e Haddad trocaram votos. Um subiu tomando voto do outro para mais tarde devolver. A Onda Ciro foi menor do que pareceu. Não houve Onda Haddad.

Uma ou duas vezes, o segundo turno será Lula contra Lula. O Lula do bem na pele de Haddad. O Lula do mal na pele de Bolsonaro. Nem Haddad se elegeria sem Lula, nem Bolsonaro.

Ganhe quem ganhar, será o último presidente da Era Lula que começou em 1989 com a eleição de Fernando Collor. Collor elegeu-se contra Lula. Fernando Henrique derrotou Lula duas vezes.

Eleito e reeleito, Lula elegeu e reelegeu Dilma. Imaginou voltar este ano. Mofa na cadeia. Em breve, deverá ser condenado de novo.

Bonner e Bolsonaro

Campeão de audiência

Por volta das 15h de ontem, depois de comprar um sanduiche de mortadela em uma padaria nas vizinhanças da TV Globo no bairro do Jardim Botânico, no Rio, o jornalista William Bonner, apresentador do Jornal Nacional, foi saudado na rua por motoristas de táxi aos gritos de “Bolsonaro, Bolsonaro, Bolsonaro”.


Samuel Pessôa: Difícil debate

É ou não possível acabar com o déficit fiscal com imposto de 1% sobre fortunas?

Em um tuíte de 8 de setembro, um dos responsáveis pelo programa econômico do PT, Marcio Pochmann, escreveu: "Déficit primário nas contas públicas, estimado para 2019 pelo neoliberalismo de Temer, poderia ser superado pela cobrança de 1% sobre grandes fortunas. Solução para o Brasil tem, mas precisa do voto popular para garantir a renovação na política. O voto vale".

A afirmação tem duas características muito importantes. Primeira, é precisa e, portanto, facilmente verificável. Segunda, tem importantes implicações para a economia. Assevera que há uma maneira relativamente simples e indolor de resolver boa parte de nosso problema fiscal.

Vindo de um dos principais economistas do grupo político associado a um candidato bem colocado nas pesquisas eleitorais para a Presidência da República, a afirmação adquire enorme relevância.

Meu colega Alexandre Schwartsman, que ocupa este espaço às quartas-feiras, aceitando de forma iluminista os termos em que Pochmann estabeleceu o tema, resolveu verificar a veracidade da afirmação.

Baixou os dados da Receita Federal e documentou, em sua coluna de 12 de setembro, que essa base tributária não arrecadaria nem 10% do déficit fiscal.

Li com interesse a réplica de Pochmann a Alex nesta Folha na edição de 14 de setembro, procurando qual teria sido o erro cometido por Alex.

Pochmann discorreu sobre vários temas. Não houve menção aos números. Pochmann reagiu de forma idêntica à do batedor de carteira que, após o ato, vira de lado, levanta o braço e grita "pega ladrão!".

Penso, aliás, que, em debates dessa natureza --em que a questão debatida é muito clara e circunscrita--, a réplica não deveria ser publicada se não tratar diretamente do tema.

Na coluna de 26 de setembro, Alex escreve que Pochmann irá ganhar o merecido título de economista mais desonesto do Brasil.

Na edição de 28 de setembro, o professor de economia brasileira do departamento de administração da FEA-USP Paulo Feldmann reclama da falta de "decoro" de Alex com Pochmann. Afirma que em "economia não há uma única forma de enxergar ou interpretar fatos".

Ora, o debate não é de interpretação. Há um fato. É ou não possível acabar com o déficit fiscal com um imposto de 1% sobre grandes fortunas? Não há interpretação aqui. Trata-se de aplicar a alíquota de 1% sobre a base e saber se chega ou não perto de R$ 150 bilhões.

Não satisfeito, afirma Feldmann: "Segundo dados da Receita Federal, as 70 mil famílias (0,14% do total) mais ricas do país pagam um imposto efetivo de apenas 6% da renda, enquanto a classe média paga 12%. Se os muito ricos passassem a pagar um imposto efetivo igual ao pago pela classe média, acabaríamos com o déficit primário. Simples assim".

Recoloca o debate em termos simples, claros e falseáveis.

Na sua resposta em 4 de outubro, novamente Alex mostra que os números de Feldmann não sobrevivem às quatro operações. A resposta dos dois ilusionistas na mesma edição do dia 4 é alegar o relativismo do conhecimento econômico --meus Deus, o debate é contábil!-- e afirmar que Alex trabalhou no mercado financeiro.

Os dois precisam mostrar aos leitores qual foi o erro de conta que Alex cometeu.

Jânio de Freitas, em coluna de 23 de setembro, observou ser insultante o procurador do Ministério Público Carlos Fernando do Santos Lima se aposentar com 54 anos e remuneração mensal de R$ 30 mil aproximadamente.

Faltou lembrar que, se a reforma da Previdência de Temer tivesse sido aprovada, ele teria de trabalhar até os 65 anos.

Samuel Pessôa, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.


Bruno Boghossian: Campanha barulhenta só alimentou incertezas sobre futuro do país

Primeiro turno chega sem respostas para problemas e com dúvidas sobre democracia

Ficou no passado a esperança de que a eleição seria uma oportunidade de reencontro com a normalidade após o impeachment e a crise econômica. O domingo (7) pode terminar com a escolha de um presidente que representa mais riscos do que certezas ou com uma polarização que parece fora de controle.

