Samuel Pessôa

Fernado Pessôa: Reavaliação sobre o Minha Casa

Tese mostra que programa teve impactos positivos para as famílias

Na coluna de 22 de agosto de 2020, escrevi que o programa MCMV (Minha Casa Minha Vida) tinha desperdiçado muitas unidades. O motivo é que o enorme esforço de entrega de novas unidades habitacionais pouco contribuiu para reduzir o déficit habitacional.

Minha colega recém-contratada pelo Ibre Laísa Rachter, em sua tese de doutoramento orientada por Cecilia Machado, que ocupa este espaço quinzenalmente às terças, mostrou que o programa teve impactos positivos sobre as famílias que adquiriram as casas. É necessário proceder a uma reavaliação do ponto de vista que defendi na coluna anterior.

Laísa usou características da implantação do programa que permitiram a identificação de relação de causa e efeito entre o acesso à casa própria e melhoras de bem-estar.

Um sorteio decidia o acesso ao MCMV para baixa renda. Algumas pessoas tinham acesso e outras não. Assim, há um experimento, como, por exemplo, o que ocorre com os testes das vacinas: parte da população recebe a vacina e parte o placebo, e as duas populações têm as mesmas características. Qualquer diferença que surge é causada pela vacina.

Laísa mostrou, com dados para o Rio, que no grupo sorteado o acesso à casa própria elevou a renda líquida da família: a redução do gasto com aluguel mais do que compensou o aumento do gasto com transporte —os conjuntos do MCMV ficam mais afastados— e com as contas de água e luz. Não se observou queda da jornada de trabalho pela maior distância do local de trabalho.

Em outro capítulo, Laísa usou do fato de o programa priorizar cidades acima de 50 mil habitantes. Cidades com um pouco menos do que 50 mil habitantes, em tudo iguais às de 50 mil habitantes, receberam muito menos unidades do programa. Entre 2011 e 2017 as cidades com 50 mil habitantes receberam, em média, 300 a 350 unidades habitacionais a mais do que cidades com 49,9 mil habitantes.

Foi possível observar que, em razão dessas unidades a mais, houve elevação do peso das crianças ao nascer de 12 a 16 gramas, em comparação às cidades com pouco menos de 50 mil habitantes.

Também ocorreu redução da mortalidade infantil em um por mil nascimentos nas cidades com 50 mil habitantes em comparação às cidades ligeiramente menores. A redução da mortalidade infantil foi observada somente no primeiro ano de vida e em doenças associadas às primeiras três semanas de vida, chamada de mortalidade perinatal, sugerindo que o canal é a melhora de saneamento básico.

A melhora da saúde no início da vida tem impactos permanentes sobre a aprendizagem e o desempenho no mercado de trabalho. Assim, é possível que os ganhos de longo prazo justifiquem os custos para o Tesouro com subsídios às unidades habitacionais.

Dessa reavaliação duas questões se apresentam. Primeiro, como conciliar essa análise microeconômica com o resultado de que o programa como um todo não concorreu para reduzir o déficit habitacional? É possível que haja problemas de mensuração na série da fundação João Pinheiro.

Ou ainda é possível —me parece uma hipótese mais plausível— que a maior oferta de habitações eleve a demanda. Por exemplo, pode haver antecipação na constituição de novas famílias. Afinal, quem casa quer casa. Se há mais casas, vamos casar! Tema para pesquisa.

A segunda questão é: se há impacto tão importante sobre o bem-estar e, provavelmente, o programa é rentável, por que ele foi pesadamente reduzido?

O programa é rentável para a sociedade. Não gera renda imediata para o Tesouro Nacional. Assim, se o Tesouro estiver muito endividado, com pressão inflacionária e/ou juros elevados, a política pública será desfeita mesmo se for de boa qualidade.

Como diz o ex-governador Paulo Hartung, o primeiro passo para cuidar as pessoas é cuidar das contas públicas.

*Samuel Pessôa é pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e da Julius Baer Family Office (JBFO). É doutor em economia pela USP.


Samuel Pessôa: Olhando para frente e para trás

Recuperação plena da economia dependerá de solução mais definitiva para a epidemia

Última coluna do ano. Momento em que normalmente faço o balanço do cenário que tracei no fim do ano anterior (2019) para este que se encerra, 2020. E em que desenho o cenário para o ano que se inicia.

Imaginava que o crescimento em 2020 seria de 2,5%. Com a pandemia, devermos ter queda de 4,7% em 2020.

A excepcionalidade da epidemia torna inútil qualquer avaliação do ocorrido frente ao projeta do. Resta-nos olhar para frente.

A equipe de projeção macro do Ibre, liderada por Silvia Matos, prevê que no ano próximo o crescimento será de 3,6%.

Mesmo essa projeção tem enorme incerteza. Mais do que normalmente. Na verdade, vivemos um momento em que também é extremamente difícil olhar à frente.[ x ]

Talvez o melhor seja olharmos para onde estamos agora. Segundo o Ibre, no 4º trimestre de 2020, a economia terá rodado 3,6% abaixo do nível do último trimestre de 2019. Somente o setor de ‘outros serviços’ —turismo, alimentação fora do domicílio, entretenimento (esporte e cultura) e serviços pessoais— responde por 2 pontos percentuais (pp) dessa queda.

Os serviços da administração pública —essencialmente as escolas fechadas— respondem por 0,8 pp.

Portanto, apenas esses dois subsetores dos serviços explicam 78% da queda do 4º trimestre ante o mesmo trimestre de 2019 (2,8 pp de 3,6% de queda).

