Merval Pereira: Quase confissão
27 de março de 2019lula,O Globo,Merval PereiraPOLÍTICA HOJE
Todo político quer ser acusado de caixa 2, e não de corrupção e lavagem de dinheiro, que valeram a Lula a condenação
O pedido da defesa para que o processo que resultou na condenação do ex-presidente Lula pelo tríplex do Guarujá vá para a Justiça Eleitoral, além de uma tentativa patética de chicana, é quase uma confissão de culpa.
Ele não foi condenado por caixa 2, mas sua defesa alega que o processo acusa Lula de ter liderado um esquema de arrecadação de dinheiro para custear campanhas eleitorais do PT e de partidos aliados.
Todo político quer ser acusado de caixa 2, e não de corrupção e lavagem de dinheiro, que valeram a Lula uma condenação de 12 anos e um mês. Querer se beneficiar da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que mandou para a Justiça Eleitoral os crimes conexos ao caixa 2 é também admitir, o que nega até hoje, a existência de um fundo formado pelo dinheiro de propina em obras públicas para financiar as campanhas eleitorais de seu partido.
Ganhar de empreiteiras um tríplex na praia ou melhorias no sítio em Atibaia que usava como se fosse seu, dificilmente, pode ser considerado um crime eleitoral. No limite, o ex-presidente terá desviado dinheiro da propina para a campanha eleitoral para uso próprio, o que descaracteriza a finalidade política. E, como os desvios foram de dinheiro público, através da Petrobras e de outras estatais, não existe caixa 2, mas sim peculato, como ficou decidido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento do mensalão.
Lula volta, quase 14 anos depois, a utilizar-se de uma estratégia de defesa montada pelo então ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos para amenizar as acusações contra o PT, pois naquela época o crime eleitoral quase nunca levava políticos para a cadeia. Ainda hoje pelo menos a percepção continua a mesma.
Em 2005, no auge das acusações sobre o mensalão, o então presidente em duas oportunidades jogou para o caixa 2 o esquema de corrupção que montou em seu governo. Em julho, em entrevista no “Fantástico”, da Rede Globo, gravada em Paris, Lula disse que “o que o PT fez, do ponto de vista eleitoral, é o que é feito no Brasil sistematicamente”.
Em novembro, em entrevista no “Roda Viva” da TV Cultura, Lula disse que a denúncia do deputado cassado Roberto Jefferson revelou o caixa 2 nas campanhas eleitorais do PT, o que o então presidente da República classificou como uma ação “contra a história do próprio partido”.
Agora, Lula, depois de tantos anos de revelações terríveis sobre a corrupção institucionalizada que patrocinou nos governos do PT, comprovadamente não contra a história do partido, quer através de sua defesa que essa corrupção, que de fato foi geradora das benesses de que ele e sua família usufruíram, seja transformada em ações de cunho político-eleitoral.
É como se o ex-governador Sérgio Cabral, que depois de anos preso confessou afinal seu esquema de corrupção, alegasse que tudo o que ganhou de propina — joias, helicópteros, roupas de grife, bebidas caras —tinha um objetivo político-eleitoral.
A única maneira de essa chicana dar certo seria os juízes do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que vão julgar nos próximos dias os recursos a favor de Lula, aceitarem a tese de que o ex-presidente, por ser o chefe da organização criminosa que atuou durante os anos petistas, usou o caixa 2 do partido para obter o tríplex e, por extensão, também o sítio de Atibaia.
Mas o simples senso comum, além da delação premiada do ex-ministro da Fazenda Antonio Palloci e de outros, impede que essa tramoia dê certo.
Mais confissões
Outro que acabou confessando seus crimes foi o terrorista Cesare Battisti, que admitiu a participação direta e o envolvimento em quatro assassinatos durante interrogatório feito na prisão pelo procurador Alberto Nobili, responsável pelo grupo antiterrorista da cidade italiana de Milão.
Na confissão, Battisti disse que alegava inocência para obter apoio político da esquerda do México, da França e do Brasil, principalmente do ex-presidente Lula, que proibiu sua extradição, autorizada pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
O ex-ministro da Justiça Tarso Genro, que pediu a Lula que não extraditasse o terrorista agora confesso, e o ex-senador Eduardo Suplicy ainda alimentam dúvidas sobre sua culpabilidade. Querem saber por que Battisti confessou. Muito simples: perdeu a proteção dos governos de esquerda.
Míriam Leitão: Reforma no meio das trapalhadas
27 de março de 2019governo bolsonaro,Bolsonaro,reforma da previdência,Míriam Leitão,O GloboPOLÍTICA HOJE
Reforma da Previdência está atolada na CCJ. Governo comete erros em sequência e se mostra incapaz de organizar forças
A confusão de ontem na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) era esperada. Como o ministro da Economia, Paulo Guedes, comunicou algumas horas antes que não iria e mandaria representante, evidentemente haveria reação. Com isso, atrasou-se mais um pouco a tramitação do projeto da Previdência. Todo o episódio mostra o grau de descoordenação do governo. E como se não fosse confusão suficiente, um dia depois de desprestigiar a Câmara, Guedes confirmou a ida hoje ao Senado. No fim do dia, a Câmara manda um recado forte à equipe econômica ao aprovar a emenda do Orçamento impositivo, que é o oposto do que o Ministério da Economia quer fazer.
A tramitação começa na Câmara, então o lógico é que fosse lá o primeiro comparecimento do ministro. Mas ele vai é ao Senado. A CCJ era considerada a etapa mais fácil. A ser queimada rapidamente. A discussão é apenas para admissibilidade da proposta e exige cinco sessões em plenário. O projeto de Temer ficou uma semana na CCJ. Foi recebido no dia 7 de dezembro e aprovado na madrugada do dia 15. O atual chegou na CCJ no dia 22 de fevereiro, mas só no dia 13 de março foi instalada a Comissão e ainda nem teve seu relator indicado. Senão há relator, não há parecer e nada está valendo ainda, um mês e 5 dias depois. A reforma da Previdência de Bolsonaro está na verdade atolada na CCJ, comissão que ontem foi palco da briga que impediu o secretário Rogério Marinho de falar.
Depois de passar lá é que vem a etapa difícil, o debate do projeto em si na Comissão Especial. Na PEC 287, houve um período de três meses entre a instalação dessa Comissão, que aconteceu depois do recesso, até a aprovação do substitutivo do deputado Arthur Maia (DEM-BA), no dia 9 de maio de 2017. Poucos dias depois, no dia 17, a divulgação das gravações do empresário Joesley Batista com o então presidente fez aquele governo perder o rumo e o projeto.
Desta vez, o que se tem é uma administração no seu início, que tinha muito mais chances de andamento rápido do projeto. Mas o governo comete erros seguidos e se mostra incapaz de organizar as forças, mesmo dentro do seu próprio partido. O que houve ontem foi prova de “desarrumação e fragilidade” do governo, segundo o comentário de parlamentar que tende a votar a favor da reforma. O fato de não se conseguir um deputado que aceite relatar a admissibilidade da PEC é péssimo sinal.
A instalação da Comissão Especial é sempre difícil, os debates exigirão uma base coesa e congressistas dispostos a defender as propostas, além de maioria para aprovação. O problema é que o fogo amigo tem imperado até agora nesta massa disforme que pode vir a ser a base parlamentar.
Quanto tempo vai demorar a tramitação dessa proposta ninguém sabe, mas será preciso instalar a Comissão Especial e iniciar a discussão assim que passar na CCJ. A avaliação de especialistas é que pode demorar na Comissão Especial mais tempo do que a reforma do governo anterior porque é mais complexa. O que torna mais difícil aprovar neste semestre.
O manifesto dos 13 partidos que ontem apoiaram a reforma deixou claro os pontos dos quais discordam. Isso mostra no que o governo terá que ceder. Primeiro, a mudança no Benefício de Prestação Continuada (BPC). Esse ponto o governo já sabe que terá que entregar. A dúvida é porque incluiu um item que facilmente seria atacado por todos, enfraquecendo o apoio ao projeto. Afinal, para ter direito ao B PC hoje a pessoa precisa ter 65 anos e estar em condições de “miserabilidade”. O segundo ponto é o da aposentadoria rural. E o terceiro é mais complicado. É o da desconstitucionalização, que o governo acha importante e quer defender, masque será muito difícil aprovar.
O recado ontem à noite pela Câmara, ao aprovar o Orçamento impositivo, já é um aviso contra a outra reforma pré-anunciada, da desvinculação. Além disso, um alerta de que sem se organizara base, o governo será surpreendido o tempo todo.