O peso inédito das redes sociais inaugurou um novo modelo de disputa eleitoral. A influência modesta da TV reduziu o poder dos grandes partidos e multiplicou o número de vozes na arena política. Mas esse quadro produziu também um debate fechado em bolhas e um terreno fértil para discursos de ódio e para a propagação de mentiras.

Uma campanha atípica desaguou num cenário fora dos padrões. Os dois líderes das pesquisas chegaram a índices recordes de rejeição. Historicamente, analistas consideravam impossível eleger um candidato com taxa negativa acima de 30%. Jair Bolsonaro (PSL) e Fernando Haddad (PT) estão para lá de 40%.

Um candidato precisou fazer campanha do hospital depois de sofrer um grave atentado durante um ato público. Outro substituiu seu padrinho político, que chegou a ter o apoio de quatro em cada dez eleitores depois que foi preso por corrupção.

Tantas circunstâncias excepcionais e momentos traumáticos transformaram a disputa mais importante em décadas numa barulheira. O fato de restarem tantas incertezas sobre o destino do país em 2019 indica que faltaram mensagens essenciais no meio de toda a confusão.

É grave que tenhamos chegado ao primeiro turno sob dúvidas em relação à democracia. Se a sociedade corre o risco de sair rachada das urnas, a primeira garantia que deveria ser dada por aqueles que pretendem chegar ao poder é de respeito ao outro lado. O líder nas pesquisas alimentou exatamente o contrário.

As dificuldades econômicas, a desigualdade e o esfarelamento da política demandam grandeza extraordinária do próximo governo. Sem um plano objetivo e sensato, o país continuará brigando à beira do abismo.


Vera Magalhães: Lula ou Jair? Ulysses

A Constituição é o antídoto tanto para a corrupção quanto para as tentações autoritárias

“Qualquer governante deste País pode ganhar as eleições e não cumprir aquilo que prometeu porque é mais um e o povo já sabe. Nós não podemos.” A frase é do histórico discurso de Luiz Inácio Lula da Silva na Avenida Paulista na madrugada de 27 para 28 de outubro de 2002. O petista havia sido eleito presidente da República em sua quarta tentativa desde 1989, a eleição que retorna agora, 30 anos depois da promulgação da Constituição, para testar da maneira mais cabal até aqui sua capacidade de resistir a tentativas de solapá-la.

A frase parecia conter a consciência da responsabilidade, do ineditismo histórico que representava sua eleição num País como o Brasil e dos riscos que haveria caso ele falhasse. E ele não falhou, apenas.

Lula deliberadamente optou por outro caminho, que seu companheiro Antonio Palocci definiu como “sonho mirabolante”, mas que na verdade foi um projeto deliberado de assalto ao País para perpetuar seu projeto político no poder.

Agora, diante da queda desse projeto pela Lava Jato e sua prisão, não fez o que disse que faria, no mesmo discurso, caso “errasse”: “Pode ficar certo que eu não terei nenhuma dúvida de ir pra televisão pedir desculpas ao meu povo”. Não pediu, urdiu uma narrativa falsa e atentatória à Justiça e às instituições de que era um perseguido político, arquitetou um plano infalível para voltar ao poder a despeito de tudo e nos trouxe até aqui.

Preso, Lula abriu a porta para a possibilidade, antes considerada remota, de eleição de Jair Bolsonaro – e tudo que ela representa de negação da história que vai da redemocratização à sua própria chegada à Presidência.

Pela arrogância de se auto conceder a condição de “uma ideia”, Lula ignorou que o mal que causou com os crimes que cometeu era tão profundo que fez fermentar a ideia oposta à sua, num caldo que mistura a legítima repulsa à corrupção com ideias fascistas que antes não ousavam ser ditas em voz alta.

E aqueles que não são coniventes com os crimes do PT nem condescendentes com a relativização da democracia presente no projeto de Bolsonaro, como chegam a este 7 de outubro? Perplexos, amedrontados e algo descrentes no tal dia seguinte que escrevi há algumas semanas que chegaria. O que Bolsonaro e Fernando Haddad, o representante de Lula nesse repeteco de 1989, têm a dizer a essas pessoas? Até aqui, nada.

A última entrevista de Bolsonaro foi uma reafirmação de suas ideias rasas sobre como um conservadorismo jeca e opaco será a base “filosófica” de seu governo e como o fato de ter uma mãe, uma filha ou um sogro seriam provas de que não é racista nem misógino.

No mesmo dia, a participação de Haddad no debate da Globo foi uma reafirmação cínica dos crimes do PT, do “L” com os dedos ao cumprimentar os telespectadores à arrogante incapacidade de reconhecer mínimos erros, quando inquirido por Marina Silva, ou a mentira pura e simples de que os governos do PT foram responsáveis fiscalmente ou valorizaram a Petrobrás.

Diante de tamanha incapacidade dos dois líderes nas pesquisas – esses que foram escolhidos por Lula da prisão – de apontar o caminho que seguirão a partir de amanhã (se um deles for eleito ou se os dois forem disputar o segundo turno), resta ao País e aos que têm a democracia como bem inalienável se fiar em outro discurso, de outro outubro: o de Ulysses Guimarães em 5 de outubro de 1988.