Ou seja, no segundo semestre de 2020, a economia teve uma retomada em “V” para aqueles setores não muito afetados pelo distanciamento social.

A recuperação plena da economia e um crescimento maior do que os 3,6% enxergados pelo Ibre para 2021 dependerão de uma solução mais definitiva para a epidemia.

Para a inflação, sempre considerando o acumulado em 12 meses, o cenário é fechar 2020 em 4,5%, subir até 6,5% em maio de 2021 e, a partir daí, ocorrer forte “devolução” dos choques que já ocorreram.

A inflação fecha o ano que vem próxima a 3,5%.

Quatro foram os choques que pressionaram a inflação: elevação dos preços das commodities em função da recuperação forte da China; subida dos preços das proteínas por causa do problema sanitário com o rebanho suíno chinês; a desvalorização do câmbio; e o ciclo de estoques na indústria e no varejo, fruto da desorganização das cadeias produtivas com a parada súbita da economia no 2º trimestre.

Há dois cenários adicionais para a inflação. Se o Congresso aprovar uma lei orçamentária para 2021 que desancore a política fiscal, o câmbio deve caminhar para R$ 6,5 aproximadamente e a inflação deve fechar 2021 na casa de 4,5% - 5%. Se a segunda onda gerar uma nova desinflação dos serviços no primeiro bimestre do ano, e o crescimento for mais fraco ao longo de 2021, a inflação pode fechar em 2,5%.

Nossa resposta fiscal à pandemia foi a maior da América Latina. Gastamos 12% do PIB, ante 4% para a média do continente. Assim, tivemos um sobregasto de 8 pp do PIB em relação aos países de nossa região.

Segundo cálculos de meu colega do Ibre Bráulio Borges, cada 1 pp do PIB reduziu o tombo da economia em ¼ de pp. Assim, se não fosse nosso sobregasto, em vez de queda de 4,7%, cairíamos 6,7%.

Difícil saber, a partir de uma análise de custo e benefício, se o gasto foi ótimo em termos econômicos, isto é, a opção mais vantajosa. Em última instância, trata-se de uma escolha política. Mas agora que já tomamos a decisão e já colhemos os benefícios de nossa escolha, ficará para o futuro a pesada conta da dívida.

A todos nós feliz 2021 que, pelo andar da carruagem, começará de verdade no segundo semestre. Até lá ainda lidaremos com o vírus.Samuel Pessôa

Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e da Julius Baer Family Office (JBFO). É doutor em economia pela USP.


Samuel Pessôa: Longos ciclos cambiais

Se situação fiscal for minimamente arrumada, haverá grande espaço para queda do dólar

O quadro abaixo apresenta duas curvas. A curva azul representa a evolução do câmbio a preços do 3º trimestre de 2020.

Para controlar pela inflação, considerei a diferença de inflação entre o Brasil e nossos parceiros comerciais, ponderada pelo peso dos parceiros na corrente de comércio. Cada ponto do gráfico representa o câmbio médio em um trimestre. O gráfico se inicia no 1º trimestre de 2000 e termina no 3º trimestre de 2020.

A curva preta apresenta o câmbio a preços constantes controlado por duas variáveis diretamente associadas ao comércio internacional: produtividade do trabalho e termos de troca. Para ambas, foi considerada a diferença da taxa de crescimento entre o Brasil e nossos parceiro comerciais. Novamente ponderada pelo peso dos parceiros na corrente de comércio.

A curva preta pode ser interpretada como o câmbio de equilíbrio dado pelos fundamentos de comércio internacional. A variabilidade dela responde por 60% da variabilidade da curva azul. Os 40% restantes da variabilidade do câmbio observado na frequência trimestral, a curva azul, são dados por movimentos especulativos da conta financeira.

Voltando à curva que descreve o câmbio dado pelos fundamentos de comércio internacional, a curva preta, há um longo ciclo de valorização do real --do fim de 2002 até 2011—e outro de desvalorização da moeda— de 2011 até 2016. O câmbio dado pelos fundamentos sai de R$ 4,8 no 4º trimestre de 2002 para R$ 2,6 no 3º trimestre de 2011 e, em seguida, atinge R$ 4,6 no 1º trimestre de 2016. De lá para cá, tem oscilado.

O câmbio observado a preços do 3º trimestre de 2020, dado pela curva azul, fica sistematicamente acima da curva preta em duas oportunidades. No fim do governo FHC e nos dois primeiros anos do governo Lula. E, agora, nos três trimestres de 2020, abriu-se uma verdadeira boca de jacaré entre o câmbio medido pelas duas curvas. O desvio no 3º trimestre de 2020 foi de 47%, o maior diferencial desde 2000 --dólar a R$ 5,4, ante R$ 3,7 dados pelos fundamentos.

Como abordei na coluna de 3 de outubro, a desvalorização do câmbio é inflacionária quando o câmbio observado caminha na direção oposta àquela que é dada pelo câmbio dos fundamentos. Tem sido esse o comportamento da série desde o 2º trimestre de 2019, quando ambas marcavam R$ 3,9. De lá para cá, o câmbio dado pelos fundamentos valorizou-se até R$ 3,7, e o câmbio observado desvalorizou-se para R$ 5,4.

A grande boca de jacaré que se abriu entre as duas séries indica que o mercado já colocou no preço a probabilidade de desorganização fiscal.

Se a situação fiscal for minimamente arrumada, haverá grande espaço para valorização da moeda e, portanto, redução da inflação em 2021.Samuel Pessôa

* Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e da Julius Baer Family Office (JBFO). É doutor em economia pela USP.


