Luiz Werneck Vianna: O moderno e o novo espírito do tempo

As ruas, criticadas pela ausência, vêm se fazer presentes por seus próprios motivos

Ao mestre Paulo Niemeyer, a quem de deve este artigo

Mudanças de época podem ser vividas como processos dolorosos, quando a sociedade tarda a trazer ao plano da consciência as novas circunstâncias que silenciosamente, com o império da força dos fatos, passaram a reger o seu mundo da vida. Especialmente quando elas afetam experiências outrora bem-sucedidas, consagradas pela tradição, como no ciclo da modernização que vai de Vargas a Lula, passando pelo governo de JK e pelo regime militar.

Interpretações equívocas dos processos em curso conduziram a que o governo Dilma Rousseff, em vez de procurar alternativas à crise que se agravava no seu mandato presidencial – salvo no brevíssimo recurso ao ministro Joaquim Levy, que seguia outra cartilha econômica –, levasse à radicalização do seu modelo de origem, com o que o exauriu.

O impeachment levou com ele, não importa sua motivação jurídico-política, a tradição da modernização por cima, pela mão do Estado. E tal processo de profundas repercussões no imaginário social brasileiro, levado a efeito sem a unção da vontade popular, embora contasse com apoio congressual, estressou a política brasileira de modo tal que alguns mais afoitos chegaram a cogitar de que estaríamos na iminência de uma guerra civil com os “exércitos do MST e dos sem-teto” (MTST).

O abandono do paradigma terceiro-mundista, segunda pele da nossa cultura política, pelo novo governo, de inclinação claramente liberal, desequilibrou os antagonismos a que estávamos afeitos, como sustentava Gilberto Freyre, no sentido da sua radicalização.

Contudo, sem as ruas e os quartéis, os amigos do fim do mundo ficaram devendo às suas ruminações. A rigor, por fora do alcance de nossas percepções, algo de muito profundo já havia mudado. A Carta de 88 tinha se tornado o mapa de navegação da maioria da sociedade organizada, em especial do Judiciário e da corporação militar – que, aferrada a ela, se manteve serena como guardiã da ordem em meio à balbúrdia –, garantindo a fixação do calendário eleitoral. Com isso trouxe à luz uma multidão de candidatos a presidente, aguando as perspectivas de conflitos generalizados, deixando para trás os tempos de cólera desatados pelo impeachment.

As festas carnavalescas, comemoradas como se não houvesse amanhã, principalmente entre os jovens, testemunharam a virada no espírito do tempo.

Sente-se que o espírito do tempo mudou, os sinais estão por toda parte, mas exigem reflexão, a fim de que um novo rumo seja perseguido. A modernização sem o moderno, a aceleração por cima, pelo Estado, como realizamos em curto espaço de tempo, a mobilização em escala chinesa da população, uma urbanização sem industrialização, que deixa em seu rastro um enorme contingente de uma população marginalizada, e a expansão da riqueza com o aprofundamento abissal da desigualdade, esse foi o legado negativo que ela nos deixou. As marcas da desigualdade são perpetuadas pelo monopólio da propriedade da terra, que resistiu às tentativas de democratização do mundo agrário, inclusive das suas relações de trabalho, que não incorporaram os trabalhadores do campo à legislação social, garantida apenas aos urbanos, denegando-lhes o caminho da auto-organização na luta por direitos, submetidos por décadas ao discricionarismo da vontade dos proprietários.

A escola de vida dos subalternos, à medida que a modernização avançava, recortava sua inscrição no mundo entre os pertencentes ao moderno ou ao atraso, embora convivessem nos mesmos cortiços, favelas e outras formas de habitação precárias, desenvolvendo diferentes estratégias de sobrevivência, e, com o tempo, formas culturais próprias, algumas de grande valor, exemplar na obra de um Cartola. O estatuto de apartheid que vigia na prática consolidou estilos de vida, alguns importando numa marginalidade de grande altivez. Quando o jogo do bicho irrompe nesse mundo, ele encontrará seus funcionários e soldadesca aptos ao controle e ao exercício de segmentos da vida popular, influente até na política.

Do jogo do bicho às drogas foi um pulo – os barões do jogo recusaram-se a participar do tráfico e permaneceram nos seus negócios tradicionais, organizando-se em cartéis. O tráfico encontrava disponível um mercado de alto valor nas elites, que se tornaram sua clientela de consumidores. O crime tinha sido descoberto como negócio por setores sociais subalternos, uma alternativa rentável para jovens que viviam em situação de exclusão social, uma oportunidade de vida à margem do mercado, que só os credenciava para atividades, a seu ver, humilhantes.

Ao mestre Paulo Niemeyer, a quem de deve este artigo

Esse mundo particular, sujeito a um código de violência administrado pelos chefões do tráfico e das milícias, em velada associação com a banda podre da polícia, participava da vida citadina apenas nas suas margens. Para ele, a cidade era um bem escasso, na conhecida caracterização da socióloga Maria Alice Rezende de Carvalho, exposto à dominação violenta e à precariedade no acesso a bens de cidadania.

O Brasil, de fato, não é para principiantes, pois é desse mundo de carências que irrompem do silêncio das ruas, com a velocidade de um raio, tal como em junho de 2013 – como tantos registraram –, manifestações massivas de caráter nacional em protesto contra o bárbaro assassinato de uma vereadora, Marielle Franco, liderança comunitária da favela da Maré. As ruas, criticadas pela ausência, vão-se fazer então presentes por seus próprios motivos e sua rede de representantes, até então invisíveis.

O novo espírito do tempo deixava cravada a sua marcação de luta por direitos, tendo como ponto de partida os de baixo e sua vida associativa, permitindo entrever em meio àquelas poderosas manifestações os novíssimos eixos de solidariedade social, como os nascidos da comunicação entre vida popular e universidade, que em boa hora têm sido estabelecidos entre nós. Agora cabe a reflexão levar à frente essas descobertas.


Luiz Werneck Vianna: A vitória da Constituição

A saída do labirinto em que nos perdemos já foi encontrada na obediência ao calendário eleitoral, e não à toa ele já virou alvo dos que desejam mover para trás a roda da História

Para quem queria a ocupação das ruas pelo povo, o cenário deste carnaval que passou, com as multidões que mobilizou nos blocos e nas escolas de samba, principalmente na capital paulista, ainda sem tradição nesse tipo de manifestação carnavalesca, surpreendeu os mais céticos, que não esperavam a volta da alegria na vida popular. Embora sem perder a conotação de crítica social, o momento catártico foi o dominante entre a nova geração, que ainda não conhecia a experiência carnavalesca, em particular entre as jovens que acorreram em massa aos blocos, num movimento indisfarçável de afirmação de gênero.

Com esse registro, a que se deve acrescentar o do desfile das escolas de samba, a política conta com mais uma matéria para a reflexão nesta hora de seleção das candidaturas presidenciais, ainda sem definição. Relativizando o caso de alguns desfiles que optaram por uma crítica política contundente ao governo, uma vez não se pode evitar o comentário do jornalista Ancelmo Gois, ao lembrar que no Brasil “prostituta se apaixona, cafetão tem ciúme, traficante se vicia e uma escola comandada por um bicheiro, a querida Beija-Flor, vence o carnaval que fala de corrupção” (O Globo 15/2).

Essa hora de escolha que já tarda, não só pelas dificuldades naturais ao momento que se vive, mas também porque a cultura do golpismo, essa segunda pele da nossa política, já encontrou uma nova modalidade de conspirar contra o processo eleitoral, a partir de uma declaração de um delegado de polícia sobre um inquérito de presumidas ações praticadas pelo presidente da República. O mais triste desse episódio está no fato de envolver um alto membro do Poder Judiciário, de quem sempre se esperam atos e palavras de concórdia, e esteja ele puxando a corda em favor do prolongamento da nossa agonia.

A saída do labirinto em que nos perdemos já foi encontrada na obediência ao calendário eleitoral, e não à toa ele já virou alvo dos que desejam mover para trás a roda da História, em mais uma tentativa de destituição por um processo judicial do chefe do Executivo, como está em curso, uma vez que não contam nem com as ruas nem com os quartéis. Nos seus cálculos malévolos maquinam que com o governo acéfalo caberia ao Poder Judiciário o exercício de um governo de transição que dirigiria, amparado pela Polícia Federal, o processo eleitoral. Tal solução, ou algo próximo a ela, talvez seja o que nos falta para nos converter num imenso manicômio em que todos os internos se apresentem como candidatos à Presidência da República.

