Constituição

Feminist protest | Foto: shutterstock/Halfpoint

Revista online | Por que ainda precisamos do feminismo?

Beatriz Rodrigues Sanchez*, especial para a revista Política Democrática online (43ª edição: maio de 2022)

Nas últimas décadas, uma série de avanços foram realizados no que diz respeito à igualdade de gênero. O direito ao voto foi conquistado, a partir da luta das sufragistas, no ano de 1932. O direito ao divórcio, em 1977. Com a Constituição de 1988, uma série de direitos foram reconhecidos e garantidos constitucionalmente: a ampliação da licença maternidade, a licença paternidade, o direito de mulheres presidiárias poderem amamentar, a criação de mecanismos de combate à violência contra às mulheres, entre outros. 

Também, no âmbito legislativo, mais recentemente, tivemos a aprovação da Lei Maria da Penha, da lei de cotas para candidaturas femininas e da PEC das Domésticas. No âmbito da educação, as mulheres, que até pouco tempo representavam a maior parte dos analfabetos em nosso país, passaram a ser maioria entre as pessoas matriculadas em cursos de ensino superior. Estes são alguns fatos que demonstram o quanto temos avançado em direção à igualdade de gênero. No entanto, apesar desses avanços, a luta feminista ainda é necessária. 

A violência contra as mulheres, em suas diversas expressões, ainda é um grave problema que a sociedade brasileira precisa enfrentar. Seja a violência doméstica, aquela que acontece dentro de casa, entre marido e mulher, ou entre filhos e mães, ou avós e netos; seja a violência política de gênero, que acomete as mulheres que ocupam cargos dentro da política institucional (como o feminicídio político de Marielle Franco); seja a violência obstétrica, especialmente contra mulheres negras que, por conta do racismo estrutural, são vistas como mais resistentes à dor e muitas vezes não possuem acesso à anestesia. Todas essas formas de violência ainda marcam, nos dias de hoje, a sociedade brasileira, historicamente patriarcal e racista. Apesar de o argumento da “legítima defesa da honra” em casos de violência contra as mulheres ter ficado demodê, todas essas formas de violência continuam impedindo que as mulheres exerçam o direito à vida e à dignidade de forma plena. 

No âmbito da educação, apesar de termos entrado no ensino superior, alguns cursos ainda são majoritariamente masculinos, especialmente os cursos da área de exatas. As salas de aula dos cursos de engenharias, matemática, economia, estatística, por exemplo, ainda têm poucas mulheres. Essa diferenciação de gênero nas áreas de formação tem relação com construções sociais históricas que relacionaram as mulheres ao mundo privado da emoção e do cuidado e os homens ao mundo público da razão. Por isso, os cursos de enfermagem, pedagogia, assistência social e terapia ocupacional, apenas para citar alguns exemplos de cursos relacionados ao universo do cuidado, são majoritariamente femininos. 

Feminist Feast | Foto: Shutterstock/AdriaVidal
Feminist Fight | Foto: Shutterstock/Luis Osuna
Feminist | Foto: shutterstock/Jacob Lund
Fight like a girl | Foto: Shutterstock/JLco Julia Amaral
Women power | Foto: Shutterstock/Jacob Lund
Women Together | Foto: Shutterstock/Da Antipina
Women's right | Foto: Shutterstock/Dutchmen Photography
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No mercado de trabalho, as mulheres ainda hoje recebem salários menores do que os homens, mesmo quando ocupam o mesmo cargo. Além disso, a divisão sexual do trabalho faz com que, além do trabalho produtivo remunerado, as mulheres sejam responsáveis pelo trabalho de reprodução social da vida, que inclui o cuidado com crianças e idosos e as tarefas domésticas. Neste cenário, algumas mulheres, especialmente brancas e de classe média, podem pagar para que outras mulheres, especialmente negras e periféricas, realizem este trabalho, muitas vezes em condições precárias. Assim, a divisão sexual do trabalho, conjuntamente com a divisão racial do trabalho, cria obstáculos para o exercício pleno da cidadania. 

Quando analisamos a representação política das mulheres nas instituições, o cenário atual também é preocupante. No Poder Legislativo, no Executivo ou no Judiciário, as mulheres, especialmente as mulheres negras, periféricas, indígenas, trans e rurais, são minoria nos espaços de poder e na burocracia estatal. 

Atualmente, o Brasil ocupa a 146ª colocação no ranking de mulheres nos parlamentos, atualizado mensamente pela organização Inter-Parliamentary Union (IPU).  Essa sub-representação política das mulheres se reproduz em todos os níveis federativos – federal, estadual e municipal – prejudicando a consolidação de nosso regime democrático. Para se ter uma ideia, apenas 2 das 27 unidades da Federação (incluindo o Distrito Federal) são chefiados por mulheres: Rio Grande do Norte e Piauí. No governo federal, dentre as 23 pastas ministeriais, apenas duas são ocupadas por mulheres.  

Como podemos perceber, a desigualdade entre homens e mulheres continua sendo estruturalmente marcante na sociedade brasileira. No entanto, quando falamos em “mulheres”, devemos lembrar que não formamos um grupo homogêneo. Apesar de a “história oficial” do feminismo, escrita majoritariamente por mulheres brancas, intelectuais e de elite, afirmar que os questionamentos sobre raça, identidade de gênero, classe e outros eixos de opressão teriam surgido apenas na “terceira onda” feminista, as mulheres negras, indígenas e periféricas historicamente têm criticado a universalidade contida no sujeito “mulheres”, desde o período colonial, pelo menos. Por isso, é importante que as políticas públicas contemporâneas que tenham como objetivo mitigar os efeitos da desigualdade de gênero levem em consideração toda a pluralidade da população feminina, desde uma perspectiva interseccional.   

Diante de tudo o que foi dito até aqui, a luta feminista ainda se faz necessária. Nós, feministas, não silenciaremos diante de tudo o que ainda precisamos conquistar. Como afirma a escritora e feminista chilena Isabel Allende, no livro “Mulheres de minha alma”, “o feminismo, como o oceano, é fluido, poderoso, profundo e tem a complexidade infinita da vida; move-se em ondas, correntes, marés e às vezes em tempestades furiosas. Tal como o oceano, o feminismo não se cala”. Não nos calaremos. 

Sobre a autora

*Beatriz Rodrigues Sanchez é pós-doutoranda vinculada ao Programa Internacional de Pós-Doutorado (IPP) do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP). Doutora e mestra em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP). É formada em Relações Internacionais pela mesma Universidade. É pesquisadora do Núcleo Democracia e Ação Coletiva do CEBRAP. Desde a graduação vem estudando temas relacionados às teorias feministas e à representação política das mulheres.

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de maio de 2022 (43ª edição), editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não refletem, necessariamente, as opiniões da revista.

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Conrado Hübner Mendes: O que a Constituição queria do STF era coragem

Tribunal deveria cumprir seu próprio 'marco temporal' para julgar

Conrado Hübner Mendes / Folha de S. Paulo

A democracia brasileira precisa de um marco temporal. Não a tese jurídica que estabeleceu dia certo para atribuir direito territorial de povos originários, tese estranha à Constituição de 1988 e aos debates constituintes.