“República suja pela corrupção impune tomba nas mãos de demagogos que, a pretexto de salvá-la, a tiranizam.” A arma para enfrentar corruptos e demagogos é a mesma: a Constituição que Ulysses promulgou naquele dia. Esperamos por ela como o “vigia espera a aurora”, como ele disse. Trataremos de zelar para que não venha o crepúsculo. Com ela nas mãos.


Eliane Cantanhêde: As duas seitas

O confronto é entre duas seitas, lulistas e bolsonaristas, mas viva a democracia!

Jair Bolsonaro (PSL) virou onda sob os ventos conservadores que assolam o Brasil, mas a vitória em primeiro turno, se não impossível, parece improvável. A perspectiva é de um segundo turno entre duas seitas políticas, o bolsonarismo e o lulismo, alheias à crítica, à autocrítica e às divergências. A eleição passa, mas essa guerra vai continuar.

Fernando Henrique, em 1994, e Lula, em 2002, tinham uma certa lógica, até onde a política consegue ter alguma lógica. Mas 2018 lembra mais 1989, com o “caçador de marajás” Fernando Collor (seria cômico, não fosse trágico), e 2014, com a “gerentona” Dilma Rousseff (o que é só trágico).

Collor crescendo, crescendo, e os brasileiros acreditando, festivamente, nos jargões, no teatro, sem refletir sobre o passado do candidato nem projetar o futuro presidente. Dilma liderou do início ao fim, sem que os eleitores, expostos a um marketing de muita qualidade técnica e pouca ética, enxergassem as pedaladas para driblar a realidade e cair no precipício logo ali.

Assim chegamos a este 7 de outubro com o País sem racionalidade, dividido entre antipetismo e antibolsonarismo. Os eleitores só veem, ouvem e sentem o que querem, sem a dúvida, os prós e contra. Se a seita PT obedece a tudo o que seu mestre Lula mandar, a seita bolsonarista bate continência a todas as ordens do capitão Bolsonaro.

Para o PT, a Justiça, o MP, a PF, a Receita e a mídia estão errados, só Lula está certo. Não interessa que ele tenha dividido o País em “nós e eles”, mergulhado alegremente nas benesses de empreiteiras e bancos, institucionalizado a propina e fatiado a Petrobrás. Só que ele usou os ventos internacionais para dar crédito, consumo e bolsas à vontade e é adorado por um terço da população.

E por que Bolsonaro? “Porque sou contra o PT.” Sim, mas e o Bolsonaro? O que ele já fez, faz, é capaz de fazer? O que ele é, o que pensa? A equipe dele? O risco? Aí, a resposta é um muxoxo, uma certa preguiça para pensar, admitir que o candidato foi péssimo militar, é péssimo político, meteu a família inteira na política, nunca administrou nem padaria. Um “defensor da família” que já se separou quantas vezes mesmo? Algumas, aliás, de forma bem tumultuada.

Na hora do “vamos ver”, quando passam a festa e a transição e o eleito senta na cadeira para governar, começam os problemas. Em meio à tempestade, com 13 milhões de desempregados, pior ainda. Há, porém, uma diferença clara entre o que poderá ser o início Bolsonaro e o início Haddad. O capitão vai meter o pé na porta, botar pra quebrar, como gostam seus apoiadores. Mas Haddad vai chegar com jeito de professor, fala mansa, agregador. Quando todo mundo se acostumar, quem sabe até gostar, aí é que o PT “toma o poder”. Está na alma do partido aparelhar o Estado: bancos públicos, empresas, instituições, até organismos internacionais.

Quando Bolsonaro vier com tudo, o PT será de grande utilidade. Quando o PT intervier no governo Haddad, se for ele o vitorioso, a militância de Bolsonaro, forjada em junho de 2013 e encorpada pelas redes sociais, estará a postos. O confronto entre governo e oposição é saudável, democrático, mas como não aprofundar a polarização e o ódio que vai se instalando, replicado até mesmo no próprio Supremo?

Tempos difíceis virão: um provável segundo turno entre candidatos com índices inéditos de rejeição e um governo, seja qual for, que assume com déficit monumental, falta de dinheiro para tudo, necessidades urgentes, reformas inadiáveis, empresas fechando, milhões de desempregados e... uma oposição armada até os dentes.

Mas tem boa notícia: quanto maior a ameaça do autoritarismo, mais os brasileiros se lembram do valor da democracia. Bom voto e viva a democracia!


Bernardo Mello Franco: A eleição da incerteza

Brasil chega à oitava eleição presidencial desde o fim da ditadura. Nenhuma foi marcada por tantas incertezas e dúvidas sobre o futuro da democracia

O Brasil chega à oitava eleição presidencial desde o fim da ditadura militar. Nenhuma foi marcada por tanta incerteza. Nenhuma projetou tanta dúvida sobre o futuro da democracia no país. É difícil traçar paralelos com qualquer disputa anterior. O candidato que começou na frente foi preso e impedido de concorrer. O candidato que o substituiu na liderança levou uma facada na barriga.

A campanha sumiu das ruas. Passou a ser comandada da cadeia e do hospital. A polarização entre PT e PSDB, que deu o tom das últimas seis eleições, ficou pelo caminho. Depois de quatro derrotas seguidas, os tucanos perderam o controle sobre o voto conservador. Foram trocados por um outsider de extrema direita, que se filiou a uma legenda de aluguel no limite do prazo legal.