Mas o mundo gira e a Lusitana roda, imprevistamente o cenário e o enredo se transfiguram com um movimento de peças desse jogo de xadrez ainda distante de encontrar um vencedor. Nessa nova disposição, provocada pela intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro, o centro de gravidade da crise se desloca do tema da corrupção política para o da violência e da criminalidade organizada, cujo poder já ameaçava nacionalizar-se e se projetar no campo da política. Mudando o repertório, o peso dos atores envolvidos igualmente muda, com a depreciação do papel do Poder Judiciário, até então o principal protagonista da conjuntura, que cede lugar ao Poder Executivo, que trouxe a iniciativa para si e para a corporação militar, numa arriscada operação que se esforçou por se manter, malgrado alguns senões, nos trilhos constitucionais, a essa altura chancelada por esmagadora maioria nas duas Casas legislativas.

Um dos efeitos colaterais dessa intervenção foi o de revelar o tema da segurança como central para partidos e candidatos na formulação dos seus programas. Ao contrário da blague famosa, parece que aqui, pelos sucessos recentes, o tema da economia valerá na hora do voto menos do que se previa.

Confirma-se, mais uma vez, o desamor da política brasileira pela linha reta. Aos sobressaltos, dia após dia, avança-se para o momento eleitoral, quando o destino das urnas será selado pelo êxito ou fracasso da intervenção federal na política de segurança.

Os dados estão lançados. E ainda sujeitos à manipulação humana, que pode ser decisiva para a boa sorte da iniciativa de alto risco do Executivo. Muitos não a querem por cálculo eleitoral, ou pelo temor de que as Forças Armadas, peça central na intervenção sobre os aparatos de segurança, venha atropelar a ordem constitucional em nome de uma política de salvação nacional, pondo-se no lugar dos juízes que tinham como alvo o mesmo propósito. Neste tempo em que reina a suspicácia, conta contra a hipótese malévola o fato forte de que a corporação militar se tem comportado sob estritos padrões constitucionais e das normas que regulam seus princípios hierárquicos.

A competição eleitoral, tenha o resultado que tiver, importa mais por provocar a agregação de vontades e de programas do que pela candidatura vitoriosa, que, seja qual for, estará pautada pela agenda das questões discutidas exaustivamente ao longo destes três últimos anos. Será uma oportunidade, que não pode ser perdida, para uma recomposição partidária que nos emancipe do domínio das corporações que às nossas costas pretendem guiar nosso destino. Desde as magistrais lições de Pierre Bourdieu sobre o Estado se sabe que o segredo da força das corporações está em revestir os interesses particulares dos seus membros em pleitos públicos de caráter geral. No nosso caso, liberar a política transita pela limitação do poder das corporações, que com frequência impõe a todos a sua agenda de interesses particulares, em detrimento dos da maioria.

Mas, apesar de tanta confusão, neste país onde todos querem ser califa no lugar do califa, há algo a ser comemorado, qual seja, o fato de que todos os envolvidos nesse charivari nacional jurem estar agindo em nome da Constituição. E, de fato, se as aparências ainda contam, a sorte parece que vai sorrir para quem persuadir o maior número de eleitores de ser aquele que melhor representa o espírito do texto constitucional, que favorece a igualdade.

 

 


Luiz Werneck Vianna: O Brasil não é isso aí

Uma mutação toma corpo no sentido de submeter a sociedade a um governo de juízes

O que nos está faltando para adotarmos, ao som de fanfarras cívicas, a pena de morte como remédio heroico para o combate contra a corrupção e os demais males que nos afligem? Já contamos com a condução sob ferros dos nossos prisioneiros, assim expostos publicamente nesse arremedo do pelourinho dos tempos da escravidão, resta dar o passo seguinte, a que parece faltar apenas a iniciativa de um dos nossos justiceiros.

Por onde paira o espírito de um Sobral Pinto, que na defesa do líder comunista Luís Carlos Prestes, encarcerado em condições cruéis pelo regime fascista do Estado Novo, de 1937, invocou em defesa do seu cliente a lei protetora dos animais, embora discordasse de tudo o que ele então professava. Sobral Pinto não pode ser reduzido a um retrato na parede, pois sua advocacia deixou o legado da intransigência na luta pelos direitos humanos, que não pode ser abandonado. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), até então em silêncio, fora personagens isolados, com o tratamento cruel dado a Sérgio Cabral, não se vai pronunciar institucionalmente a respeito da violação da dignidade humana de que ele foi vítima?

Verdade que do Judiciário já se levantaram algumas vozes de protesto, como a do ex-ministro Ayres Britto, mas, como se diz, uma andorinha não faz verão, e é a corporação que tem de falar. O Brasil não é isso que está aí. Nascemos sob o compromisso de fidelidade aos ideais da civilização, nas palavras de Euclides da Cunha, e mal ou bem somos hoje parte relevante do Ocidente político. Passar a limpo a nossa História, como pontificam os pretensos salvadores da pátria que estão aí, não pode ter como ponto de partida a recusa acrítica à obra das gerações que nos antecederam, mas a missão de interpretá-la a fim de imprimir continuidade a seus resultados felizes e expurgar o que de negativo ainda persiste, como a desigualdade social reinante entre grupos e classes sociais, obstáculo maior ao adensamento entre nós da coesão social.

Na cultura política que forjamos ao longo do tempo contamos com a herança inspiradora do humanismo de um José Bonifácio, sempre reverenciado como um dos fundadores do nosso Estado-nação, artefato político cuja unidade soube ser conservada em meio às turbulências naturais a uma sociedade ainda em construção, obra singular no cenário balcanizado sul-americano, processo bem estudado por José Murilo de Carvalho em obra clássica.

Se a nossa cultura material foi construída ao sabor das circunstâncias, sempre em resposta do agente colonizador às oportunidades abertas pelo emergente capitalismo na economia-mundo, para usar categorias caras a Immanuel Wallerstein, no plano dos valores, ao contrário, pode-se falar na existência de uma linha de continuidade desde o processo da independência até os dias de hoje, de vigência da Carta de 88. Florestan Fernandes, em páginas vigorosas do seu A Revolução Burguesa, argumentou no sentido de que a independência, animada pelo liberalismo, importou numa revolução encapuzada, que teria deixado raízes na nossa formação.

Decerto que a modalidade fraca de liberalismo que praticamos coexistiu desde o Império com um Estado que se sobrepunha à sociedade civil, considerada como refratária aos valores da civilização e, como tal, devendo ser exposta a uma longa e pertinaz ação pedagógica da parte do Estado, na forma da argumentação do visconde de Uruguai em seus textos sobre Direito Administrativo, cuja influência persistiu por gerações, como no caso de Oliveira Vianna, ideólogo que desempenhou papel central no processo de modernização desencadeado pela Revolução de 1930.

O tema-chave dessa política consistia no diagnóstico de que o Estado tinha braços curtos, que não lhe permitiriam agir de modo eficaz sobre uma população dispersa num território imenso e, em boa parte, ainda sujeita a costumes bárbaros. Se A Democracia na América, de Alexis de Tocqueville, era reverenciada por boa parte dos estadistas da época, suas lições seriam consideradas intempestivas aqui, por falta de uma sociedade ainda incapaz de assimilá-las.

O remédio institucional concebido para avizinhar o Estado do hinterland foi criar uma magistratura selecionada politicamente a fim de exercer sobre ele uma ação civilizatória. Na República, já no contexto de uma sociedade que se industrializava e conhecia conflitos no mundo do trabalho e sindicatos expressivos, adotou-se, por inspiração de Oliveira Vianna, a fórmula da ordenação corporativa, então em voga no mundo do trabalho europeu, que instalava o Judiciário como forte personagem no mercado de trabalho a fim de exercer controle sobre seus conflitos. Essa modelagem persistiu ao longo do tempo, reforçada pela criação, em 1932, da Justiça Eleitoral.