Na verdade, o que o governo Bolsonaro deveria ter feito desde o começo, na avaliação de quem entende de tramitação e torce pela reforma, é aprovado o projeto que já tinha passado por todas estas etapas. Bastava uma emenda aglutinativa em plenário. Se isso estivesse aprovado, outras mudanças mais profundas poderiam ser apresentadas depois. O que fez o governo querer começar do zero foi só a vaidade de ter uma reforma para chamar de sua. Isso está levando o país a perder tempo. Muito tempo.
Vera Magalhães: Guedes se preserva
27 de março de 2019O Estado de S. Paulo,POLÍTICA HOJE,Paulo Guedesvera magalhães
Em meio à guerra que virou a (des)articulação política do governo, Paulo Guedes mostrou ter mais noção dos riscos políticos que aqueles que se dedicam à atividade há mais tempo e disputam eleições.
O ministro da Economia sabia que poderia ser entregue aos leões e virar presa fácil de uma Comissão de Constituição e Justiça que é presidida pelo PSL, mas sobre a qual o partido do governo não tem nenhum controle. Tanto é que nem relator da reforma da Previdência existe ainda.
Conhecedor do próprio gênio forte e pouco afeito a levar desaforo para a casa, Guedes preferiu se preservar como interlocutor ainda imune à desconfiança generalizada que tomou conta das relações entre Executivo e Legislativo – como forma, justamente, de ser o fiador da retomada da tramitação da reforma. Agiu como estrategista quando todos agem com o fígado.
Guedes tem mantido as pontes com Rodrigo Maia (DEM-RJ), a quem avisou previamente que não iria à CCJ. Tem sido uma voz no governo a tentar convencer Bolsonaro da importância de ter o presidente da Câmara como aliado, e do risco de tê-lo como inimigo.
Mas prega no deserto: mesmo depois de assegurar ao núcleo de ministros mais próximos que desarmaria a difamação a Maia nas redes, o próprio Bolsonaro postou vídeo com ataques ao deputado no Twitter. Ainda ontem esses petardos continuavam a ser lançados, alguns direto da Virgínia, por meio de posts chulos do “guru” Olavo de Carvalho. Dado o nível do embate, Guedes fez a única coisa sensata: se recolher.
EM SP
Michelle Bolsonaro será a estrela de evento beneficente
A primeira-dama Michelle Bolsonaro será a principal estrela de um encontro com 200 casais da alta sociedade paulistana que acontece nesta quarta-feira na casa de Elie Horn, fundador da incorporadora Cyrela e um dos empresários mais próximos de Jair Bolsonaro. O encontro será para angariar fundos para a União Brasileiro Israelita do Bem-Estar Social (Unibes). Aliados ainda tentam assegurar a presença do próprio Bolsonaro, mas a agenda presidencial prevê a ida à Universidade Mackenzie para conhecer pesquisas sobre o grafeno – visita que preocupa a área de segurança do governo pela previsão de protestos.
COMUNICAÇÃO
Mudança de estratégia visa conter desgaste de Bolsonaro
A mudança na comunicação do governo, com a provável entrada do empresário Fábio Wajngarten na Secom, tem como objetivo principal conter algo que os apoiadores do presidente negam em público, mas já detectaram em pesquisas: a queda abrupta de sua aprovação nos grandes centros urbanos, sobretudo em São Paulo. A ideia é que Wajngarten, que atuou na campanha construindo pontes com grupos de comunicação, amplie essa aproximação.
O diagnóstico no governo é de que é preciso separar a imagem institucional do presidente daquela da campanha. Wajngarten deve vitaminar também a publicidade oficial. A avaliação é de que a propaganda da Previdência, por exemplo, passou batida do grande público e precisa ser intensificada para vender a mensagem de que se quer combater privilégios. Isso ajudaria no trabalho de convencimento político, pois deputados e senadores se sentiriam mais confortáveis para explicar ao eleitor o apoio ao projeto.
Cristiano Romero: Forças ocultas?
27 de março de 2019Economia,Bolsonaro,Cristiano Romero,Valor EconômicoPOLÍTICA HOJE
Ninguém entendeu ainda o que pretende Jair Bolsonaro
A forma como o presidente Jair Bolsonaro está lidando com o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), deve ser parte de uma estratégia ainda não compreendida pelos melhores observadores da cena política em Brasília. Ou não, o que torna tudo ainda mais nebuloso e preocupante, uma vez que Maia não integra as fileiras da oposição ao governo, muito pelo contrário. Número 2 da República, o presidente da Câmara se comprometeu com a articulação para a aprovação das mudanças nas regras de aposentadoria - a reforma das reformas - e de projetos relevantes, como o que dá autonomia legal ao Banco Central.
Convidado para um encontro com Maia e Dias Toffoli, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Bolsonaro decidiu desmoralizar o anfitrião (o presidente da Câmara) ao levar 20 ministros, anulando assim o caráter "petit comité" da reunião. Nas redes sociais, Bolsonaro deu a ideia de que Maia o convidou para oferecer apoio em troca de cargos. Foi um golpe de marketing de resultado pífio e perigoso.
A carreira política de Maia tomou impulso quando ele se elegeu presidente da Câmara no período 2017-2018, um momento extremamente delicado da vida nacional. Dilma Rousseff foi afastada em maio de 2016 - e impedida, em caráter definitivo, de ficar no cargo em agosto daquele ano - em meio a uma das mais graves crises econômicas da história do país, ruína da qual a nação ainda não se recuperou. Impeachment de presidentes eleitos é sempre um processo traumático numa democracia.
No presidencialismo de coalizão, modelo político que grassa no Brasil na ausência de partidos fortes, presidentes da República dependem sobremaneira, para governar, dos presidentes da Câmara e do Senado Federal, especialmente do primeiro. A deposição de Dilma mostrou isso com clareza. A então presidente tentou, em vão, impedir a ascensão ao comando da Câmara do deputado Eduardo Cunha, e este lhe deu o troco - usou uma das prerrogativas do cargo, a decisão monocrática de tirar da gaveta e colocar em tramitação um dos pedidos de impeachment contra a então chefe do Poder Executivo, para derrubá-la.
É verdade que Cunha tentou negociar durante meses um armistício com Dilma, mas a ex-presidente julgava-se, como Bolsonaro, acima dos políticos que, inclusive, integravam sua base de apoio no Congresso e cujos apadrinhados ocupavam milhares de cargos, muitos sem nenhuma qualificação, no enorme aparato estatal nacional. Eleita, Dilma, passou a ter desprezo até pelo responsável por sua chegada triunfal ao poder - Luiz Inácio Lula da Silva -, sem nunca ter sido eleita antes para coisa alguma.
"House of Cards Brazil": quando se tornou público o escandaloso caso da compra superfaturada, pela Petrobras, da refinaria de Pasadena, nos Estados Unidos, Lula teria mandado um emissário - o ex-ministro Antonio Palocci, coordenador da primeira campanha de Dilma, em 2010 - informar à presidente que Pasadena ajudou a elegê-la. A reação da mandatária teria sido um festival de palavrões dirigidos ao interlocutor e ao remetente do aviso. Lula decidiu mandar o recado depois de ver Dilma, como presidente do conselho de administração da Petrobras, confessar, em entrevista, que assinara um parecer tecnicamente "falho" em defesa da compra da refinaria em 2006, em pleno governo Lula. Amigos do ex-presidente têm convicção de que Dilma procurou jogar o caso no colo de Lula para conter seu assanhamento para ser o candidato do PT à Presidência em 2014.
Bolsonaro quis mostrar a seus milhões de seguidores nas redes sociais, e com os quais ele acha que governa este imenso país, que repele a "velha política" e que Maia é um exemplo acabado da velhacaria. Duas hipóteses derivam da ação de Bolsonaro:
1) Ao tentar desmoralizar publicamente o presidente da Câmara, ele tenta enfraquecê-lo porque sua desenvoltura em Brasília, segundo assessores, o incomoda desde sempre. Fraco, Maia perderia poder sobre seus pares e, assim, os governistas dominariam a Câmara com o "apoio" das redes sociais, o que facilitaria ao presidente e seus aliados impor sua principal agenda - mudar na marra, com a força das leis, os costumes de uma sociedade marcada pela diversidade e que, desde a redemocratização, vem avançando de forma significativa no quesito tolerância;
2) Qual Policarpo Quaresma, o anti-herói quixotesco de Lima Barreto, Bolsonaro estaria dizendo ao povo que em Brasília só há políticos corruptos que não o deixam governar com decência, idealismo e em favor dele, o povo. Seria, claro, um simulacro, uma vez que Bolsonaro, eleito presidente do Brasil quando ninguém esperava por isso, não compartilha a ingenuidade de Quaresma. A intenção, portanto, seria atirar em Rodrigo Maia para atingir toda a classe política e, desta forma e com o "incrível" apoio das massas, pedir licença para ter poderes excepcionais nesta quadra da vida nacional, momento que, dada a gravidade da crise econômica, demanda líderes fortes, destemidos, obstinados, denodados e, por que não, autoritários.