Fernando Pessôa: Guilherme Boulos, o velho no novo

Seu frescor lembra o PT dos anos 1980, ótimas intenções, nenhum pragmatismo

O jovem candidato à Prefeitura de São Paulo Guilherme Boulos é articulado, se expressa com clareza e aparentemente traz frescor à cidade.Tem uma história bonita. De classe alta, cedo foi viver e conhecer a vida e as dificuldades dos paulistanos carentes. Com interesse, portanto, ouvi a sabatina do jornal O Estado de S. Paulo da semana passada.

Repercutiu muito nas redes sociais a afirmação infeliz de que o problema do déficit da previdência é que a prefeitura não faz concurso. Segundo Boulos, novos servidores públicos contribuiriam para o sistema, reduzindo o déficit. Trata-se de um despropósito: contrata-se um servidor por 100, ele contribui com 20, reduz o déficit da previdência em 20 e eleva o gasto do município em 100!

Boulos quer trocar trabalhadores terceirizados por concursados. Para ele, os terceirizados são mais caros que os concursados. A informação está errada. Há inúmeras evidências de que o salário do servidor público é superior ao do setor privado para as mesmas ocupações.

Há iniciativas cujo custo não convence. Por exemplo, alega que fará unidades habitacionais, por meio de mutirão, por R$ 41 mil cada uma. Não parece possível. Um imóvel deteriorado no centro de São Paulo não sai por menos de R$ 1.500 o m². Também parecem subestimados os R$ 4.600 por ano para uma vaga em creche. Bem como R$ 5.700 para o salário bruto de um médico concursado pela prefeitura.

Também parece subestimada a estimativa de 437 mil passagens de ônibus gratuitas, que considera ida e volta, em cada dia útil, para gestantes, mulheres com criança de colo e estudantes.Os R$ 14 bilhões que separou para o combate à pobreza parecem bem calibrados.Independentemente das estimativas de gasto, várias subestimadas, é na parte da receita que o candidato se perde.

Segundo Boulos, haverá três fontes de receita para financiar esses gastos, que são da ordem, nas suas contas, de R$ 29 bilhões em quatro anos: o caixa da prefeitura, o aumento do investimento e o aumento da eficiência na execução da dívida ativa do município.

Dinheiro em caixa não é receita. O caixa da prefeitura é receita já acontecida e é uma reserva financeira para gastos futuros. Certamente parte está comprometida com contas a pagar que cairão ao longo do tempo. E certamente toda prefeitura precisa de um caixa para fazer frente às oscilações naturais da receita e despesa que ocorrem ao longo do ciclo econômico. Boulos eleito em 2020, se reeleito for em 2024, iniciará seu segundo mandato sem nenhum recurso no caixa?

A segunda fonte de recursos será a normalização do investimento da prefeitura. Segundo o candidato, na gestão Fernando Haddad, a prefeitura investia R$ 20 bilhões por ano, e, na atual, o investimento caiu à metade. Assim a “normalização” do investimento produzirá receita adicional de R$ 10 bilhões em quatro anos.

Não ocorreu ao candidato que a queda do investimento não foi uma decisão política, mas fruto de uma queda generalizada do investimento de todo o setor público brasileiro desde a grande crise de 2014-2016. Vivemos em crise fiscal permanente. Foram a queda da receita e a elevação do gasto obrigatório (principalmente previdência) que produziram a queda do investimento, e não o inverso.

A terceira fonte de receita será o ganho de eficiência na execução da dívida ativa. A hipótese é que as administrações anteriores não quiseram arrecadar mais. Não se esforçaram.O frescor de Boulos lembra o PT dos anos 1980. Ótimas intenções, nenhum pragmatismo e visão meio conspiratória das demais administrações. É a ideia equivocada de que fazer o bem é fácil, e não se faz pois falta vontade política.​Samuel Pessôa

*Samuel Pessôa é pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.


Samuel Pessôa: Quebrar o teto somente reacelerará a reinflação da economia

Voltar às pedaladas fiscais não resolverá, como não resolveu em passado recente

Nos últimos meses o Índice de Preços ao Produtor (IPA) da FGV apresentou forte aceleração. De maio a agosto, rodou a cada mês, sequencialmente, a 9%, 11%, 14% e 22%, em comparação com os mesmos meses de 2019.

O IPA é fortemente afetado pela elevação do preço do minério de ferro e das commodities agrícolas. O preço no mercado internacional tem subido, com a robusta recuperação da economia chinesa e com as políticas de sustentação de renda que têm bancado o consumo de alimentos mundo afora.

O preço das mercadorias que exportamos tem se elevado no mercado internacional. De fato, nossos ganhos de termos de troca, entre março de 2019 e junho de 2020, superam os de nossos parceiros comerciais em 13%.

Em geral, há um efeito gangorra entre variações de termos de troca com o câmbio nominal: sempre que temos expressivos ganhos de termos de troca o câmbio se valoriza e vice-versa. A gangorra insula a economia brasileira dos efeitos inflacionários da elevação dos preços das commodities. Trata-se de uma das maravilhas do câmbio flutuante.

A evolução do diferencial dos termos de troca com nossos parceiros comerciais explica aproximadamente 50% dos movimentos da taxa de câmbio, para uma série trimestral da moeda.

Os 50% restantes dos movimentos do câmbio na frequência trimestral estão associados aos movimentos de curto prazo da conta financeira.

A piora da percepção de risco desde 2019, recentemente agravada pela deterioração fiscal em consequência das medidas de enfrentamento da epidemia e pelas incertezas ligadas ao orçamento de 2021, desfez o efeito gangorra. Em um período em que o câmbio, pelos movimentos dos termos de troca, deveria ter se valorizado 14%, desvalorizou-se 28%. Segundo nossa medida, o câmbio se encontra, frente ao equilíbrio de longo prazo, 26% mais fraco. Trata-se da posição mais depreciada desde o início da série em 1998.