Seguiu-se à montagem desses novos instrumentos institucionais a construção de uma rede corporativa que, com o tempo, vai firmar uma identidade em torno dos interesses desses profissionais, cuja ação de início obedecia aos comandos e diretivas dos seus vértices institucionais. A Carta de 88, redigida por constituintes descrentes no poder reformador do Legislativo, confiou a novos institutos judiciais papéis quase legislativos, como no mandado de injunção, entre outros, e ampliou o número de agentes com papel ativo no controle de constitucionalidade das leis. Como a experiência vai demonstrar, essas inovações irão afetar o poder soberano, rebaixando sua capacidade discricionária e de governar o País.

Sem querer, silenciosamente uma mutação toma corpo na sociedade e na política no sentido de submetê-la a um governo de juízes. As eleições que se avizinham são o momento oportuno para que a sociedade retome seu destino em suas mãos e avive os partidos e a política, cortando pela raiz esse experimento nefasto a que estamos sendo submetidos.

 


Luiz Werneck Vianna: Lembrar junho de 2013

Cumpre derrotar nas urnas o que há de mais recessivo e anacrônico na nossa sociedade

Chegamos afinal, depois de muitas tropelias, ao ano das eleições. As ruas estão em silêncio, embora atentas, e os quartéis, entregues às suas fainas habituais. O rebuliço e as incertezas vêm do lugar menos previsível, o Poder Judiciário, pelas ações de alguns dos seus membros, embalados por concepções salvacionistas alheias às eventuais consequências dos seus atos. Seja como for, de ciência provada agora sabemos que nossas instituições estão dotadas de surpreendente resiliência, ainda de pé em meio a tantos anos de severa turbulência. Sem ufanismo, é forçoso reconhecer que a Carta de 88 tem provado ser uma âncora segura para a nossa democracia.

Aos poucos, os eixos em torno dos quais gira a conjuntura começam a se deslocar dos tribunais para os lugares afetos aos temas e procedimentos da soberania popular. Já se vive, embora tardiamente, o momento crucial em que partidos selecionam seus candidatos e programas, vale dizer, os rumos futuros a serem trilhados pelo País. Em que pesem os argumentos retóricos em defesa de paradigmas antes influentes, a questão incontornável é que, mesmo de modo silencioso, como é do nosso estilo, estamos deixando para trás o tempo da modernização que aqui vingou de Vargas a Dilma.

O melhor marcador dessa mudança não está, como supõem os que se satisfazem com explicações fáceis, tanto no programa reformista do governo Temer, mas, sobretudo, nas jornadas de junho de 2013, na verdade, um movimento massivo da juventude em torno de direitos, inclusive os de participação política. Na agenda de junho de 2013 não se faziam presentes os temas clássicos da modernização, antes hegemônicos, mas os da agenda do moderno, centrados nas questões das liberdades civis e públicas.

Indicar essa mutação, no entanto, não quer significar que o velho repertório que animou a época de fastígio dos programas nacional-desenvolvimentistas tenha sido varrido do mapa do nosso imaginário social. Eles estão aí e ainda devem estar presentes nesta próxima sucessão presidencial e nas futuras, mas sua capacidade de persuasão é claramente declinante, tal como se constata no fato decisivo de já ter iniciado uma migração em direção à direita política e às hostes conservadoras, lugares sociais hostis desde sempre ao programa nacional-popular.

Maro Lara Martins, em Interesse e Virtude: o ensaio sociológico brasileiro dos anos 1930 (no prelo), chamou a atenção para o fato capital de que modernização e modernismo nasceram de dois movimentos sociais coincidentes no tempo – o tenentismo é de 1922, o mesmo ano da Semana de Arte Moderna –, embora desde suas origens estivessem destinados a seguir trajetórias diferentes. Com a Revolução de 1930, a tópica da modernização será conduzida pelo recém-criado Ministério do Trabalho, dito o Ministério da Revolução, e a do modernismo pelo Ministério da Educação e Cultura, confiado a Gustavo Capanema, personalidade de forte prestígio entre os intelectuais da época, entre os quais Mário de Andrade, então ungido no papel de papa laico da cultura brasileira.

Assim, embora as ações dessas duas agências estatais gravitassem em órbitas distintas, nosso processo de modernização, ao contrário de outros casos nacionais, vem à luz encouraçado por uma política cultural inclusiva e valorizadora da vida popular, conquanto o Estado viesse a exercer uma ação tutelar sobre os sindicatos dos trabalhadores. A cultura política do nacional-popular nasce, portanto, sob o signo da incorporação, mantendo bem velado o que havia de autoritário na sua modelagem.

Contudo essa feliz combinação, mesmo que não intencional, entre as agendas da modernização e do moderno se sustentava em bases precárias, dependente da existência de um regime que garantisse as liberdades civis e públicas. O Estado Novo, que nos trouxe a Carta outorgada de 1937, feriu mortalmente essa alternativa, que, de resto, nunca tinha sido buscada como um fim consciente pelas elites políticas da época, somente ressurgindo, de modo encapuzado, décadas depois, sob os governos de JK e de Jango Goulart, com os movimentos de intelectuais de “ida ao povo” disseminados nos centros populares de cultura e de alfabetização popular.

O regime militar interrompeu essa benfazeja experiência, desencadeando feroz repressão sobre esses movimentos e seus intelectuais, prendendo e processando em massa, levando ao exílio centenas deles. Ao lado disso, recuperou as instituições e práticas vigentes no Estado Novo para o mundo do trabalho. A modernização dissocia-se radicalmente da pauta do moderno, perseguindo os fins de plena imposição do capitalismo entre nós, a partir de uma coalizão no poder, sob comando político da corporação militar, entre as elites empresariais da indústria e as elites agrárias tradicionais.

A democratização do País, como se sabe, não nos veio de uma ruptura com o regime anterior, e sim de uma transição, cujos termos implicavam, na prática, a preservação do estatuto da propriedade agrária tradicional. Nas novas circunstâncias do Brasil democratizado, contudo, o processo eleitoral traz de volta com o PSDB e, principalmente, com o PT a agenda do moderno, exemplar na sua crítica ao legado varguista em matéria sindical. O tema da autonomia dos movimentos sociais diante do Estado parecia ter ganho com a vitória de Lula a sua oportunidade de enraizamento na nossa história política.

Porém, em surpreendente guinada, o PT no governo absolve a Era Vargas. E, pior, valoriza a modernização autoritária levada a efeito no governo Geisel, que o governo Dilma tentará pateticamente radicalizar em condições já inteiramente adversas, levando à exaustão um modelo de política, hoje confinado ao que há de mais recessivo e anacrônico em nossa sociedade, que cumpre agora derrotar nas urnas.

 


Luiz Werneck Vianna: A sucessão e o novo espírito do tempo

O cenário pela frente não favorece previsões de desenlaces felizes para os nossos dilemas. A política brasileira encontra-se criptografada, indecifrável para os mortais comuns, que a cada dia são aturdidos pelos meios de comunicação com notícias de que o fim do nosso mundo está próximo e não há o que fazer para salvá-lo do pântano da corrupção em que estaria atolado. Nossos profetas do apocalipse são prisioneiros de suas fabulações sobre a História do País, que identificam como um experimento malsucedido a ser “passado a limpo” por sua intervenção redentora. Querem nos fazer crer que atuam em nome de ideais e sem interesse próprio, mas o gato está escondido com o rabo de fora, pois em meio à alaúza que provocam se pode entrever a manipulação da sucessão presidencial de 2018.

Essa sucessão abre uma janela de oportunidade para uma agenda inovadora que procure, em meio a um amplo processo de deliberação pública, identificar novos rumos legitimados pelo voto para o País. No entanto, caso se frustre esse caminho por desastradas ações dos agentes políticos, pode apontar para o derruimento do regime da Carta de 88, concedendo passagem às potências malignas que ora nos espreitam. O cenário que se tem pela frente, é forçoso reconhecer, não favorece previsões de desenlaces felizes para os dilemas com que ora nos confrontamos.

Aqui, ao que parece, Maquiavel foi banido do nosso repertório político desde o advento da Operação Lava Jato, há três anos presença dominante na conjuntura sem que, salvo exceções, a copiosa literatura que lhe é dedicada leve em conta as circunstâncias que envolvem as ações dos atores e dos fins que erraticamente perseguem. Desarmados de suas lições, anacronicamente recuamos ao medievo, atribuindo-se - “maquiavelicamente”? - precedência dos valores da moralidade sobre a razão política. Ignora-se que o realismo político que Maquiavel preconizava estava a serviço de um ideal cívico, qual seja o de criar na Itália um Estado capaz de livrá-la da dominação estrangeira.