Ontem, dia em que as tensões na Praça dos Três Poderes se intensificaram, o presidente "matou a reforma e foi ao cinema". O chiste de mau gosto, que se disseminou nas redes qual epidemia, foi inevitável. No clássico "Matou a Família e Foi ao Cinema", de 1969, o cineasta Júlio Bressane mostra um rapaz que mata os pais com uma navalha e, impassível, vai ao cinema. Bolsonaro se mostra solene e imune a paixões em sua marcha contra Maia.
No retrovisor, vemos o seguinte: em 1961, Jânio Quadros comanda governo dividido por forças da esquerda e da direita e, sete meses depois da posse, renuncia, alegando "forças ocultas" e achando que o povo iria às ruas para lhe dar o poder supremo. Ninguém deu o ar da graça porque o presidente se esqueceu de combinar o ardil com os "russos". Collor assumiu em 1990 sem a companhia dos partidos tradicionais. Confiscou, no primeiro ato, o dinheiro dos viventes sem o apoio de PMDB, do PFL etc. Deu tudo errado e um ano depois caiu nos braços da tradição - o PSDB só não aderiu porque Mário Covas não deixou -, o que não o impediu de ser apeado do cargo em setembro de 1992.
Elio Gaspari: O pesadelo do sono de Bolsonaro
27 de março de 2019Bolsonaro,Folha de S. Paulo,POLÍTICA HOJEelio gaspari
Bill Clinton tomou jeito, mas a soneca de Churchill era sagrada
Foi o presidente Jair Bolsonaro quem contou. Durante uma de suas internações os médicos conferiram a qualidade do seu sono e registraram 89 breves alterações por hora. Nas suas palavras: "Um recorde. Os médicos disseram: 'Como é que você consegue raciocinar?'".
Sono é assunto sério. Donald Trump diz que dorme de quatro a cinco horas por dia num quarto onde tem três televisões. Talvez isso explique muita coisa. Os primeiros meses da Presidência de Bill Clinton foram uma calamidade. Irritava-se, não conseguia prestar atenção nos outros. Era a noite maldormida. O primeiro-ministro britânico Winston Churchill regulava com o horário de Trump, mas sua soneca da tarde era sagrada.
Em dezembro do ano passado Bolsonaro sentiu-se mal porque se confundiu com os medicamentos e teve uma sonolência. Dormindo pouco, ou mal, ele compromete seu desempenho nas horas em que fica acordado, sobretudo se tiver um celular à mão. Nesse caso, o disparador de mensagens produz no meio político o efeito letal do revólver que mantém ao alcance mesmo quando está na cama.
Desde que entrou no Planalto, Bolsonaro descumpre uma das normas que regem o funcionamento do prédio. Ele se destina a diminuir o tamanho dos problemas. Alguns presidentes, como Fernando Henrique Cardoso e Lula, foram amortecedores de encrencas e crises. Nos seus 16 anos de poder a crise entrava no palácio e saía menor. Outros, como Dilma Rousseff e João Figueiredo, foram propagadores de dificuldades. Ambos perderam o controle de seus governos.
À primeira vista, Bolsonaro continua em campanha. Isso explica que vá a Washington condenar o "antigo comunismo" e que tenha obrigado o presidente chileno, Sebastián Piñera, a considerar "infelizes" algumas de suas opiniões. Campanha é assim mesmo, quanto mais tensão se puser na mesa, melhor, sobretudo numa disputa como a eleição brasileira do ano passado.
Governo é outra coisa e Bolsonaro sabe que a campanha terminou, mas procura afirmar-se produzindo tensões. À falta do "antigo comunismo", não tendo Lênin nem Fidel Castro para desafiar, encrencou com Rodrigo Maia. Ganha um fim de semana em Cuba quem souber por que ele se desentendeu com o presidente da Câmara.
Há duas semanas anunciou-se que o presidente da República teria um almoço com os presidentes dos dois outros poderes para um encontro harmonizador. Não era bem assim. O que poderia ter sido uma conversa de três pessoas virou um churrasco ao qual compareceram 15 ministros. Uma assembleia geral, enfim. Maia não reclamou, mas registrou.
Fabricar tensões é mau negócio para governante. Como ensinou Tancredo Neves, presidente tem que dar as cartas, não pode ficar o tempo todo embaralhando-as.
Nos últimos meses Jair Bolsonaro teve uma vida dura, com um atentado, três cirurgias e longas internações. Em poucos meses passou pela tensão da montagem do governo e, desde janeiro, chefia uma equipe que pretende mudar a estrutura e os métodos da administração. Em alguns setores, como nos ministérios da Agricultura e da Infraestrutura, a coisa está funcionando. Em outros, como na Educação, o clima é de gafieira.
Quando os médicos de Bolsonaro surpreenderam-se com a má qualidade do seu sono, eles sabiam do que estavam falando. Uma das consequências mais mencionadas desse distúrbio é a irritabilidade. Pode parecer bobagem, mas David Gergen, conselheiro de Bill Clinton, contou que as coisas melhoraram quando o presidente passou a dormir direito.
Bernardo Mello Franco: Bolsonaro agora quer brigar com a História
27 de março de 2019golpe militar,Bolsonaro,O Globo,1964,DitaduraPOLÍTICA HOJE
Segundo o porta-voz do governo, Bolsonaro ‘não considera’ que houve golpe em 1964. É constrangedor que ele precise explicar a divergência do chefe com os livros de História
O presidente Jair Bolsonaro não se contenta em fabricar crises no presente. Ele também quer brigar com o passado, como indica a ordem para que os militares comemorem os 55 anos do golpe de 1964.
O porta-voz do Planalto, Otávio do Rêgo Barros, tentou justificar a iniciativa. “O presidente não considera o 31 de março de 1964 um golpe militar”, disse. É constrangedor que o general precise explicar uma divergência do chefe com os livros de História.
A data festejada por Bolsonaro marca o aniversário de um típico golpe de Estado. Com tanques nas ruas, os militares derrubaram um presidente legítimo e mergulharam o país num regime de exceção.
A ditadura fechou o Congresso, censurou a imprensa e perseguiu opositores. Deixou um saldo de 434 mortos e desaparecidos, além de milhares de torturados e exilados. São fatos do passado, que devem ser lembrados para que não se repitam.
Em países que enfrentaram seus fantasmas, exaltar ditaduras é crime e pode dar cadeia. Por aqui, escolheu-se contemporizar com personagens que cultuam o autoritarismo. Um deles acaba de assumir a Presidência pela via democrática que insiste em desprezar.
Ao celebrar o golpe, Bolsonaro mantém o figurino radical que marcou sua atuação parlamentar. O problema é que agora ele representa o país, não uma franja do eleitorado fluminense. Além de desrespeitar as vítimas da ditadura, suas declarações comprometem a imagem do Brasil no exterior.
Foi o que ocorreu na semana passada, quando ele foi a Santiago em viagem oficial. Houve fortes protestos, e os presidentes da Câmara e do Senado do Chile se recusaram a encontrá-lo. Reclamaram de seus elogios públicos ao general Augusto Pinochet, chefe de uma ditadura que matou mais de três mil pessoas.
No domingo, o presidente Sebastián Piñera afirmou que as declarações de Bolsonaro sobre o tema são “tremendamente infelizes”. O chileno ensina que um governante de direita não precisa defender regimes que sufocaram as liberdades em nome de ideais conservadores.
Bruno Boghossian: Defesa da ditadura por Bolsonaro não pode ser política de governo
27 de março de 2019Bolsonaro,Folha de S. Paulo,DitaduraPOLÍTICA HOJE
Ao repetir métodos de sua vida parlamentar, presidente ignora peso da faixa
O Jair Bolsonaro dos anos 1990 prometia fechar o Congresso se chegasse ao poder. Dizia ser favorável a uma nova ditadura, propunha que o Palácio do Planalto se tornasse local de testes para a bomba atômica e argumentava que o país só mudaria se passasse por uma guerra civil. “Se vão morrer alguns inocentes, tudo bem. Tudo quanto é guerra morre inocente”, afirmou.
Por mais de duas décadas, aquele deputado ganhou holofotes ao amplificar uma ira popular contra a classe política. Bolsonaro acumulava votos ao proteger os interesses militares e agregava a sua plataforma uma defesa da ditadura no Brasil para animar seu eleitorado na caserna.
