Luiz Werneck Vianna: Não há mal que sempre dure

Não dá para esconder que a democracia brasileira esteja sob alto risco, e não apenas por que se encontra ameaçada por um governo que faz do seu desmonte o seu objetivo estratégico, mas também por que uma parte de sua sociedade abandonou sua afeição por ela. Afinal, os governantes que aí estão foram eleitos em pleitos eleitorais livres, secundados pelos parlamentares mais toscos, despreparados e vorazes conhecidos em nossa longa história parlamentar, presentes em todas as casas de representação política. Também eles não caíram do céu, foram eleitos, e muitos deles com estrondosa votação. O retrato lúgubre que estampam não é filho do acaso e da má vontade do destino, mas das nossas ações e inações. Diante de nossos olhos a sociedade adoeceu, perdeu-se de si mesma, da sua história e melhores tradições.

Como isso pode acontecer aqui, justo no lugar que soube derrotar pela ação política bem concertada um regime autoritário que a afligiu por duas décadas, essa a questão que temos de sondar até as suas raízes a fim de encontrar remédio para os males que nos atormentam. Que se ronde a blasfêmia, inevitável no caso, por que foi de um partido nascido da vida sindical, lugar sagrado da esquerda, que teve início a difusão do vírus maldito que apartou a democracia política da democracia social, cerne da concepção da Carta de 88, destituindo a política do seu papel criador e pondo no seu lugar a esfera bruta dos interesses, deixando fora de foco o cidadão em nome dos apetites do consumidor – os automóveis, as viagens de avião, as comemorações da Força Sindical no 1º de maio com brindes e rifas aos participantes no lugar da evocação das lutas civis que tradicionalmente celebravam.

Principalmente o descaso com a organização da vida popular e a descrença no papel que uma cidadania ativa pode desempenhar nas democracias, uma vez que por cima de todos um poder tutelar agia em nome de todos, vindo a reforçar as tendências à fragmentação social que décadas de modernização autoritária tinham produzido. A questão social sob a administração do Estado vem à tona com pouca sustentação nos atores que deveriam ser os seus portadores naturais, orientada como estava para os fins políticos da reprodução do poder tutelar que se empenhava, como recurso de legitimação, na satisfação dos desejos de consumo das multidões.

Naquele contexto o que importava era a preservação das posições conquistadas no interior do Estado, pois era a partir dele que realizava o seu enlace com os movimentos sociais e setores da sociedade civil, aí incluídas atividades empresariais de todo gênero, movimento que mereceu ser designado como o Estado Novo do PT. Seus efeitos foram letais na medida em que expos as estruturas do Estado às ações de grupos de interesse que se valeram dessas relações promíscuas para a expansão dos seus negócios e atividades econômicas, terreno fértil à corrupção. Com este flanco aberto, escancarou-se a possibilidade para o capitalismo brasileiro de se livrar dos inúmeros obstáculos, sociais e institucionais, que obstavam sua plena realização. A chamada operação Lava Jato foi o cavalo de Troia que permitiu a entrada em cena das hostes que há tempos ansiavam por essa oportunidade.

Com o terreno da política desertificado, lastro deixado pela Lava-Jato, afetado em sua credibilidade o sistema da representação política, destruídas as escoras e referências que orientavam o sistema de crenças da sociedade, já enfraquecidas por anos de práticas refratárias a uma cidadania ativa por parte do PT, a cena pública tornou-se presa fácil do mundo dos interesses e de todos os apetites. Uma ralé de novo tipo, com extração nos setores das camadas médias, em busca da fama e da riqueza fácil, inebriadas pelo mito pós-moderno da personalidade, vislumbra na sociedade indefesa a sua hora e a sua vez e consegue postos importantes no sistema da representação política. Com a infiltração desses vândalos a obra da ainda inacabada civilização brasileira passa a sofrer graves ameaças.

Contudo, dessa história de ruinas permaneceram de pé as instituições edificadas no já longínquo 1988, ano em que celebrou sua Carta democrática, e por isso mesmo os bárbaros que a sitiam têm como lema a sua destruição. Seus defensores, com firmeza e sabedoria, têm sabido até aqui preservar esse último reduto da democracia brasileira, mas seu esforço solitário não é garantia de que poderão sem recursos externos sobreviver ao cerco a que estão expostas. A dificuldade para a efetivação desse movimento está na pandemia que nos assola, e que nos mantém confinados em defesa da vida. Há outros recursos, porém, que embaraçam as ações dos que tramam contra nossa democracia, um deles, nada irrelevante, provem do mundo ao redor.

As forças que nos rondam em nome da destruição da nossa obra coletiva também sabem calcular, e têm tudo a temer, na economia e na política, no cenário atual das coisas no mundo, caso prevaleçam impulsos em suas ações no sentido de apostar na barbárie que anima tantas lideranças suas. O Brasil não é uma ilha, e faz parte desde sua origem do sistema capitalista mundial, filho do Ocidente, sua formação nacional se forjou sob a influência das correntes de ideias que nos vinham da França, no Império, segundo a modelagem operada pelo Visconde do Uruguai, e, na República, dos EUA que inspirou em larga medida a sua primeira Constituição em 1891, obra em grande parte derivada da influência de Ruy Barbosa na sua redação.

Orbitamos desde aí, de Rio Branco a Nabuco e Osvaldo Aranha em torno desse último eixo, que agora se move em reação contrária a política de Donald Trump que desafia as concepções dos seus pais fundadores em nome do seu projeto de poder em antagonismo com o universalismo e ideais civilizatórios preponderantes ao longo da sua história republicana. Tal movimento, nos dias que correm, tendo como estopim a questão racial, ganhou as ruas, em que pese a pandemia que a todos atinge, em multitudinárias manifestações de jovens apoiadas pela opinião pública e de grandes personalidades do mundo da cultura e dos esportes, não lhe faltando sequer palavras de simpatia entre algumas de suas elites militares. Anuncia-se a possibilidade de mudança nas coisas do mundo.

A política dos governantes que aí estão se encontra desalinhada das tendências benfazejas que ora se afirmam em todos os cantos do planeta. Sob a pressão da pandemia em curso, a linguagem da cooperação se universaliza, com forte intensidade na dimensão da ciência onde se fazem presentes vigorosas denúncias do estado de coisas reinante no mundo, que adoece pelas desigualdades sociais, pela degradação da natureza e da vida em geral. Coube a nós viver essa quadra inclemente sob a condução de ideologias de hospício, hostilizados pelo bestiário de dirigentes que afrontam o mundo e o que há de melhor em nosso país. Isso que aí está não pode durar, não vai durar.

*Luiz Werneck Vianna, sociólogo, PUC-Rio.


Luiz Werneck Vianna: O Desencontro trágico entre a fortuna e o ator na experiência brasileira

Não é a primeira vez que temos a desventura de nos encontrar numa situação como esta que aí está. Com o Estado Novo de 1937 que se prolonga até 1945 tem início este ciclo infernal, que, com interrupções provocadas por movimentos democráticos – embora mesmo nesses momentos tenha permanecido de modo latente na vida institucional e política como se manifestou na tentativa do golpe militar para impedir a posse do presidente eleito JK. Inaugura-se outro ciclo com a intervenção militar de 1964, especialmente após a imposição do AI-5, em 1969, que derrogou o que havia de democrático na Carta de 1946. Mais uma vez por força da resistência da sociedade, em 1985 a democracia ganhou nova oportunidade, apesar de sua volta não ter importado ruptura com o regime autocrático que até então vigia sob a institucionalidade do AI-5. Como se sabe, o caminho adotado foi o da transição política que abriu caminho para uma assembleia nacional constituinte, restaurando-se as liberdades civis e públicas que o regime anterior tinha expurgado da política.

A Carta de 1988 teve a pretensão de sepultar as possibilidades de retorno do autoritarismo político afirmando uma forte adesão ao liberalismo e ao sistema da representação, e robustecendo de modo inédito o poder judicial por meio de novos institutos como o mandato de injunção, e com a recriação do papel do Ministério Público que será deslocado do eixo estatal, conforme antiga tradição, para o da sociedade civil, a quem foi confiado, entre outras, a missão de defesa da ordem jurídica e do regime democrático, figura inexistente no direito comparado

Com a ressalva do PT, já um importante partido, influente no sindicalismo e com a auréola portada por seus dirigentes de ter conduzido greves vitoriosas no regime militar, a nova Carta encontrou recepção positiva na sociedade. Estava aberta uma via real para a internalização da democracia política entre nós. As instituições eram propícias e o cenário internacional favorável, faltava a ação humana capaz de portar uma política que soubesse se aproveitar dos bons ventos da fortuna que a tinham levado a seus êxitos contra o regime militar. Vargas Llosa, nas primeiras páginas de Conversa na Catedral, clássico da literatura latino-americana, indaga, amargando a história do seu país, o Peru, quando foi que ele se ha hodido. No nosso caso talvez resposta a uma questão desse tipo esteja no momento em que se abre a conjuntura da primeira sucessão presidencial do novo regime democrático institucionalizado com a Carta de 88. Aqui o que faltou não foi a fortuna, que nos sorria, mas o ator que, com suas ações desastradas malbaratou as oportunidades de que dispunha.

Findo o governo de transição, que foi o de Sarney, estava aberta a primeira sucessão presidencial sob a égide da nova Constituição. É aí, nesse momento de importância capital que os atores políticos abandonam suas práticas de alianças tão bem-sucedidas na hora da resistência ao regime militar e dos trabalhos constituintes, particularmente entre a esquerda e os liberais, e passam a procurar caminhos solitários. Vale lembrar que o hoje extinto PCB apresentou à sucessão uma candidatura própria, refugando apoio à candidatura de Ulisses Guimarães, a maior liderança surgida nas lutas pela democratização do país, comportamento que se reiterou no PT. Selou-se, então, a fratura entre o campo do social e das forças políticas liberais, fatal para o transcurso do processo que se segue.