No campo do Direito, é Weber o ignorado em sua veemente recusa às pretensões “patéticas”, em suas palavras, dos juízes que se comportam nos seus julgamentos em “nome de postulados de justiça social”. Exemplares, no caso, os juízes que desafiam a ordem racional-legal ao recusarem, em nome do que sua corporação entende como o justo, a aplicação a lei da reforma da Consolidação das Leis do Trabalho, a CLT.

Quem busca o futuro opera no plano do aqui e agora a partir de experiências acumuladas - a História não conhece o tempo vazio. Há sempre um começo, uns mais felizes que outros por propiciarem um terreno seguro para o bom andamento de suas sociedades, tal como Tocqueville caracterizava a singularidade do caso americano; outros, ao contrário, vão exigir esforços sempre renovados a fim de que a sociedade venha a encontrar, por ensaio e erro, um sistema de ordem que favoreça a sua reprodução ao longo do tempo.

Em nosso caso, dadas as condições de origem - uma colônia de exploração que logo recorreu ao trabalho escravo -, os “caminhos para a civilização”, que não nos seriam naturais, deveriam proceder de cima pela ação de uma elite a exercer um papel pedagógico que nos trouxesse da barbárie às luzes do ideário do liberalismo político, na luminosa análise de Euclides da Cunha em ensaio famoso. Desde aí o acesso ao moderno nos viria da ação de elites ilustradas, fórmula conservada pela República ao longo do processo de modernização que vai de Vargas a Lula.

Somos filhos dessa longa construção, de cujos lógica, arquitetura e estilo começamos a nos desprender quando o governo de Dilma Rousseff, distante um oceano do pragmatismo do seu mentor, hipotecou, em nome de suas convicções pessoais, a sorte da sua administração na tentativa arriscada de conceder sobrevida ao que, à vista de todos, Lula incluído, mais se assemelhava a um caso terminal. A própria presidente Dilma, logo após sua reeleição, vai reconhecer a exaustão do modelo vigente de capitalismo de Estado ao nomear o liberal Joaquim Levy para o Ministério da Fazenda.

Nesse sentido, o impeachment importou bem mais do que uma trivial crise política, na medida em que trouxe consigo a crítica da modelagem do nosso capitalismo centrado no papel do Estado, levado a uma situação falimentar no governo Dilma, crítica que se radicalizou quando foram sentidos os efeitos nefastos da severa depressão econômica que se abateu sobre o País. O passado deixou de iluminar o futuro, como amargamente agora constatamos, em que pesem os sucessos acumulados no curso do nosso longo processo de modernização.

Processos de modernização pelo alto, em suas variantes brandas, como os que ocorreram nos governos de JK, FHC e Lula, ou duras, incidentes no Estado Novo de 1937 e no recente regime militar, têm a característica comum de serem, mais ou menos, segundo os casos, refratários à auto-organização da vida social. Nosso sindicalismo, mais forte presença entre nós de vida associativa dos setores subalternos, que nasceu nos primeiros anos da República animado pelos princípios da autonomia, foi, como notório, incorporado à malha estatal pela chamada Revolução de 30, que, de fato, veio a estabelecer na política brasileira a modelagem típica dos processos de modernização autoritária.

A derrota dessa experiência, inesperada da forma como ocorreu - um impeachment encaminhado por um parlamentar a quem faltava densidade política contrariado em seus interesses, fundado em razões técnicas ininteligíveis para o homem comum -, deixou atrás de si um imenso vazio. Sem as escoras do nosso passado, que cederam pela ação corrosiva de um novo espírito do tempo, marchamos nas trevas. A hora da sucessão é mais que propícia para a descoberta de novas luzes que tenham sua fonte de energia na sociedade civil, aliás, já identificadas nas jornadas de junho de 2013.

 


Luiz Werneck Vianna: A política, os feitiços e os feiticeiros

Ainda há tempo para uma ação nacional que interrompa essa corrida às cegas rumo ao abismo

Qual o significado da campanha sem quartel para a derrubada do governo Temer vinda de círculos da direita em convergência com setores que reivindicam uma identidade à esquerda do espectro político? Certamente deve haver um. Mas qual? A esta altura parece claro que a via parlamentar não é propícia a esses propósitos, dado que o governo dispõe de folgada maioria nas duas Casas congressuais.

De outra parte, as ruas têm feito ouvidos moucos, ao menos até então, às incitações a manifestações de protesto contra o governo que lhes vêm dos meios de comunicação, em particular de sua rede mais poderosa e de ação mais capilar sobre a opinião pública, mantendo-se silenciosas. A intervenção militar, uma possibilidade teórica no quadro caótico que aí está, a quem serviria? Além de serem poucos os que a preconizam e de os militares não a desejarem, a experiência de 1964 deixou patente que as elites políticas que atuaram em favor de uma intervenção desse tipo foram logo decapitadas ou cooptadas pelo regime militar. Tais lições amargas não terão sido esquecidas, mesmo pelos que ora flertam com ela.

Então, o que é isso que temos pela frente? Dado que não é de todo plausível a hipótese de que a sociedade tenha ensandecido, como se faz demonstrar na vida cotidiana dos brasileiros que tocam sua vida no trabalho e nos estudos, em sua imensa maioria à margem de uma cena política que avaliam estar fora do seu raio de influência, o charivari nacional que nos atordoa tem sua fonte original na própria política e em suas instituições e atende pelo nome de sucessão presidencial.

Faz parte da nossa tradição republicana que as sucessões presidenciais, incluídas as que tiveram seu curso no regime militar, importem em crise, variando com as circunstâncias uma maior ou menor mobilização social suscitada por elas. Foi assim na sucessão de 1930, que pôs a nu, mais do que uma crise conjuntural, uma crise orgânica da ordem burguesa – para usar as categorias de Gramsci, um fino estudioso das crises políticas –, manifesta nas rebeliões tenentistas dos anos 20 e culminando com a Revolução de 1930, que importou a ultrapassagem do sistema agrário-exportador pelo urbano-industrial.

Igualmente na de 1955 – esta, de fato, apenas uma crise conjuntural –, assim como nas vésperas da sucessão de 1965, que prometia levar à vitória uma coalizão de centro-esquerda portadora de um programa de governo nacional popular, cujo desenlace dramático se efetivou no golpe de 1964 – outra crise de natureza orgânica. O regime militar que então se instalou veio a cumprir um programa de plena imposição do capitalismo no País, atraindo para a sua órbita o mundo agrário com políticas públicas que vieram a favorecer a emergência do agronegócio em regiões de conflitos por terra no hinterland. Fechavam-se, assim, as possibilidades, então presentes, para uma reiteração dos casos clássicos das revoluções no Terceiro Mundo que contaram com a presença decisiva do campesinato e dos trabalhadores do campo.

Nesta sucessão de 2018 não há fumaças no ar de crises orgânicas, além de estarem caindo no vazio as ordens de comando que nos chegam sem parar dos meios de comunicação que reclamam a imediata derrubada por fas ou nefas do governo constitucional. No caso, aliás, chama a atenção o fato esquisito de que a agenda da direita dita moderna, que tem sua ponta de lança em empresas de comunicação, guarda similitudes em vários aspectos com a governamental. Ademais, como notório, os atuais quadros dirigentes da economia têm sua origem no que se designa como o mercado e contam com sua confiança.

A referência ao texto de Marx sobre o 18 Brumário é batida, mas necessária, até por sua comicidade. Na França da Segunda República, duas dinastias, a dos Bourbons e a de Orleans, porfiavam em favor do retorno ao regime monárquico, mas como somente uma delas poderia beneficiar-se dessa troca de regime, acabaram tendo de se comportar como fiadoras da República de 1848 – que ambas odiavam –, enquanto uma delas não lograsse impor-se à facção rival. Desse imbróglio, como se sabe, não resultou nem República nem monarquia, mas a ordem imperial de Luís Bonaparte.

Aqui, nesta miserável conjuntura em que se vive, também os extremos que se repelem reciprocamente – a direita moderna e o PT e seus satélites – se veem compelidos a ações convergentes a fim de que na liça da sucessão, defenestrado o governo Temer, um quadro do PMDB de históricas relações com a nossa tradição republicana, só reste caminho para eles.