O horário eleitoral na TV, que inflacionava as negociações entre os partidos, virou mercadoria obsoleta. Quem conseguiu mais de cinco minutos de propaganda empacou nas pesquisas. Quem ficou com apenas oito segundos disparou na frente. A discussão política migrou para a tela do celular. Notícias e boatos passaram a se confundir na terra sem lei do WhatsApp. O TSE anunciou uma força-tarefa para combater as fake news. Ficou só na promessa.

Às vésperas da eleição, a boataria se espalhava à vontade pelas redes. A máquina do governo também deixou de importar. O candidato oficial do Planalto teve desempenho de nanico. O presidente mais impopular da História foi esquecido por candidatos e eleitores. Não serviu nem como saco de pancadas, como José Sarney em 1989. O país chegou à eleição na bancarrota. Pelas contas do IBGE, 27 milhões de trabalhadores estão desempregados ou subutilizados. Mesmo assim, a economia não foi o principal tema da campanha. O debate se deslocou para o campo moral e para os costumes.

O capitão soube surfar a onda conservadora. Com discurso moralista, prometeu combater a corrupção, reprimir o crime e restaurar a ordem. Aliou-se às igrejas evangélicas, aos ruralistas e à bancada da bala. Herdou o comando da tropa de Eduardo Cunha, que chefiou o impeachment e acabou na cadeia.

A imprensa internacional tenta entender como um candidato com ideias autoritárias, que exalta a tortura e já defendeu o fuzilamento de adversários, foi capaz de chegar tão longe.

Por aqui, o fenômeno é retratado como mera reação ao PT, que foi varrido do poder depois de vencer as últimas quatro eleições. O petismo paga o preço pelo fiasco do governo Dilma. Turbinada pela recessão e pelos escândalos, a rejeição ao partido se tornou uma muralha. Com Lula preso em Curitiba, a sigla esperou até a última hora para lançar o substituto Fernando Haddad.

Foi uma escolha arriscada, que pode apresentar uma conta alta hoje à noite. Blindado pela facada e sem comparecer a debates, Jair Bolsonaro chega ao dia da eleição com chance de vencer no primeiro turno. Não é o desfecho mais provável, mas a previsibilidade tem passado longe em 2018.


Elio Gaspari: A utilidade do fator arrependimento

Numa eleição influenciada pelo voto contra, talvez seja melhor pensar no risco embutido nessa decisão

Hoje o eleitor poderá escolher entre 13 candidatos. Nos últimos 29 anos, os brasileiros elegeram quatro pessoas para a Presidência: Fernando Collor, FHC, Lula e Dilma. Pode-se dizer que uma boa parte dos eleitores de Collor e Dilma se arrependeram do voto. Muita gente que preferiu Aécio Neves também deve ter se arrependido, e essa história mostra o risco embutido em eleições que desembocam em votos contra.

Quem já votou para presidente terá mais facilidade em lidar com o fator arrependimento, quer pelos candidatos em quem votou, quer por aqueles em que se orgulha de não ter votado.

Em todos os casos, pode-se ir à seção eleitoral movido pelo voto contra A ou B. No caminho, vale a pena pensar no fator arrependimento. No dia da eleição, o voto contra pode ser glorioso como uma vitória no futebol. Ao contrário das disputas esportivas, eleição elege e o candidato assumirá a Presidência em janeiro. Daí em diante o eleitor recebe a parte que lhe cabe desse latifúndio.

Muitos eleitores de Dilma, Collor e, lá atrás, Jânio Quadros arrependeram-se ou arrumaram justificativas fúteis para suas escolhas. Muitos colloridos votaram contra Lula, sabendo quem era a turma do “Caçador de Marajás”.

Os janistas votaram contra a turma de Juscelino Kubitschek, mas sabiam que Jânio era, no mínimo, “a UDN de porre” (palavras de Afonso Arinos, referindo-se à União Democrática Nacional, o partido que se ajoelhou para Jânio).

Eleições embebidas em votos contra produzem vencedores, mas a experiência mostra que, em pelo menos dois casos, entregaram o Brasil a presidentes desastrosos.

Receita para um autogolpe
Numa digressão genérica, o general Hamilton Mourão, candidato a vice-presidente na chapa de Jair Bolsonaro, referiu-se ao mecanismo do “autogolpe”, a que um governo recorreria, numa situação de grave crise política. “Já houve em outros países. Aqui nunca houve.”

Houve em 1965, 1968, 1969 e 1977, mas deixa pra lá, porque foram autogolpes dentro de um regime ditatorial. Vale a pena revisitar o autogolpe tentado, sem sucesso, por Jânio Quadros.

Jânio assumiu a Presidência em janeiro de 1961, teve uma relação hostil com o Congresso e com as lideranças de sua própria base. Na manhã de 25 de agosto, sem ter falado com ninguém, renunciou ao cargo.

No dia seguinte, ele disse ao jornalista Carlos Castello Branco, seu assessor de imprensa: “Nada farei por voltar, entrementes considero minha volta inevitável. Dentro de três meses, se tanto, estará na rua, espontaneamente, o clamor pela reimplantação do nosso governo”. Muita gente achava boa a ideia e havia antecedentes na cena internacional. Um mês depois da posse de Jango, a CIA informava ao presidente John Kennedy que a ideia da volta de Jânio ganhava força.
O autogolpe de Jânio fez água porque foi um lance solitário, amalucado. Além disso, o vice era João Goulart, mal visto nas Forças Armadas e seu adversário.