Os ganhos dos termos de troca, isto é, a alta no mercado internacional da cotação das commodities, associada a um real mais fraco, resultou na inflação no IPA.

No relatório de inflação do Banco Central, divulgado há duas semanas, há estudo sobre o repasse do IPA no IPCA. O repasse nos alimentos tem sido pleno, mas a transmissão para outros itens, principalmente combustíveis, tem sido, provavelmente em função da redução da atividade econômica com a pandemia, reduzida.

Como afirmou o diretor do Banco Central, Fabio Kanczuk, em sua entrevista coletiva de divulgação do RI, o IPCA está “um pouco grávido do IPA”.

A dinâmica da inflação é o resultado de quatro forças: inércia, expectativas, câmbio e ociosidade. Se expectativas e câmbio apontarem para uma trajetória de elevação da inflação, a ociosidade não conseguirá segurar por muito tempo. Mesmo com salários contidos pelo desemprego, observaremos IPCA caminhando para 4% em 2021.

Quando esse momento chegar, o Banco Central se verá em difícil situação: com 100% do PIB de dívida pública de reduzido prazo médio de vencimento, talvez não seja possível segurar a inflação com subida de juros. Talvez o BC mande o seguinte recado à sociedade: “Ou vocês ajustam o fiscal e façam a gestão do conflito distributivo de outra forma ou teremos que aceitar a inflação”.

Quebrar o teto não será menos dolorido. Somente acelerará a reinflação da economia.

Temos que construir um orçamento de 2021 que restaure a solvência do Tesouro. Se o equilíbrio político demandar aumento de carga tributária, mesmo com os efeitos colaterais de redução da eficiência e do crescimento, que assim seja. Voltar às pedaladas fiscais não resolverá, como não resolveu em passado recente de triste memória.

*Samuel Pessôa é pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.


Samuel Pessôa: Imprimir dinheiro contra a crise?

A menos que abramos mão do controle inflacionário, não é possível monetizar o déficit

No fim do ano a dívida pública será dez pontos percentuais do PIB maior do que se pensava antes de a pandemia desembarcar por aqui. A elevação será consequência do aumento do déficit público, fruto da redução da arrecadação que advém da queda da economia e da elevação do gasto público, necessária para enfrentar a pandemia.

Várias colegas têm defendido que haja a monetização do déficit público. Isto é, que o Banco Central emita moeda e envie-a diretamente ao Tesouro para o financiamento das políticas públicas recentemente adotadas.

Essa medida somente funcionará se abandonarmos o regime de metas de inflação. E, se o fizermos, ela não será necessária.

O Tesouro Nacional, por meio de seu agente, o BC, tem o monopólio da emissão de moeda no território nacional.

O grande bônus é que sempre que o setor privado precisa de mais moeda o BC pode emitir a custo zero e ganhar dinheiro. Esse poder de compra criado do nada é uma renda do Tesouro, único acionista do BC, chamada de senhoriagem.

Mas tudo na vida tem ônus. Como o BC é o monopolista na criação de moeda (sendo rigoroso de base monetária), ele é responsável por operar a política monetária.

O BC opera a política monetária fixando a taxa de juros vigente no mercado em que as condições de crédito são criadas. Trata-se do mercado do caixa dos grandes bancos. É o mercado em que um banco empresta para outro banco ou que bancos emprestam ao BC, ou vice-versa.

Esse mercado é chamado de mercado de reservas bancárias, ou, como preferem os americanos, mercado de moedas.

Se alguém fixa o preço de algo, esse alguém tem que comprar toda a quantidade que os demais agentes estão dispostos a vender àquele preço. Caso contrário, o preço do bem que foi fixado irá cair. Ou seja, não será fixo.

Assim, sempre que à taxa Selic fixada pelo Copom recursos sobrem no caixa dos bancos —sobrem pois os bancos assim escolheram—, o BC emite dívida cujo juro é dado pela Selic e recompra as reservas sobrantes.

Ou seja, o ônus do BC de ser o monopolista na criação de moeda é que o custo da liquidez do mercado de reservas em excesso ao que os bancos gostariam de ter, à taxa de juros fixada pelo Copom, é do BC. Em última instância, é do Tesouro.

Se o BC imprimir reservas e transferi-las ao Tesouro e este as gastar, elas retornarão aos bancos. Estes, à taxa Selic fixada pelo Copom, decidirão emprestá-las ao BC, que terá que remunerá-las à taxa Selic. Se o BC não comprar esse excesso de liquidez, fará com que a taxa do mercado de reservas bancárias fique abaixo da Selic, estimulando um processo inflacionário.

Ou seja, o BC imprimir moeda e transferi-la ao Tesouro poderia ser um equilíbrio monetário se, a partir do normal funcionamento do regime de metas de inflação, a taxa Selic caísse a zero. Pois nesse caso a taxa de juros fixada pelo Copom para o mercado de reservas bancárias é exatamente a taxa de juros da moeda.

Os bancos estarão indiferentes entre carregar no seu caixa reserva bancária ou dívida.

Mas, se a taxa de juros do mercado de reservas bancárias for zero, o Tesouro conseguirá emitir títulos de curto prazo a juro zero e se financiar sem custo.

O problema não é a falta de dinheiro. Dinheiro se cria. O problema é o custo das reservas bancárias.

