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O Estado de S. Paulo: Questões de diversidade e meio ambiente afetam competitividade, diz professora da FIA

Participação de mulheres e de outras minorias na administração é requisito básico para empresa sobreviver, diz expert

Alex Gomes, especial para o Estadão

A exigência por transparência em relação a aspectos ambientais, sociais ou de governança será cada vez mais alta, afirma Monica Kruglianskas, head of Sustainability and Partnerships do Programa de Gestão Estratégica para a Sustentabilidade da Fundação Instituto de Administração (FIA). “As questões de diversidade, bem como as de sustentabilidade, afetam diretamente a competitividade”, diz. “Para atrair investimentos, as empresas precisam reconhecer e incorporar esses conceitos no nível mais profundo: sua razão de existir.” Leia a entrevista: 

Que erros os gestores cometem ao lidar com questões ESG?

Um dos mais comuns nas empresas é não definir bem o foco. Sustentabilidade é um tema muito abrangente, envolve praticamente toda a vida na Terra. É um equívoco para uma organização achar que pode resolver tudo. Ela deve, a partir do seu nicho, estipular qual será a sua contribuição e trabalhar para influenciar positivamente naquilo em que é única e especial. Fica mais fácil avaliar o que chamamos de “materialidade”. Ou seja, os aspectos que realmente importam para aquela empresa. Essa é a chave para relatórios ESG significativos e concisos, pois permitem que os analistas entendam melhor a gestão das questões ESG de uma empresa. Veja, aqui, existe muita oportunidade profissional. O fundo de investimentos global UBS estima que a demanda por inteligência e dados relacionados à sustentabilidade deve atingir US$ 5 bilhões nos próximos cinco anos. Se a organização não tem uma definição clara do que é realmente significativo, em que deve investir e quais são seus objetivos, é gerada uma frustração por não ver os resultados esperados e uma percepção negativa em investidores, credores e consumidores. Fica a falsa aparência de sustentabilidade, o greenwashing.

Na parte executiva, quais são os desafios para adotar ESG?

O primeiro é o aumento da regulamentação, voluntária ou não. Nas bolsas de valores internacionais, por exemplo, já se observam requisitos de divulgação ESG mais rigorosos para empresas listadas. O segundo é a falta de consenso com relação a ferramentas e indicadores que cada empresa deve usar. Há muitas estruturas para medir, relatar e comparar performance. Mas isso tende a mudar porque há um esforço global de convergência para facilitar a comunicação das empresas e a interpretação dos índices para investidores, bancos e seguradoras. Dados de sustentabilidade mais materiais e mais comparáveis estão por vir, o que ajudará a informar as decisões de investimento.

O que motivou a mudança entre os atores econômicos?

Sem dúvida os impactos econômicos influenciaram. Casos como o de Mariana e Brumadinho, por exemplo, causaram perdas para a BHP Billiton, que é dona da Samarco com a Vale, de cerca de US$ 6,4 bilhões em 2016. Mas existem exemplos de prejuízos que podem chegar a US$ 30 bilhões, como aconteceu com a British Petroleum, envolvida no desastre ecológico no Golfo do México em 2010. Isso sem contar as perdas no valor das ações. Investidores de longo prazo não estão de brincadeira. Os que lidam com fundos de pensões não podem investir em ativos que não vão conseguir pagar a aposentadoria de milhões de pessoas. 

Sobre o aspecto social, a desigualdade na participação das mulheres no mercado de trabalho é um dos principais problemas que as empresas precisam resolver para essa gestão?