O “sindicalista” agitador virou presidente da República, mas preservou métodos do passado. O discurso de Bolsonaro transbordou dos quartéis, mas ele ainda tenta mobilizar sua tropa ao flertar com soluções autoritárias e lançar provocações para legitimar o regime militar.
Nos últimos dias, o presidente determinou que as unidades das Forças Armadas comemorem os 55 anos do golpe de 1964. A ordem foi vista como um ultraje proposital para desviar atenções, atiçar opositores e instigar apoiadores aguerridos. Seria lamentável se Bolsonaro fosse só deputado. O adjetivo ganha dimensão ao subir a rampa do Planalto.
Mesmo que se trate de uma afronta barata, a tentativa de dar novas tintas a um regime autoritário é incompatível com o papel de um presidente. Não pode, portanto, se tornar política de governo numa democracia.
Bolsonaro patrocina a subversão de valores ao convocar uma celebração oficial para um regime que fechou o Congresso, prendeu opositores e usou tortura e mortes como métodos de repressão.
Nos primeiros anos de carreira, Bolsonaro disse na Câmara ser favorável a um regime de exceção. “Sou a favor, sim, de uma ditadura, desde que esse Congresso dê mais um passo rumo ao abismo, que no meu entender está muito próximo”, afirmou. Talvez ele ainda não tenha sentido o peso da faixa presidencial.
O Globo: 'Festejar a ditadura é apologia a atrocidades massivas', diz MPF sobre determinação de Bolsonaro
27 de março de 2019POLÍTICA HOJEgolpe militar,governo bolsonaro,repúdio,Bolsonaro,O Globo,MPF,MInistério Público,1964
Órgão afirmou que a orientação do presidente merece 'repúdio social e político' e que pode configurar improbidade administrativa
Vinicius Sassine, O Globo
BRASÍLIA - A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), colegiado que funciona no âmbito da Procuradoria-Geral da República (PGR) , criticou a decisão do presidente Jair Bolsonaro de determinar a comemoração do golpe que implantou a ditadura militar no Brasil em 31 de março de 1964 . Em um texto duro, assinado pela procuradora federal dos Direitos do Cidadão, Deborah Duprat, e por três procuradores auxiliares, o Ministério Público Federal (MPF) afirma que "festejar a ditadura é festejar um regime inconstitucional e responsável por graves crimes de violação aos direitos humanos".
"Essa iniciativa soa como apologia à prática de atrocidades massivas e, portanto, merece repúdio social e político, sem prejuízo de repercussões jurídicas", diz a nota pública divulgada nesta terça-feira.
Bolsonaro, que admira e exalta os regimes militares da América Latina, determinou que os quartéis comemorem o 31 de março e os 21 anos de ditadura militar no Brasil. Reportagem publicada no site do GLOBO na tarde desta terça revelou que a determinação terá um efeito prático nos principais comandos militares .
Uma cerimônia será realizada, diferentemente do que era feito em anos anteriores. Generais ouvidos pela reportagem preferem evitar o termo "comemoração", mas falam em "lembrança de um fato histórico". A cerimônia vai contar com tropas em forma em quartéis; aviso pelo mestre de cerimônia de que os militares estão ali para "relembrar um fato histórico ocorrido em março de 64"; execução do Hino Nacional; leitura da chamada ordem do dia, que é um texto elaborado pelo Ministério da Defesa; e desfile para encerrar o evento. No Exército, houve quem sugerisse tiros de canhão ao fim da cerimônia, o que acabou descartado por líderes dos comandos militares, conforme as fontes ouvidas pela reportagem.
Improbidade administrativa
A PFDC afirma na nota pública que a defesa de crimes constitucionais e internacionais – como um golpe militar – pode se caracterizar um ato de improbidade administrativa. Os procuradores federais dos Direitos do Cidadão afirmam "confiar" que as Forças Armadas e "demais autoridades militares e civis" deixarão de celebrar o golpe militar de 1964 e cumprirão seus "papéis constitucionais" na defesa do Estado Democrático de Direito. "Seria incompatível com a celebração de um golpe de Estado e de um regime marcado por gravíssimas violações aos direitos humanos."
Se a recomendação de Bolsonaro para que se comemore o golpe tem sentido de "festejar", trata-se de um ato de "enorme gravidade constitucional", conforme a PFDC. "O golpe de Estado de 1964, sem nenhuma possibilidade de dúvida ou de revisionismo histórico, foi um rompimento violento e antidemocrático da ordem constitucional. Se repetida nos tempos atuais, a conduta das forças militares e civis que promoveram o golpe seria caracterizada como crime inafiançável e imprescritível de atentado contra a ordem constitucional e o Estado Democrático previsto na Constituição."
O colegiado vinculado à PGR lembra que a Comissão Nacional da Verdade foi instituída por lei e seu relatório final, concluído no fim de 2014, é a versão oficial do Estado sobre o que aconteceu nos 21 anos de ditadura militar. "Nenhuma autoridade pública, sem fundamentos sólidos e transparentes, pode investir contra as conclusões da comissão, dado o seu caráter oficial", diz a nota da PFDC.
Agentes da ditadura mataram ou fizeram desaparecer 434 opositores do regime e 8 mil indígenas, como cita a PFDC. Entre 30 mil e 50 mil pessoas foram presas ilicitamente e torturadas, afirma o colegiado. "Esses crimes bárbaros (execução sumária, desaparecimento forçado de pessoas, extermínio de povos indígenas, torturas e violações sexuais) foram perpetrados de modo sistemático e como meio de perseguição social. Não foram excessos ou abusos cometidos por alguns insubordinados, mas sim uma política de governo, decidida nos mais altos escalões militares, inclusive com a participação dos presidentes da República."
Luiz Carlos Azedo: Ivan, o Terrível, e o Mestre de Avis
27 de março de 2019POLÍTICA HOJENas entrelinhas,Militares,congresso,política,Luiz Carlos Azedo,governo,Memória
“Por mais que suas diatribes possam parecer fora de qualquer sentido, a metralhadora giratória de Olavo de Carvalho pauta a narrativa do clã Bolsonaro”
Nem todos no Palácio do Planalto levam a sério o filósofo Olavo de Carvalho, como é o caso do ministro Santos Cruz, general que vem sendo ofendido diariamente pelo guru do clã Bolsonaro, mas o fato é que a sua narrativa já não pode ser ignorada, quando nada pela influência que exerce junto ao próprio presidente da República. Olavo de Carvalho foi uma das estrelas do jantar que Bolsonaro ofereceu na embaixada do Brasil em Washington, quando de sua recente visita aos Estados Unidos, para o encontro com o presidente Donald Trump na Casa Branca.
Por mais que suas diatribes possam parecer fora de qualquer sentido, a metralhadora giratória de Olavo de Carvalho pauta a narrativa do clã Bolsonaro. Na segunda-feira, um post do filósofo no Facebook chamou a atenção pelo significado de suas referências históricas, num momento de grande ativismo de seus partidários nas redes sociais, comandado pelo vereador carioca Carlos Bolsonaro, filho do presidente da República, com a difusão de “memes” contra o Supremo Tribunal Federal (STF) e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ).
Disse o filósofo: “O mecanismo político mais eficiente e quase infalível já registrado na História — por exemplo, na origem do reino português ou no triunfo de Ivan, o Terrível — é a aliança do governante com a massa popular para esmagar os poderes intermediários corruptos e aproveitadores. Deus queira que o Bolsonaro entenda ser essa a sua grande oportunidade”. A afirmação de Olavo de Carvalho coincide com a recomendação do presidente da República para que os comandantes militares organizassem as “devidas comemorações” do golpe militar de 1964, em 31 de março próximo, fato que gerou muita polêmica no Congresso. E com um grave desencontro entre o Palácio do Planalto e as principais lideranças da Câmara.
Poder absoluto
A referência a Portugal diz respeito à Revolução do Mestre de Avis, a primeira revolução burguesa do Ocidente, em 1383, na qual se resolveu a crise provocada pela morte de Dom Fernando I, rei de Portugal. A herdeira do trono, a princesa Beatriz, era casada com Dom Juan I de Castela, que reivindicou o trono para o casal, com o apoio da nobreza. A burguesia, a pequena nobreza e o povo não queriam a união com o reino de Castela e decidiram apoiar o irmão bastardo de Dom Fernando I, João, conhecido como o “Mestre de Avis”, que derrotou os castelhanos na Batalha de Aljubarrota. Além de garantir a independência, Dom João, o Mestre de Avis, centralizou o poder, fez uma reforma agrária, implantou uma indústria náutica e iniciou a expansão comercial portuguesa. Foi um dos primeiros regimes absolutistas da Europa, em plena Idade Média.