Enquanto pela operação do regime de metas de inflação esse custo for positivo, não é possível monetizar o déficit. A menos que abramos mão do controle inflacionário.

*Samuel Pessôa é pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.


Samuel Pessôa: Longo inverno

É bem possível que o mundo posterior à pandemia seja pior do que o FMI projeta

A maior diferença da crise atual  em relação à crise das hipotecas norte-americana, também conhecida por grande crise global (GCG) e que explodiu em setembro de 2008, é que a atual se iniciou no setor real da economia, enquanto a fonte da CGC foi o forte desequilíbrio nos bancos. Aquela foi uma crise financeira, fruto de regulação deficiente.

Assim, na crise atual os mercados financeiros foram muito menos atingidos do que em 2008. Por exemplo, a queda da Bolsa norte-americana entre janeiro de 2008 e março de 2009 foi de 52%. No evento atual, entre 12 de dezembro e 23 de março, a queda foi de 34%. Por aqui, a Bovespa caiu 60% em 2008, ante 47% no atual episódio.

Se olharmos o impacto sobre as taxas de juros, tanto no mercado de empréstimos entre bancos, também chamado de mercado de moedas, quanto no de títulos de dívida emitidos por empresas com pior qualidade de crédito, a alta no atual episódio foi muito menor do que na crise financeira global.

Apesar de o impacto no setor financeiro ter sido muito menor, aparentemente o impacto na economia real da atual crise é, na melhor das hipóteses, equivalente ao da crise anterior.

Na semana passada, o FMI divulgou suas novas projeções de crescimento econômico. A economia mundial deve recuar 3%, uma piora de cenário, em comparação ao que prevalecia antes do agravamento da crise, de 6,3 pontos percentuais.

No biênio 2008-2009 —lembremos que a crise estourou no fim de 2008—, o crescimento, com relação à tendência anterior, reduziu-se em 7 pontos percentuais.

Adicionalmente, hoje sabemos que o crescimento da economia no período logo anterior à crise de 2008 era insustentável. A crise, de certa forma, resultou dos desequilíbrios produzidos na década anterior.

Mesmo o cenário básico de FMI, de retração da economia mundial de 3% em 2020, com crescimento de 5,8% em 2021, pode ser muito otimista. Supõe que haverá devolução de boa parcela da perda do ano anterior.

Mas é bem possível que o mundo posterior à pandemia seja pior do que o FMI projeta. De fato, o próprio Fundo considerou outros três cenários, todos eles piores do que o cenário básico. Em todos eles a taxa de crescimento da economia ainda seria negativa em 2021.

Com a informação que temos agora, é muito difícil saber como será o desempenho da economia no período posterior à saída da política extrema de distanciamento social. Em algumas semanas, teremos as projeções para o desempenho da China no segundo trimestre, que poderá dar uma ideia.

Por aqui o Congresso Nacional tem trabalhado. A Câmara aprovou um pacote de ajuda aos estados e municípios. A ideia foi promover um seguro por seis meses em razão da queda de arrecadação de ICMS e de ISS que já ocorre.

Devido ao nosso federalismo truncado —os entes subnacionais não são integralmente responsáveis pelos seus atos, e, portanto, não são autorizados a contrair dívidas—, a União cobrirá parte das perdas.

Pela nova legislação, a União assegurará a receita nominal observada em 2019. O grande risco com o seguro é os estados serem estimulados a conceder desonerações, dado que a compensação será de acordo com a receita observada.

O projeto aprovado na Câmara está na direção correta, mas há espaço para aperfeiçoamento no Senado.

O professor da Universidade de Brasília José Luis Oreiro fez inúmeras críticas à minha coluna anterior em seu blog. Reagi a elas no Blog do Ibre.

Samuel Pessôa é pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.


Samuel Pessôa: A marcha da insensatez

Há a sensação de nau desgovernada; urge que os Poderes se entendam

O clássico da historiadora Barbara Tuchman “A Marcha da Insensatez” apresenta diversos episódios históricos em que governos agem como o escorpião que é carregado por um sapo na travessia de um rio.

O enfrentamento entre o Legislativo e o Executivo caminha para produzir grande número de vítimas. Estas serão os desempregados e os que sofrerão com a renda em queda que resultará da incapacidade de centralização das ações da Presidência da República e da irresponsabilidade do Congresso.

Na quarta-feira (11), o Congresso mandou uma conta para o Tesouro de R$ 20 bilhões sem apontar a fonte de receita ou aprovar medidas que reduzam o gasto em outras rubricas do Orçamento.

Vivemos uma dupla crise. Um choque externo brutal —apesar do presidente minimizar— da pandemia da Covid-19.

Por alguns meses as economias irão parar. Retomarão em seguida. Diferentemente da crise de 2008, esta não foi produzida pelo próprio funcionamento do sistema produtivo. Não deixará resíduo em um horizonte de uns dois anos se o sistema financeiro internacional prover a infraestrutura para que os contratos sejam cumpridos e os mercados consigam transpor o deserto.

Será necessária farta oferta de liquidez e a garantia de que dívidas —tanto as bancárias quanto as de mercado de capitais— sejam roladas no momento da crise.

Por aqui uma crise política crônica, devido ao pouco apreço do presidente à política, torna-se aguda com a infeliz declaração, hostil ao Congresso, do general Heleno, em 19 de fevereiro. Em seguida, na Terça-Feira de Carnaval, o presidente distribuiu para amigos convocação para uma manifestação pública contra o Congresso e o STF. O terceiro ato foi o Congresso, na quarta-feira, desfazer ¼ do que tinha feito com a reforma da Previdência.