Contudo, como paira sobre a cabeça de um deles a ameaça real de o Judiciário tornar inviável sua candidatura, a direita dita moderna descortinaria à sua frente uma larga via aberta para seu velho projeto de se assenhorear plenamente do Estado, a fim de redesenhar a seu serviço as relações entre ele e a sociedade. Restaria o problema difícil, talvez insolúvel, de encontrar um candidato com o perfil adequado para a missão.

Mas há método nesta loucura em que estamos imersos, não estamos inteiramente à deriva sob o domínio dos fatos, pois há quem tenha a pretensão de dirigi-los. Todavia a arrogância do ator de querer submeter o destino a seus desígnios pode – como entre os gregos, que a denominavam húbris – ser considerada como um desafio aos deuses passível de punição, destinando a um outro, que se mantém em serena prudência em meio ao tumulto dessas paixões desvairadas, mesmo que não o queira, o objeto de suas ambições.

Ainda há tempo para uma ação política racional que interrompa essa corrida às cegas rumo ao abismo, sacrificando nossa incipiente democracia, que tanto nos custou, às ambições dos que perderam o fio terra com o mundo real e se entregaram às artes da feitiçaria política, esquecidos de que feitiços podem virar-se contra os feiticeiros.

 


Luiz Werneck Vianna: Um imenso tribunal  

Banir a atividade política é nos deixar entregues a um governo de juízes ou militar

Em outros tempos bicudos, não tão distantes desses que aí estão, celebrado poeta popular lançou a profecia de que, no andar da carruagem em que nos encontrávamos, iríamos tornar-nos um imenso Portugal. A predição não se cumpriu. Aliás, Portugal está muito bem, e as reviravoltas do destino nos conduziram a um lugar de fato maligno, convertendo-nos num imenso tribunal. Vítimas da nossa própria imprevidência, testemunhamos sem reagir a lenta degradação do nosso sistema político – salvo quando o Parlamento introduziu uma cláusula de barreira a fim de evitar uma malsã proliferação de partidos, a maior parte deles destituída de ideias e de alma, barrada por uma intervenção de fundo populista por parte do Supremo Tribunal.

A política, é lição sabida, quando não encontra nas instituições terreno que lhe seja próprio se manifesta em outros, inclusive naqueles criados para uma destinação que, por origem, não lhe deveriam caber. Recentemente, vimos como a intervenção da corporação militar que pôs fim ao regime da Carta de 1946, ao banir os partidos e as instituições de representação do povo, trouxe para si o monopólio da atividade política em nome da luta contra a corrupção e de uma suposta subversão comunista. Caberia a ela a missão de regeneração ética do Brasil e de assentar novos rumos para a modernização econômica do País.

Mas os militares não eram ingênuos nas coisas da política. Força decisiva na fundação da nossa República, tornaram-se desde então um poder moderador de fato, tendo acumulado longa experiência no trato com a nossa complexa realidade social e política – a trágica intervenção militar em Canudos serviu-lhes de amarga pia batismal e o tenentismo, nos anos 1920, de um processo de seleção dos seus quadros para o exercício do poder que lhe viria, parcialmente, com a revolução de 1930 e de forma plena com o golpe militar em 1964.

Com esse lastro, foram capazes de estabelecer bases sólidas para o regime autoritário que implantaram e alianças políticas que reforçassem seu domínio. Nessas alianças se mantiveram os seus princípios, em particular os que definiam como objetivos nacionais permanentes, não foram principistas, atentos às consequências e à realidade em torno. Sob essa orientação fizeram política com as oligarquias que a eles se associaram e as favoreceram para a realização de tópicos significativos de sua agenda de modernização capitalista do País – no caso, exemplar o agronegócio – e lhes assegurarem bases para sua permanência no poder. Com sua atenção à política, souberam reconhecer a hora da retirada quando seu regime se viu assediado por irrefreável onda de protestos vindos da sociedade civil e da oposição que lhe fazia o MDB no Parlamento, admitindo participar da transição que, mais à frente, nos traria a democracia da Carta de 88, que, por sinal, ora nos cumpre defender das ameaças que a rondam.

Hoje, mais uma evidência do desamor da nossa história pelas linhas retas – nascemos tortos, filhos quasímodos da combinação de uma institucionalidade política modelada nos princípios do liberalismo com a escravidão –, estamos novamente sob o risco de recair no domínio de corporações estranhas à política, no caso as das que se originam no Terceiro Poder, cujo gigantismo entre nós já extrapolou em muito os papéis que o notável jurista Mauro Cappelletti admitia como legítimo nas democracias modernas.

Com efeito, a atual invasão do Poder Judiciário sobre as dimensões da política e das relações sociais não encontra paralelo em outros casos nacionais. A categórica judicialização da política, que até há pouco designava uma patologia mansa, no caso brasileiro perdeu acuidade, pois se vive à beira de um governo de juízes, a pior das tiranias, visto que dela não há a quem recorrer. Não se trata agora de um juiz intervir com leituras criativas da lei em casos singulares, uma vez que seu objeto é a própria História do País que se encontra em tela – o Brasil necessitaria, na linguagem dos procuradores, secundada por vários magistrados, “ser passado a limpo”.

Tal operação, que lembra as malfadadas vassouras de Jânio Quadros, não separa alhos de bugalhos e deixa em seu rastro um território infértil para a política num país de mais de 200 milhões de habitantes que não pode prescindir dela para enfrentar suas abissais desigualdades sociais e regionais. Decerto que a chamada Operação Lava Jato tem produzido efeitos benfazejos e, nesse sentido, precisa ser preservada, desde que expurgada dos elementos messiânicos que a comprometem e têm caracterizado a ação de muitos dos seus protagonistas, inebriados pelos aplausos dos incautos e dos pescadores em águas turvas.

O gênio de Gilberto Freyre já nos tinha advertido de que a especificidade da civilização brasileira se caracterizava em pôr antagonismos em equilíbrio, tópica bem estudada por Ricardo Benzaquen de Araújo em seu belo Guerra e Paz. Aqui, a tradição e o arcaico têm convivido com o moderno e a modernização, e temos sabido tirar proveito dessa ambiguidade para forjar nossa civilização. Somos, pela natureza da nossa formação, compelidos às artes da dialética, e a ética puritana nunca medrou entre nós, que mantemos parentesco com o barroco – tema bem desenvolvido por Rubem Barbosa Filho em Tradição e Artifício (B.H, UFMG, 1998).

Entre nós, equilibrar antagonismos foi operação que coube à política, cenário bem diverso do caso americano, que, no celebrado argumento de Tocqueville, reduziu a um mínimo, pela feliz conformação da sua formação histórica, a intermediação dessa dimensão na vida social, dado que estaria animada desde sua origem por práticas de auto-organização. Banir ou suspender a atividade política a pretexto de moralizá-la é nos deixar no vácuo, entregues a um governo de juízes ou a uma recaída num governo militar, e esse é um desastre com que contamos tempo para evitar.

 

 

 


IHU On-Line: Entrevista especial com Luiz Werneck Vianna

• A política sumiu, esvaneceu, perdeu força, de modo que as corporações emergiram e estão tomando conta do país

• Ou aparece uma política de moderação, ou então nós vamos ladeira abaixo

• O judiciário não é inocente em relação à crise que aí está

• O Judiciário não pode se sobrepor ao mundo da política. Mas isso não significa se curvar a ela. Essa é uma dialética difícil

• Temos que ter sensibilidade e inteligência política para evitar os furacões, eles nos rondam, eles estão nos rondando

• Não se passa o país a limpo nem por força dos civis, nem por força das canetas ilustradas dos nossos magistrados

• Não há inocente na política brasileira, aliás, não se faz política nem aqui e nem alhures com inocência; a política é um jogo duro, bruto

• Não há como pensar no tema da moralidade sem pensar no tema do trabalho

• A cultura política que está se ensejando aí é a da União Democrática Nacional – UDN

IHU On-Line 

A principal constatação ao analisar a continuidade da crise política é que a força das corporações, especialmente a do judiciário, tem se contraposto à política, diz o sociólogo Luiz Werneck Vianna à IHU On-Line. “A política sumiu, esvaneceu, perdeu força, de modo que as corporações emergiram e estão tomando conta do país”, afirma na entrevista a seguir, concedida por telefone. Um exemplo disso é que as corporações do judiciário estão “chamando os temas da administração para si. Não há medida que o governo tome sem que sofra uma contestação do judiciário, seja na questão da Amazônia, seja na questão dos preços do combustível”, argumenta.