Ivan, o Terrível, sagrado Ivan IV em 1547, na Catedral da Assunção em Moscou, foi o primeiro czar. Filho de Vassili III e de Helena Glinska, nasceu em 25 de agosto de 1530. Com a morte do pai, sua mãe foi tutelada por uma regência de 20 boiardos, senhores feudais russos, aquém dividiram o poder entre si após envenená-la. Logo após assumir o trono, em 1547, incêndios devastaram Moscou e provocaram milhares de mortos. Ivan se disse abandonado por Deus e decidiu convocar representantes de todas as regiões da Rússia para uma assembleia que só se realizou em 1950, mas mudou a história da Rússia.
Ivan afastou os boiardos, decretou um código civil, reorganizou o clero e criou um Estado centralizado, com uma polícia secreta que perseguiu duramente os seus opositores. Conquistou o Volga e estendeu seu império à Suécia e à Polônia; à frente de um exército de 100 mil homens, ocupou Kazan, a capital dos tártaros. Para celebrar essa vitória, construiu em Moscou a catedral de São Basílio. Em 1558, tentou assegurar uma saída ao Mar Báltico, mas acabou derrotado pela coalizão formada por Polônia, Suécia, Lituânia e os Cavaleiros Teutônicos da Livônia, em 1578. Depois de 25 anos de guerras, com a Rússia assolada por uma epidemia de peste, em 1581, matou seu filho mais velho, Ivan Ivanovich, num acesso de cólera, provavelmente provocado pelo mercúrio usado no tratamento de uma sífilis. Morreu jogando xadrez, em 18 de março de 1584, misteriosamente.
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-ivan-o-terrivel-e-o-mestre-de-avis/
Monica De Bolle: Presidentes minoritários e reformas
27 de março de 2019Bolsonaro,POLÍTICA HOJE,estado de s. paulo,destaqueMonica de Bolle
Bolsonaro cria ruído e está cercado de gente que gosta de fazer o mesmo, como comprar brigar inúteis
Presidentes minoritários têm sido há décadas a regra na América Latina, não a exceção. A exceção atual é o México de Andrés Manuel López Obrador e trata-se da única. Nos sistemas multipartidários e fragmentados que temos região afora, a prática para construir coalizões e consensos, sobretudo quando se pretende aprovar reformas de grande envergadura, é a de engajar-se naquilo que, no Brasil, nos acostumamos a chamar de toma lá dá cá. Em outros países, há outros nomes: na Colômbia, por exemplo, dá-se a isso a denominação de “mermelada”. Mesmo nos Estados Unidos, onde o sistema é nominalmente bipartidário – digo nominalmente pois, hoje, tanto republicanos quanto democratas estão internamente rachados – existe o “pork barrel politics”.
Toma lá dá cá, “mermelada”, e “pork barrel politics” significam todos mais ou menos a mesma coisa: o presidente oferece cargos a partidos “aliados” a fim de garantir a adesão à agenda que quer aprovar, e/ou disponibiliza recursos públicos para emendas parlamentares que favorecem políticos e sua base ou distrito – no caso em que o voto é distrital como nos EUA. Tais práticas dão margem a vários problemas. Quando cargos são alocados tendo como princípio a garantia de lealdade, ainda que temporária, as chances de que ministérios e agências governamentais sejam entregues a gente que não tem formação ou capacidade para exercer o cargo são elevadíssimas. Exemplos disso temos de sobra na história recente brasileira. Quando gastam-se recursos públicos para comprar a fidelidade dos parlamentares desperdiça-se muito dinheiro que poderia ser melhor alocado em outras áreas – de programas sociais a investimentos públicos.
A onda recente que varreu o mundo contra o modo “tradicional” de fazer política levou alguns líderes recém-eleitos na América Latina a se comprometer em acabar com a “mermelada”, ou com o que alguns chamam no Brasil de “velha política”. A ideia é auspiciosa e causa arroubos de esperança. Pena que na prática a tese não fique de pé por mais de par de meses, quiçá menos.
Iván Duque, o presidente colombiano eleito em meados de 2018, prometeu acabar com a “mermelada”. Nomeou técnicos para os seus principais ministérios sem qualquer consideração sobre os partidos aos quais pertenciam ou não – muitos não são filiados à agremiação alguma. Deixou cientistas políticos de cabelo em pé, mas agradou a população que nele votou. Dentre suas principais promessas de campanha estava a necessária reforma tributária para elevar a arrecadação. A Colômbia precisa urgentemente gerar recursos não só para atender as demandas regionais de territórios onde as Farc foram desmobilizadas pelo Acordo de Paz – e que, hoje, sofrem com a ausência de serviços públicos – como também para enfrentar a crise migratória da Venezuela. A Colômbia já recebeu cerca de 1,5 milhão de refugiados do país vizinho – esses em situação regularizada – e provavelmente outro milhão ou mais de pessoas em situação irregular, portanto não registradas. O problema tende a piorar com as incertezas que cercam o regime de Maduro, pressionando as contas públicas colombianas. Mas, mesmo em meio a tudo isso, Duque fracassou na tentativa de aprovar sua reforma tributária. Em vez da reforma ampla, ganhou migalhas do Congresso insatisfeito com o término da “mermelada”. Não surpreende que a popularidade de Duque, considerado um presidente frágil no país, tenha começado a cair.
No Brasil, Bolsonaro afirma que a “velha política” acabou, que não irá ceder às pressões do Congresso para aprovar a reforma da Previdência na qual ele já disse não acreditar muito. Bolsonaro é presidente mais fraco que Duque, já que seu partido não tem tradição ou força, ao contrário do par colombiano. Bolsonaro cria ruído e está cercado de gente que gosta de fazer o mesmo, como comprar brigas inúteis com o presidente da Câmara. Seu par colombiano sabe que sem “mermelada” a pior estratégia é brigar sem motivo com o Congresso. Duvido que Bolsonaro aprenda algo com seu par latino americano, ou com qualquer outra pessoa – o presidente não é afeito a muitas reflexões. Disso tudo o que fica é que o papo de “velha política” é conversa mole, o Congresso é o mesmo que sempre tivemos, voraz por benesses. Há momentos em que o realismo tem de prevalecer sobre o realismo tragi-mágico que nos impusemos. Não estou prendendo a respiração.
*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
Eliane Brum: Bolsonaro manda festejar o crime
27 de março de 2019Militares,golpe militar,governo bolsonaro,comemoração,Bolsonaro,Eliane Brum,POLÍTICA HOJE,destaqueel país
Ao determinar a comemoração do golpe militar de 1964, o antipresidente busca manter o ódio ativo e barrar qualquer possibilidade de justiça
O próximo domingo, 31 de março, marca 55 anos do golpe militar de 1964. Em nenhum outro momento depois da retomada da democracia essa data encontrou o Brasil sob tanta tensão quanto neste ano. A memória da ditadura está sob ataque. E uma tentativa de fraudar a história, apagando os crimes cometidos pelos agentes do Estado, está em curso. Não mais como uma ofensiva pelos subterrâneos, que nunca cessou de existir, mas como ato de governo, o que faz toda a diferença. Toda.
Jair Bolsonaro (PSL) já determinou “comemorações devidas” nos quartéis. No 31 de março passado, quando ainda era só candidato a candidato, ele publicou um vídeo no Facebook: as imagens o exibiam estourando um rojão em frente ao Ministério da Defesa, com uma faixa agradecendo os militares “por não terem permitido que o Brasil se transformasse em Cuba”. “O 7 de Setembro nos deu a independência e o 31 de Março, a liberdade”, afirmou.
Sim, o atual presidente defende que a tomada do poder pela força pelos militares, deixando o Brasil sem eleições diretas por 21 anos, de 1964 a 1985; rasgando a Constituição e estabelecendo a censura; obrigando alguns dos melhores quadros do Brasil a amargar o exílio; prendendo, sequestrando e torturando, inclusive crianças, e matando opositores é motivo de comemoração. E, como presidente da República, determinou que os crimes contra a humanidade, portanto imprescritíveis, que já deveriam ter sido devidamente punidos, sejam agora comemorados oficialmente pelas Forças Armadas.
É possível o Brasil comemorar oficialmente a tortura e o assassinato de civis e seguir reconhecido como uma democracia?
Parem de ler agora. E pensem no que significa para um país comemorar o sequestro, a tortura e o assassinato de civis por agentes do Estado, assim como o que significa comemorar um golpe infligido por parte das Forças Armadas. É possível isso acontecer, como ato de Governo, e o Brasil seguir reconhecido como uma democracia?