Num exercício de passadologia misturada com o presente, se o vice de Jânio fosse um parceiro fiel como o general Mourão e os dois renunciassem juntos, a Constituição de 1988 diz que “far-se-á eleição 90 dias depois”. Ambos poderiam se candidatar, pois se tivessem continuado no cargo estariam habilitados para disputar a reeleição.


Míriam Leitão: Lições das eleições dadas pelo avesso

Qualquer que seja o resultado das eleições de hoje, o país terá aprendido muito sobre os perigos que ainda rondam a nossa democracia

Toda eleição ensina, mesmo que seja pelo avesso. Nem toda eleição constrói um pacto com o futuro. Nesta, qualquer que seja o resultado, teremos aprendido muito sobre os riscos que rondam a democracia. Pastores transformaram igrejas em currais eleitorais. Alguns empresários constrangeram publicamente funcionários. Bolsonaro foi vítima de um atentado que quase tirou sua vida. As mentiras abundantes nas redes influenciaram votos. O PT retrocedeu ao seu nicho. O centro não convenceu. Por outro lado, o país venceu a indiferença em relação à política, e o comparecimento hoje às urnas pode ser muito maior do que o inicialmente previsto.

A democracia brasileira foi desafiada por inúmeros eventos nessa campanha, o pior deles foi a violência física contra o candidato do PSL. Uma das questões postas de forma dramática para o país é o voto evangélico. Muitos pastores reinstalaram o voto de cabresto. Invocaram Deus para que o fiel escolhesse o que eles, os líderes religiosos, acreditam ser o certo. Com isso, 50% do eleitorado evangélico votará em Bolsonaro, pelas pesquisas das últimas horas. Toda tentativa de usar o poder para induzir o voto de eleitores, em qualquer direção, apequena a democracia. A liberdade de culto é sagrada, como a liberdade do voto.

Empresários que ameaçam seus funcionários com o desemprego, como fez Luciano Hang, da Havan, são uma aberração. O crime tem provas, um vídeo em que ele pergunta “você está preparado para perder seu emprego?” Isso aconteceria se a “esquerda ganhar”. Ele vota em Bolsonaro. Hang se aproveita da extrema vulnerabilidade do trabalhador brasileiro no meio da pior crise de desemprego que o país já teve.

O PT perdeu tempo delirando. Achava que conseguiria por imposição externa que o ex-presidente Lula fosse candidato. No último dia legal, anunciou Fernando Haddad, que passou a ideia de ser tutelado. Se for para segundo turno e quiser realmente vencer, precisará ter caminhos de encontrar o centro.

Ciro começou com um discurso econômico que tinha velharias e algumas novidades. Uma das boas ideias foi a de dizer que o governo intermediaria uma renegociação da dívida das famílias. Esse projeto se for mal executado é um desastre, mas parte de uma constatação importante. As famílias, estimuladas a se endividar, foram atingidas por dois sinistros dos quais elas não têm culpa: a recessão e o desemprego. Isso num país de juros bancários abusivos.

Candidatos do centro, como Marina Silva e Geraldo Alckimin, foram sendo abandonados, mas permanece a demanda por uma candidatura que fuja dos polos. Nas horas finais desta campanha, esses eleitores foram em direção a Ciro. “Eu me desloquei e estou pedindo a bola”, disse ele.

O candidato que está na frente nas pesquisas, Jair Bolsonaro, agrediu inúmeras vezes, com palavras inequívocas, a democracia e os avanços civilizatórios, como o respeito às diferenças, diversidade e escolhas individuais. Defendeu a ditadura e exaltou torturador. Está arrastando multidões. Ao mesmo tempo, a pesquisa do Datafolha diz que nunca foi tão forte o apoio à democracia.

Bolsonaro chegou a esse 7 de outubro na melhor posição das pesquisas seguindo um roteiro. Ele viajou pelo Brasil fazendo campanha anos antes de a lei permitir propaganda eleitoral. Captou o sentimento de derrota dos brasileiros diante de problemas como recessão, desemprego, violência e corrupção.

Ocupou as redes sociais com militantes voluntários, pagos ou robôs que multiplicaram a visibilidade do deputado de atuação apagada. Vendeu a ilusão de que com uma arma na mão o brasileiro poderá fazer justiça e consertar tudo o que está errado. Conseguiu capturar o sentimento antipetista. Fez promessas difusas de solução fácil para problemas complexos. Foi dormir ontem sonhando com a vitória no primeiro turno.

A Lava-Jato enfrenta nesta eleição seu maior e mais agudo teste. O que a ameaça vem de dentro, desta vez. Se ela vincular a sua imagem à da extrema-direita vai se apequenar. O único papel que a fortalece é a de continuar sendo um movimento institucional, apartidário, por mudança nas relações entre o público e o privado.

Toda eleição ensina, radiografa a sociedade e alerta. Esta nos mostrou os muitos perigos que rondam a democracia brasileira. Quem for o vencedor hoje, ou no dia 28, só terá chances de ser bem-sucedido se entender a opção brasileira pela democracia. Essa foi a escolha que já fizemos.