Falta à democracia brasileira um marco temporal para o STF tomar decisões. Não só um prazo razoável, mas a certeza de que, anunciada a pauta, não promoverá adiamentos contados em números de meses ou anos, como de costume. O STF não pode dizer que aprecia segurança jurídica se não oferece nem isso e se acomoda ao "devo, não nego, julgo quando quiser".

Nesta quarta-feira (1º) a corte começou a julgar mais um de seus casos históricos. Terá a chance de orientar a promessa constitucional de demarcação de terras indígenas, que acumula 28 anos de atraso (Constituição pedia que se encerrasse em cinco anos).

caso chegou ao STF em 2016 e questiona aplicação, a outras demarcações territoriais, de critério construído no caso Raposa Serra do Sol, de 2009. Pautado para 2020, foi adiado sem maiores explicações.

Agora, corre risco de novo adiamento em função das ameaças de um presidente que comete crimes comuns e de responsabilidade. Basta um pedido de vista, e o tribunal jogará o tema para um futuro incerto enquanto a violência aumenta no campo.

A Constituição pede ao STF muitas virtudes institucionais. Duas para começar: primeiro, a coragem de decidir; segundo, a coragem de decidir certo.

Precisa saber que sua demora tem custos altos. Em torno de 1 milhão de pessoas estão hoje enredadas em conflitos por terra, invasões de territórios e assassinatos (relatório “Conflitos no Campo Brasil – 2020”, da Comissão Pastoral da Terra). A incerteza jurídica e um Congresso que busca legislar a toque de caixa contra direitos indígenas e socioambientais gera expectativa de leniência à delinquência e incentivos para desmatamentos e invasões.

Adiar e "deixar para o Congresso", como se ouviu, trairia a missão de uma corte constitucional, cuja razão de existir é impedir que o legislador viole a Constituição. Essa divisão de funções está presente em quase todas as democracias do mundo. Não significa usurpar, esvaziar ou se sobrepor ao Congresso, apenas lhe fazer contrapeso e proteger a ordem constitucional.

Em outros tempos, quando não havia presidente apontando canhão para o tribunal e ameaçando fechá-lo, o STF repetia essa ideia com muito orgulho e altivez retórica. Tempos sem riscos. A coragem de um tribunal constitucional se mede em tempos como hoje.

O STF também precisa saber que a decisão errada, sucumbindo às pressões do agronegócio (que investiu alto na desinformação e na compra de pareceres jurídicos), perpetuará efeitos dramáticos, tanto nos outros processos sobre o tema que hoje tramitam na corte, quanto nos processos administrativos hoje parados no Executivo.

E a generalização da tese do marco temporal é errada por muitas razões.

Ignora a literalidade do artigo 231 da Constituição (e o critério de "terras tradicionalmente ocupadas"). Ignora também a própria jurisprudência do STF sobre direitos dos povos indígenas. Em sucessivos casos, o tribunal estabeleceu que a "tradicionalidade" está relacionada ao modo de ocupação da terra, não ao tempo. A data marcada para reconhecimento de terra indígena é exigência desprovida, ironicamente, de "tradicionalidade jurisprudencial". Arbitrária, portanto.

Afirmar que a decisão do caso Raposa Serra do Sol firmou um precedente que deveria ser seguido esconde muita coisa: primeiro, a jurisprudência anterior; segundo, que esse caso isolado deixava explícito que sua tese não se aplicava a quaisquer outros; terceiro, que mesmo precedentes sólidos, mesmo em tradições jurídicas que se apegam a precedentes, devem ser revogados quando o erro para a situação presente se tornar evidente.

Pedimos ao STF, além de coragem, a dignidade do bom argumento e inteligência jurídica. Que seja um agente do rigor analítico, não da desinformação e do teatro retórico. Que não invoque números ou previsões sem citar fonte respeitável. Que não use analogias baratas ("Copacabana terá que voltar aos índios") ou dados espúrios, porque o assunto é sério demais.

*Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.

Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/conrado-hubner-mendes/2021/09/o-que-a-constituicao-queria-do-stf-era-coragem.shtml


Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Câmara aprova inclusão de proteção de dados como garantia fundamental

De acordo com a PEC aprovada pelos deputados, caberá apenas à União legislar sobre o tema

Heloisa Cristaldo / Agência Brasil

O plenário da Câmara dos Deputados aprovou, em dois turnos, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC 17/19) que torna a proteção de dados pessoais, inclusive nos meios digitais, um direito fundamental e remete privativamente à União a função de legislar sobre o tema.

Oriundo do Senado, o texto retorna para análise dos senadores após ter sido modificado pelos deputados. Para evitar o risco de provocar insegurança jurídica por eventual aprovação de legislações estaduais e municipais sobre o assunto, a PEC determina ainda que compete privativamente à União legislar sobre o assunto.

Segundo o relator, deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), a PEC assegura a competência normativa exclusiva da União, por meio do Congresso Nacional.

"A circulação de informações é um dado da vida. O tempo todo estamos produzindo informações, produzindo dados, esses dados são compartilhados, são tratados. Nós precisamos garantir que cada cidadão tenha proteção das suas informações. No caso brasileiro precisamos mais, precisamos mudar a cultura, o brasileiro é muito permissivo na oferta das suas informações. Mas creio que escrever na Constituição é um primeiro passo porque vai responsabilizar o Estado para fazer valer esse direito", argumentou Orlando Silva.

De acordo com o relator, há diferenças importantes entre a privacidade e a proteção de dados pessoais. “A privacidade possui caráter mais individual, enquanto a proteção de dados é mais coletiva. A privacidade é um direito negativo, enquanto a proteção de dados assume qualidade de direito positivo, que pressupõe o controle dos dados pelo próprio indivíduo, que decide onde, quando e como seus dados circulam. Por fim, o direito à privacidade oportuniza o usufruto tranquilo da propriedade, enquanto a proteção de dados está mais ligada ao direito de igualdade, ou seja, a não discriminação e ao usufruto de oportunidades sociais”, explicou o deputado ao justificar a aprovação da matéria.

Os deputados retiraram do texto a previsão de criação de um órgão regulador sobre proteção de dados na forma de uma entidade independente, integrante da administração pública federal indireta e submetida a regime autárquico especial.

Fonte: Agência Brasil
https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2021-08/camara-aprova-inclusao-de-protecao-de-dados-como-garantia-fundamental


Cristovam Buarque: A Via Brasil

O risco de um deputado chamado Jair Bolsonaro que quase ninguém escutou

Blog do Noblat / Metrópoles

O blog do Noblat lembrou esta semana os dez anos de uma curta fala do jornalista Bob Fernandes alertando para o risco de um deputado chamado Jair Bolsonaro. A fala não parecia ter relação com a realidade, mas se transformou em uma triste previsão. Pena que não foi escutada na época.