Não. Simplesmente não é possível. Bolsonaro, é preciso dizer, nunca fingiu ser o que não é. Há vídeos dele dizendo que os militares mataram foi pouco. “Tinham que ter matado pelo menos uns 30 mil” e “se morrerem inocentes tudo bem”, afirma num deles. Seu herói declarado, Carlos Alberto Brilhante Ustra, é um torturador, reconhecido pela justiça brasileira como torturador, que chegou a levar crianças para ver os pais nus e arrebentados. Bolsonaro, quando candidato, ameaçou mandar opositores para a “ponta da praia”, referindo-se a uma base da Marinha usada como local de tortura e desova de cadáveres pelo regime de exceção. Disse também que faria uma “faxina” e que os opositores de seu Governo ou “vão para fora ou vão para a cadeia”.
Pelo menos três opositores já afirmaram publicamente que foram obrigados a deixar o Brasil por ameaças de morte. Polícia, Ministério Público e judiciário se mostraram incapazes de protegê-los e garantir a sua segurança. Nesta área, Bolsonaro está fazendo exatamente o que disse que faria. Ele nunca deu motivos para que a população duvide do que diz que fará com os opositores.
O que as instituições vão fazer diante do anúncio de Bolsonaro? Apequenar-se, como de hábito?
A questão, agora, é o que as instituições vão fazer com o anúncio de Bolsonaro, apresentado pelo seu porta-voz, general Otávio Rêgo Barros. É possível ainda esperar algo das instituições amedrontadas, quando não coniventes? Como esperar algo quando o Supremo Tribunal Federal é presidido por Dias Toffoli, que no ano passado corrompeu a história ao declarar que o que aconteceu em 1964 e cassou os direitos da população brasileira foi um “movimento”, não um golpe?
A Defensoria Pública da União e a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão já se manifestaram. Mas ainda é pouco. E ainda é tímido, diante da enormidade do que significa comemorar o crime como ato de Governo. Não apenas um crime comum, mas aquele que é considerado crime contra a humanidade. A Comissão da Verdade concluiu que a ditadura matou ou desapareceu com 434 suspeitos de dissidência política e com mais de 8.000 indígenas. Entre 30 e 50 mil pessoas foram torturadas.
Se as instituições e a sociedade brasileiras assistirem apáticas ao presidente, Governo e Forças Armadas comemorarem o golpe militar que sequestrou a democracia por 21 anos e deixou um rastro de mais de 200 pessoas desaparecidas, cujos pais e filhos não têm sequer um corpo para enterrar, alcançaremos um outro nível de nosso trajetória acelerada rumo ao autoritarismo. Daí em diante, qualquer pessoa que ousar dizer que esse país vive numa democracia estará desrespeitando a inteligência e a dignidade de uma nação inteira. Daí em diante, qual será o limite para aqueles que fazem apologia do crime ocupando cargos públicos? Qual será o limite para um presidente que faz golden shower na lei?
Uma pesquisa do Ibope mostrou que Bolsonaro já é o presidente mais impopular em início de primeiro mandato desde 1995. Os 89 milhões de brasileiros que não votaram em Bolsonaro, seja porque votaram no candidato de oposição, seja porque se abstiveram de votar ou votaram branco ou nulo, somados ao expressivo contingente que já se arrependeu do voto no capitão reformado, terá que compreender que a luta pela democracia é difícil – e não pode ser terceirizada. É isso. Ou aceitar que a exceção, que já se infiltrou no cotidiano e avança rapidamente, siga tomando conta da vida até o ponto em que já se tenha perdido inclusive o direito aos fatos, como Bolsonaro e os militares pretendem neste 31 de Março.
Bolsonaro e suas milícias digitais criaram a autoverdade, mas ela só será imposta a um país inteiro se a população se submeter a ela
Não queiram viver num país em que a autoverdade, aquela que dá a cada um a prerrogativa de inventar seus próprios fatos, impere. Bolsonaro e suas milícias digitais criaram a autoverdade, mas ela só será imposta a um país inteiro se a população brasileira se submeter a ela. Afirmar que o golpe de 1964 não foi um golpe é mentira de quem ainda teme responder pelos crimes que cometeu, como seus colegas responderam em países que construíram democracias mais fortes e onde a população conhece a sua história. Não há terror maior do que ser submetido a uma realidade sem lastro nos fatos, uma narrativa construída por perversos. O corpo de cada um passa a pertencer inteiramente aos carcereiros.
Bolsonaro precisa manter o país queimando em ódio. Essa foi sua estratégia para ser eleito, essa segue sendo a sua estratégia para se manter no poder. Ele não tem outra. Se deixar de ser o incendiário que é e virar presidente, ele se arrisca a perder sua popularidade. Sua estratégia é governar apenas para as suas milícias, capazes de manter o terror, parte delas somente por diversão.
Bolsonaro tornou-se o antipresidente: aquele que boicota seu próprio programa e enfraquece seu próprio ministério
Depois de ser o candidato “antissistema”, Bolsonaro é agora o antipresidente. Esta novidade, a do antipresidente, é inédita no Brasil. O antipresidente Bolsonaro é aquele que boicota seu próprio programa e enfraquece seu próprio ministério, mantendo, também dentro do Governo, como definiu o jornalista Afonso Benites, a guerra do todos contra todos.
Bolsonaro só pode existir num país mergulhado numa guerra interna. Então, trata de alimentar essa guerra. A determinação oficial de comemorar o golpe de 1964 é parte dessa estratégia. Vamos ver o quanto os generais estrelados do seu governo são capazes de enxergar a casca de banana. Ou se, ao contrário, escolherão deslizar por ela apenas como desagravo aos anos em que ficaram acuados, temendo que o Brasil finalmente fizesse justiça, julgando os crimes da ditadura como fizeram os países vizinhos.
O atual presidente do Brasil é o mesmo político que, em 2009, botou um cartaz na porta do seu gabinete: “Desaparecidos do Araguaia. Quem procura osso é cachorro”. A imagem era a de um cachorro com um osso atravessado entre os dentes. Na época, uma década atrás, o ato de Bolsonaro era noticiado com o aposto: “o único parlamentar do Congresso que defende abertamente a ditadura”. Não mais, como é possível constatar.
A frase foi lembrada por manifestantes no Chile, na semana passada. Os chilenos protestavam contra a visita de Bolsonaro ao seu país e queriam despachá-lo imediatamente de volta para casa. Essa casa é o Brasil, onde defensores da ditadura não só são aceitos como também são eleitos e chamados de “mito”.
Os chilenos, que mandaram seus ditadores e torturadores para a cadeia, consideraram inaceitável que um defensor da ditadura fosse recebido pelo presidente Sebastián Piñera. Deputados chilenos pediram que Bolsonaro fosse declarado “persona non grata”. O presidente do Senado, Jaime Quintana Leal, recusou-se comparecer a um almoço em homenagem ao brasileiro. “Admiradores de Pinochet não são bem vindos no Chile”, afirmou. Bolsonaro já disse no passado que o general ditador Augusto Pinochet “fez o que devia ter feito”. Ou seja: assassinar 3.000 civis.
Diante dos protestos, Bolsonaro afirmou: “Protestos assim existem onde quer que eu vá, mas o importante é que, no meu país, fui eleito por milhares de brasileiros”. Milhões, já que devemos respeitar os números. Para os brasileiros que o elegeram, a sugestão de que os ossos das mais de 200 pessoas desaparecidas do regime estão na boca de um cachorro foi – e continua sendo – aceitável. Não sentem nenhuma empatia pelos pais, mães, maridos, esposas e filhos que não têm sequer um túmulo onde chorar suas perdas. E que foram torturados por essa imagem de absoluto desrespeito. Mostram-se incapazes de compreender que um dia poderão ser os ossos de suas mães ou de seus filhos na boca do cachorro. Já os chilenos têm espanto. E têm vergonha. Vergonha por nós que aceitamos o inaceitável.
Sebastián Piñera, um presidente de direita, buscou manter distância das declarações pró-ditadura de Bolsonaro. “Essas frases são tremendamente infelizes”, afirmou. Sua posição política, como prefere, é assim definida por ele: “centro-direita mais diversa, mais tolerante, mais moderna e sintonizada com a cidadania”.