Merval Pereira: A favor da democracia

Pesquisa aponta que 69% dos entrevistados aprovam a democracia. Já partidos políticos perderam a influência pelo descrédito de suas ações

Na eleição mais radicalizada dos anos recentes, pontuada por declarações de ambos os líderes das pesquisas que remetem a ameaças à democracia, esse regime político, que, na frase famosa de Churchill, é o pior deles com exceção de todos os outros, aparece fortalecido pelos brasileiros em pesquisa Datafolha.

Em votação recorde, a maior desde 1989 quando se disputava a primeira eleição direta depois do regime militar, a democracia recebeu nada menos que 69% de aprovação, índice crescente na preferência dos eleitores, ao mesmo tempo em que os partidos políticos, canais da sociedade com o poder político, perderam momentaneamente a influência pelo descrédito de suas atitudes.

Segundo Max Weber, citado no Dicionário de Política de Norberto Bobbio e outros, o partido político é “uma associação que visa a um fim deliberado, seja ele objetivo, como a realização de um plano com intuitos materiais ou ideais, seja pessoal, destinado a obter benefícios, poder e, consequentemente, glória para os chefes e sequazes, ou então voltado para todos esses objetivos conjuntamente”.

No Brasil de 35 partidos, a maioria se enquadra na associação que “objetiva obter benefícios, poder e, consequentemente, glória para os chefes e sequazes”, mas alguns trabalham sobre “ideais”. A eleição de hoje é uma boa oportunidade para que se recomece a atividade política conspurcada pela corrupção generalizada, e o papel do vencedor será fundamental para essa retomada desejada pelos eleitores, que prezam a democracia e a consideram o melhor caminho para resolver seus problemas.

Ao contrário do que muitos apregoavam, apenas 12% consideraram que a ditadura é um regime melhor, e outros 13% mostraram-se indiferentes. É, pois, sob o signo da democracia que os eleitores vão às urnas hoje, e é preciso que os candidatos tenham isso em mente quando assumirem seus cargos, pois hoje ainda podemos ter a definição da escolha de vários governadores no primeiro turno e, quem sabe, até mesmo o do presidente da República.

Na última eleição presidencial que tivemos, a vencedora, Dilma Rousseff não se referiu a seu adversário derrotado no discurso da vitória. Nesta eleição, mais do que atitudes protocolares, normais em sociedades civilizadas, exige-se dos candidatos compromissos com a democracia e o reconhecimento da derrota dentro da legalidade do Estado de Direito.

Se, como é mais provável, a eleição para presidente não terminar hoje, os dois candidatos que restaram terão 20 dias para fazer uma campanha eleitoral de confrontação de idéias e propostas, tempo suficiente para recuperarem-se de eventuais arroubos retóricos e posicionarem-se como democratas, esquecendo projetos extemporâneos como a convocação de uma nova Constituinte ou a não aceitação de princípios democráticos implícitos em comentários que trivializam a possibilidade de um golpe.

Ao eleitor cabe pesar nas urnas a conseqüência de seu voto para o seu futuro e o do país, sem colocar interesses pessoais acima daqueles. A democracia é o regime em que o povo está representado pelos eleitos pelo voto direto, e a escolha dos membros do Congresso, por exemplo, é fundamental para que o futuro presidente possa governar.

Ao presidente eleito caberá necessariamente negociar com o Congresso e com os governos estaduais e municipais, principalmente num período em que reformas fundamentais precisam de apoio da população e dos políticos para serem aprovadas a tempo de permitir a recuperação econômica e social do país.

O presidente responde
Recebi do presidente Michel Temer uma mensagem sobre referência feita na coluna de ontem ao diálogo, que classifiquei de “nada republicano”, entre ele e o empresário Joesley Batista. Ele garante que é indevida a interpretação dada ao diálogo. Se apega a uma troca de palavras no documento do Ministério Público para reafirmar sua tese, mas, no entanto, ouvindo a íntegra do áudio fica evidente, para mim, o caráter nada republicano da conversa.


Luiz Werneck Vianna: Ao vencedor, as batatas

Nós, os perdedores nessa disputa eleitoral, não poderemos abdicar de feroz autocrítica

Um canal de TV de larga audiência transmite a sessão de abertura da Assembleia-Geral da ONU. Como é da tradição, cabe ao chefe de Estado do Brasil, o sr. Michel Temer, abrir os debates. O presidente Temer realiza seu pronunciamento com palavras ponderadas, desenvolvendo o tema da importância daquela organização para a paz e a cooperação solidária entre os povos, tal como tem sido a posição brasileira nas relações internacionais, que ele ali, mais uma vez, reafirmava, honrando os valores e princípios da nossa Carta constitucional e das nossas melhores tradições. O terceiro orador, o sr. Donald Trump, presidente da República dos Estados Unidos, um dos países fundadores da ONU, há décadas um dos principais protagonistas da cena mundial, em nome de um princípio de sua lavra, America first, confronta com um nacionalismo primitivo o espírito que animava aquela assembleia e que nos vem de duas grandes revoluções do século 19, a americana e a francesa, com que se abre a modernidade e aprendemos com Kant a manter viva a utopia realista da paz perpétua.