Lembrei-me das pautas-bomba contra a presidente Dilma em 2015.

A falta de rumo elevou o juro do mercado interbancário, aquele de operações de empréstimos entre os bancos. Os papéis com vencimento em janeiro de 2022 chegaram a subir dois pontos percentuais. Note, a taxa básica de juros, a Selic, não subiu. A disfuncionalidade da política retirou do BC a capacidade de estimular a economia.

Para aqueles que defendem flexibilizar o teto dos gastos, fica a lição: quando a percepção de risco aperta, os juros sobem, independentemente do que o BC faça. A resultante de uma política fiscal mais expansionista, que desancore a política fiscal no longo prazo, é contracionista.

Retornando ao desastre de quarta-feira, além da irresponsabilidade do Congresso, houve total descoordenação do governo. A liderança do governo até a penúltima hora não encaminhara voto pela manutenção do veto presidencial.

Contribuiu também a cantilena de diversos economistas defendendo a flexibilização do teto do gasto. “Ora”, devem ter pensado os deputados, “se podemos flexibilizar, vamos desfazer parte da reforma da Previdência.”

Há a sensação de nau desgovernada. Urge que os Poderes se entendam. Que a medida de quarta seja judicializada e barrada no STF. O 5º parágrafo do artigo 195 da Constituição estabelece a inconstitucionalidade da medida.

Que haja a liberação de crédito suplementar e adequada coordenação entre a União, estados e municípios para enfrentarmos o grave problema de saúde pública que temos. Crédito suplementar para catástrofes não é restrito pelo teto dos gastos.

E, que daqui em diante, o presidente mude seu comportamento. Caso contrário, será o pato manco mais precoce de que se tem notícia.

*Samuel Pessôa, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.


Samuel Pessôa: Reformulação do FGTS

Fundo poderia ser instituído como o sistema público de previdência complementar

O governo acaba de enviar a MP 889, com três alterações no funcionamento do FGTS.

Cria uma nova modalidade de saque, conhecida por saque-aniversário. O trabalhador poderá retirar todo ano, no mês do aniversário, uma parcela —de 50% para saldo abaixo de R$ 500 até 5% e um adicional de R$ 2.400 para saldo acima de R$ 20 mil— e deixará de sacar quando houver demissão imotivada. Nesse caso, sacará a multa rescisória de 40% sobre o saldo da conta vinculada àquele contrato de trabalho.

A segunda alteração é poder transformar esses saques futuros em um empréstimo em consignação.
E a terceira é reverter aos trabalhadores todo o retorno dos investimentos do FGTS. Hoje, somente 50% são revertidos.

A MP cria uma forma adicional de saque e uma nova forma de empréstimo consignado. É positiva. Aumentará o valor de um contrato de trabalho formal ao trabalhador, reduzirá a rotatividade no trabalho e gerará fonte adicional de crédito.

A existência de um seguro específico para o desemprego reduz a importância do FGTS nessa função.

A flexibilização ao saque tem sido uma tendência recorrente nas últimas décadas. Basta checar as adições ao artigo 20º da lei 9.036, de 1990. Por exemplo, ser soropositivo para HIV, precisar colocar uma prótese óssea ou passar por alguma catástrofe natural, entre outras razões, permitem que o trabalhador levante os recursos do FGTS.

A flexibilização é fruto de uma particular economia política. As contas vinculadas são muito mal remuneradas. Sempre abaixo do mercado e, em alguns anos, com remuneração real negativa.

Os recursos do fundo são empregados para financiar obras de infraestrutura, principalmente saneamento básico e habitação popular.

O Congresso Nacional não consegue alterar a forma de remuneração do FGTS para garantir ao trabalhador uma remuneração justa, pois não consegue encontrar outra forma de financiar habitação popular e saneamento básico e, portanto, acaba criando possibilidades de saque.

Essa economia política tem reduzido muito o patrimônio do FGTS. E aí segue o lado ruim da atual MP e das anteriores.

O FGTS está perdendo o caráter de ser uma fonte de poupança do país. É importante termos uma fonte de poupança de longo prazo para o país, pois ela contribuirá para perenizar a queda dos juros a que temos assistido nos últimos anos.

Assim, a minha preferência seria uma reformulação do FGTS na direção contrária à da MP 889. O FGTS seria instituído como o sistema público de previdência complementar. Os recursos seriam acumulados, e a taxa de retorno seria a taxa dos títulos do Tesouro Nacional.

As possibilidades de saques seriam mínimas —essencialmente aquisição da casa própria, que também é uma forma de poupança para a velhice—, e os recursos iriam se acumulando.

Não haveria custo de gestão —pode-se usar a ferramenta do Tesouro Direto—, e o Tesouro teria uma fonte segura de financiamento, o que facilitaria em muito a gestão da dívida pública.

Todo o objetivo do ministro Paulo Guedes em criar um sistema previdenciário de capitalização seria satisfeito, e há boas razões para que criemos um sistema compulsório de previdência complementar.

De quebra, os juros da economia cairiam ainda mais, barateando as obras de infraestrutura e habitação popular.

Se a sociedade entende que deve subsidiar a habitação popular, o que faz todo o sentido, o subsídio deve sair do Orçamento do Tesouro, votado pelo Congresso, e não da poupança compulsória do trabalhador.

*Samuel Pessôa é pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.


Samuel Pessôa: A velha e a nova esquerda

A esquerda tradicional levanta-se da mesa e diz não; a nova faz o acordo e diz sim

O caso dos 19 deputados dissidentes do PDT e do PSB, com destaques para os jovens Tabata Amaral, pelo PDT de São Paulo, e Felipe Rigoni, do PSB do Espírito Santo, tem causado na imprensa.