Se o alerta do Bob Fernandes tivesse sido escutado, as forças democráticas não teriam cometido tantos erros que levaram à eleição de um governo tão desastroso, irresponsável e ameaçador. Mas dez anos atrás era impossível dar crédito à possibilidade de um maluco defensor de tortura ganhar eleição, embora fosse perfeitamente previsível que os democratas estavam esgotando seu crédito de esperanças e credibilidade eleitoral. E por isto deveriam perder em algum momento no futuro, para forças radicalmente contrárias ao discurso democrático e progressista.

Era óbvio o descontentamento do eleitorado diante da corrupção, da falta de reformas estruturais para enfrentar os grandes problemas do país e de uma mensagem empolgante para um futuro diferente. Apesar disto, os partidos democráticos se consideravam mais adversários entre eles do que dos problemas brasileiros. Não tinham mensagem para o futuro, não acreditavam em volta ao passado e passavam o presente disputando quem seria o próximo prefeito de São Paulo. PSDB e PT se consideravam os donos da história que lhes parecia satisfatória com a democracia, a estabilidade monetária, a bolsa escola/família e o crescimento econômico induzido pela China. Os outros eram apenas auxiliares, puxadinhos de um ou outro. Como continuam sendo. Sem uma mensagem para futuro e desprezo aos alertas, se dedicavam a brigar entre eles para ver quem tinha o melhor marqueteiro para convencer aos eleitores. Eram os marqueteiros que tentavam mostrar as diferenças inexistentes nos vazios de propostas que eles tinham.

Não ouviram então e continuam sem escutar, apesar de que hoje o risco ser mais visível e muito mais grave. Bolsonaro já não é um desconhecido e a eleição será um plebiscito a seu estilo e propósitos de governar. Na outra os outros perderam, na próxima receberá respaldo para seu tipo maldito de governo.

Não é preciso ter a percepção profética do Bob Fernandes para prever o risco que o Brasil corre em 2022. Desta vez, a eleição daquele deputado será mais do que recusa aos outros, será um aval ao seu comportamento genocida, desastroso na administração do país, devastador de nossos recursos nacionais e de nosso prestígio internacional.

Desta vez a culpa será dos estão se colocando como candidatos e colocam seus nomes e seus partidos na frente dos interesses do Brasil. A culpa será da incapacidade destes cinco a dez nomes que não conseguem oferecer um nome de unidade contra a continuação da barbárie que leva o país na sua marcha à decadência.

A culpa será da insensatez do divisionismo simbolizado no lema nem nem, no lugar de um sonoro e unido NÃO. O PT diz nem Bolsonaro nem os outros, os outros dizem nem Bolsonaro nem o PT.

Lamentável que não tenham escutado a voz do Bob Fernandes, há dez anos, agora é imperdoável que não estejam atentos ao risco de um segundo turno depois das acusações mútuas no primeiro das urnas, nem do risco maior de um terceiro turno pelas armas, como vem sendo espalhafatosamente preparado.

Vocês, candidatos, percebam a responsabilidade que têm e escolham aquele que melhor poderá barrar a marcha ao abismo e sigam juntos em uma única via. A divisão de vocês está criando as condições para a reeleição, no segundo ou terceiro turno, se provocada por uma derrota dele por diferença pequena. A democracia precisa de uma vitória ampla no plebiscito do Brasil contra as insanidades perversas e antipatriotas do Bolsonaro. Uma vitória nas urnas que cale todos que pensam usar as armas. O Brasil precisa que vocês sentem e encontrem um nome que unifique todas as forças democráticas caminhando juntas em uma via única: da sensatez, do futuro, do Brasil.

*Cristovam Buarque foi senador, ministro e governador


José Renato Nalini: Vamos inverter essa chave

José Renato Nalini / O Estado de S. Paulo

Adepto fervoroso das novas tecnologias, procuro acompanhar o que surge no mundo digital para acertar o passo com esta era. Acompanho o que se noticia como tendência irreversível da Quarta Revolução Industrial, na qual estamos imersos. Um dos pensadores que sigo é Ronaldo Lemos, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro, portador de novas nessa área. Surpreendeu-me seu artigo “A brasilianização do mundo” (FSP, 19.8.21), que merece atenta reflexão.

O título é emprestado do artigo publicado na revista American Affairs pelo escritor Alex Hochuli. Em que consistiria a “brasilianização do mundo”? Longe está de sufragar o ufanismo da “cordialidade” de Sérgio Buarque de Holanda ou qualquer outro motivo de orgulho tupiniquim.

Hochuli chama de “brasilianização do mundo” a contaminação do planeta com os problemas estruturais que aprofundam, de forma irreconciliável, o fosso entre ricos e pobres. É recorrente a constatação de que a pandemia acelerou o processo de concentração da riqueza. 47% do PIB brasileiro está nas mãos de 1% da população. O sistema político privilegia os abonados e sufoca ainda mais os espoliados.

Aquilo que a parte lúcida e civilizada do planeta vê acontecer no Brasil – o desmanche das estruturas tutelares da natureza, o menosprezo à educação, o sepultamento da cultura, a disseminação da mentira, baseada no obscurantismo e no negacionismo – vai se espalhando por outras plagas.

Hochuli é bom observador. Além de residir aqui, ele já escreveu “O fim do fim da História”, contraponto à afirmação de Francis Fukuyama. Nesse livro, publicado pela Zero Books, ele inicia com a citação de Mark Fisher: “a periferia é onde o futuro se revela”. Não por acaso, nossa terra é considerada “país periférico”. As coisas boas demoram a chegar.

Quanto ao verbete “brasilianização”, o autor recorda que ele surgiu no seminal romance “Geração X”, de Douglas Coupland. Seu significado: “o abismo crescente entre ricos e pobres”. Também foi utilizado por Ulrich Beck, o célebre elaborador do conceito icônico “sociedade de risco”, ao mencionar o desaparecimento dos empregos e a ascensão da informalidade.

A partir da obra clássica de Stefan Zweig, “Brasil: o país do futuro”, o pensador Eduardo Viveiros de Castro faz uma análise para afirmar que não é o desabrochar de uma nação paradigmática. A expressão serviria para a constatação de que o mundo gradualmente perderia qualidade e se tornaria um imenso “Brasil”: campeão da iniquidade, dos extremos entre a opulência mais escandalosa e a miséria mais abjeta.

“Tudo será Brasil”, não aquela Canaã dos sonhos, mas uma espécie camuflada do inferno dantesco. A pandemia escancarou o quadro da exclusão: os invisíveis, os desempregados, os semi-empregados, os informais, os sem teto, os sem saneamento básico, os sem educação, os sem saúde, os sem perspectiva.

Por isso o termo “brasilianização” foi adquirindo inúmeros outros significados, todos negativos. Para Ronaldo Lemos, “nesse contexto, a expressão seria’nosso encontro com um futuro negado, no qual a frustração torna-se constitutiva da realidade social”.

Enquanto isso, países como a China – tão hostilizada recentemente pelos neo-xenófobos – e o Vietnã parecem contraponto. Não só em virtude de um enfrentamento inteligente da peste, mas também porque os 10% piores alunos vietnamitas na avaliação Pisa correspondem aos 10% melhores alunos do Brasil.