As questões de diversidade, bem como as de sustentabilidade, afetam diretamente a competitividade das empresas. A participação das mulheres e outras minorias nos conselhos de administração e gestão organizacional é pré-requisito para a sobrevivência da instituição a médio e longo prazo. Do ponto de vista da oportunidade, a diversidade de perspectivas permite aos negócios atenderem a mercados diversificados e clientes com necessidades distintas, ampliando o alcance e a riqueza do empreendimento. Com o alto nível de interesse na agenda internacional, em breve teremos mais e melhores requisitos sobre esse tema. O mais importante é aceitar que os níveis de transparência exigidos, seja para os aspectos ambientais, sociais ou de governança corporativa, serão cada vez mais altos. Para atrair qualquer investimento, as empresas precisam reconhecer e incorporar esses conceitos no nível mais profundo: sua razão de existir.

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Pedro Fernando Nery: A falácia dos deveres que recai sobre os brasileiros mais pobres

A contrapartida de direitos são os tributos, que aparecem fartamente na Constituição

O argumento é recorrente. Os brasileiros mais pobres já possuem benefícios demais: a própria Constituição citaria “direitos” dezenas e dezenas de vezes, mas “deveres” somente em um punhado de ocasiões. Com tantos direitos sem deveres correspondentes, o arranjo seria insustentável. O argumento é falacioso: a contrapartida de direitos são os tributos, eles são fartamente previstos na Constituição e incidem mais justamente sobre os mais pobres – aqueles que teriam direitos demais.

Comecemos com um Ctrl+F na Constituição. Tributos e seus tipos – impostos e contribuições – aparecem mais de 300 vezes. São eles os espelhos dos direitos, e não um termo genérico como “dever”. O direito à saúde é concretizado com contribuições sociais. O direito à educação é efetivado com impostos. E assim vai.

No Brasil, muitos desses tributos, ou deveres, recaem sobre quem ganha menos, que paga a conta indiretamente quando compra um produto. Na verdade, os mais pobres pagam mais em tributos indiretos do que os mais ricos, quando considerado o peso dos tributos em proporção à renda de cada grupo.

Essa distribuição é muito diferente da de vários países desenvolvidos, que exigem mais esses deveres dos mais ricos. Mesmo uma reforma da tributação sobre o consumo, como a PEC 45, pode atenuar a situação, ao distribuir melhor a carga entre o que é consumido pelos mais bem posicionados na distribuição de renda e os mais vulneráveis. Estudo da economista Débora Freire conclui que essa reforma tributária traria “ganhos de bem-estar” para as famílias mais pobres, pelo seu efeito nos preços.

Para que as elites tenham mais deveres, são importantes também medidas relacionadas à tributação da renda. Embora a Constituição demande tratamento igual entre os cidadãos em geral, e progressividade no Imposto de Renda em particular, o fato é que ele é regressivo para rendas mais altas: quanto mais se ganha, menos se paga (a alíquota efetiva chega a 5% para o grupo que ganha mais de R$ 300 mil). Isso porque para este dever muitos pagam 0% em relação a certas rendas, isentas legalmente de pagar o IR – em provocação à Constituição.

Temos também muitos problemas com isenções ou outros auxílios a empresários de setores específicos da economia. Estes ficam dispensados de seus deveres constitucionais parcial ou totalmente, por um prazo definido ou indefinidamente. São os chamados gastos tributários (renúncias, benefícios fiscais): um montante que eleva a nossa dívida com pouca clareza sobre suas vantagens em termos de políticas públicas. 

Um passo, ainda que tímido, foi dado semana passada para que os deveres sejam distribuídos de forma mais igualitária. Com a nova Emenda Constitucional n.º 109, decorrente da PEC emergencial, uma nova lei complementar passa a ser exigida regulamentando a criação desses benefícios fiscais, regras para avaliação e um plano para sua redução. É importante que a regulamentação do tema enquadre mecanismos que dão menos deveres a grupos mais prósperos, como isenções no IR ou tributação do patrimônio favorecida, abaixo dos limites da Constituição.