O governo envia uma proposta de reforma da Previdência. A esquerda tem diversos reparos. A esquerda tem outra proposta. Governo, esquerda e, principalmente, o centrão negociam. Diversos pontos criticados pela esquerda são retirados por intervenção do centrão.

A esquerda tradicional levanta-se da mesa e diz não. A nova esquerda faz o acordo e diz sim.
Em 1985, o PT expulsou os deputados Airton Soares, Bete Mendes e José Eudes por votarem no Colégio Eleitoral na chapa Tancredo Neves e José Sarney contra Maluf, candidato dos militares.

Em 1994, o PT foi contra o Plano Real. Segundo Guido Mantega, em artigo nesta Folha em 16 de agosto de 1994, “essa estratégia neoliberal de controle da inflação, além de ser burra e ineficiente, é socialmente perversa”.

Nossa hiperinflação foi fruto do desequilíbrio fiscal dos estados após a redemocratização. Somente superamos a hiperinflação com a renegociação da dívida dos estados com a União, lei 9.496 de 1997, e com a LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal). O PT votou contra ambos.

O PT também votou contra o Fundef, instituído pela emenda constitucional nº 14, de setembro de 1996. O Fundef aumentou muito a eficiência do gasto com educação e permitiu a universalização do ensino fundamental.

Qual é a justificativa para um partido que se preocupa com a melhora da vida dos mais vulneráveis ser contra medidas que eliminam a inflação e melhoram a eficiência do gasto em educação, para ficar em apenas dois exemplos?

Há duas velhas esquerdas. A primeira aposta no quanto pior, melhor. Simplesmente porque apenas deseja a melhora do país se estiver no governo. Caso contrário, é melhor que o país se afunde ainda mais.

O segundo tipo de velha esquerda é a esquerda autoritária. É aquela esquerda que diz que fez a crítica do socialismo real, mas é mentira.

São autoritários. Têm alma autoritária. Acreditam que o sofrimento produzido pelo capitalismo justifica a violência. É essa esquerda que não consegue se desapegar de Cuba ou da Venezuela. Vergonhosamente se silencia diante do relatório contundente da ONU produzido por Michelle Bachelet, ex-presidenta do Chile.

Recentemente, o site de esquerda The Intercept Brasil publicou texto de Amanda Audi (bit.ly/2YRHAER) sobre Tabata. Era para ser um texto crítico à jovem deputada e aos movimentos cívicos que têm contribuído com a preparação de uma nova geração de políticos.

Tabata é contra a agenda de maior presença privada no ensino público, certamente é favorável à maior progressividade dos impostos e, após os inúmeros ajustes feitos, foi favorável à reforma da Previdência. Pelo bem do país.

A maior crítica do texto de Audi ao grupo do qual Tabata participa é que eles se preocupam “que a escola prepare os alunos para servir ao capitalismo”.

Para essa esquerda pobre, tacanha e mesquinha, um pobre que, em razão de uma boa educação, progride e tem elevada renda no setor privado serve ao capitalismo. Esse pensamento é intrinsecamente autoritário.

Temos a nova esquerda. E temos a velha esquerda. Esta ou é oportunista, jogando no quanto pior, melhor, para garantir seu emprego no aparelho do Estado, ou é a velha esquerda que não foi civilizada pela queda do muro.

Que venha a nova esquerda. A velha certamente morrerá de morte morrida.

*Samuel Pessôa é pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.


Samuel Pessôa: A reforma, os pobres e as corporações

Sem ajuste, teremos inflação, que é jogar o não ajuste sobre os mais pobres

Como tenho escrito neste espaço, o ajuste fiscal envolve dois tipos de gasto: itens associados ao contrato social da redemocratização —política de valorização do salário mínimo, ajustes no RGPS (Regime Geral de Previdência Social), no BPC (Benefício de Prestação Continuada) e no abono salarial, entre outros—; e itens associados aos grupos de pressão —ajustes nos RPPS (Regimes Próprios de Previdência Social) e subsídios em geral ao setor privado.

Evidentemente, quanto maiores forem os ajustes sobre as corporações e o setor privado, menores precisam ser os ajustes sobre os mais pobres.

Sem ajuste, teremos inflação, que é jogar o não ajuste sobre os mais pobres. Quem se lembra da hiperinflação da virada dos anos 1980 para os 1990 e de seus impactos sobre os mais pobres sabe do que estou falando.

Nossa experiência nas últimas décadas é que as corporações são mais fortes do que a população.

Vejamos como será no governo Bolsonaro.

No jornal Valor Econômico na terça-feira passada (19), o futuro líder da bancada ruralista, Alceu Moreira, do MDB do Rio Grande do Sul, argumentou ser necessário haver "proteção racional" aos mercados agropecuários, "diante dos gargalos em infraestrutura e do histórico de juros altos no país".

Aplicando a mesma lógica, o setor deveria pagar impostos elevadíssimos para compensar a vantagem do sol e da água o ano todo e do bom relevo do Centro-Oeste.

O argumento do deputado está errado. As vantagens e as desvantagens que cada atividade tem no Brasil são compensadas pelo câmbio, que é flutuante. O cambio flutuante se ajusta à competitividade média das atividades do país. Os juros mais elevados, os custos tributários e trabalhistas maiores e os maiores custos de logísticas são compensados pelo câmbio.

Não faz sentido a agropecuária ter privilégios sobre a indústria e os serviços. Todos os setores precisam dar a sua contribuição para o ajuste fiscal.