Deslocado o eixo da política de alianças, o quadro político se fragmenta e abre espaço para a passagem de cavaleiros da fortuna, com a vitória eleitoral de Collor, um político de Alagoas sem registro na história da resistência ao regime militar. Doravante estavam perdidos os fios de comunicação com a história dos movimentos e lideranças que resistiram ao regime autoritário, quando se obscurece a relevância do tema de um necessário aprofundamento das instituições da democracia política.

O governo Collor durou pouco, inclusive por falta de sustentação congressual – ele foi eleito por um pequeno partido –, atalhado por um impeachment com larga aceitação popular. Registre-se que tanto para sua eleição – a denúncia dos marajás da república – como para seu impedimento os temas dominantes foram os que se orientaram para os temas da corrupção de agentes estatais, A dissociação entre as agendas do tema do social e da democracia política, de armação complexa e altamente dependente do tirocínio dos atores políticos, produziu, então, o resultado nefasto da ocupação do campo da política pelas questões afetas à moralidade, terreno fértil para a demagogia e para as disputas estéreis da competição política esvaziada das questões substantivas atinentes aos rumos do país. Fechava-se a cortina para a grande política.

A época virtuosa do encontro entre a democracia política com os portadores da questão social ficara para trás com o país e suas estruturas econômicas e sociais ameaçadas por uma inflação crescente cuja escalada parecia não ter fim. O governo Itamar, que sucede ao de Collor, teve o mérito de procurar restaurar a política de alianças da oposição ao regime militar, embora não tenha contado com a participação do PT ( a deputada federal Luiza Erundina do PT que o apoiou foi punida por seu partido), lacuna que, no entanto, não o impediu de assentar fundamentos para a recuperação da economia e da estabilização político-institucional, e conduzir com sucesso sua sucessão presidencial com a candidatura de Fernando Henrique Cardoso.

Fernando Henrique tinha uma história significativa no movimento da resistência ao regime militar, exercendo a representação do estrato dos intelectuais, quando estabeleceu pontos de comunicação com as elites políticas aderentes ao liberalismo político e com o sindicalismo, a essa altura já liderado por Luiz Inácio da Silva, e construiu sua candidatura e campanha presidencial em aliança com um partido liberal, o PFL, que contava em seu histórico com vários políticos remanescentes do regime militar. O candidato foi lançado pelo PSDB, surgido poucos anos antes e de programa socialdemocrata, embora não viesse a contar em suas bases representação efetiva do meio sindical e do mundo do trabalho em geral, com a opção do PT de apresentar candidatura própria. A socialdemocracia à brasileira nasce, assim, ao contrário de sua inspiração europeia distante das classes subalternas e como uma construção de intelectuais.

Seu governo se pautou pelo exercício de uma forte intervenção modernizadora no campo da vida econômica, formulando e implementando com sucesso uma política de combate à inflação e de redefinição do papel do Estado na economia, cujos êxitos lhe asseguraram, com facilidade, como sabido, a sua reeleição.

A forma frágil em que nascera a socialdemocracia entre nós a condenara a uma morte prematura, e, assim, na sucessão seguinte abriu-se um caminho de oportunidade eleitoral para o PT, coroando o lento e progressivo acúmulo de forças políticas e eleitorais, sempre sob a liderança de Lula, que, em nome da questão social, se confrontara com todos os governos anteriores. A hora do social havia chegado. Sob este signo, o governo e as políticas de Estado deveriam agir no sentido de resgatar a imensa hipoteca social que pesava no país. A correção dos males herdados das nossas origens dependia de uma vontade política iluminada que soubesse intervir sobre a sociedade no sentido de transformá-la. Com estes objetivos, diante de uma sociedade conservadora, com suas elites senhoras dos cordéis da vida econômica e detentoras do controle dos principais meios de comunicação – o PT, ao contrário de Vargas, que favoreceu a criação de um jornal de massas, a Última Hora, não criou o seu. Seu enfrentamento com as elites seria confiado, fundamentalmente, aos movimentos sociais, dos tradicionais aos novos, estes últimos, em geral, saídos dos emergentes movimentos identitários.

Designei em artigo tal processo como o Estado Novo do PT, pretendendo qualificar a mutação que este Partido conhecia em sua história de críticas ao Estado e de valorização da sociedade civil da qual passa a se descurar. Essa tendência de afirmou ao longo do tempo, e, como se sabe, importou em perda da autonomia dos movimentos e da sua capacidade de mobilização. Dilma Roussef, que sucede a Lula na sucessão presidencial, quadro político formada no interior do Estado, sem história relevante nos movimentos sociais, exaspera o papel do Estado na condução da economia, vindo a afrontar as forças de mercado com que Lula sempre soube negociar. Apeada por um impeachment de fundamentos obscuros, o governo Temer que a sucede se aplica no favorecimento da agenda portada pelas forças de mercado. A agenda do social sem as escoras estatais que lhe serviam de sustentação e forças próprias que a defendesse, vai-se tornar presa fácil, como ficou claramente demonstrado com a aprovação congressual da reforma trabalhista.

De outra parte, a operação Lava Jato em nome da luta contra a corrupção – agenda testada com êxito contra Vargas nos anos 1950 – levava ao pelourinho a classe política, rebaixando a dimensão da política a uma atividade escusa. O sebastianismo, presença nunca de todo erradicada em nossa sociedade, retorna com força no culto endossado por amplos círculos sociais, inclusive intelectuais, a juízes e promotores públicos à testa da Lava Jato, que se auto investem no papel de refundar a história do país. Nesse clima pouco propício à democracia política são convocadas eleições gerais. Tragicamente, mais uma vez, a esquerda se recusa a uma composição com as forças do centro político, aferrada a uma candidatura Lula, a essa altura alvo preferencial da Lava Jato, que condenado em processo de provas controversas, não poderá concorrer.

Diante do deserto a que se tinha reduzido a política, a competição eleitoral se tornou pasto fácil a todos apetites, trazendo à tona personagens obscuros e de história pregressa sem registro na vida política. Esta foi a hora do empreendedorismo das religiões pentecostais, da expressividade em estado bruto do ressentimento social dos emergentes das novas camadas médias, e da demagogia dos salvadores da pátria, que encontrou representação em um parlamentar extraído das fileiras do baixo clero, um capitão sem brilho reformado do Exército.

Essa mixórdia, a que se acrescentava a defesa dos valores tradicionais da família próprios ao patriarcalismo dominante no país pela movimentação crescente dos movimentos identitários de gênero, camuflava à perfeição o real sentido da operação política de grande envergadura orientada ao alinhamento do Estado aos interesses dos grandes interesses capitalistas das finanças e do mundo agrário, cuja representação será confiada ao ministro Paulo Guedes. No plano da cultura e dos valores sociais essa política visava erradicar o difuso sentimento anticapitalista socialmente vigente, natural numa sociedade cuja economia floresceu a partir do Estado e sempre dependente de suas iniciativas.

Pretendeu-se com essa ampla e confusa orientação fazer a roda da história girar para trás, alinhando-se a política brasileira aos objetivos do presidente Trump e das resistências ao processo de globalização, potencialmente ameaçador à hegemonia americana nos negócios do mundo. Na verdade, o que se pode qualificar como a política de Trump não passa de uma tentativa de deter os processos que estão em curso no mundo e que sinalizam em favor da imposição de limites ao capitalismo e ao exercício da hegemonia americana na política mundial, cujos efeitos perversos já se fazem sentir na atual corrida armamentista, na questão ambiental e nos riscos de desaparição de espécimes vitais para a reprodução da vida humana.

Não se pode ocultar que se vive em tempo sombrio. Mas há o outro da lua, até mesmo aqui. Nos EEUU o partido Democrático se apresta em indicar um candidato que se oponha frontalmente a Trump, os resultados das recentes eleições europeias testemunham a existência de coalizões exitosas entre o campo liberal-democrático e a esquerda. A China vem-se tornando capaz, inclusive no campo da economia, de rivalizar com a hegemonia americana nos negócios do mundo. O cenário atual não está congelado e , por toda parte, há forças políticas e sociais motivadas para alterá-lo. Aqui, já se pode perceber que a composição do governo atual não dá boa química, como se pode observar, entre tantos episódios, incluídos alguns afetos à corporação militar, sobretudo na participação do governo no pacto recentemente celebrado entre a União europeia e o Mercosul, na contramão da política antiglobalista vigente na retórica do discurso governamental. e que nos levou por gravidade a aderir ao pacto de Paris sobre a questão ambiental, em mais um evidente descompasso com a política levada a efeito até aqui. Importa ainda registrar o papel do Poder Legislativo em defesa da sua autonomia contra o Fuhrerprinzip que as hostes governamentais estão animadas a impor, derrogando a Constituição se for preciso, em óbvio retorno à constitucionalidade do Estado Novo de 1937.

O ator em política pode muito, mas, aprendemos com Maquiavel, que ele não pode conformar o mundo dos fatos à sua vontade. Somos filhos do longo processo de modernização burguesa autoritária brasileira. Nada que ocorre hoje é estranho à nossa experiência, e nem sempre estivemos do lado dos perdedores, pois contamos com nossos momentos de vitória, embora, como se constata agora, não tenhamos sabido extrair proveito delas. Esta é uma hora de consultá-la. Em boa parte ela esta narrada no baú de ossos da reflexão acumulada na rica produção da nossa sociologia, que, reaberto, deve nos indicar os bons remédios para os males atuais que nos afligem.