Na avaliação do sociólogo, a atual atuação do judiciário tem como finalidade “passar a história do país a limpo”, mas “ele não tem condições de fazer isso apenas com papel e caneta, através de sentenças.

O processo de depuração da política do país é um processo que não pode ser feito assim, a fórceps”. Segundo Werneck, as ações e sentenças dos juízes brasileiros não deveriam ser fundamentadas apenas em princípios, mas, antes de tudo, em cálculos que tragam as melhores consequências para o país. “Os nossos juízes não são consequencialistas, isto é, não pensam e não calculam as consequências de seus atos. Na verdade, eles são orientados por princípios que querem levar a ferro e fogo, mas esses princípios não vêm da política, e sim das leis. (...) Essa indiferença quanto à política faz com que as suas intervenções, ao invés de nos levarem a uma estabilidade, a uma situação de tranquilidade institucional, apenas agravem a situação”, defende.

Ao comentar brevemente a decisão do Supremo Tribunal Federal - STF de encaminhar à Câmara dos Deputados o pedido de investigação do presidente Temer, Werneck Vianna recorre novamente ao argumento consequencialista e questiona: “Qual é a consequência de derrubar o presidente Temer agora, faltando pouquíssimo tempo para a sucessão presidencial? Por que não conduzir a operação Lava Jato de forma que ela cumpra seus efeitos, mas ao mesmo tempo respeite a situação que o país vive, de instabilidade?” E responde: “Se a Câmara decidir que o presidente deve ser denunciado, aí seu mandato será suspenso, ele será processado e viveremos um pandemônio num momento em que a economia dá sinais de ressuscitação. Isso quer dizer o quê? Apenas ativar o mundo dos princípios e desconsiderar as consequências”.

Defender uma visão consequencialista do Direito, justifica, não significa “sugerir que se deva pôr panos quentes no que foi feito com o dinheiro público, com os negócios feitos de forma criminosa, com as relações criminosas entre a esfera pública e a esfera privada”. Ao contrário, afirma, “sou a favor de que se prossiga com a investigação, mas não outorgo a essa corporação do judiciário, não apoio que ela passe o país a limpo”. E conclui: “Quem tem que passar o país a limpo somos nós, a sociedade, e as instituições. (...). Nós estamos à beira de uma sucessão presidencial e essas são as questões que vão ser postas nessa sucessão e o povo vai votar, vai deliberar, e vai saber escolher, separar e discriminar o joio do trigo”.

Confira a entrevista.

IHU On-Line — Em meio a essa crise política, para onde deveríamos olhar agora? Qual é o fato mais relevante deste momento?

Luiz Werneck Vianna — Eu penso que a crise realmente se agrava agora com essas declarações das altas patentes do Exército brasileiro.

IHU On-Line — O senhor se refere à declaração do general da ativa do Exército Antonio Hamilton Martins Mourão, que defendeu a intervenção militar no país nesta semana?

Luiz Werneck Vianna — Sim, e que digamos, não foi considerada pelo chefe do Exército como algo a ser reprimido. O general Mourão não foi advertido e não será, ao que tudo indica; ao contrário, ele foi elogiado pela sua história, pelas suas posições. Enfim, tem um novo risco aí. Agora, a política sumiu, esvaneceu, perdeu força, de modo que as corporações emergiram e estão tomando conta do país. A força das corporações entre nós vem de muito longe. No caso da corporação militar, vem da República, que é obra, em boa parte, da intervenção militar.

IHU On-Line — Embora o general Mourão não tenha sido punido, o comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, disse que a possibilidade de intervenção militar está fora de cogitação. Mesmo assim o senhor acha que há esse risco?

Luiz Werneck Vianna — É, mas onde há fumaça, há fogo. E há muito tempo não vinha fumaça daí, de modo que veio. A preocupação com a sorte do país, com os desequilíbrios que hoje ele enfrenta, é geral e isso afeta também os militares. Agora, até onde isso vai, não sabemos, mas estamos numa corrida contra o tempo: ou encontramos uma forma institucional, que obedeça aos ritos constitucionais de resolver logo essa crise, ou então tudo é possível.

IHU On-Line — Quais são os sinais que evidencia e que o fazem afirmar que a força das corporações está se sobrepondo à política?

Luiz Werneck Vianna — Esse é o tema de fundo: as corporações do judiciário também apareceram com muita força, chamando os temas da administração para si. Não há medida que o governo tome sem que sofra uma contestação do judiciário, seja na questão da Amazônia, seja na questão dos preços do combustível. A partir do começo deste século houve a reação – que já estava presente nos anos 90 – de alguns setores do judiciário por conta das privatizações. Isso veio avançando, especialmente com certas intervenções do Supremo Tribunal Federal, e uma dessas intervenções está na raiz da crise atual que nós vivemos, que foi a decisão que decretou a inconstitucionalidade da reforma política, que introduziu a cláusula de barreira, e aí houve a proliferação desenfreada dos partidos, o que veio a complicar ainda mais a governabilidade do país.

Então, o Judiciário não é inocente em relação à crise que aí está. Nós poderíamos ter um sistema político menos agreste, menos hostil à tomada de decisões do que esse que temos agora, com uma multidão de partidos e uma série de partidos esperando a sua institucionalização.

A administração por 13 anos do PT também não ajudou no aperfeiçoamento das instituições, e na raiz dessa crise também está o fracasso da administração petista, especialmente a de Dilma, que levou à crise econômica. Então, temos uma crise política, uma crise econômica, a crise social que é permanente e se manifesta com brutalidade no Rio de Janeiro, e agora esse embrião de crise militar – não estou dizendo que essa é uma crise plena, mas ela está presente. Algo dela já apareceu.

IHU On-Line — Qual seria a “dose certa” de intervenção do judiciário na política e nas ações do executivo? Como, a partir da crise atual, pensar o aperfeiçoamento do judiciário?
Estamos numa corrida contra o tempo: ou encontramos uma forma institucional, que obedeça aos ritos constitucionais de resolver logo essa crise, ou então tudo é possível

Luiz Werneck Vianna — O Judiciário perdeu a mão. Nós somos hoje o país em que a presença do judiciário na política não encontra paralelo no mundo. É uma invasão sem medida, especialmente com a apuração dessas relações estranhas e espúrias entre executivo e legislativo e entre o poder público e o poder privado, que suscitaram esses escândalos que por hora são objeto da Operação Lava Jato.

Então, o Judiciário é capaz de dizer ao Brasil que o país precisa ser passado a limpo, e que quem passará o país a limpo é o próprio judiciário. Mas ele não tem condições de fazer isso apenas com papel e caneta, através de sentenças. O processo de depuração da política do país é um processo que não pode ser feito assim, a fórceps. Os nossos juízes não são consequencialistas, isto é, não pensam e não calculam as consequências de seus atos. Na verdade, eles são orientados por princípios que querem levar a ferro e fogo, mas esses princípios não vêm da política, e sim das leis.

Essa indiferença quanto à política faz com que as suas intervenções, ao invés de nos levarem a uma estabilidade, a uma situação de tranquilidade institucional, apenas agravem a situação. O procurador-geral, [Rodrigo] Janot, agiu como um macaco em loja de louças, querendo pôr as coisas no lugar, quebrou tudo e fez com que a política se tornasse uma atividade incapaz de dar conta da situação do país. Na medida em que isso ocorre, outros personagens começam a emergir: uma outra corporação, a corporação militar. Se isso vai prosperar, a essa altura é cedo para prognosticar. Agora, que esses elementos dessa intervenção já estão presentes, isso não se pode negar.

IHU On-Line — Qual seria a alternativa à atuação do Janot?

Luiz Werneck Vianna — Atentar para as consequências. Vou recompor uma situação: os militares fizeram uma intervenção militar em 1964 e fecharam o Congresso, mas logo depois readmitiram a política, abriram o Congresso, e mais, fizeram alianças com setores sociais relevantes, inclusive com as oligarquias tradicionais, que foram selecionadas para exercer poder em muitos estados que ali estavam. E com isso, porque eles calcularam as consequências, puderam persistir por tanto tempo; eles não foram principistas. Eles agiram com seus princípios de conduzir o país à grandeza, ao crescimento, à expansão burguesa.