Na semana passada, escrevi que o déficit do RGPS urbano foi de R$ 195 bilhões em 2018. Meu leitor atento Ricardo Knudsen notou que esse valor aplica-se ao RGPS todo.

Se retirarmos as contribuições e os gastos do RGPS rural, o déficit reduz-se para R$ 95 bilhões. Se consideramos a perda de receita pela desoneração da folha, do Simples nacional, da desoneração das entidades filantrópicas e do programa de microempreendedor individual, o déficit em 2018 foi de R$ 42 bilhões.

O RGPS rural apresentou em 2018 déficit de R$ 114 bilhões. Se descontarmos a renúncia fiscal da exportação de bens rurais, o déficit cai para R$ 107 bilhões.

Como escrevi há duas semanas, discutir déficit é ocioso. Dado que gastamos 14,5% do PIB (Produto Interno Bruto) com benefícios previdenciários e assistenciais para a terceira idade, incluindo pensão por morte, e nossa carga tributária é de 32% do PIB, é sempre possível estabelecer na forma de lei vinculações de receitas que superem o gasto previdenciário e tornam o sistema superavitário.

O tema é se faz sentido uma sociedade com as nossas características destinar 14,5% do PIB a esse tipo de gasto.

Exercício que fiz com meu colega Carlos Eduardo Gonçalves exposto no blog do Ibre (goo.gl/eQLJRC) indica que gastamos sete pontos percentuais do PIB a mais com previdência do que a norma internacional.

Adicionalmente, mostramos no mesmo exercício que esse excesso de gasto previdenciário reduz a poupança doméstica em cinco pontos percentuais do PIB. Não por coincidência os juros são elevados por aqui.

*Samuel Pessôa é pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.


Samuel Pessôa: A Previdência em números

Entre 2016 e 2018, despesa, incluindo benefícios assistenciais, foi de 14,4% do PIB

O Congresso Nacional receberá nas próximas semanas a proposta de reforma da Previdência do governo de Jair Bolsonaro.

Uma correção: na coluna da semana passada, afirmei que o RGPS (Regime Geral de Previdência Social) urbano foi deficitário de 2002 até hoje. Não é verdade. De 2009 a 2015, foi superavitário. Agradeço ao leitor Ricardo Knudsen por apontar-me a incorreção.

Entre 2016 e 2018 esse déficit, mesmo incluindo na receita as renúncias fiscais, foi de, respectivamente, R$ 107 bilhões, R$ 139 bilhões e R$ 149 bilhões.

Em 2017, o RGPS pagou 30,3 milhões de benefícios, sendo 20,7 milhões para trabalhadores urbanos e 9,5 milhões para trabalhadores rurais. O gasto no ano foi de R$ 435 bilhões para os benefícios do sistema urbano e R$ 120 bilhões do sistema rural, totalizando R$ 555 bilhões. Esse gasto corresponde a 8,5% do PIB (Produto Interno Bruto).

Os RPPS (Regimes Próprios de Previdência Social) dos servidores civis e militares da União, estados e municípios custaram R$ 333 bilhões ou 5,1% do PIB.

Assim, chega-se a 13,6% do PIB quando somamos os dois sistemas previdenciários. Se adicionarmos os R$ 56 bilhões do BPC (Benefício de Prestação Continuada), de caráter assistencial, resulta
despesa total de 14,4% do PIB.

Se o Regime Geral inclui 30 milhões de pessoas, os Regimes Próprios atenderam, em 2017, 4 milhões de pessoas, sendo 1 milhão na União, 2,3 milhões nos estados e 662 mil nos municípios. Em geral, 30% dos benefícios são pagos para pensionistas.

O leitor pode encontrar essas e outras informações nos links goo.gl/YPxT1m e goo.gl/s47Vj2.

Vale lembrar algumas diretrizes. Primeiro, é importante haver alguma vantagem no critério de concessão do benefício do piso do sistema contributivo, em comparação ao benefício assistencial.

Uma segunda diretriz refere-se à diferenciação de gênero na idade mínima. O argumento é que as mulheres arcam com a maior parte dos custos da criação dos filhos, incluindo a gravidez e todo o período de amamentação, além da educação.

O erro desse argumento é que muitas mulheres não têm filhos e algumas têm mais filhos do que outras, além da maior expectativa de vida aos 65 anos.

Assim, o ideal é que a diferenciação de gênero considere o número efetivo de filhos de cada mulher e, para mulheres que não tiveram filhos, não deveria haver a diferenciação.

Uma possibilidade é reduzir os anos de contribuição requeridos das mulheres de acordo com o número de filhos.

Outra possibilidade, como defendeu o estudioso da educação João Batista Araujo e Oliveira em recente coluna no jornal O Estado de S. Paulo, é aumentar a licença-maternidade.

A terceira diretriz é a atual reforma manter o dispositivo que havia na anterior, de requerer idade mínima ao servidor que ingressou no sistema antes de 2003 para ser elegível ao princípio da integralidade e da paridade.

Finalmente, há o tema da necessidade de a idade mínima ser distinta em diferentes estados da Federação pois a expectativa de vida é menor nos estados mais pobres.

Em sua coluna de quarta feira da semana passada (13), meu colega Alexandre Schwartsman documentou que a expectativa de vida aos 65 anos não é distinta entre os estados.

Além disso, a idade em que as pessoas requerem o benefício é maior nos estados pobres do que nos estados ricos, pois estes concentram a concessão de benefícios por tempo de contribuição, enquanto aqueles, os benefício por idade.

A coluna deste domingo (17)  está chatíssima, mas é muito importante que toda a sociedade se engaje neste debate.

Samuel Pessôa é pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.