Volte-se ao canal televisivo e a palavra passa a seu comentarista político, jornalista de meia idade, com os cabelos encanecidos, que desqualifica sem mais o oportuno e feliz pronunciamento do presidente Temer, passando ao largo do patético discurso de Trump, merecedor do justo sarcasmo com que foi recebido por sua audiência. Cenas como essas falam mais que mil palavras, estava ali a revelação da estupidez política que nos trouxe ao miserável cenário da sucessão presidencial, que ora somos obrigados a purgar.

Lamenta-se, agora, a sorte nessas horas aziagas do nosso encontro com que as urnas nos esperam. Impreca-se contra o destino que nos teria roubado o futuro, posto em mãos desastradas de estrangeiros que não conhecem nem respeitam nossa História e seus feitos. O destino é inocente, fomos nós que criamos passo a passo a armadilha, salvo milagres - creio, embora seja absurdo -, que não temos mais como evitar. Fomos nós os autores da lenda urbana de que a corrupção estaria na raiz dos nossos males, criminalizando a política e os políticos com a arrogância de messiânicos refratários à avaliação das consequências dos seus atos, a proclamarem fiat iustitia, pereat Mundus.

O centro político, lugar estratégico em que se operou a bem-sucedida modernização burguesa do País, tornou-se um espaço vazio, recusando-se ao governo Temer, com sua história de dirigente do MDB, um clássico partido do centro, com sua natural inscrição nesse lugar reconhecida, em duas consecutivas eleições presidenciais, pelo PT - partido identificado como de esquerda pela crônica política, carimbo, aliás, recusado por seu principal dirigente -, que com ele se coligou, confiando-lhe a Vice-Presidência da República. Pranteia-se agora, com lágrimas de crocodilo, a má e imerecida sorte do finado centro político, que ora comparece às urnas, tudo indica, sem uma candidatura competitiva.

Contudo, o que é é. O artifício de negar a identidade ao centro político, de existência comprovada empiricamente em nossa sociedade há décadas, não tem como resistir ao império dos fatos. A iminência de um segundo turno eleitoral nos devolve, em clima de pânico, com o tempo fugindo das mãos, a busca pelo centro perdido. Sem ele como vencer as eleições, pior, como governar? Com Haddad teremos o indulto de Lula e a convocação de uma Assembleia Constituinte? Faltaria combinar com os russos, que, aliás, são muitos. Que economia nos espera com Bolsonaro, a do Pinochet, neoliberalismo com fuzis?

Como o gênio militar de Napoleão advertia, quando avaliava mapas de campanha, se o natural fosse arbitrariamente desconsiderado num plano, ele voltaria em galope. Nem sempre, pode-se acrescentar, em manobras afortunadas, dificílimas para os candidatos que devem disputar o segundo turno desprovidos como estão, contando apenas com seus preconceitos, de projetos de governo bem definidos. Tem-se pela frente um quadro de turbulência até que o novo governo consiga encontrar uma linha de ação compatível com o novo Congresso e com os novos governadores que nascerão das urnas. Na prática, essa incomum situação significa a abertura de um terceiro turno eleitoral, de tramitação exclusiva nos bastidores, quando só então serão conhecidos os rumos do novo governo.

O centro político, banido do salão, volta com força por todas as janelas. Tanto barulho por nada, retornamos ao ponto de partida, salvo se os estrategistas de plantão dos dois lados do tabuleiro já tenham decidido, no caso de vitória, levar a cabo o que ruminaram ao longo dessa paupérrima campanha eleitoral. O desenlace infeliz dessa imprudência, se vier, não deve tardar, e mente quem nega a força das nossas instituições, provada em tantos outros momentos críticos da nossa história recente. Os 30 anos da Carta de 88, a mais longeva da República, não foram em vão, a sociedade saberá preservá-la das sanhas dos cavaleiros da fortuna, ela já conhece o que perderá sem ela.

Mente igualmente quem se recusa a admitir a possibilidade de a nossa democracia estar sob risco, pois está, aqui e alhures. Sem triunfalismo, joga-se, nesta sucessão presidencial brasileira bem mais do que nossos negócios internos. Nossa presença no mundo importa para a paz, em particular para nuestra America. Nós, os perdedores nessa disputa eleitoral, não poderemos abdicar de uma feroz autocrítica, uma vez que não havia nada de inevitável nessa derrota que reconhecemos. Somos mais necessários que nunca, e fizemos nascer uma nova esquerda capaz de se articular com o liberalismo político, cuja missão desde agora é nos devolver aos eixos que nos são naturais.

Pelo andar da carruagem, pode-se prever que isso não deve demorar muito. Por fim, glória a Deus, há os milagres.

*Luiz Werneck Vianna é sociólogo, PUC-RIO


Fernando Henrique Cardoso: Hora de voto

Mais do que nunca é preciso insistir em nossos valores, na democracia

A fragmentação partidária, os sentimentos exaltados e o personalismo triunfante não respondem às necessidades do povo e do País. Na vida política não basta ter ou imaginar que se tem razão, é preciso que a mensagem seja sentida pelas pessoas e que elas escutem e queiram avançar na direção proposta. Até agora o caminho das reformas e do equilíbrio não parece ser o preferido pela maioria. O eleitorado decidirá hoje os adversários que se enfrentarão no segundo turno. Ainda é tempo de parar a marcha da insensatez. Uma coisa é certa: o eleito ao final de outubro terá de obedecer à Constituição e tanto os que nele votaram como os que a ele se opuseram terão de respeitar o resultado das urnas.