É preciso inverter essa chave e mostrar que o Brasil tem condições de sair do charco da mediocridade em que atolou nos últimos anos, para que a sociedade civil – essa ficção que sustenta a paquidérmica, burocrática e ineficiente máquina estatal – tem condições de assumir as rédeas da Nação. Afinal, a sociedade civil é o conjunto do povo, único titular da soberania ou do que restou dela, na manifesta relativização do conceito.

Sociedade civil que exige seriedade dos representantes eleitos, servos que devem ser da população e que pode liderar a revolução do ensino, para que a infância e juventude brasileiras não sejam obrigadas a emigrar para a civilização, mas possam neste solo desenvolver suas potencialidades e atingir a plenitude possível.

Só a recuperação de uma educação de verdade, com investimento nas competências computacionais, de empreendedorismo e comportamentais é que fará inverter essa chave ignominiosa.

Afinal, o constituinte de 1988 acenou com Democracia Participativa. Onde foi que ela se escondeu?

*José Renato Nalini é reitor da Uniregistral, docente da pós-graduação da Uninove e presidente da Academia Paulista de Letras – 2021-2022

Fonte: Blog do Fausto Macedo / O Estado de S, Paulo
https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/vamos-inverter-essa-chave/


Alon Feuerwerker: Enfim, a crise

Alon Feuerwerker / Análise Política

A palavra “crise” vem sendo vulgarizada há décadas entre nós, a ponto de a psique nacional ter normalizado a sensação de estarmos sempre em crise. O que costuma ser exagero retórico. Mas desta vez parece que vamos para uma crise mesmo, pois esboça-se um cenário inédito nos últimos quase sessenta anos: não há consenso sobre o método e as circunstâncias que vão decidir a luta pelo Planalto.

A aceitação consensual das normas que orientam e regulamentam a alternância no governo é talvez o pilar fundamental da paz política em regimes como o nosso. Ou seja, se os jogadores e os times não estão de acordo sobre as regras, ou sobre quem pode jogar ou não, é difícil o jogo acabar bem. Não é obrigatório que acabe mal, mas a chance é grande. Exatamente a situação agora do processo político brasileiro, a caminho da desestabilização.

A existência desse consenso fez o edifício resistir com certa estabilidade ao impeachment de Fernando Collor. Aí vieram Itamar Franco, que não podia se candidatar à reeleição, e em seguida dois nomes do “mainstream”, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva. Que resistiram às turbulências também por aceitar um fato: o poder não é um espaço vazio à espera do vencedor da eleição, é um prédio ocupado que troca de zelador.

Essa realidade não havia sido respeitada por Collor, nem foi em boa medida por Dilma Rousseff. Nem na largada por Jair Bolsonaro. Não significa que ele vá ter o destino dos dois, pois fez ajustes a tempo e conta, até o momento, com proteções que certa hora faltaram a ambos. Por exemplo a presidência e a maioria da Câmara dos Deputados (onde começam os impeachments), e apoio militar. E a crise agora escalou quando falta pouco para a eleição.

Este último aspecto deveria, teoricamente, oferecer a possibilidade de uma desanuviada no ambiente, e fazer os políticos voltarem-se para a preparação da disputa eleitoral. Costuma funcionar como válvula de escape. E por que não está funcionando agora? Precisamente porque falta o acordo essencial de que todos disputarão, e com as regras de agora, e quem tiver mais votos assume a cadeira no Palácio do Planalto em janeiro de 2023.

Daí que a política esteja enredada num novelo de difícil desembaraço. Hoje, Bolsonaro iria ao segundo turno e perderia de Lula. E a chamada terceira via teria os cerca de 20% que Marina Silva teve em 2010 e 2014, exatamente por ser a única “terceira via”. Num país mais próximo da normalidade, os insatisfeitos com esse cenário estariam cuidando de buscar alianças e de fixar imagens programáticas favoráveis. Não no Brasil de 2021.

Um novo impedimento de Lula tornou-se possibilidade remotíssima, após as decisões do Supremo Tribunal Federal a respeito. Resta, portanto, hoje, uma vaga na decisão. Bolsonaro, enfraquecido pelos erros na condução da pandemia, mas ainda apoiado por um terço, resiste ao cerco, alimentando, por convicção ou conveniência, dúvidas sobre a higidez do processo eleitoral. Se perder mesmo a eleição, parece visualizar aí uma trincheira de resistência.

Entre os adversários, o PT e Lula começam a se movimentar, nos périplos e nas alianças. Na esquerda, o grande problema é que falta muito tempo para as urnas, mas se até lá nada mudar estará tudo bem. O difícil é nada mudar até lá, pois todos estão vendo o mesmo jogo.

Já para a terceira via é imperioso criar um fato novo, que lipoaspire ou impeça um dos dois favoritos. E quem está agora na situação mais vulnerável é Bolsonaro. Que, como se sabe, talvez tenha cometido um equívoco complicado, na política e na guerra: errar na identificação do inimigo principal, e também no diagnóstico de onde vai vir o ataque mais perigoso.

Pois ele está vindo, como era previsível e foi previsto, exatamente dos companheiros de viagem no auge da glória da Lava Jato, das jornadas de rua pela derrubada de Dilma e das decisões estratégicas na eleição de 2018.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação

Fonte: Análise Política
http://www.alon.jor.br/2021/08/enfim-crise.html


Luiz Carlos Azedo: Bolsonaro não se ajuda

O impeachment de Bolsonaro não empolga os partidos de oposição, mas ganha apoio da opinião pública e já começa a ser visto como uma contingência que não pode ser descartada

Parece que o fracasso subiu à cabeça do presidente Jair Bolsonaro, que não se ajuda. Com dificuldades de se relacionar com as regras do jogo da Constituição de 1988, está levando o país para uma situação dramática. Cria uma situação de grave crise institucional, na qual seus aliados não têm muito como ajudá-lo, porque contraria seus interesses políticos e eleitorais regionais. O ministro da Economia, Paulo Guedes, faz mais ou menos a mesma coisa com a boa vontade dos agentes econômicos, que davam sustentação ao governo em função da necessidade de estabilidade na economia, mas agora se afastam.

A escalada do confronto do presidente Jair Bolsonaro com o Supremo Tribunal Federal (STF) não tem chance de terminar bem, apesar dos esforços do ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira (PP-PI), para amortecer a trombada com o presidente da Corte, ministro Luiz Fux, que sempre teve uma postura cordata e moderada. Na sexta-feira, Bolsonaro entrou com um pedido de impeachment do ministro Alexandre de Moraes, que imediatamente recebeu a solidariedade de seus pares, em nota assinada por Fux. Quem imaginava que Bolsonaro havia desistido do pedido em relação ao presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Luís Roberto Barroso, deve esperar mais um pouco: nos bastidores do Planalto, comenta-se que isso também deve ocorrer nesta semana.