(Texto apresentado ao 19º Congresso da SBS)


Luiz Werneck Vianna: Viva o povo brasileiro

Nossos heróis empreendedores não vieram do mercado, salvo honrosas exceções

(Em memória de João Ubaldo Ribeiro)

Sob cerrada pancadaria o governo Bolsonaro se lança com as velas pandas em alto-mar em busca do Santo Graal, antes perseguido sem êxito por alguns, sempre na crença de que deslocar o leito da nossa História do seu curso de 500 anos é matéria afeta apenas a uma acendrada vontade política que não recue diante de circunstâncias adversas. Trata-se, sob o governo de Bolsonaro, de um plano de guerra sem quartel com a intenção de remover obstáculos à sua imposição, sejam políticos, econômicos ou culturais. Tais obstáculos estariam dispostos em camadas, acumulados ao longo de gerações, e se antes funcionais como a ação indutora da economia pela política, estariam agora travando o desenvolvimento do capitalismo, cujas forças de mercado estariam a exigir plena liberdade de movimentação. A declaração do ministro da Economia, sr. Paulo Guedes, nesse encontro de Washington, ao identificar no condestável do regime, Olavo de Carvalho, o chefe de uma revolução que estaria em curso não poderia ser mais esclarecedora.

Para o condestável do governo Bolsonaro, as bêtes noires a serem removidas para o sucesso da revolução em marcha seriam as vetustas corporações que conformaram o corpo e a alma da História do País, a saber, os militares, os juízes, o corpo diplomático do Itamaraty e a instituição da Igreja Católica; cada qual teria repassado em boa medida seus valores a um fundo que teria como que constituído o cerne da nacionalidade, em comum a todos eles, embora com pesos variados, a distância dos valores capitalistas. O diagnóstico não é original, pois vem rondando a tópica do pensamento social brasileiro, ao menos, talvez, de Tavares Bastos, um americanista e feroz anti-ibérico de notável talento, que defendia, entre outros temas, a erradicação do catolicismo em favor da doutrinação protestante, segundo ele, mais propícia a uma cultura de liberdades e de um regime de livre-iniciativa. Notar que Tavares Bastos, cultor da obra de Tocqueville, era como ele um cultor da liberdade e jamais, em sua curta e prolífica vida, se associou a projetos autoritários em defesa de suas posições doutrinárias.

Como se sabe, o seu grande antagonista na publicística brasileira foi Oliveira Vianna, um cultor da obra do visconde de Uruguai, discípulo do estadista Guizot, especialista em Direito Administrativo e ministro de Estado sob o regime da Restauração na França, das primeiras décadas do século 19. Nas pegadas de Guizot e do visconde de Uruguai, Oliveira Vianna mobilizou sua crítica ao regime da Primeira República em torno de dois grandes eixos: a crítica da descentralização – tema maior de Tavares Bastos, que lhe dedicou seu importante ensaio A Província – e do idealismo constitucional na forma em que foi arquitetada a primeira Constituição republicana, em 1891, sob a inspiração de Ruy Barbosa.

A Revolução de 30 atestaria o fracasso da experiência constitucional anterior, com o retorno às políticas de centralização administrativa, herdadas do Império, e a partir dela o Estado passa a exercer de modelagem da sociedade civil por meio não só da legislação, como de práticas administrativas. A modernização do País torna-se o eixo orientador das ações estatais; os militares fornecem quadros qualificados e de suas lideranças são selecionados muitos dirigentes das empresas estatais que então são criadas para o esforço da industrialização, são recrutados do seu meio; não se pode falar da Petrobrás, talvez a mais estratégica das estatais, sem o papel decisivo da corporação militar na sua criação. No desbravamento do hinterland, com que se começou a incorporação do oeste ao processo de modernização capitalista, somente concluído no recente regime militar com as estradas que abriram os sertões à ocupação do que viria a se tornar o agronegócio e a pecuária de hoje, essas foram obras que contaram com sua participação, inclusive na política de colonização levada a efeito naquela região, conforme registra a bibliografia especializada.

Tal história de construção do capitalismo brasileiro, que conheceu momentos épicos, como, entre outros, as jornadas do marechal Rondon sertão adentro e a construção de Brasília, não conheceu Henry Ford e Nelson Rockefeller, que aqui não encontrariam território fácil para prosperarem. Nossos heróis empreendedores não vieram do mercado, salvo honrosas exceções, mas de agentes do Estado, como sanitaristas, engenheiros e militares, não se podendo omitir os cientistas e técnicos que criaram a Embraer e a Embrapa. Nesse sentido, é quase assustador que nosso ministro da Economia, que jamais produziu um prego, ouça sem protestar declarações inóspitas à rica História do País de um ideólogo capaz de subir nas tamancas e chamar de idiota um general do Exército Brasileiro, aliás, atual vice-presidente da República.

Outra peça forte de sustentação da tradição brasileira é a sua magistratura, cuja história está bem descrita pelo historiador José Murilo de Carvalho em A Construção da Ordem. A Regência, com sua política de descentralização, tinha exposto o País a rebeliões que ameaçavam a unidade territorial, objetivo estratégico do Estado imperial, que tinha braços curtos, na caracterização do visconde de Uruguai, sem ter meios de alcançar os longínquos rincões, confiados aos poderosos locais, que ignoravam as políticas e as leis do poder central, favorecendo a emergência do caudilhismo como na América hispânica, perigo maior a ser evitado. O remédio heroico para esses males foi a criação de uma magistratura de Estado, desvinculada dos poderes locais, que agora passariam a conhecer o braço longo do Estado.

O enraizamento do Judiciário aprofundou-se na vida social com a modernização que nos trouxeram, depois da Revolução de 30, a Justiça do Trabalho e a Justiça Eleitoral, ambas hoje inerradicáveis, pelas nossas circunstâncias, do nosso tecido institucional.

Por fim a Igreja Católica, mas essa tem 2 mil anos, é uma pedra que não se remove. E não cabe do bico do ideólogo.


Luiz Werneck Vianna: Impasses da hora presente

Não se pode ocultar que se vive tempo sombrio, mas há o outro lado da Lua, até mesmo aqui

Fazer a roda da História girar para trás não é um exercício fácil, mas é esse o movimento tentado aqui e alhures. No cenário europeu com o Brexit do Reino Unido, nos EUA com o trumpismo, que recusa o fenômeno da globalização, dos grandes movimentos migratórios e da agenda ambiental, e em nuestra America, com o Brasil que refuga não só a história de construção da sua soberania como nação para se atrelar à política e aos objetivos do poderoso país do norte do nosso continente, como também conquistas civilizatórias na agenda comportamental, tais como na emergente questão feminina, que afeta tanto o mundo do trabalho como variadas dimensões da vida social, sujeitando-as a um nefasto patriarcalismo, uma das raízes do nosso autoritarismo político.

Esse movimento em marcha à ré, embora sua magnitude atual, não conta com bases sociais capazes de manter sua sustentação, uma vez que ele é mais uma construção de ideólogos e políticos que identificam no estado de coisas no mundo sinais de uma mudança de época que erodem a sua forma de domínio e suas fontes de reprodução. À margem do plano da consciência, contudo, vive-se uma mutação nas camadas mais fundas das estruturas sociais que não tem como ser revertida pelos esforços da política do presidente norte-americano, mesmo com os recursos de que dispõe.

O labirinto sem saída do Brexit testemunha a dificuldade que essa via retrô tem encontrado, assim como os embaraços que o próprio Donald Trump encontra em seu país para a edificação do muro com que pretende barrar o fluxo migratório dos latinos em seu território, principalmente em razão da resistência parlamentar a esse projeto xenófobo, na contramão de suas instituições democráticas. Na verdade, o que se pode qualificar como a política de Trump não passa de uma tentativa de deter os processos que estão em curso no mundo e sinalizam no sentido de impor limites, como na questão ambiental, à expansão de um capitalismo sem freios cujos efeitos perversos já se fazem sentir no clima e nos riscos de desaparição de espécimes vitais para a reprodução da vida humana.

Não por acaso, a ONU, instituição que alerta para a gravidade desses riscos e atua para conter os perigos a que todos estamos expostos, tornou-se um dos alvos principais do trumpismo, que, em nome de um nacionalismo anacrônico e de uma crença igualmente anacrônica na panaceia de que o bem-estar social virá da expansão das forças produtivas materiais do seu país, opera no sentido da corrosão da sua legitimidade. Mas o cenário de Trump não é de céu de brigadeiro nem internamente, onde conhece uma renhida oposição, e tampouco no plano externo, quando se defronta com rivais do porte da Rússia e seu poderoso arsenal bélico e da emergente China, mais os aliados de ambos, que não são poucos – nada, entretanto, que comprometa a hegemonia americana nos negócios do mundo, apenas a expõe a maior competição.

Tal contexto, longe de apontar para perigos que reclamem guinadas na posição do País em suas relações internacionais, se apresenta, ao contrário, como uma janela de oportunidades para sua afirmação na economia do mundo, tal como ocorreu nos anos 1930, quando soube aproveitar-se das disputas geopolíticas entre as grandes potências da época para implantar as bases da moderna industrialização, com a criação em Volta Redonda do nosso parque siderúrgico. Nesse sentido, um alinhamento automático do País aos Estados Unidos, como certos círculos oficiais alardeiam em nome de um espírito de cruzada em favor da defesa de um Ocidente de fantasia, desserve aos interesses nacionais.