A parcela dos brasileiros que se declara “antiesquerdista” precisa compreender algo com urgência. O ponto do bolsonarismo não é ser de esquerda ou ser de direita. O que Bolsonaro faz seguidamente é apologia ao crime e incitação à violência. Isso não tem nada a ver com ser de esquerda ou ser de direita. Uma pessoa de direita, mas com decência e respeito à lei, não faz apologia ao crime nem incitação à violência. Uma pessoa de esquerda, mas com decência e respeito à lei, também não faz apologia ao crime nem incitação à violência.
Não se trata de esquerda ou de direita, mas de apologia ao crime e incitação à violência
O que Bolsonaro pratica é de outra ordem – e não é do jogo democrático. É essa diferença que o presidente chileno, reconhecidamente de direita, fez questão de marcar antes de ser contaminado pela truculência de uma ideologia com a qual não se identifica. No Brasil, infelizmente, parte da direita tem aceitado o inaceitável e demora a perceber que pagará caro por isso.
Os brasileiros adoecem também de apatia. Só assim para explicar como o ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, pode fazer apologia do crime duas vezes numa só semana, assim como ameaçar e chantagear uma nação inteira, e rigorosamente nada acontecer. Ao defender a reforma da Previdência, o ministro de Bolsonaro afirmou: “O Chile lá atrás teve que dar um banho de sangue para aprovar princípios macroeconômicos”.
Os chilenos se revoltaram. Ivan Flores, presidente da Câmara dos Deputados do Chile, afirmou que as declarações de Onyx são "um desatino sem paralelo" e uma grave ofensa às vítimas da ditadura de Pinochet. “A menção deste porta-voz do presidente Bolsonaro, um personagem importante do Governo brasileiro, a um ‘banho de sangue’ no Chile, é uma afronta a todas as pessoas que perderam familiares, a todos que sofreram com as violações de direitos humanos”. O parlamentar, que também se recusou a almoçar com Bolsonaro, afirmou que acreditava jamais "ter experimentado algo parecido" antes.
Os brasileiros não se ofendem. Convivem. À direita e à esquerda, a população tem se submetido à administração do ódio praticada pelo bolsonarismo. É esta a maior derrota. Não para a direita ou para a esquerda, mas para a civilização, para que qualquer um possa dar bom dia para o vizinho sem temer ser agredido. Ou para que um estudante possa ir à escola e ter certeza que vai sair dela vivo.
À direita e à esquerda, a população tem se submetido à administração do ódio praticada pelo bolsonarismo
A cada agressão do presidente ou de sua turma, um espasmo. E outra agressão. E outro espasmo. E tudo vai se banalizando. O que é uma anomalia vira normal. Bolsonaro é sintoma dessa normalização da exceção que é muito anterior a ele. Ele soube crescer e se tornar útil dentro dela e a ampliou a níveis inéditos. Ele e sua turma sabem também usar a deformação da democracia brasileira a seu favor e, ao governar pela administração do ódio, justificar tanto a incompetência demonstrada nos primeiros três meses no poder quanto criar inimigos para se manter necessários ao país. Enquanto não arranjarem uma guerra externa, vão mantendo a guerra viva aqui dentro.
O discurso dos pesos e contrapesos é bonito, soa bem nos salões. Parece até funcionar razoavelmente bem em alguns países. No Brasil, porém, as instituições já demonstraram ser incapazes de proteger a democracia. Bolsonaro, que se elegeu fazendo apologia ao crime e incitando o ódio às minorias, é a prova mais enfática da fragilidade das instituições.
A oposição, por sua vez, submeteu-se ao jogo de guerra do bolsonarismo e parece estar dominada por ele. Como a população, a oposição parece só conseguir reagir com outro espasmo. E reagir sem organização mínima, ocupada com suas próprias brigas internas. A esquerda, e também a direita que não é bandida, precisam responder com projetos, precisam convencer as pessoas que sua ideia é melhor para a vida, precisam mostrar qual é a diferença.
A oposição está dominada pelo jogo de guerra do bolsonarismo: só sabe reagir
Como apontou a filósofa Tatiana Roque, em entrevista a este jornal, é preciso contrapor à reforma da Previdência de Bolsonaro uma outra reforma da Previdência que reforme o que precisa ser reformado, sem tornar a vida dos mais pobres ainda pior. Não adianta ficar apenas gritando contra a reforma da Previdência. É preciso, sim, fazer uma reforma da Previdência. Mas não essa que está aí. Então qual? O que as pessoas querem saber é como a vida pode ficar melhor. Parte da crise global das democracias se deve à incapacidade de democratas e de governos democráticos de tornar melhor a vida da população ou de apontar claramente como podem fazer isso.
Com instituições fracas e uma oposição sem projeto, diante de um governo em que o mais moderado é um general que já defendeu um autogolpe com o apoio das Forças Armadas, a barbárie dos dias se acentua. Tudo indica que vai piorar. Porque está piorando. A incompetência explícita do bolsonarismo faz com que a necessidade de aumentar a violência “contra todos os que não são iguais a mim”, com o objetivo de ampliar a sensação de guerra interna, também aumenta. Sem projeto consistente, o governo que aí está só pode apostar no ódio para se manter. E vai seguir apostando. O ódio não é o oposto do amor, mas sim da justiça. É justiça que Bolsonaro não quer.
O ódio não é o oposto do amor, mas sim da justiça
Os brasileiros vão precisar compreender que a democracia terá que ser defendida por cada um, se colocando junto com o outro. Às vezes só dá mesmo para gritar. Mas é preciso fazer um esforço maior para responder com projetos, com propostas, com ação que não seja apenas uma reação, mas uma alternativa que permita a vida e promova vida no espaço público. Será assim, ou não será. Não é que tenha outro. Só tem você mesmo. Com o outro.
Podemos aprender algo com a artista russa Nadya Tolokonnikova .“A ação não deve ser uma reação, mas uma criação”, ela escreveu. Nadya é uma das integrantes da banda Pussy Riot que foi presa em 2012 pelo Governo do déspota Vladimir Putin. Entre as músicas tocadas em suas intervenções de ação direta, em espaços públicos de Moscou, uma delas era: “Putin se mijou na calça”. Não há nada que os déspotas temem mais do que aqueles que riem deles. Para manter o medo e o ódio ativos é preciso banir o riso e o humor. Nadya aprendeu a rir de seus carcereiros nos dois anos em que ficou na prisão por ousar confrontar o autoritarismo do regime, provocando um movimento de solidariedade global.
“A ação não deve ser uma reação, mas uma criação”
Na abertura do livro Pussy Riot, um guia punk para o ativismo político, a artista de 29 anos parece estar escrevendo para os brasileiros que vivem sob a administração do ódio de Bolsonaro e de suas milícias digitais. O livro, traduzido para o português por Jamille Pinheiro Dias e Breno Longhi, com ilustrações de Roman Durov, será lançado no Brasil em 22 de abril, pela editora Ubu. Antes, a banda fará dois shows no Brasil, em 19 (Recife) e 20 (São Paulo).
Nadya se refere a Donald Trump, que tem Bolsonaro como um pet exótico do sul do mundo:
“Quando Trump ganhou a eleição presidencial, as pessoas ficaram profundamente chocadas. Na verdade, o que aconteceu no dia 8 de novembro de 2016 foi a ruptura do paradigma do contrato social – a ideia de que podíamos viver confortavelmente sem sujar as mãos nos envolvendo com política, de que bastava um voto a cada quatro anos (ou voto nenhum: o pressuposto de que se está acima da política) para resguardar as próprias liberdades. Essa crença – a de que as instituições estão aqui para nos proteger e zelar por nós, e de que não precisamos nos preocupar em proteger essas instituições da corrupção, de lobistas, dos monopólios, do controle corporativo e governamental sobre nossos dados pessoais – veio abaixo. Nós terceirizávamos a luta política da mesma forma que terceirizávamos as vagas de trabalho mais mal remuneradas e as guerras.
“Não dá para continuar vivendo achando que é possível não ‘sujar as mãos com a política’ ou acreditando estar acima da política”
Os sistemas atuais não conseguiram oferecer respostas aos cidadãos, de modo que as pessoas começaram a buscar soluções fora do espectro político dominante. Essas insatisfações estão agora sendo usadas por políticos de direita, xenófobos, oportunistas, corruptos e cínicos. Os mesmos que ajudaram a criar e a agravar esse cenário vêm agora nos oferecer salvação. Esse é o jogo deles. É a mesma estratégia de cortar os fundos de um programa ou uma agência reguladora dos quais eles queiram se livrar e depois usar a ineficácia resultante disso como prova de que essas iniciativas ou órgãos precisam ser desfeitos”.
Basta trocar a data para 28 de outubro de 2018, dia da eleição de Bolsonaro, e o nome do presidente. E a análise segue com alta precisão, ainda que Bolsonaro seja muito mais autoritário do que Trump e as instituições brasileiras muito mais frágeis do que as americanas.