Essa corporação que hoje exerce esse protagonismo, a corporação dos magistrados, não tem essa percepção política e a percepção de que tem que agir de forma a atentar para as consequências de seus atos. Qual é a consequência de derrubar o presidente Temer agora, faltando pouquíssimo tempo para a sucessão presidencial? Por que não conduzir a Operação Lava Jato de forma que ela cumpra seus efeitos, mas ao mesmo tempo respeite a situação que o país vive, de instabilidade?

Nós nascemos com desequilíbrios muito fortes. Gilberto Freyre falava que o Brasil era o país que sabia equilibrar antagonismos. Mas hoje não tem poder que equilibre os antagonismos. Eles estão correndo à solta, com fúria e isso torna a institucionalidade muito débil. A Carta de 88 e a democracia brasileira, nesse sentido, estão em risco. Ou aparece uma política de moderação, ou então nós vamos ladeira abaixo.

As ruas estão em silêncio, mas se elas por ventura vierem a se manifestar – não estou dizendo que isso está no horizonte, mas é uma possibilidade –, toda uma obra que estamos tentando realizar desde a democratização do país pode ir por água baixo. Pensar e cultivar e preservar a luta contra a corrupção é necessário, isso tem que ser levado à frente, mas as consequências têm que ser sopesadas. Isso não pode ser conduzido de forma principista. Passar o Brasil a limpo é o quê? É começar desde a colonização? A escravidão foi um fato. Quando fundamos o nosso Estado-nação, o fundamos sob princípios liberais, mas ao mesmo tempo mantivemos a escravidão. Então, esse tipo de antagonismo que se manteve entre nós é muito difícil de ser equilibrado. Quem equilibrou isso foi a política, o poder moderador do Império. Os militares na República se comportaram como poder moderador.

Esse Judiciário que aí está não está se comportando como poder moderador.

IHU On-Line — Mas o melhor para a nossa sociedade é manter esses antagonismos?

Luiz Werneck Vianna — Mas vamos reescrever a história toda? Não há como reescrever. Nós não somos a América, que nasceu a partir de um princípio e ficou fixa e obediente a esse princípio. Nós não conhecemos o interesse bem compreendido, do qual falava [Alexis de] Tocqueville, por exemplo.

IHU On-Line — Mas esse não é um problema nosso? Agora não seria justamente o momento de reverter esse quadro?

Luiz Werneck Vianna — Sim, mas como se faz isso? O problema é justamente como se faz isso. Como passar o país a limpo sem quebrá-lo?

IHU On-Line — Essa falta de percepção que o senhor aponta, de o Judiciário não pensar nas consequências das suas decisões, não pode ser vista como um sintoma da nossa situação histórica, em que não havia punição para políticos e a atuação do Judiciário estava sempre atrelada à política?

Luiz Werneck Vianna — Então vamos puni-los, vamos fechar o Brasil (risos). A história do Brasil sempre conheceu esses elementos, e esse moralismo não tem nada a ver com moralidade pública. Moralidade pública é algo que tem um sentido muito mais geral e profundo. A cultura política que está se ensejando aí é a da União Democrática Nacional - UDN. As classes médias brasileiras se converteram a um udenismo muito preocupante. Moralidade pública não é a mesma coisa que moralismo. Moralidade pública nesta altura é conservar a Constituição, as nossas instituições. Agora, e os crimes cometidos? Devem ser apurados na forma da lei, com respeito à lei, sem açodamento, sem as piruetas que o procurador-geral, Janot, cometeu, sem esse salvacionismo e o messianismo que tomou conta da corporação dos procuradores e que atingiu alguns magistrados. Não serão eles que vão passar o país a limpo. Eles podem até ter dado um bom pontapé inicial nisso, mas passar o país a limpo, somos nós que vamos passar. É a política que vai passar. Nós estamos à beira de uma sucessão presidencial e essas são as questões que vão ser postas nessa sucessão e o povo vai votar, vai deliberar, e vai saber escolher, separar e discriminar o joio do trigo.

Esses anos, especialmente esses últimos dez anos, têm sido um período de um duro aprendizado para a sociedade. Ela está atenta. Ela está imobilizada, mas está atenta e está registrando e se autoeducando, e especialmente num processo sucessório, as propostas virão. Passar o país a limpo é isso. Não é entregá-lo a uma corporação de ungidos.

IHU On-Line — Quais devem ser as consequências da decisão do STF, de aceitar o pedido de investigação do presidente Temer, solicitado por Janot, e enviá-lo para a Câmara?

Luiz Werneck Vianna — A decisão do Supremo não entra no mérito; ela apenas encaminha à Câmara dos Deputados, conforme reza a Constituição, e a Câmaravai decidir. Se a Câmara decidir que o presidente deve ser denunciado, aí seu mandato será suspenso, ele será processado e viveremos um pandemônio num momento em que a economia dá sinais de ressuscitação. Isso quer dizer o quê? Apenas ativar o mundo dos princípios e desconsiderar as consequências.

Eu até diria que os militares foram muito mais atentos às consequências do que a corporação dos magistrados tem sido hoje, tanto é que quando eles entenderam que era a hora da retirada, eles negociaram uma transição. Alguns dos nossos magistrados não atentam para isso. A decisão do Tribunal Superior Eleitoral que preservou e absolveu a chapa Dilma-Temer foi uma decisão consequencialista. Os fundamentos foram todos dessa natureza, de natureza política. As provas que o relator Herman Benjamin apresentou são provas consistentes. O tribunal analisou as provas, mas se as levasse em conta, o resultado seria catastrófico.

O voto do ministro Gilmar Mendes foi consequencialista, porque ele é tipicamente consequencialista. Aliás, o consequencialismo foi tema de um dos maiores filósofos políticos de nosso tempo, Ronald Dworkin, que é referenciado por boa parte dos magistrados que estão no STF, como o ministro Barroso, que tem uma obra na qual cultua o pensamento do Dworkin, que preconiza a participação do Direito na vida pública, mas sempre atento às consequências dos seus atos, porque o judiciário não pode se sobrepor ao mundo da política. Mas isso não significa se curvar a ela. Essa é uma dialética difícil. Esse é um tema do direito contemporâneo e surge para que o juiz leve em consideração as consequências de seus atos. Há um caso americano clássico que foi decidido nesses termos: estava sendo construída uma barragem, mas durante a construção se descobriu que uma determinada espécie seria erradicada. Então, em defesa dessa espécie, foi-se à Suprema Corte americana para barrar essa obra que já estava em andamento. A decisão do tribunal foi consequencialista: dado que a obra já foi iniciada, vamos concluí-la, mesmo sabendo que aquela espécie ficaria ameaçada.

IHU On-Line — Mas há como saber a priori quais seriam as melhores consequências?

Luiz Werneck Vianna — Na verdade não, mas nós estamos verificando, dia a dia, no nosso cotidiano, quais são os riscos que se avolumam e um deles agora — o qual acredito que você não está considerando — é a possibilidade de uma interrupção da vida democrática — mais uma. A Miriam Leitão, no O Globo de hoje, na sua coluna, talvez de forma exagerada, está trabalhando com essa hipótese de forma muito forte.

IHU On-Line — Mas optar pelo consequencialismo não leva em conta apenas as consequências a curto prazo e não a longo prazo e, de outro lado, não leva também a uma desilusão em relação à justiça e à própria política?

Luiz Werneck Vianna — Eu sou favorável à intervenção que se tem feito contra a corrupção na política brasileira, e tenho defendido, sempre que posso, a Operação Lava Jato; isso é uma coisa. Agora, esses magistrados e essa corporação não estão soltos no mundo, eles não podem operar livremente, independentemente do que vai ocorrer no entorno.

O modelo do bom juiz de Ronald Dworkin é o juiz “Hércules”, aquele que é capaz de resolver situações difíceis pensando nas consequências. Ele resolve, mas “não joga a criança fora com a água do banho”. E a “água do banho”, nesse caso, é a democracia brasileira. Se nós formos obedecer a esse impulso moralista que está animando os setores das classes médias brasileiras — se levar isso às últimas consequências —, teremos uma terra desertificada, infértil para a atividade política. É preciso separar “alhos de bugalhos”, não “botar tudo no mesmo saco”.