A agenda comportamental recessiva, inspirada por um cediço fundamentalismo religioso, uma das fontes principais da votação que elegeu Jair Bolsonaro, aplica-se no mesmo movimento de girar a roda da História para trás, não só na questão feminina, como na vida privada em geral, com ênfase em simplórias concepções sobre a complexa sexualidade humana, denunciadas em voto histórico proferido pelo ministro Celso de Mello em julgamento recente sobre o tema no Supremo Tribunal Federal. Tais esforços, por mais ingentes que sejam, não têm o condão de devolver as mulheres à sua condição de subordinação na ordem patriarcal brasileira de outrora, minada, entre outras e ponderáveis razões, por um mercado de trabalho que as incorpora massivamente, assim como as exigências crescentes desde a Ilustração por autonomia pessoal de homens e mulheres. Ideais por autonomia que ao longo do tempo como que se incorporaram ao DNA da nossa espécie, o que a faz repelir, na construção da personalidade de cada qual, interferências do Estado e das religiões.

Não se pode ocultar que se vive tempo sombrio e que a atual corrida armamentista traz maus presságios. Mas há o outro lado da Lua, até mesmo aqui. O atual governo, em sua composição heteróclita, embora contenha em si um componente marcadamente ideológico, de raiz metafísica, exemplar no chanceler Ernesto Araújo, que desafia abertamente as tradições da política externa brasileira em suas concepções de soberania – vide notável artigo de Celso Lafer neste espaço –, admite outras presenças com distinta formatação histórica e diversas concepções do mundo, entre os quais os personagens do mercado e da corporação militar, esta quantitativamente a mais expressiva.

Essa mistura não dá boa química e será testada severamente, entre outras questões, na da Venezuela e das nossas relações com os países do Oriente Médio, clientes privilegiados do agronegócio, quando o mundo bruto dos interesses será confrontado com os da pura ideologia. Os impasses que daí surgirem vão nos defrontar com uma encruzilhada: uma via nos levará a uma ruptura radical com nossa História e nossas tradições de nação soberana, a outra, a retomar o seu leito, em novas circunstâncias, certamente mais complexas. O articulista aposta nesta última.


Luiz Werneck Vianna: As ondas grandes e a oposição

O horizonte que agora se entrevê é de céu de brigadeiro para o início do novo governo

Não será a primeira vez, mas a terceira, que nos deixamos enredar na trama sinistra do que vem por aí. E, pior, sempre por nossos erros, pela desconsideração do País real, conservador a tal ponto que permitiu que sua quasímoda estrutura fundiária, herdada do período colonial, não só encontrasse sobrevivência, mas se convertesse, com a emergência do agronegócio, num dos esteios do processo de modernização burguesa ainda em curso, caso clássico de passagem para o capitalismo pela via prussiana de desenvolvimento capitalista e seus efeitos antidemocráticos, tema bem estudado por grandes autores como Barrington Moore e Charles Tilly, entre tantos outros. Estão aí a sua robusta bancada parlamentar e sua presença em postos estratégicos do novo governo.

As anteriores, de 1937 a 1945 e de 1964 a 1985, foram longevas, e em ambas a preservação da estrutura agrária cumpriu papel relevante: sob o regime de Vargas excluiu-se o trabalhador do campo da legislação social, reservada apenas aos trabalhadores urbanos; e no regime militar, por meio de uma generosa abertura de créditos para proprietários selecionados politicamente e de uma política de colonização que lhes concedessem acesso a mercados, convertendo-os em capitalistas modernos, história bem descrita e analisada em tese de doutoramento por Rafael Assunção de Abreu em A boa sociedade: história sobre o processo de colonização no norte de Mato Grosso durante a ditadura militar (Iuperj, 2015).

O legislador constituinte teve consciência da necessidade de democratizar a estrutura fundiária do País, mas seus esforços foram barrados por intensa mobilização das nossas elites junkers, que se arregimentaram, até mesmo em grupos armados, na União Democrática Ruralista (UDR), obstando uma via de reforma. Uma de suas principais lideranças de então, Ronaldo Caiado, antes senador, foi agora eleito governador de Goiás. A democratização do País teria de conviver com esse pesado lastro que lhe vinha do período colonial, e se os grandes proprietários de terra encontravam oportunidades de converter seus antigos papéis tradicionais em modernos no emergente capitalismo brasileiro, a massa dos trabalhadores da terra seria condenada à situação de retirante sem eira nem beira, mão de obra barata para as indústrias e os serviços dos centros urbanos, dependentes em sua sobrevivência dos ciclos expansivos da economia.

A herança da escravidão e a da estrutura a agrária colonial estão, como notório, na raiz da abissal desigualdade social brasileira, diagnosticada desde o Império por grandes intelectuais liberais, como Tavares Bastos, André Rebouças e Joaquim Nabuco. Na esteira dos movimentos sociais que se mobilizaram em torno do processo constituinte, o tema da igualdade encontrou vocalização e sustentação nos partidos de perfil social-democrata que então se organizaram, o PSDB e o PT, mais neste do que naquele, embora ainda sem o vigor necessário para enfrentar o tamanho do desafio que tinham pela frente.

Ademais, o PT, o mais vocacionado para interpelar os movimentos sociais, se na prática seguia o roteiro de uma política social-democrata, era refratário a assumir identidade desse tipo. Aos poucos, como se viu, sua política eleitoral se desalinhou do centro político e de suas inspirações originais de autonomia da vida associativa diante do Estado, reeditando em boa parte as políticas prevalecentes na era Vargas. Cooptadas pelos aparelhos estatais, as organizações sociais dos seres subalternos perderam vigor e capacidade de mobilização e, ao menos por ora, encontram-se sem capacidade de reação.

A agenda do novo governo, de confessada profissão de fé no neoliberalismo de modelo chileno de Pinochet, encaminha-se sem rebuços para a remoção do que há de inspiração em nossas instituições, principalmente na Carta de 88, da social-democracia europeia, tendo pela frente um deserto de vida sindical e associativa, e um Supremo Tribunal Federal esvaziado do carisma que a sociedade sempre reconheceu nele pelos conflitos fratricidas que corroem sua legitimidade, pela ação de alguns dos seus integrantes. A profecia de que para silenciá-lo basta um cabo e um soldado, antes anedótica, já conta com possibilidades de se autocumprir.

Diante desse cenário, embora a composição dos quadros governamentais revele opções erráticas que prometem ser fontes de problemas futuros, além das óbvias dificuldades para um governo que pretende realizar reformas dependentes de uma sólida base congressual com que não conta, o horizonte que agora se entrevê é de céu de brigadeiro para o início do seu mandato. No mais, as forças sociais e políticas que já se opõem a ele, esfaceladas e desarvoradas como se encontram, não devem, ao menos de imediato, significar obstáculos efetivos para a realização dos seus propósitos, e com todas as devidas vênias, não será um centro radical, esse espécime que não se vê desde a Revolução Francesa sob o consulado de Napoleão Bonaparte, que fará as vezes de uma oposição robusta.

Uma imagem trazida dos atletas do surf que praticam sua modalidade em ondas grandes talvez seja inspiradora para a oposição. Ondas grandes em geral vêm em série, um desequilíbrio do atleta que nelas se aventura pode ser-lhe fatal, em caldos sucessivos que não lhe permitam a respiração, mantendo-o preso ao remoinho das águas que o impeçam de voltar à superfície. Em cuidado com esses riscos, seus praticantes fazem exercícios de apneia, com que se preparam para o pior em suas evoluções.

Isso que aí está, aqui e alhures, é, sem dúvida, uma Praia da Nazaré com suas medonhas ondas grandes. Não se vai enfrentá-las sem treinamento adequado e sem lideranças de tirocínio comprovado, senão o caldo é certo, como o do AI-5, de infausta memória, há 50 anos. As lideranças se farão no caminho. E o caminho, adverte o poeta, se faz ao andar.


Luiz Werneck Vianna: Bye bye, Brasil?

Os brasileiros não vão se despedir de si, apenas dizem um até breve

Bye bye, Brasil, querem nos embarcar para uma terra nova – por ora, está difícil de evitar – sem reinações de Narizinho, sem Jubiabá, sem um catolicismo gordo e compassivo, sem o culto da cordialidade, sem o jagunço do Euclides da Cunha e os retirantes de Graciliano, o abolicionismo do Nabuco, sem Gilberto Freyre, sem a Coluna Prestes, até sem a Petrobrás e o Banco do Brasil, sair assim, com as mãos abanando e as cabeças vazias. O embarque deve ser imediato, para que nós, que mal conhecemos o liberalismo, num país onde jamais o capitalismo foi uma ideia popular, passemos direto ao neoliberalismo e ao culto da teologia da prosperidade, glória a Deus.

Cirurgia de tal envergadura não é obra solitária, ela foi concebida durante décadas com argumentos vindos de vários setores da vida social, inclusive do PT, que desde suas origens investiu contra a tradição republicana brasileira e o centro político que a encarnava, tal como no episódio famoso, ocorrido em pleno regime militar, em que sua principal liderança declarou que o principal inimigo das classes trabalhadoras era a CLT, e não o AI-5, vindo a sustentar um sindicalismo de resultados em oposição às antigas lideranças sindicais, em boa parte tradicionalmente associadas ao centro político. Em outro momento, com Lula candidato em segundo turno à sucessão presidencial vencida por Collor, seu partido recusou a participação em seu palanque de Ulysses Guimarães, um dos grandes próceres do nosso liberalismo político, como antes declinara assinar a Carta de 88, obra, no fundamental, do centro político, sob a inspiração desse mesmo Ulysses, que a apresentou ao mundo com palavras memoráveis.