O que está em jogo não é o partido tal ou qual, nem se o candidato é bom ou mau ser humano. Mas, sim, o que pretende e poderá fazer. Terá capacidade de juntar pessoas e forças políticas para governar? Dará rumo à Nação? Concordo com o que ele propõe e avalio que será capaz de fazê-lo? Para responder é preciso analisar o quadro político, social e econômico em que o novo presidente vai operar. Não se trata de escolher o candidato apenas por seus atributos pessoais nem pelo que dizem os partidos (os quais em geral silenciam sobre os verdadeiros problemas), mas, principalmente, pelo que o candidato já fez e por sua capacidade política.

Depois de 2013 os governos do PT levaram a economia à recessão. Como disse na carta que escrevi recentemente aos eleitores, há problemas gritantes no País, a desorganização das finanças públicas e o desemprego são sinais deles. A rigidez dos privilégios burocráticos dificulta cortar os gastos com o funcionalismo. As desigualdades gritantes da Previdência, em especial entre alguns servidores públicos e trabalhadores do setor privado, criam castas de beneficiários, muitos do quais se aposentam cedo com proventos muito acima do que seria justo receberem.

Diante dessas e de outras despesas obrigatórias, o governo federal acumulou nos últimos cinco anos déficits de R$ 540 bilhões. O que havia sido um superávit de cerca de 3% do PIB desde 1999, algo maquiado a partir do segundo governo Lula, se tornou um déficit de mais de 2% do PIB a partir de 2015, graças ao descalabro fiscal e ao desastre econômico produzido pelo governo Dilma. Acrescidos das despesas com juros, a sequência de déficits primários fez a dívida pública do governo federal se aproximar de R$ 4 trilhões e a do Estado brasileiro em seu conjunto superar os R$ 5 trilhões este ano.

A dívida total, já perto de 80% do PIB, continua a subir, a despeito da queda da taxa básica de juros nos dois últimos anos. No ritmo de crescimento que a dívida vem apresentando - ela se situava pouco acima de 50% do PIB em 2011 -, chegará um momento em que só com inflação alta, que corrói o valor real da despesa do governo, o Estado brasileiro poderá financiar-se. O roteiro desse filme todos os que têm mais de 50 anos conhecem muito bem. E ele termina mal, com o empobrecimento do País e, sobretudo, das pessoas socialmente mais vulneráveis. Voltaríamos assim a um passado tenebroso, sobretudo para os mais pobres.

O agravamento da crise seria dramático para uma sociedade desigual e fragilizada por cinco anos de recessão seguida de recuperação econômica anêmica. O desemprego atinge entre 12% e 13% da população ativa, cerca de 13 milhões de pessoas. Sem falar nos que estão ocupados, mas sem carteira de trabalho, cerca de 38 milhões, e afora os chamados “desalentados”, que desistiram de procurar emprego. A soma ultrapassa os 60 milhões de adultos que estão ou correm o risco de cair na pobreza ou na extrema pobreza.

Ao desemprego somam-se o medo da violência crescente, em alguns casos da própria polícia, e a expansão do crime organizado. A sensação de desordem, a insegurança e a agonia do desemprego são a realidade cotidiana de dezenas de milhões de pessoas. Para muitas não resta opção que não seja aderir ou acomodar-se ao crime organizado, ou encontrar consolo espiritual e solidariedade nas igrejas.

Como falar de “democracia” nestas circunstâncias, se falta o pão e a segurança é precária? Por trás está um sistema político regado a corrupção e uma cultura de permissão e leniência com quem atua, no andar de cima, à margem das leis. O povo vê nos partidos e nos candidatos mais ligados a eles os responsáveis por tudo isso. Procuradores e juízes, frequentemente com razão, mas não raro sem o zelo e o equilíbrio que se espera dos profissionais do Direito, reforçam a sensação de que toda a política é suja e nenhum político escapa à podridão.

Quase todos os candidatos, especialmente os que aparecem à frente, nem sequer abordam com seriedade os problemas reais que estão por trás do mal-estar das pessoas. Estas, no desespero, agarram-se a aparentes soluções polares, mais por identificação simbólica que por adesão racional. Sentem medo, quando não horror, da volta ao lulopetismo e aderem ao candidato que promete tudo resolver no grito, quando não na bala, ou, no polo oposto, juntam-se em torno da nostalgia de um passado idealizado que, se tentar se repetir, comprometerá gravemente o futuro do País.

Mais do que nunca, é preciso insistir em nossos valores, a democracia entre os principais. Além de valores, quem pede o voto do povo deve ser capaz, no mínimo, de reorganizar as finanças públicas e as pôr a serviço dos maiores interesses da população e do País. É por isso que votarei em Alckmin: ele não apenas diz, mas fez. Basta comparar os resultados das políticas públicas de seus governos, inclusive na segurança e na oferta de serviços de saúde e educação, com a situação dramática de alguns outros Estados e do governo federal. Entre os principais candidatos é quem pode juntar forças para dar rumo novo ao governo.

É preciso parar a marcha da insensatez. Ainda há tempo. A hora é agora.

*Fernando Henrique Cardoso é sociólogo, foi presidente da república