O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM), pretende examinar o pedido de impeachment de Alexandre de Moraes tecnicamente, por obrigação, mas já disse que a medida não tem acolhida política. Ou seja, se não for engavetado, será derrubado em plenário. O sinal de que o tempo fechou para Bolsonaro no Senado veio também do presidente da Comissão de Constituição e Justiça, sena- dor Davi Alcolumbre (DEM-AP), que suspendeu a sabatina do ex-advogado-geral da União André Mendonça, indicado para a vaga do ex- ministro Marco Aurélio Mello no Supremo. Apesar de contar até com o apoio da bancada do PT, a aprovação de Mendonça subiu no telhado.

Bolsonaro não ajuda mesmo os seus aliados. Ciro Nogueira já está desconfortável no cargo, porque suas negociações políticas não são honradas pelo presidente da República. Na semana passada, tentou uma reaproximação de Bolsonaro com Fux, mas as conversas fo-
ram desmentidas pelos fatos. O presidente do PP assumiu a Casa Civil com a missão de melhorar o relacionamento do governo com o Congresso e costurar alianças eleitorais robustas, principalmente no Nordeste, mas está fracassando mais rápido do que se imaginava. É uma situação muito parecida com a do ex-senador Jorge Bornhausen, que assumiu a articulação política do governo Collor de Mello e não conseguiu evitar o impeachment.

Impeachment
A propósito, o impeachment de Bolsonaro não tem aceitação entre os principais atores políticos do país, inclusive na maioria dos partidos de oposição. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que lidera com folga a corrida para as eleições presidenciais de 2022, quer Bolsonaro sangrando até a eleição. Entretanto, o impeachment ganha crescente apoio da opinião pública e já começa a ser visto como uma contingência que não pode ser descartada, mais uma vez, porque Bolsonaro não se ajuda. Por exemplo, está anunciando que pretende comparecer à manifestação bolsonarista de 7 de setembro, na Avenida Paulista, enquanto nas suas redes sociais as convocações para bloquear Brasília e invadir o Supremo Tribunal Federal prosseguem. Onde vamos parar?

Essa é a pergunta que ninguém sabe responder, porque o bom senso não orienta as decisões de Bolsonaro, somente o confronto. Entretanto, sua rota de colisão com o Supremo precisa ser interrompida, antes que o país mergulhe no caos. Não apenas por cau- sa da crescente radicalização dos bolsonaristas, que o presidente da República emula, mas por causa da economia. O ministro da Economia, Paulo Guedes, também escolheu a rota do fracasso.

Na semana passada, Guedes implodiu a proposta de reforma tributária que estava em discussão no Senado, com a equipe do relator, senador Roberto Rocha, e era apoiada pelo presidente da Casa, Rodrigo Pacheco. Chantageia o Congresso com a história de que não terá dinheiro para pagar os servidores e o Auxílio Brasil, programa que substituirá o Bolsa Família, se a PEC dos Precatórios não for aprovada. A medida é polêmica porque agrava o deficit fiscal e gera muita insegurança política. Além disso, inflação e desemprego agravam a crise social e são o caldo de cultura para maior radicalização política.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-bolsonaro-nao-se-ajuda

Ayres Brito: ‘Só se passa o Brasil a limpo observando a Constituição’

Ana Dubeux / Correio Braziliense

Há um ano e cinco meses, o ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal, Carlos Ayres Britto, segue rigorosa quarentena. Só sai de 15 em 15 dias para uma volta de carro, com máscara e sem descer do carro. “Pra isso é que serve o dever da responsabilidade individual e coletiva. Se, em tema de saúde pública, a Constituição brasileira é de primeira qualidade, por que eu vou ser de quinta?”, compara, nesta entrevista ao Correio.

De casa, o magistrado, poeta, árduo defensor da Constituição, Ayres Britto continua a refletir sobre o país e acompanhar os desdobramentos de uma crise sem precedentes na história do Brasil.

“Há muitas lições a colher de uma crise que, no fundo, é de quatro conteúdos: o sanitário, o político, o econômico e o social. Tudo imbricado. E quando os problemas são assim tão graves quanto imbricados, é necessário recorrer à única lei que tem resposta de qualidade para tudo. É a Constituição. Que governa quem governa. Que governa permanentemente quem governa transitoriamente”, explica.

Para ele, a Constituição é o que faz da democracia o “princípio dos princípios”, o que faz a vida coletiva gravitar em torno de instituições, e não de pessoas. “Por isso que, entre nós, não se pode impedir a imprensa de falar primeiro sobre as coisas, nem o Judiciário de falar por último. Por isso, se cuida de único regime a nos aquinhoar com uma antecipada certeza: nenhum eventual governante central subjetivamente autoritário vai conseguir nos impor um governo objetivamente autoritário”, defende.

Ayres Britto defende que é preciso fazer da Constituição mesa redonda para, em torno dela, buscar a saída da crise que já se aproxima de 570 mil mortes. Diz que a cidadania tem sido objeto de boicote e que a “Administração Pública não tem seguido uma trilha virtuosa” ao observar o tema saúde da população na Constituição.

“Mais uma vez, o que é preciso enfatizar é isto: somente se passa o Brasil juridicamente a limpo com a irrestrita observância da Constituição”, conclui.

Como a Justiça e o Direito se adaptaram às novas demandas da sociedade brasileira diante da pandemia?
O Direito está a serviço da vida, assim como a Justiça está a serviço do Direito. Por isso que, diante da emergência de uma vida coletiva sob gravíssima crise sanitária, ele, Direito, passou a se traduzir em leis declaratórias de um estado de emergência em todas as unidades da Federação brasileira. Estado de emergência, a seu turno, justificador de medidas administrativas de vacinação em massa, lockdown, distanciamento social e uso de máscaras, por exemplo. Com um mais expressivo financiamento público em toda a rede hospitalar do País e como pronto-socorro financeiro à população mais economicamente débil. Tudo, por sinal, conforme o disposto no art. 196 da Constituição, que impõe ao Estado a adoção das políticas econômicas e sociais que se fizerem necessárias à administração da saúde como direito de todos e dever do Estado mesmo. Já a Justiça, como termo sinônimo de Poder Judiciário, ela cuidou de otimizar as dimensões do real e do virtual da nossa vida em sociedade, com ênfase para esta última dimensão. Com o que está dando conta da efetivação da regra igualmente constitucional de que o acesso à jurisdição é o maior dos direitos adjetivos ou instrumentais brasileiros. Donde ela, Constituição, sentando praça do dever estatal de não-negação de justiça, enunciar que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (inciso XXXV do art. 5º).

Por que a pandemia, aqui no Brasil, se faz acompanhar de uma crise política do mais forte acirramento de ânimos?
Bem, é que vivemos numa democracia, e o fato é que democracia é o regime de ativação da cidadania. Cidadania que é fundamento do nosso Estado Democrático de Direito – nos termos do inciso II do art. 1º da Constituição de 1988 — e que se traduz em espírito público. Abertura para o coletivo. Interesse por tudo que é de todos. Cidadania é isso. O que faz da democracia a ambiência ou atmosfera ideal para um intercâmbio de ideias que tanto leva à formação de consensos quanto de dissensos. Tudo civilizada ou respeitosamente, porque o campo das ideias é totalmente objetivo. Tão objetivo em si quanto racionalmente fundamentado. O problema é que essa ambiência cidadã tem sido objeto de boicote. De turbação por grupos de interesses que intencionalmente confundem um objetivo dissenso com um subjetivo confronto. Com uma queda-de-braço ou um cabo de guerra, já sabendo da impossível conciliação de posicionamentos. Esta a crise política, porquanto ocorrente do lado de fora das ideias e das instituições, mesmo as partidárias. Reino da mais sectária e até caricata fulanização das coisas, enfim.