Com isso, não estou tentando sugerir que se deva pôr panos quentes no que foi feito com o dinheiro público, com os negócios feitos de forma criminosa, com as relações criminosas entre a esfera pública e a esfera privada. Sou a favor de que se prossiga com a investigação, mas eu não outorgo a essa corporação do Judiciário, não apoio que ela passe o país a limpo. Quem tem que passar o país a limpo somos nós, a sociedade, e as instituições. Agora, há nuvens negras no horizonte, que se acumulam. Nós temos que ter sensibilidade e inteligência política para evitar os furacões, eles nos rondam, eles estão nos rondando.

IHU On-Line — Com a saída de Janot da Procuradoria-Geral da República e a entrada de Raquel Dodge, vislumbra alguma mudança na atuação da PGR daqui para frente?

Luiz Werneck Vianna — A expectativa é que sim.

IHU On-Line — Na outra entrevista que nos concedeu, o senhor disse que a expectativa era a de que agora a PGR atuaria segundo a lei.

Luiz Werneck Vianna — A expectativa é a de que a ministra Raquel Dodge tenha um comportamento mais consentâneo com as dificuldades que estamos vivendo. Isso não quer dizer que não se atente, que não se puna e que não se elucide um tipo de crime que tomou conta da política brasileira; minha posição não é essa. Minha posição é de que este é um processo de limpeza do país, para usar essas categorias que os procuradores gostam, é um processo que passa por eles e por nós, pelo Judiciário e pela política. Se nós destruirmos a política, como estamos nos esforçando cada vez mais em fazer, ou nós teremos, de um lado, um governo de juízes, que é a pior das tiranias, porque delas não tem a quem se socorrer; ou teremos uma recaída de intervenção militar. São duas opções trágicas. Nós temos que evitá-las, temos que salvar a Carta de 88, as nossas instituições e temos que chegar à sucessão presidencial de 2018, onde teremos — e já estamos tendo — espaço para novas ideias, novos candidatos e novas personagens. Passar o país a limpo é isso; não se passa o país a limpo nem por força dos civis, nem por força das canetas ilustradas dos nossos magistrados.

Não há [Emmanuel] Macron à vista. Mas temos tempo para descobri-lo, para construir essa identidade. Faltam meses para a sucessão presidencial, é tempo de encontrarmos solução. Eu espero que essa procuradora, a Dra. Raquel, seja fiel à moderação das suas declarações anteriores, à sua história de moderação, embora tenha uma identidade também construída na luta contra a corrupção política. É uma presença, por hora, alvissareira.

IHU On-Line — Especificamente em relação à condução da Lava Jato, diante dos últimos acontecimentos, como o depoimento dos irmãos Batista, a prisão de Geddel e o depoimento de Palocci, diria que ela está no rumo certo?

Luiz Werneck Vianna — Está andando e deve continuar a andar, mas não de forma endereçada como foi a incursão da Procuradoria-Geral da República contra o presidente da República. Agora está provado que houve uma armação, sobretudo, no que se revela o papel daquele jovem procurador [Marcelo Miller], que era o “homem forte” do Janot, e que participou da armação e armou com o Joesley [Batista] naquela conversa com o presidente da República. Não há inocente na política brasileira, aliás, não se faz política nem aqui e nem alhures com inocência; a política é um jogo duro, bruto. A política não é um lugar para a prática de anjos, o que não quer dizer que devamos nos render às “artes do Diabo”.

A frase famosa do [Otto] Bismarck não é para ser esquecida: Se as pessoas soubessem como as leis são feitas e soubessem como as salsichas são feitas, ninguém as comeria, ou seja, as leis são feitas tal como as salsichas. Há leis boas que asseguram a ordem, que criam direitos e por isso esse é um mundo muito complicado, é um jogo de interesses muito perigoso, e é por isso que é preciso atuar nele sabendo manter seus princípios, mas negociando atento ao que está no entorno.

IHU On-Line – Na quarta-feira, 20-09-2017, a Câmara aprovou o fim das coligações para as eleições de deputados e vereadores, mas a medida só entrará em vigor a partir de 2020. Isso pode ter um efeito na política?

Luiz Werneck Vianna — 2020 me pareceu uma decisão incorreta, melhor seria agora, mas, enfim, se for isso é melhor que nada. E a cláusula de barreira, que já era para estar vigente há muito tempo, se não fosse o Supremo alterá-la por uma medida populista e tê-la declarado como condicional, também passou.

IHU On-Line — Como o senhor avalia a situação social do país, embora não tenha havido manifestações nos últimos meses?

Luiz Werneck Vianna — O país está atento, está registrando o que está se passando, mas não encontrou ainda a hora da sua manifestação, até porque as ruas estão caladas, o que não quer dizer que vão ficar assim. Uma fagulha pode desencadear um novo ciclo de manifestações de resultados imprevisíveis.

IHU On-Line — E a economia está melhorando? Por que o senhor avalia que a economia está dando sinais de recuperação?

Luiz Werneck Vianna — A economia dá sinais de recuperação, agora, se eles são sustentáveis, eu não tenho condições de avaliar. Os sinais estão presentes e torço para que eles se afirmem com mais força, porque é preciso reanimar o mercado e trazer essa multidão de desempregados para a vida laborativa. Não há como pensar no tema da moralidade sem pensar no tema do trabalho. É preciso que o país enfrente as suas dificuldades mais duras do ponto de vista da sua população: tem que criar emprego, reativar a economia e dar oportunidade para as pessoas. Ficamos reféns das leituras dos jornais que apenas transcorrem no mundo da moralidade, no mundo angelical das entidades morais, mas não se trata disso. Nós temos que desencavar, tirar e extrair do desemprego milhões de pessoas — não são poucas, são 13 milhões de pessoas — e dar oportunidade aos jovens que estão chegando ao mundo e não encontram o que fazer, não encontram uma ocupação digna a ser exercida.

IHU On-Line — Recentemente foi aprovada a reforma trabalhista, a qual muitos sociólogos estão criticando. Como o senhor avalia essa reforma?

Luiz Werneck Vianna — Tem elementos interessantes, sobretudo aqueles que extraem os sindicatos da tutela estatal, das relações espúrias do Estado, como tem sido desde 1930. Nós precisamos de sindicatos fortes, combativos, não se faz um país sem um sindicalismo potente. A Inglaterra foi feita com um sindicalismo potente, a França idem. O nosso sindicato ficou alinhado, refestelado nas antessalas palacianas; precisamos de um sindicalismo livre e combativo, muito combativo.

Essa Reforma Trabalhista, no essencial, vai nessa direção. Cabe a nós, aos trabalhadores, ativar o sindicato, não ficar “esperando a chuva dos céus”. Ao longo dessa administração petista, qual tem sido a demonstração de vigor do nosso sindicato, salvo colher direitos que lhes são adjudicados de cima para baixo? Não se faz um país sem sindicato forte, e sindicato forte é autônomo, tem que começar pela autonomia.

IHU On-Line — Há espaço para reativar o sindicalismo nos dias de hoje?

Luiz Werneck Vianna — Temos que reativá-lo, isso cabe aos trabalhadores. O problema é que a esquerda brasileira está em frangalhos, ela viveu muito tempo abraçada com esse Estado que está aí, com as estruturas do Estado. Esse é o país da “estadofilia”. Precisamos criar um país da sociedade civil, da energia dos que vêm de baixo. Nós temos que recriar a esquerda no Brasil. O que aconteceu com a Teologia da Libertação, que era um movimento que favorecia a animação dos que vinham de baixo? A hierarquia católica a escondeu. Nós vivemos nos anos 80 um mundo de associativismo, inclusive nas camadas médias. O PT era um partido que estimulava o associativismo, que criticava as estruturas sindicais corporativas. Mas hoje ficamos sem a Teologia da Libertação e sem o PT autonomista, só ficamos gravitando em torno do Estado e deu nisso aí. Isso precisa ser recriado, reconstruído, nós precisamos de tempo, de liberdade e de serenidade.

IHU On-Line — Qual sua percepção do governo Crivella?

Luiz Werneck Vianna — Ele está acuado, como todos os governos, sem recursos. Mas enfim, a chamada “administração escolar” parece estar sendo encaminhada de forma razoável. O tema da educação é um tema central na nossa realidade. Enfim, o governo Crivella não inspira devoções, mas pelo que estou sentindo agora, também não deve ser escarmentado. Vamos ver, vamos dar um pouco de tempo.