A desconstrução do centro político contou com a ação de outros personagens, como setores das elites originárias da dimensão do mercado, desde sempre, tal como no caso da sua acirrada oposição, nos anos 1930, à legislação social, refratária à regulação pelo direito da vida social e ao embrião de social-democracia admitido pela Carta de 88. E mais recentemente, pela ação do Ministério Público, que interpretou em chave salvacionista a luta justa e necessária contra a corrupção sem atentar para as suas consequências e sem discriminar alhos de bugalhos, comportando-se como um macaco solto numa loja de louças, com o que levou à lona a sua representação política.

Estamos em pleno mar, navegando com mapas incertos e pilotagem inexperiente, ela própria sem saber para onde nos quer levar. Os quadros econômicos selecionados pelo governante eleito, os principais formados na ortodoxia da Escola de Chicago, com seus compromissos conceituais e práticos com os processos de globalização, inarredáveis na medida em que correspondem a movimentos seculares das coisas pertinentes à economia mundo, ao menos desde as grandes navegações empreendidas pelo Ocidente – nossa Ibéria à frente –, em suas cabines de comando já se encontram contestados pelo trumpismo do futuro chanceler Ernesto Araújo. A bússola deve estar apontada para qual destino: o da globalização ou o da denúncia do globalismo?

Ruma-se para qual direção, a da autarquia e a do nacionalismo (isso com a turma do Paulo Guedes?), que, na linguagem de Trump, significa America first, atrelando nossa pobre carroça aos objetivos imperiais do presidente americano, que se deixou embair pela anacrônica guerra de civilizações ideada por Samuel Huntington?

Logo nós, que não viemos da matriz anglo-saxônica, mas da ibérica, e somos da família dos bandeirantes, e não da dos pioneiros, para lembrar as antigas lições de Viana Moog; nós, que seguimos a estrada universal em direito do sistema da civil law, esta, sim, entranhada na História do Ocidente, ao contrário do sistema da common law, que Hegel, por exemplo, não reconhecia como filho da razão, e sim do casuísmo de uma cultura singular, sem protagonismo, portanto, na marcha do espírito com que a criatura buscava seu encontro com seu Criador. O Ocidente é uma criação europeia e é aí que nós, os americanos, como reconheceram os fundadores da grande República do Norte, cultores dos autores do Iluminismo nos Federalist Papers, estamos instalados, não se podendo omitir, no caso brasileiro, a criação do seu Estado pelo herdeiro de uma dinastia europeia.

A metafísica rústica dos ideólogos do trumpismo, como o célebre personagem de Voltaire, ignora a sociologia do risco, tão bem estudada pelo sociólogo Ulrich Beck, na crença ingênua de que tudo no mundo se encaminha no sentido da sua melhor solução. Nosso planeta não conheceria uma crise ambiental, em que pesem os alarmes emitidos pela comunidade dos cientistas, inclusive da Nasa, uma agência americana de indiscutida legitimidade científica, acerca dos dados que se acumulam sobre os perigos do aquecimento global. A crer no que enuncia uma parte dos nossos futuros governantes, o desmatamento da Amazônia em nome de uma política expansiva das fronteiras do nosso capitalismo para o agronegócio e a mineração não importaria em riscos e sua denúncia não passaria de fabulações de intelectuais desavisados.

Não se deve chorar o leite derramado. O lado vencedor na sucessão presidencial foi esse que aí está. A oposição a ele não tem por que se precipitar. O mundo gira e a Lusitana roda. Por quanto tempo ainda haverá Donald Trump? E os militares, mais uma vez no proscênio, terão perdido a memória de suas grandes personalidades do passado, dos que lutaram em torno da bandeira do petróleo é nosso, do marechal Rondon, dos pracinhas que em campos de guerra na Itália enfrentaram com bravura o fascismo, das virtudes sem mácula do marechal Lott? E os seres subalternos, até quando suportarão o capitalismo sans phrase, em bruto e sem amortecedores, que ameaça vir por aí?

Os brasileiros não vão se despedir de si, apenas dizem um até breve.


Luiz Werneck Vianna: A hora dos intelectuais

Caem os véus e já se divisa a situação de risco a que seremos submetidos

O martelo está batido. Começamos uma nova história sem uma ideia na cabeça, condenados em meio às trevas a tatear em busca de um caminho para uma sociedade que se perdeu de si mesma, do seu passado e de suas melhores tradições, tanto nas elites como nos setores subalternos. É hora de recolher os cacos, identificar as raízes dos nossos erros, da autocrítica impiedosa quanto aos rumos equívocos em que nos deixamos enredar e ameaçam pôr sob risco nossas conquistas democráticas. Trata-se de uma derrota política levada a efeito no campo do processo eleitoral, terreno que sempre identificamos como propício ao avanço dos temas sociais e das lutas pela igualdade, e cuja expressão quantitativa ainda mais denuncia a sua gravidade e o alcance de suas repercussões.

Mas com o erro também se aprende e não são poucas as lições que essa miserável sucessão presidencial deixa como legado para os que recusam que o veneno do que há de mais anacrônico no passado volte a assumir as rédeas do nosso futuro, como nesse retorno patético ao anticomunismo do presidente eleito, que, na verdade, visa a atingir a nossa Constituição. Com efeito, fora os artifícios de mão usados na campanha vitoriosa de Bolsonaro, como o desse cediço anticomunismo, analisados os resultados eleitorais, principalmente em alguns dos Estados da Federação, o que há de comum neles é o argumento utilitarista, fundamento filosófico do neoliberalismo. No cerne do texto constitucional, entretanto, vige o princípio da solidariedade, antípoda desde E. Durkheim, das concepções utilitaristas, alvo oculto das campanhas bolsonaristas em Minas Gerais e no Rio de Janeiro, acompanhando a orientação da candidatura presidencial e do seu principal consultor econômico de explícita adesão ao ideário do neoliberalismo.

O princípio da solidariedade e o centro político guardam relações antigas no processo de modernização conservadora do País, pois se iniciam com Vargas na legislação social sob a inspiração do corporativista Oliveira Vianna, embora sob o registro restritivo do autoritarismo e da tutela dos trabalhadores. Depurada dessa chave a Constituição, que é obra do centro político, a solidariedade foi elevada a princípio fundador da República, com o mesmo estatuto dos princípios da liberdade e da igualdade, conferindo caráter público à previdência social, que ora muitos dos atuais eleitos querem deslocar para a dimensão do mercado.

Dessa perspectiva, não se pode ignorar talento político aos estrategistas do campo vitorioso, que mantiveram sob estrita clandestinidade seu programa in pectore de reformas, inclusive as constitucionais, confiando ao PT e a seus aliados e aos intelectuais que gravitavam em torno dele, em nome da luta contra a corrupção, a tarefa de implosão do centro político, trave-mestra da arquitetura constitucional e de suas principais instituições, como o Poder Judiciário, como em escandaloso fato recente vindo à luz por inconfidências palacianas em que se ameaçava o Supremo Tribunal Federal.

Caem os véus e já se divisa a situação de risco a que seremos submetidos. Querem nos reduzir ao Homo economicus, aqui, no país do carnaval, do Círio de Nazaré, do culto de massas a Nossa Senhora Aparecida e do candomblé, onde o capitalismo jamais foi uma ideia popular, vindo de cima por imposição do Estado. Aqui, onde as favelas são denominadas comunidades e o individualismo metodológico só existe na bibliografia importada, vinculados que estamos às nossas raízes ibéricas, na forma do belo estudo de Rubem Barbosa Filho em Tradição e Artifício (UFMG, 1998), em trilha aberta pelo saudoso brasilianista Richard Morse.

O sistema de defesa contra a barbárie está à mão e começa a operar na defesa da Carta de 88, reduto das nossas melhores tradições e programa para uma futura social-democracia, que ela já contém em embrião. Seus defensores estão alinhados, à frente de todos o decano do STF, o ministro Celso de Mello. Os primeiros esboços do que deverá ser a oposição começam a ser debatidos, e digno de atenção é o pequeno texto do ensaísta Antonio Risério Por um outro caminho, em que se sustenta a tese da necessidade “de construção de um novo e contemporâneo partido de centro-esquerda verdadeiramente centrado no campo da social-democracia. (...) A fusão de PPS, Rede e PV (linha Eduardo Jorge) pode vir a ser um passo primeiro e fundamental. Mas é preciso trazer para este campo magnético os focos genuínos da social-democracia que ainda resistem (minoritários) no PSB e no PSDB. Tentar trazer também para este processo construtivo os raros verdadeiros democratas que insistem em tentar sobreviver no MDB. E em outros movimentos e instâncias da sociedade”.

Esse sistema geral de orientação não sairá do papel sem os intelectuais, a quem coube assumir posições de vanguarda na formação da opinião pública em momentos cruciais da história do nosso país, tal como no movimento abolicionista pela obra e ação de Nabuco, Antônio Rebouças e José do Patrocínio, e mais recentemente nas lutas sociais e políticas em favor de um Estado Democrático de Direito, pelo envolvimento ativo de personalidades que, entre tantas, podem ser lembradas: Florestan Fernandes, Raimundo Faoro e Fernando Henrique Cardoso. O momento da hora presente confronta nossos intelectuais com desafios e exigências do mesmo calibre.

Na cena política aberta à nossa frente não há como negar que o longo ciclo da modernização conservadora chegou ao fim nesta triste sucessão presidencial. O passado não mais ilumina, como diria um grande autor, e não se pode ser mais fiel a ele. Reflexividade não é um conceito da moda entre cientistas sociais, mas uma exigência do tempo presente que requer de cada um de nós a escolha do caminho a seguir quando nos devemos soltar do que nos aparecia como destino de um país do Terceiro Mundo e dele prisioneiros. Sem os intelectuais não faremos isso.