Bolsonaro é tão tosco que até mesmo a ultradireitista Fox News achou melhor tornar explícito que não compactuava com o pensamento do antipresidente brasileiro: afirmou que os comentários de Bolsonaro sobre a comunidade LGBTQI eram “incompatíveis com os valores americanos”. Ao entrevistar o antipresidente brasileiro, perguntou diretamente sobre o assassinato de Marielle Franco e a ligação da bolsomonarquia com as milícias cariocas. Ou seja: Bolsonaro é um constrangimento mesmo nos redutos mais direitistas do país que mais ama, os Estados Unidos. Seu suposto nacionalismo, como a visita aos Estados Unidos provou, é de chorar de rir.
Em outro trecho do livro, a artista também parece falar diretamente com os brasileiros que pensam em desistir ou acham que já chegaram ao seu limite: “As condenações de ativistas políticos foram naturalizadas na opinião pública. Quando pesadelos se tornam constantes, as pessoas param de agir. É assim que a apatia e a indiferença triunfam”. Em seguida, finca as unhas: “As dificuldades e os fracassos não são razão suficiente para renunciarmos ao ativismo. Sim, porque as mudanças sociais e políticas não se dão de forma linear. Às vezes é preciso lutar por anos para obter um resultado mínimo”.
Quando pesadelos se tornam constantes, as pessoas param de agir: a apatia e a indiferença triunfam
A autoridade de suas palavras é conferida por um dos mais fortes ativismos deste século. Quase dois anos de prisão e trabalhos forçados não a fizeram recuar nem perder a ingenuidade, para ela um valor ético e também estético. “Se tivéssemos que apontar um inimigo, eu diria que nosso maior inimigo é a apatia. Se não estivéssemos de mãos atadas pela ideia de que é impossível mudar as coisas, seríamos capazes de alcançar resultados fantásticos. O que nos falta é a confiança de que as instituições podem realmente funcionar melhor e de que nós somos capazes de fazê-las funcionar melhor. As pessoas não acreditam no enorme poder que elas têm. Este poder que, por algum motivo, não usam”.
Neste momento, a novíssima geração, a que nasceu depois da geração das integrantes da Pussy Riot, está criando um movimento global espantoso. A juventude pelo clima, inspirada por uma sueca de 16 anos com diagnóstico de Asperger, colocou 1,5 milhão de estudantes secundaristas nas ruas de cidades do mundo em 15 de março para denunciar a falta de ação dos governos diante da crise climática. Oito meses antes, nada disso existia. Em agosto de 2018, Greta Thunberg fez greve da escola e se postou sozinha diante do parlamento sueco. Agora, o movimento é uma potência.
Brasileiros de todas as idades precisam aprender, pra ontem, com as gerações mais novas. É isso ou seguir condenado a assistir à queda de braço entre Jair Bolsonaro e Rodrigo Maia. Sério que é este o ponto alto do debate nacional, antes de vir outro do mesmo nível ou pior? É este mesmo o nosso destino? Sério mesmo que o maior crítico da militarização do governo é Olavo de Carvalho, por motivos bem outros em sua calculada disputa de poder? E é ele o maior crítico porque parte dos que poderiam criticar a militarização do governo por motivos legítimos e urgentes começam a achar que Hamilton Mourão, o vice general, é uma graça? É assim mesmo que vamos viver, esperando o que virá depois, caso exista um depois?
Como diz a Pussy Riot Nadya Tolokonnikova, “a esperança virá dos desesperados”. Espero que ela tenha razão.
*Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum
El País: Câmara envia recado indigesto a Bolsonaro antes de analisar Previdência
27 de março de 2019destaque,el país,congresso,PEC,Bolsonaro,reforma da previdênciaPOLÍTICA HOJE
Votação relâmpago de PEC encerra dia marcado pela ausência de Paulo Guedes em comissão da reforma da Previdência. Senado Bolsonaro usou a manhã para ir ao cinema
Afonso Benites, do El País
A terça-feira deveria ter sido o marco dos primeiros passos da Reforma da Previdência na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. A abertura com chave de ouro para o Governo seria o ministro da Economia, Paulo Guedes, explicando aos parlamentares os detalhes da proposta de emenda constitucional enviada pela gestão Jair Bolsonaro (PSL). Uma demonstração de respeito ao Parlamento. Mas, avaliando o clima político desfavorável após os bate-bocas das últimas semanas e notando que a oposição se preparava para uma série de questionamentos, Guedes se negou a debater com os deputados. Foi chamado de "fujão" pelos opositores. O ministro Onyx Lorenzoni, da Casa Civil, fez uma reunião para tentar mostrar articulação com as lideranças partidárias. Enquanto isso, em seu gabinete, Guedes se reuniu apenas com representantes do PSL para tentar afinar o discurso.
Mas nem isso salvaria o enredo da terça. O Governo Bolsonaro viu a Câmara aprovar em dois turnos e em votação relâmpago um projeto capaz de engessar o Orçamento da União e torná-lo impositivo. Atualmente, o Executivo tem uma margem de manobra sobre o orçamento aprovado pelo Legislativo. Caso essa proposta, uma "pauta bomba" apresentada ainda contra Dilma Rousseff, seja aprovada no Senado também em dois turnos, a gestão federal teria menor controle sobre a destinação de seus recursos. Por consequência, os parlamentares teriam maior controle sobre esse dinheiro.
Outra agenda
Ainda pela manhã, enquanto o ministro Guedes anunciava que não participaria da audiência pública na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça da Câmara), o presidente Bolsonaro ia ao cinema em um shopping de Brasília em uma agenda extraoficial. Acompanhado da primeira-dama, Michele Bolsonaro, e da ministra das Mulheres, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, assistiu à pré-estreia do filme Superação – O milagre da fé. Na plateia também estavam pessoas surdas de associações que são apoiadas pelo ministério e pela primeira-dama. Foi uma sinalização importante de prestígio à Damares, a quem ele disse recentemente que trabalhava em uma pasta menos importante do que as demais. Foi lido também, no entanto, como um descolamento do assunto mais quente na capital federal, as mudanças nas aposentadorias.
Guedes até enviou o seu secretário de Previdência e Trabalho, Rogério Marinho, para falar com os congressistas na CCJ, mas lá não quiseram ouvi-lo. Chegaram a sugerir a votação de uma convocação do ministro – um ato que obrigaria o chefe da economia a comparecer ao Congresso. Mais tarde, amenizaram o tom e decidiram dar mais uma semana de prazo a ele.
Ainda assim, foi um termômetro das dificuldades. Até a oposição, que soma 133 dos 513 deputados, teve um raro ato de união. Assinou um manifesto contrário à reforma. “Lutaremos para impedir que essa proposta seja aprovada. Se for aprovada, vai agravar a principal chaga do Brasil, que é a desigualdade social e, por isso, não a toleramos”, afirmou o deputado Alessandro Molon (PSB-RJ).
Por outro lado, líderes de 13 partidos, que representam 291 parlamentares, anunciaram que apoiarão a proposta de Bolsonaro, desde que sejam excluídas as alterações que atingem a aposentadoria rural e o benefício de prestação continuada (BPC). O manifesto teve o apoio informal de Rodrigo Maia (DEM-RJ), o presidente do Legislativo que alertou Bolsonaro diversas vezes sobre a falta de articulação com o Congresso. “Há uma campanha insidiosa feita nas redes sociais de que estamos promovendo uma reforma da Previdência que vá prejudicar as pessoas mais pobres. Com esse manifesto queremos mostrar que não vamos fazer nada que possa afetar essas pessoas”, alertou o líder do DEM, Elmar Nascimento. Com o que Maia concordou. “É uma boa iniciativa. Os dois temas têm mais atrapalhado do que ajudado a discussão da reforma da Previdência. O BPC e a aposentadoria rural não são os maiores problemas da Previdência”.
Após se reunir com representantes de 12 partidos que teoricamente são da base governista, o ministro Onyx minimizou a ausência de Guedes e os embates do dia. Disse ainda que o seu colega na esplanada só não compareceu porque ainda não definido o relator da PEC na comissão. “Hoje veio aqui a equipe técnica, estão todos disponíveis. E no momento que o relator [da CCJ] for definido, vem o ministro Paulo Guedes, vem quem o parlamento quiser. O nosso propósito é um só, recuperar o Brasil”.
Os próximos dias serão de diversas conversas para afinar o discurso. Além da CCJ, a Comissão de Finanças da Câmara também cogitava convocar Guedes. Seguem em compasso de espera.