Que ensinamento este momento nos deixa?
Há muitas lições a colher de uma crise que, no fundo, é de quatro conteúdos: o sanitário, o político, o econômico e o social. Tudo imbricado. E quando os problemas são assim tão graves quanto imbricados, é necessário recorrer à única lei que tem resposta de qualidade para tudo, praticamente. Essa lei é a Constituição, aqui no Brasil. Que governa quem governa. Que governa permanentemente quem governa transitoriamente. Uma Constituição que faz da democracia aquele princípio-continente de que tudo o mais é conteúdo. O princípio dos princípios, então. O que mais favorece a formação de consensos e dissensos em clima político-social tão objetivo quanto civilizado. Além de fazer a vida coletiva gravitar muito mais em torno de instituições que de pessoas. Por isso que, entre nós, não se pode impedir a imprensa de falar primeiro sobre as coisas, nem o Judiciário de falar por último. Por isso que se cuida de único regime a nos aquinhoar com uma antecipada certeza: nenhum eventual governante central subjetivamente autoritário vai conseguir nos impor um governo objetivamente autoritário. Assim como demonstrou a sociedade estadunidense no governo Trump.

Qual a saída para a crise?
Em suma, o de que precisamos é fazer da Constituição mesa redonda para, em torno dela, buscar a saída dessa multitudinária crise que já se aproxima de 570 mil mortes em nosso território. Sem nenhum culpa dela própria, Constituição, que faz da saúde um dever de toda pessoa estatal e um direito social-fundamental de cada indivíduo. Além de criar o SUS, priorizar os serviços e ações preventivas e ainda obrigar todo e qualquer Presidente da República, junto com o seu Vice, a prestar o compromisso de mantê-la, defendê-la e cumpri-la, quando do ato das respectivas posses. É como está no seu art. 78, ao lado de outros deveres funcionais também diretamente constitucionais.

Se é assim, estamos vivendo o paradoxo de um Direito bom e uma prática administrativa ruim?
Sim. A Constituição é muito boa, em tema de saúde da população, porém a Administração Pública não tem seguido na mesma virtuosa trilha. Principalmente a Administração Federal. Daí o número altíssimo de contaminações e de morte em escala nacional. O que tem faltado é o claro entendimento de que, em tema de saúde pública, a Constituição adota políticas de Estado que se impõem às políticas de governo. Esstas são transitórias, por definição, tanto quanto aquelas são permanentes. É como dizer: as políticas públicas de governo somente serão juridicamente válidas se compatíveis com as políticas públicas de Estado. Mais uma vez, o que é preciso enfatizar é isto: somente se passa o Brasil juridicamente a limpo com a irrestrita observância da Constituição. Tanto é assim que atentar contra o exercício dos direitos sociais (saúde é direito social da espécie fundamental) é crime de responsabilidade. É só ler o inciso III do artigo constitucional de nº 85.

No mesmo tema, o STF tem embaraçado o funcionamento da Administração Pública Federal?
Não! Em absoluto! O que disse o Supremo, acertadamente, foi isso: a) é competência material de todas as pessoas federadas cuidar da saúde da população; b) também é da competência legislativa comum ou concorrente de cada unidade federada brasileira legislar sobre… saúde, justamente. É como está no inciso II do art. 23 e no inciso XII do art. 24, combinadamente com os incisos I, II e VII do art. 30, todos da Constituição. Com o que deixou assentado a liderança, sim, da União, mas não a exclusividade de cuidar de um setor de atividade estatal que é direito de todos os brasileiros e estrangeiros residentes no país.

Como é ser jurista e um poeta a um só tempo?
É conciliar emoção e razão, nessa ordem. Ou quociente emocional e quociente intelectual, também nessa ordem. O primeiro a abrir os poros do segundo, e não o inverso. Isso na perspectiva da costura de uma unidade que talvez mereça o nome de… consciência.

O que mudou na sua rotina neste ano de pandemia?
Estou há um ano e cinco meses sob ortodoxa quarentena. Isso porque somente saio de casa para uma voltinha de carro, a cada quinze dias, ou para uma eventual consulta médica. Sempre com os elementares cuidados com o uso de máscara, com o distanciamento físico possível e com as palavras de ordem “álcool em gel em mim”. Pra isso é que serve o dever da responsabilidade individual e coletiva. Ah, também já tomei as duas doses da vacina Astrazeneca. Se, em tema de saúde pública, a Constituição brasileira é de primeira qualidade, por que eu vou ser de quinta?

Fonte: Eixo Capital / Correio Braziliense
https://blogs.correiobraziliense.com.br/cbpoder/ayres-brito-so-se-passa-o-brasil-a-limpo-observando-a-constituicao/


Luiz Carlos Trabuco Cappi: Constituição, democracia e economia

A porta de saída para mazelas como o desemprego é mais democracia, e não menos

Luiz Carlos Trabuco Cappi, O Estado de S. Paulo

A Constituição de 1988 completará 33 anos no dia 5 de outubro. É a sétima da nossa história. Caminha a passo resiliente e marca uma das fases de maior tranquilidade institucional e relações democráticas em nosso País. Ela é o resultado de um desses momentos de união nacional tão valiosos em nossa história, nos quais os conflitos e as polarizações são superados pelo senso de compromisso com o bem comum. Nenhuma de nossas Constituições anteriores foi tão aberta e tão sensível às preocupações e aos anseios da sociedade, e esta foi uma das razões de a Carta de 1988 ter sido denominada como Constituição Cidadã.

Ao garantir equilíbrio institucional e segurança jurídica, criou a base para saltos formidáveis na economia e nos indicadores de qualidade de vida. Quando seu texto foi promulgado, o PIB per capita brasileiro era de US$ 6,7 mil, ajustados pela paridade do poder de compra. Em 2019, antes da pandemia, estava em US$ 15,4 mil. O comércio exterior saltou de US$ 48 bilhões para US$ 368,9 bilhões (2020). As reservas cambiais, de US$ 9,1 bilhões para US$ 355,6 bilhões, no período.

A Constituição de 1988, viva e orgânica, tem sido um fator de coesão social. Ao ser respeitada, é um fator de pacificação em qualquer tempo. 

Embora a democracia seja uma herança da Grécia Antiga, os regimes democráticos ocidentais somente surgiram por caminhos tortuosos, após as revoluções Inglesa (1640-1688), Americana (1775-1786) e Francesa (1789-1999).