Luiz Werneck Vianna: Ao vencedor, as batatas

Nós, os perdedores nessa disputa eleitoral, não poderemos abdicar de feroz autocrítica

Um canal de TV de larga audiência transmite a sessão de abertura da Assembleia-Geral da ONU. Como é da tradição, cabe ao chefe de Estado do Brasil, o sr. Michel Temer, abrir os debates. O presidente Temer realiza seu pronunciamento com palavras ponderadas, desenvolvendo o tema da importância daquela organização para a paz e a cooperação solidária entre os povos, tal como tem sido a posição brasileira nas relações internacionais, que ele ali, mais uma vez, reafirmava, honrando os valores e princípios da nossa Carta constitucional e das nossas melhores tradições. O terceiro orador, o sr. Donald Trump, presidente da República dos Estados Unidos, um dos países fundadores da ONU, há décadas um dos principais protagonistas da cena mundial, em nome de um princípio de sua lavra, America first, confronta com um nacionalismo primitivo o espírito que animava aquela assembleia e que nos vem de duas grandes revoluções do século 19, a americana e a francesa, com que se abre a modernidade e aprendemos com Kant a manter viva a utopia realista da paz perpétua.

Volte-se ao canal televisivo e a palavra passa a seu comentarista político, jornalista de meia idade, com os cabelos encanecidos, que desqualifica sem mais o oportuno e feliz pronunciamento do presidente Temer, passando ao largo do patético discurso de Trump, merecedor do justo sarcasmo com que foi recebido por sua audiência. Cenas como essas falam mais que mil palavras, estava ali a revelação da estupidez política que nos trouxe ao miserável cenário da sucessão presidencial, que ora somos obrigados a purgar.

Lamenta-se, agora, a sorte nessas horas aziagas do nosso encontro com que as urnas nos esperam. Impreca-se contra o destino que nos teria roubado o futuro, posto em mãos desastradas de estrangeiros que não conhecem nem respeitam nossa História e seus feitos. O destino é inocente, fomos nós que criamos passo a passo a armadilha, salvo milagres - creio, embora seja absurdo -, que não temos mais como evitar. Fomos nós os autores da lenda urbana de que a corrupção estaria na raiz dos nossos males, criminalizando a política e os políticos com a arrogância de messiânicos refratários à avaliação das consequências dos seus atos, a proclamarem fiat iustitia, pereat Mundus.

O centro político, lugar estratégico em que se operou a bem-sucedida modernização burguesa do País, tornou-se um espaço vazio, recusando-se ao governo Temer, com sua história de dirigente do MDB, um clássico partido do centro, com sua natural inscrição nesse lugar reconhecida, em duas consecutivas eleições presidenciais, pelo PT - partido identificado como de esquerda pela crônica política, carimbo, aliás, recusado por seu principal dirigente -, que com ele se coligou, confiando-lhe a Vice-Presidência da República. Pranteia-se agora, com lágrimas de crocodilo, a má e imerecida sorte do finado centro político, que ora comparece às urnas, tudo indica, sem uma candidatura competitiva.

Contudo, o que é é. O artifício de negar a identidade ao centro político, de existência comprovada empiricamente em nossa sociedade há décadas, não tem como resistir ao império dos fatos. A iminência de um segundo turno eleitoral nos devolve, em clima de pânico, com o tempo fugindo das mãos, a busca pelo centro perdido. Sem ele como vencer as eleições, pior, como governar? Com Haddad teremos o indulto de Lula e a convocação de uma Assembleia Constituinte? Faltaria combinar com os russos, que, aliás, são muitos. Que economia nos espera com Bolsonaro, a do Pinochet, neoliberalismo com fuzis?

Como o gênio militar de Napoleão advertia, quando avaliava mapas de campanha, se o natural fosse arbitrariamente desconsiderado num plano, ele voltaria em galope. Nem sempre, pode-se acrescentar, em manobras afortunadas, dificílimas para os candidatos que devem disputar o segundo turno desprovidos como estão, contando apenas com seus preconceitos, de projetos de governo bem definidos. Tem-se pela frente um quadro de turbulência até que o novo governo consiga encontrar uma linha de ação compatível com o novo Congresso e com os novos governadores que nascerão das urnas. Na prática, essa incomum situação significa a abertura de um terceiro turno eleitoral, de tramitação exclusiva nos bastidores, quando só então serão conhecidos os rumos do novo governo.

O centro político, banido do salão, volta com força por todas as janelas. Tanto barulho por nada, retornamos ao ponto de partida, salvo se os estrategistas de plantão dos dois lados do tabuleiro já tenham decidido, no caso de vitória, levar a cabo o que ruminaram ao longo dessa paupérrima campanha eleitoral. O desenlace infeliz dessa imprudência, se vier, não deve tardar, e mente quem nega a força das nossas instituições, provada em tantos outros momentos críticos da nossa história recente. Os 30 anos da Carta de 88, a mais longeva da República, não foram em vão, a sociedade saberá preservá-la das sanhas dos cavaleiros da fortuna, ela já conhece o que perderá sem ela.

Mente igualmente quem se recusa a admitir a possibilidade de a nossa democracia estar sob risco, pois está, aqui e alhures. Sem triunfalismo, joga-se, nesta sucessão presidencial brasileira bem mais do que nossos negócios internos. Nossa presença no mundo importa para a paz, em particular para nuestra America. Nós, os perdedores nessa disputa eleitoral, não poderemos abdicar de uma feroz autocrítica, uma vez que não havia nada de inevitável nessa derrota que reconhecemos. Somos mais necessários que nunca, e fizemos nascer uma nova esquerda capaz de se articular com o liberalismo político, cuja missão desde agora é nos devolver aos eixos que nos são naturais.

Pelo andar da carruagem, pode-se prever que isso não deve demorar muito. Por fim, glória a Deus, há os milagres.

*Luiz Werneck Vianna é sociólogo, PUC-RIO


Luiz Werneck Vianna: Transições

O Brasil não pode ser uma cabeça de ponte na ‘nuestra América’ para o fascismo...

Marcas de formação nos indivíduos e nas nações, como nos ensinaram a psicanálise de Freud e a teoria social de Tocqueville no genial A Democracia na América, nos acompanham desde o nascimento e, se podem ser modificadas pela ação consciente dos homens ou por circunstâncias imprevistas em suas trajetórias, não são passíveis de erradicação e ficam conosco, para o bem ou para o mal, impressas como tatuagens irremovíveis.

Os estudos de História comparada, presentes nos grandes clássicos do pensamento social, de Montesquieu a Barrington Moore, passando por Tocqueville, Marx, Weber – que dedicou sua monumental obra a eles –, elenco que inclui Gramsci em suas explorações sobre quais tipos de sociedades ocidentais estariam mais propensas às revoluções – a Inglaterra, por exemplo, não estaria –, são fartos em demonstrar o papel das origens na formação dos Estados e das sociedades. Assim, compreender a Alemanha importaria em analisar o papel das elites junkers, agrárias, conservadoras e de formação militarizada, em seu protagonismo na hora decisiva da unificação e criação do seu Estado, e, no caso americano, do fato de sua sociedade ter sido obra de emigrados de adesão religiosa ao protestantismo, cujos ideais de República e de sociedade queriam implantar em terra nova.

A literatura sobre o tema é pródiga e avança sobre outros tantos casos, como os da Itália, do Japão e da Índia, não deixando de fora os casos da Ibero-América. A relevância do tema não é apenas acadêmica, já que ela diz respeito à identificação do terreno em que estamos pisando. A crônica política destes tempos de sucessão presidencial insiste no tom do desencanto e das ilusões perdidas, especialmente dos setores que se autointitulam a esquerda do nosso espectro político, em razão da sua frustração com o desenlace da crise política que abalou o País após o impeachment da presidente Dilma Rousseff. Com efeito, durante seu curso – tudo indica, encerrado – viveu-se aqui como que uma terra em transe, com manifestações de rua e passeatas de empalidecer as francesas, aparentando prometer, como essa esquerda desejava, a hora de ruptura catastrófica com nossas instituições.

Foi um tempo em que se coqueteava com o tema das revoluções, cuja porta de entrada seria a derrubada do governo constitucional de Michel Temer, com a imediata convocação de eleições gerais, provavelmente com poderes constituintes e demais assuntos de igual calibre. A sucessão presidencial, confirmando o papel taumatúrgico das eleições nas crises políticas brasileiras, no entanto, nos devolveu ao Brasil real, dissolvendo no ar as fabulações revolucionaristas. Mais uma vez passamos a conviver com o eterno retorno dos processos de transição, com o qual veio à luz nosso Estado-nação – não conhecemos, como se sabe, ao contrário da América hispânica, revoluções nacional-libertadoras. Mesmo registro político, aliás, com que interrompemos o regime do autoritarismo militar que nos dominou por duas décadas.

É ele, agora, apesar da pantomima ensaiada em torno da candidatura Lula ao tentar ameaçar nossa democracia com a cantilena contra o nosso sistema de Justiça, que se impõe atrás desse teatro de sombras em que se ocultam alguns protagonistas. Pois aquilo que se encoberta é o fato de já estarmos numa transição do longo ciclo da modernização autoritária de Vargas a Dilma para um novo tipo de relações entre o Estado e a sociedade, centrada na participação social e no aprofundamento da democracia, tanto por processos que revolvem os fundamentos materiais de nossas estruturas, em especial no mundo do trabalho e da produção, quanto pelas mudanças ideais que se manifestam em nossa capacidade de reflexão sobre nós mesmos.

Os debates presidenciais aclaram o ponto, mesmo que vindos de narrativas toscas e rústicas, contrapondo candidatos que se situam no campo favorável a essa transição aos contrários a ela, na pretensão de darem continuidade ao processo de modernização autoritária, jogando para baixo do tapete o fato de que ela foi levada à exaustão no governo Dilma. A força do tema se faz presente até mesmo em candidaturas avessas a ele, ora em Bolsonaro, que faz profissão de fé no liberalismo econômico em oposição ao capitalismo de Estado, ora de modo latente em Ciro Gomes, embora se apresente como herdeiro da experiência do lulismo.

Narrativas são apenas narrativas. Na vida real, fora os candidatos que parecem habitar em hospícios – pegando carona em divertida crônica de Fernando Gabeira – ou viver nas primeiras décadas do século 20 no seu culto a experimentos falidos, os demais, principalmente os de ofício na política, não ignoram que tanto o movimento das coisas quanto o dos homens e das mulheres apontam de modo inexorável para o fim da era Vargas, esticada até o limite pelo seu pastiche do lulismo. O patriarcalismo – uma das pedras de sustentação do autoritarismo em nossa sociedade, exemplar no São Bernardo de Graciliano Ramos – está com seus dias contados e aqui e alhures o gênio de Keynes não serve mais para guiar nossos passos na economia de hoje, como no íntimo um acadêmico como o candidato Fernando Haddad não pode desconhecer.

Paixões e interesses à parte, estaremos no tempo que se abre adiante no terreno áspero e difícil das transições em que não é mais noite e o dia ainda não chegou, cabendo à política bem compreendida acelerar sua festiva aparição. Contudo não poderemos fechar os olhos aos perigos que nos rondam, pondo em xeque a singular cultura que aqui criamos, nós brancos, índios e negros, tudo erraticamente misturado, sem identidade definida, porque somos, como sustentava o gênio de Euclides da Cunha, uma construção voltada para futuro em busca da realização de ideais civilizatórios. O Brasil não pode ser uma cabeça de ponte na nuestra América para o fascismo em qualquer dos disfarces com que se apresente.


Luiz Werneck Vianna: Terra à vista

A hora presente indica que se deve começar a solucionar a atual crise pela dimensão ideal

Estamos chegando depois de tormentosa viagem em mares bravios. Saídos de um continente velho de ideias cediças que nos fazia prisioneiros de um passado exausto que não mais nos permitia as ambições de conviver numa sociedade justa e igual, somos pioneiros em terra nova. Trazemos conosco os ideais anunciados no manifesto “Por uma sociedade democrática e reformista” e a vontade de propagá-lo por toda parte. Não vai ser nada fácil, como atesta a história de todos aqueles que assumiram este papel de desbravar terreno inóspito, a começar pelas próximas eleições. A seu favor, contudo, conspiram os novos ventos que têm varrido nossa sociedade e que assinalam o fim de um longo ciclo de modernização autoritária, que se inicia com Vargas, passa por JK, pelo regime militar e por Lula, e deságua no desastre que foi o governo de Dilma, que pôs a nu o anacronismo deste velho modelo que não é mais capaz de reiterar suas realizações no passado.

O melhor indicador desta mutação foi o massivo movimento da juventude nas jornadas de junho de 2013 – embora inconsciente dos efeitos de sua obra –, que se manifestou contra tudo o que está aí, o nosso Estado inclusive, em nome dos ideais de auto-organização e da participação social. Aquelas jornadas ficaram sem herdeiros que lhes dessem continuidade, mas deixaram no ar em disponibilidade seu significado de fundo para quem souber interpretá-las, tarefa que cabe, nesta hora difícil, às forças democráticas e progressistas.

O espírito do tempo mudou, como diagnostica Habermas com a precisão de sempre, tanto nos países que lideram a marcha da história pelos seus sucessos culturais e técnico-científicos quanto nas mais remotas periferias, como ilustra a saga dos garotos tailandeses que se perderam numa caverna cujos heróis são os jogadores de futebol dos grandes clubes europeus. Inexoravelmente, dia após dia, somos arrastados pelos fatos à globalização, que corroem os fundamentos do repertório keynesiano-westfaliano que suportaram o Estado-nação – na expressão da cientista política Nancy Fraser – que predominou no Ocidente até os anos 1970.

No nosso pequeno mundo ainda vicejam em círculos minoritários os ideais autárquicos, nostálgicos do nacional- desenvolvimentismo e de um capitalismo de Estado, que forças políticas, convictas ou não a eles, procuram animar em busca de votos, como se verifica no atual processo eleitoral. Tais círculos que se autodeclaram de esquerda se apresentam como herdeiros do nosso processo de modernização autoritária, que louvam esquecidos de que ele somente foi possível pela repressão exercida sobre os setores subalternos nos centros urbanos, cassando pela lei sua autonomia, e no mundo agrário com a coerção violenta dos movimentos do campesinato e dos seus trabalhadores assalariados. Sobretudo, esquecem que a modernização da economia, na forma por ele realizada, importou no fato de ser o Brasil um dos países mais desiguais do planeta.

O PT, por exemplo, desde a primeira eleição de Lula, aderiu, primeiramente de modo fraco e a partir do seu segundo mandato abertamente, à nossa tradição conservadora – a que o governo Dilma levou ao paroxismo –, embora jamais suas lideranças tenham justificado a metamorfose de um partido que nasce, como o PT, comprometido com a ruptura das tradições conservadoras para se mover no sentido de se tornar um dos seus esteios. Intelectuais e artistas, alguns deles campeões, nos anos 1960, da crítica ao governo Jango por seu nacional-estatismo, principalmente nas universidades paulistas, agora referendam acriticamente tais posicionamentos, pelo culto esquisito que dedicam a Lula, mesmo que desconheçam suas concepções sobre o estado de coisas no mundo, salvo a de que ele não é esquerda, como sempre declara.

O culto a Lula entre os intelectuais e artistas é uma patologia a ser estudada, sintoma que manifesta o algo de podre nesta nossa Dinamarca, em que o governo do PT trouxe para o interior do Estado tudo o que era vivo na sociedade, sindicatos, movimentos sociais, inclusive os identitários, submetendo-os a seus fins políticos. Quanto aos intelectuais, a política de contemplá-los com generosos financiamentos, especialmente algumas personalidades relevantes – vide a política cultural da Petrobrás –, teve um dos seus mais amargos frutos no rebaixamento da sua capacidade crítica e na autodestituição das suas responsabilidades em relação a seu país e seu povo, fermento que nos anos 1950 nos fez conhecer os Círculos Populares de Cultura, o gênio de Vianinha e de Guarnieri, a Bossa Nova e o Cinema Novo, entre tantos criadores e iniciativas de ideias novas que vieram animar a obra civilizatória dos brasileiros. E, mais tarde, sob o regime militar, as obras fundamentais de Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Raimundo Faoro e José Murilo de Carvalho, para citar alguns, que desvendaram as raízes ocultas do autoritarismo brasileiro.

A crise que aí está é, a um tempo, de natureza estrutural – a fraqueza da nossa economia –, ética, moral e intelectual. Não há como dar solução a qualquer delas em separado, mas a hora presente indica que se deve começar pela dimensão ideal, pelas concepções do mundo, pela história do País, por que delas é que se principia, como sustenta reiteradamente Fernando Henrique Cardoso, a busca de novos rumos para o País.

Tal como em Habermas no primeiro ensaio de Diagnósticos do tempo, que deve servir para nós como um sistema de orientação, o Estado social ainda é o horizonte possível do centro e da periferia do mundo, e as tensões entre mercado e política próprias a ele podem ser equilibradas pela dimensão da solidariedade social, que, no nosso caso, impõe como começo de conversa a luta sem quartel contra a nossa indecente desigualdade, um dos frutos da modernização autoritária com que agora devemos romper.


Luiz Werneck Vianna: Os intelectuais e a aranha

O plano das ideias e das concepções do mundo definha e apresenta um cenário desalentador

A natureza balsâmica do processo eleitoral é um fato que se impõe à observação de quem se dedica à análise da cena moderna brasileira, momento em que “os de cima” calculam as condições que levem à preservação de suas posições de domínio e “os de baixo”, as oportunidades para terem acesso a mais direitos sociais e políticos. Dado que na nossa sociedade o voto se tornou universal e a democracia política encontrou âncora segura na Carta de 88, elementar que o sucesso eleitoral, diante das profundas desigualdades sociais e das diferenças regionais que nos caracterizam, dependa de uma feliz combinação entre as partes que compõem o tecido social. Pelo voto nenhuma delas ganhará tudo.

Se assim é, a negociação reveste-se de elemento-chave na disputa eleitoral em curso e sob esse registro tende a dissipar o clima de cólera e de intolerância com o outro até então dominante. Mais uma vez fica evidente que, entre nós, a forma superior de luta se trava no processo eleitoral - já confirmada no regime militar -, e não pelo recurso à luta armada, conforme lenda urbana ainda circulante em pequenos círculos da esquerda, usando uma expressão do repertório de sarcasmos do ministro Gilmar Mendes.

Dessa forma, embora persista a ação de renitentes que nos prometem uma catástrofe iminente, sem nenhum triunfalismo já se pode proclamar em alto e bom som que a crise que ameaçou a nossa democracia se encontra superada, em mais um momento de consagração da nossa Constituição. Com isso não se quer dizer que se tenha pela frente um horizonte aprazível - absolutamente não -, mas que os conflitos e as disputas que nos são próprios vêm encontrando, mesmo que apenas por ensaio e erro, as vias institucionais dos partidos, sindicatos e da vida associativa em geral, num processo com origem na sociedade civil, não no Estado, como resultou, por exemplo, na criação dos sindicatos na era Vargas e do PTB na agonia do regime autoritário de 1937.