Hoje, as leis fundamentais das repúblicas e das monarquias constitucionais correspondem às aspirações nacionais, legitimam a organização social e protegem o cidadão de arbitrariedades – são uma das conquistas humanas mais importantes.

A Carta Magna inglesa, de 1215, com a qual os barões instituíram limites para o poder do rei, inaugurou esse processo. E a Constituição americana, elaborada em 1787, alguns anos depois da independência dos Estados Unidos, é outro paradigma. Sua carta de direitos, que são as dez primeiras emendas à Constituição, impôs restrições ao poder do governo federal.

Ao produzir consensos, essas cartas abriram em definitivo as portas para o desenvolvimento capitalista. Seus povos passaram a buscar o progresso dentro dos mesmos princípios, respeitando-os e sendo por eles respeitados.

O Brasil sofreu influência de todos esses movimentos, ao sair do período da Monarquia para o da República, mas a primeira Constituição democrática somente foi promulgada em 1946.

Com o voto direto, secreto e seguro, somos a terceira maior democracia representativa do mundo e temos o décimo terceiro PIB em termos globais. Nosso Parlamento atende à diversidade da sociedade. O Executivo representa a maioria, mas os processos decisórios são complexos, pois envolvem também a opinião das minorias. Juízes, desembargadores, os ministros dos tribunais superiores, compõem o Poder Judiciário. O Supremo Tribunal Federal (STF) zela pelo cumprimento da Constituição. O Ministério Público, por sua vez, atua com autonomia na ordem jurídica do Estado.

E a Constituição é o instrumento que estabelece as regras do jogo para esse processo decisório, no qual os Poderes e entes federados têm autonomia no âmbito de suas competências. 

Mais democracia, e não menos, é a porta de saída para mazelas como o desemprego e a baixa atividade.

A Carta de 1988 garante um regime econômico liberal, com atuação normativa e reguladora do Estado. Fundamenta-se na livre iniciativa e na concorrência, com expansão de direitos sociais e disciplina da ordem. Preservá-la é reduzir desigualdades e garantir o crescimento econômico duradouro.

Na semana passada, seu sistema de freios e contrapesos regulou a relação entre os Poderes, que exercem controle um sobre o outro sem perder a independência. Testado em clima de tensão na definição do sistema de votação, prevaleceu a vontade do Legislativo. Sem traumas, rupturas ou transgressões, dentro das regras da Constituição, com clareza, transparência e o respeito de todos.

A democracia brasileira sai fortalecida.

PRESIDENTE DO CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO DO BRADESCO. ESCREVE A CADA DUAS SEMANAS

Fonte: O Estado de S. Paulo
https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,constituicao-democracia-e-economia,70003811905


A Bíblia não é a Constituição

Não se pode ter a pretensão de, como juiz, assumir, ainda que em surdina, a voz de Deus

Celso Lafer / O Estado de S. Paulo

 “Notável saber jurídico” e “reputação ilibada” são os critérios de escolha de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) estabelecidos pela Constituição. A sua indicação cabe ao presidente da República, mas a escolha só se efetiva depois de avaliação e aprovação pela maioria absoluta do Senado Federal.

Os parâmetros constitucionais são explícitos. Não cabe abrir espaço para considerações a respeito da fé religiosa de um indicado. Não é critério que se coadune com o Direito brasileiro o ingrediente de ser “terrivelmente evangélico”. É, no entanto, o que o presidente aponta como uma faceta de sua escolha preferencial do nome de André Mendonça para o cargo.

Trata-se de um vício de origem no âmbito de um Estado de Direito, que consagra a objetividade do “governo das leis” e repele o idiossincrático de um “governo de homens”. Requer, assim, pronta refutação, pois o Brasil é um Estado laico desde a proclamação da República. Não é um Estado confessional, no âmbito do qual existam vínculos entre o poder político e uma religião.

Em nosso país, na linha da tradição constitucional americana, que inspirou Rui Barbosa, existe, como dizia Jefferson, um “wall of separation” entre o Estado e as religiões. Esse é o sentido do artigo 19 da Constituição. É por isso que a fé religiosa não é critério de escolha para cargos governamentais, muito especialmente o de ministro do STF, instituição que tem, no topo do Judiciário, a responsabilidade pela guarda da Constituição e de seus dispositivos, incluída a laicidade.

A laicidade relaciona-se com grandes matérias constitucionais. Entre elas, a tutela dos direitos humanos, a asserção do pluralismo e da diversidade da sociedade e a aceitação do outro na prática e nos costumes da convivência da cidadania numa democracia.

Estado laico significa Estado neutro em matéria religiosa, não solidário em relação a qualquer atividade religiosa, pois não se fundamenta numa fé, como, na situação-limite, em Estados teocráticos, nos quais poder religioso e poder político se fundem.

A laicidade obedece à lógica da sabedoria liberal da arte da separação das esferas e da sua autonomia. A separação Igreja-Estado está em consonância com a lição dos Evangelhos: “A César o que é de César, a Deus o que é de Deus”.

A laicidade se contrapõe ao dogmatismo e à intolerância. É uma regra de calibração que permite a gestão pública de diferenças religiosas e de opinião. É a base de uma postura aberta em relação ao diverso e ao diferente que caracteriza a pluralidade da condição humana. Tem como método o persuadir, e não o coagir. Parte do pressuposto de que a verdade não é una, mas múltipla, e tem várias faces, dada a complexidade ontológica da realidade.

A laicidade é uma das maneiras de responder aos problemas da intolerância e de um dos seus desdobramentos, a polarização fundamentalista, intransitiva e excludente.

Historicamente, deve-se ao espírito laico a tolerância religiosa, da qual proveio o direito de liberdade de crença e de pensamento, de opinião e da cultura. Dela se originou a revolução científica, o processo incessante de ampliação do saber, que nasce e se desenvolve pela negação do dogmatismo e se baseia na capacidade de revisão contínua dos próprios resultados da pesquisa, à luz da razão e das provas da experiência – e não da fé. É o que fundamenta a liberdade da pesquisa e a autonomia da universidade.

Graças à tolerância deu-se a dinâmica das transformações das relações de convivência por meio da afirmação da democracia, consagrada na Constituição de 1988. É o que cria espaço para a contenção da violência entre grupos e indivíduos, maiorias e minorias, propiciando plataforma comum, na qual todos os cidadãos podem encontrar-se enquanto membros de uma comunidade política, diversificada nas suas crenças e opiniões.

Num Estado laico, o Direito é a sua moldura jurídica. A Bíblia não é a Constituição. Por isso, o juiz deve decidir de acordo com o Direito e os valores nele positivados. O seu método de interpretação deve seguir o espírito laico do exame crítico dos assuntos e dos seus problemas. Nas suas decisões, deve respeitar e buscar no mundo – e não no transcendente – a ética, do viver honesto dos clássicos princípios de não prejudicar ninguém e dar a cada um o que é seu.

Um juiz num Estado laico não pode buscar a fundamentação de suas decisões nas suas crenças religiosas. Não pode ter a pretensão de, como juiz, assumir, ainda que em surdina, a voz de Deus. Num Estado laico e plural, nas decisões do Judiciário vale o que diz Camões: “O que é de Deus, ninguém o entende/ Que a tanto o engenho humano não se estende” e “ocultos os juízos de Deus são”.