Aos trancos e barrancos, a sociedade brasileira avança meio às cegas em direção ao moderno. Pode-se sustentar até que esse movimento que vem deixando para trás o peso da nossa tradição de décadas de modernização conservadora, nos termos da obra clássica de Barrington Moore, vem operando mais no terreno da societas rerum do que no da ação intencional dos homens.

Com efeito, as mutações demográficas, econômicas e sociais vindas dos impulsos modernizantes vindos do vértice político - tanto os de origem em conjunturas democráticas, como nos tempos do governo JK, quanto os conduzidos por regimes autoritários, como no Estado Novo, de 1937, e no recente regime militar - têm importado numa segura conversão do caos social com que nossa sociedade iniciou sua história para se tornar uma sociedade de composição demográfica racional ao capitalismo, categoria importante no arsenal teórico de um grande autor.

Tal mutação está na raiz da profunda crise política com que se abriram as jornadas de junho de 2013, movimento massivo da juventude “contra tudo o que está aí”, sinal forte de risco que os acontecimentos futuros vieram a confirmar, com o impeachment e a chamada Operação Lava Jato, significando, ao fundo, o estado de exaustão das práticas e concepções com que há décadas vínhamos sendo governados.

Fixada a observação no movimento das estruturas da societas rerum o cenário é, pois, o de mudança que se faz indicar no terreno dos fatos, como ilustra o conjunto de importantes reformas já introduzidas na vida econômica, a maioria delas de caráter irreversível. Contudo, se o olhar se desloca para o plano das ideias e das concepções do mundo, o curso da mudança, embora tenha havido nas últimas décadas uma altamente significativa expansão do estrato dos intelectuais nas universidades e nas atividades artísticas, definha e apresenta um cenário desalentador de mesmice e de pouca criatividade.

Na economia, numa das sociedades mais desiguais do planeta, tivemos de esperar a notável obra de Thomas Piketty, de edição recente, para que a produção dos especialistas se voltasse para esse tema estratégico. Nas ciências sociais, desprendemo-nos da excelsa tradição que vinha de um Gilberto Freyre, de Florestan Fernandes, de Fernando Henrique Cardoso, de Raymundo Faoro, Roberto DaMatta, entre tantos nomes que se dedicaram a interpretar o País, para instalar em seu lugar os estudos identitários, que, embora importantes, certamente não têm a relevância do que foi o mainstream da reflexão disciplinar, tão necessário nesta hora em que se faz imperativa a busca de novos rumos.

O dilema perturbador de sempre no estudo das sociedades é o que importa mais para a observação, se a aranha ou a teia que ela tece, tal como na célebre metáfora com que Max Weber retrucou a um colega sobre suas diferenças com a teoria social de Karl Marx. A controvérsia sobre o tema provavelmente persistirá até o fim dos tempos, e esses mesmos gigantes do pensamento sempre oscilaram em suas respostas, ora favorecendo o papel do ator, ora dos fatos com que ele se enreda.

A grande transformação que a partir da Revolução de 1930 revolveu os fundamentos da sociedade brasileira, conduzindo-a do estágio agrário em que se encontrava para o urbano-industrial, foi antecedida por um intenso movimento de ideias nas elites intelectuais da época, de que são exemplares a obra de Euclides da Cunha, o tenentismo na juventude militar, a criação do Centro João Vital por intelectuais católicos, a Semana de Arte Moderna, em 1922, e a chegada, nesse mesmo ano, dos trabalhadores à cena política com a fundação do Partido Comunista.

O momento propício que experimentamos agora pode frustrar-se se os intelectuais - a aranha da metáfora de Weber - cederem ao ceticismo que ora grassa entre eles, abandonando de vez o exercício dos papéis de vanguarda com que marcaram a nossa trajetória como nação.

*Luiz Werneck Vianna é sociólogo, PUC-Rio.


Luiz Werneck Vianna: O centro político, a democracia e as reformas

Como sistema de orientação, meus artigos vêm observando a crise que nos assola a partir da nossa experiência na matéria

Como sistema de orientação, meus artigos vêm observando a crise que nos assola a partir da nossa experiência na matéria, que ensina a reparar inicialmente a fim de medir seu potencial disruptivo, as ruas e os quartéis como os lugares mais sensíveis para o registro de sua gravidade. Salvo momentos episódicos de pico, as ruas estão vazias e os quartéis, silenciosos, fazendo profissão de fé à ordem constitucional. De forma inédita em nossa História, é da família do campo do Poder Judiciário em associação também inédita com a imprensa – combinação sempre explosiva aqui e alhures – que, faz tempo, provêm as tentativas de desestabilizar a ordem reinante, levando o presidente da República às barras dos tribunais mesmo a poucos meses das eleições gerais, como já é o caso.

Duas das corporações mais influentes na conjuntura presente – a militar e a jurídica –, como seria natural, falam de perspectivas distintas, a do poder a primeira e a segunda, do princípio republicano da moralidade e dos seus valores diante da degradação pública que, nos últimos anos, sofreram nossas instituições políticas, hoje justamente repudiadas pela cidadania. O momento eleitoral pode constituir, se levado a sério, uma oportunidade de ouro para o saneamento, pelo voto, dos partidos e da própria atividade política.

Ambas são animadas por lógicas distintas, mas que podem e devem exercer papéis complementares, tanto para garantir que a competição eleitoral obedeça às vias democráticas quanto para interditar o acesso a candidaturas que, na forma da lei, estejam proscritas.

Se este país se tornou, a partir dos anos 1930, um caso clássico de modernização por cima, conduzindo pela mão do Estado a industrialização, valendo-se de todos os meios para a realização dos seus objetivos, borrando desde aí os limites que devem separar as esferas públicas das privadas, tal modelo se esgotou sob o governo Dilma, que pretendia radicalizá-lo, contra todos os sinais que apontavam para sua exaustão.

Nesse sentido, o processo eleitoral que já vivemos pode ser considerado como um momento quase constituinte, na medida em que deve impor pelo voto uma radical mudança nas relações entre o Estado e a sociedade civil. O movimento de junho de 2013 da juventude anunciou com tintas fortes a profundidade da crise dessa relação, enquanto a devassa nos negócios entre agentes públicos e empresas privadas procedida pela chamada Operação Lava Jato fez o resto, jogando ao chão o que ainda restava dela. Decerto que o momento de uma campanha eleitoral não seria o mais oportuno, pelas paixões que ela suscita, mas, por ora, só contamos com ele.

A seleção das candidaturas e suas alianças devem, portanto, considerar a excepcionalidade deste processo eleitoral. No caso, não se pode deixar de considerar, nesta hora de falta de rumos confiáveis para o nosso futuro, em meio às ruínas em que sobrevivemos, o manifesto Por um polo democrático e reformista, lançado a público por iniciativa de dois parlamentares, o deputado Marcus Pestana e o senador Cristovam Buarque, já subscrito por Fernando Henrique Cardoso, uma extraordinária personagem das que nos sobraram de tempos menos sombrios do que os que agora vivemos, que parece ter saído das páginas dos textos políticos de um Max Weber, pela coragem sóbria, sempre fiel às suas convicções de fundo, defendidas com responsabilidade, que nos afiança os caminhos preconizados nesse bem-vindo manifesto, a rigor, um programa de ação de um novo governo.

Nesse manifesto-programa se conclamam “todas as forças democráticas e reformistas em torno de um projeto nacional que, a um só tempo, dê conta de inaugurar um novo ciclo de desenvolvimento social e econômico, a partir dos avanços alcançados nos últimos anos, e afaste um horizonte nebuloso de confrontação entre populismos radicais, autoritários e anacrônicos”. O texto continua para afirmar que para o sucesso dessa iniciativa se devem agregar, de forma plural, liberais, democratas, social-democratas, democratas cristãos, socialistas democráticos, numa frente que se empenhe, nesta hora decisiva para a construção do futuro, na realização de um programa de desenvolvimento com mudança social que abra as portas para o moderno no Brasil, pondo fim aos processos de modernização autoritária que levaram o País a um lugar sem saída.

O tempo é curto para que essa iniciativa possa encontrar seu ponto de maturação. É preciso invocar a sabedoria dos nossos maiores, que no passado, do Império à República, como no caso recente da transição do regime militar para o democrático, sempre pela via da negociação souberam encontrar soluções para os nossos impasses políticos e institucionais. Seus adversários são conhecidos e ambos desejam vias de ruptura: à direita, os que desejam uma saída neoliberal clássica – desejo mal escondido de poderosa rede de comunicação; à esquerda, os que visam a uma retomada das vias bolivarianas.

O papel do centro político como estratégico na nossa formação não pode ser ignorado, e para só falar do período republicano, a exemplo de Vargas, que em 1945 fundou o PSD com lideranças tradicionais a fim de respaldar sua obra social reformadora, reeditado em grande estilo por Ulysses Guimarães e Tancredo Neves para abrir caminho à democratização. O manifesto, que ora circula em busca de adesões, segue as pegadas de momentos criativos e fecundos da política brasileira, que nos seus estonteantes ziguezagues nunca perdeu de vista seus compromissos com a obra da civilização singular que fazemos aqui.

Como palavras finais, deve-se mencionar que tal movimento, ao menos in pectore, admita que sua vitória trará consigo um momento de concórdia, reeditando a época do movimento da anistia, que envolva a sociedade, o Congresso e, principalmente, o sistema de Justiça, que pacifique de verdade esta praça de guerra que desgraçadamente nos tornamos.

* Sociólogo, PUC-Rio