Um juiz “terrivelmente evangélico” representa o risco de transpor os seus conselhos de pastor para os seus fiéis, no âmbito próprio da sociedade civil, em inapropriados comandos jurídicos-judiciais do Estado para a sociedade brasileira. É um risco que caberá ao Senado avaliar com a devida profundidade.

*Professor emérito da Faculdade de Direito da USP, foi ministro das Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)

Fonte: O Estado de S. Paulo
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,a-biblia-nao-e-a-constituicao,70003811047


5.570 Brasis

Demétrio Magnoli / O Globo

Bolsonaro prometeu colocar “o Brasil acima de tudo”. Sob a emergência de saúde gerada pela pandemia, fragmentou a nação em 5.570 entidades municipais separadas. A implosão começou com as restrições sanitárias e concluiu-se com a campanha de vacinação. Hoje, no país estilhaçado, os direitos dos cidadãos são essencialmente regulados pela vontade soberana dos prefeitos.

A bomba foi detonada pelo presidente, no início da pandemia, quando ele classificou a Covid-19 como “uma gripezinha” e recusou-se a coordenar o combate à difusão de contágios. Reagindo em defesa da saúde pública, o STF decidiu por unanimidade reconhecer as prerrogativas estaduais e municipais na aplicação de medidas de restrição sanitária.

O gesto inevitável dos juízes cristalizou o movimento centrífugo. Na ausência de um centro nacional, governadores e prefeitos passaram a adotar as mais disparatadas regras sanitárias. Legislaram à larga, determinando fechamentos e reaberturas das mais diversas atividades ao sabor de critérios arbitrários. Aqui e ali, prefeitos interromperam o tráfego em rodovias ou, atropelando direitos fundamentais, decretaram datas específicas para o deslocamento de residentes nas vias públicas.

Sob o manto da vaga decisão do tribunal superior, praticamente cessou o controle judicial das competências legais dos governantes. O Brasil de Bolsonaro — e do seu triste cortejo de militares militantes — converteu-se em terra sem lei.

O melhor retrato da nação em estilhaços encontra-se nas ruínas do Programa Nacional de Imunizações (PNI). Institucionalizado em 1975, no rastro do sucesso das campanhas de vacinação contra a varíola dos anos 1960, o PNI inaugurou a primeira Campanha Nacional de Vacinação contra a Poliomielite em 1980 com a meta de imunizar todas as crianças menores de 5 anos num único dia. Menos de uma década depois, em março de 1989, identificou-se o caso derradeiro de pólio, na Paraíba. O programa, fonte de orgulho nacional, não resistiu à anarquia bolsonarista.

Eduardo Pazuello, o indisciplinado general da ativa que faz dublagem de agitador de comícios, plantou as cargas explosivas no PNI. À frente do Ministério da Saúde, retardou ao máximo a aquisição de vacinas e rabiscou simulacros ilusórios de planos de imunização, abandonando o SUS na frente de batalha. O caos resultante estende-se até hoje.

A renúncia do Ministério da Saúde a comandar um plano nacional de imunização reflete-se, antes de tudo, na inexistência de campanhas de publicidade nos meios de comunicação de massa. Nesse ponto, Marcelo Queiroga, o substituto de Pazuello, revela-se tão fiel a Bolsonaro quanto seu fracassado antecessor. Para não desagradar ao presidente antivacina, seu ministério foge à responsabilidade de levar à população as informações básicas sobre os imunizantes, as regras de prioridade e os cronogramas de vacinação.

A desordem ramifica-se nos níveis estadual e municipal. Governadores e prefeitos acenaram a grupos de pressão e clientelas eleitorais, fabricando grupos prioritários e, nesse passo, reduzindo o ritmo da vacinação. Ao mesmo tempo, alteraram sem cessar os cronogramas, fornecendo informações confusas e incompletas em sites mais ou menos ocultos. Nos 5.570 programas de imunização em curso na nação estilhaçada, registram-se diferenças de até dez anos nos grupos etários autorizados a se vacinar e regras distintas de intervalos entre doses.

De passagem, os gestores municipais cometem crimes em série, confiando na cumplicidade passiva do Ministério Público. Infringindo as regras institucionais do SUS, milhares de cidades fazem de comprovantes de residência condição para vacinar. Por essa via, criam precedentes para, no futuro, negar atendimento de saúde a residentes de outros municípios. Há, ainda, os que, atraídos pelos holofotes das redes sociais, cassam o direito à imunização dos “sommeliers da vacina” — ou seja, indivíduos que, sem cometer ilegalidade alguma, perambulam de posto em posto à procura do imunizante de sua preferência.

5.570 Brasis — eis o fruto maduro do bolsonarismo.

Fonte: O Globo

https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/5570-brasis.html


As quatro linhas da Constituição

Se reação do TSE e STF aos desvarios do presidente não o demover da aventura autoritária, talvez demova oportunistas mais cautelosos

Catarina Rochamonte / Folha de S. Paulo

Há tempos o presidente Bolsonaro vem atravessando o que ele chama de “quatro linhas da Constituição” para cometer crimes de responsabilidade; crimes pelos quais já deveria ter sofrido processo de impeachment. Até agora, cooptando parlamentares com cargos e verbas, tem conseguido se blindar. Contudo, sua insana reincidência criminosa vai tornando toda blindagem precária.

Na live anunciada com estardalhaço e feita para provar fraude em eleições com urna eletrônica, Bolsonaro não provou nada; mas fez da questão do voto impresso mais uma bandeira manipulada para fomentar mobilização fanática capaz de sustentar uma aventura autoritária personalista.

Muitos entendem que a adoção do voto impresso é um atraso, retrocesso; outros entendem que é um avanço para a transparência das eleições. Quem tem poderes para decidir a questão é o Congresso; a ameaça de que não haverá eleições em 2022 se não for adotado o sistema do gosto do presidente da República é, pois, antes de tudo, uma afronta ao Poder Legislativo.

Arthur Lira e parlamentares do centrão, aliados circunstanciais de Bolsonaro, talvez estejam revendo o cálculo de vantagens, pois a guerra do bolsonarismo visa à liquidação ou sujeição não apenas do TSE e do STF, mas de todas as instituições democráticas.

Sobre o propósito autoritário de Bolsonaro já é passado o tempo das especulações. Suas falas sobre isso são abertas e enfáticas, como nesta tosca declaração: “meu jogo é dentro das quatro linhas, mas se sair das quatro linhas, sou obrigado a sair das quatro linhas”.

Bolsonaro acha que é simples agir fora das “quatro linhas da Constituição”. Não é, embora, às vezes, devido à tibieza de uns e venalidade de outros, assim lhe possa parecer.

Se a dura reação do TSE e do STF aos seus desvarios de poder personalista não o demover da aventura autoritária em curso, talvez demova, ao menos, os oportunistas mais cautelosos. Com Bolsonaro restará apenas sua seita de radicais.