É verdade que em nosso pacto social é possível identificar direitos em excesso, mas a evidência é de que isso não ocorre entre os mais pobres. Se consideramos deveres os tributos, consideremos agora o gasto público como uma aproximação de direitos. Os dados apontam que transferências do governo são regressivas quando dividimos a população – por exemplo – em cinco grandes grupos de renda: isto é, quanto menos pobre cada quinto da população, mais recursos recebem. 

De tal forma que para o quinto mais rico pesam em sua renda os recursos recebidos do governo quase o mesmo tanto que para os mais pobres. Como mostra estudo da antiga Secretaria de Acompanhamento Econômico, esse padrão é muito divergente do de países da OCDE, em que o gasto é muito mais direcionado aos mais vulneráveis.

Como evidencia o debate do auxílio emergencial, uma larga parcela da população está, na verdade, com poucos direitos. Centenas de economistas lançaram no último fim de semana uma carta que chamou atenção pelas cobranças quanto à pandemia, mas que também defende de forma contundente uma reforma no sistema de proteção social – exatamente pela cobertura insuficiente. 

Muito mudou no País desde que Roberto Campos fez a crítica que seria popularizada nas décadas seguintes – de que a Constituição prevê direitos demais e deveres de menos. À época, ainda não haviam sido montados os mecanismos legais que hoje distorcem tanto nosso sistema tributário em benefício de quem está no topo. Que as mudanças que esperam nosso País nos próximos anos se orientem por uma verdade inconveniente: são os mais ricos que têm deveres de menos.

*Doutor em economia 


Vera Magalhães: Toffoli tenta impor limites a órgãos de controle

Em longo voto em que aparentou nervosismo e confusão, presidente do STF tentou justificar liminar controversa

Senta, que vai demorar. Dias Toffoli fez um voto longo. Muito longo. Longo, mesmo. Não é hábito do presidente da Corte se estender tanto em seus votos, e a exceção já permitia antever o que se viu: um voto na defensiva, procurando justificar decisões difíceis de defender, como a paralisação de mais de 900 procedimentos de investigação, e a extensão da decisão a dados da Receita - quando o próprio STF já tinha decidido a questão ao julgar uma Adin - e o apelo aos colegas a um argumento não jurídico, o de que os órgãos de controle fazem "assassinato de reputação" com o compartilhamento de dados.

Flávio? Que Flávio? No voto longo e confuso, Toffoli começou dizendo que o caso em discussão não tinha nada a ver com Flávio Bolsonaro, pelo fato de ser anterior ao seu pedido para sustar a investigação contra o ex-assessor Fabrício Queiroz. Imediatamente o argumento virou chacota nas redes sociais: afinal, sua liminar foi dada a partir de pedido de Flávio Bolsonaro, e depois Gilmar Mendes tratou por reforçá-la em outra decisão cautelar.

Como é? O voto foi tão tortuoso que os ministros pediram esclarecimentos ao final. Toffoli teve de reforçar que aprovava o compartilhamento de informações dos órgãos de controle, desde que mediante autorização judicial. O julgamento será retomado nesta quinta-feira, e dificilmente concluído, uma vez que a questão é espinhosa e pode haver votos com diferentes modulações.

Outro lado da Praça. Enquanto isso, no Congresso, a CCJ da Câmara aprovou a proposta de emenda à Constituição que permite a prisão após condenação em segunda instância. O tema também é objeto de discussão de projeto no Senado, para alteração do Código de Processo Penal, mas, lá, a oposição conseguiu adiar a discussão para a semana que vem, graças a um pedido de vista coletivo. O texto da PEC aprovada na CCJ da Câmara acaba com os recursos especial e extraordinário e transfere o trânsito em julgado para o segundo grau.

Caso Marielle. Nova reviravolta na investigação do caso Marielle Franco: o porteiro que havia citado em dois depoimentos que Elcio Queiroz, um dos acusados de participar do assassinato de Marielle Franco, esteve no condomínio de Jair Bolsonaro no dia do crime e indicou a casa do então deputado federal, voltou atrás em novo depoimento. Ele disse ter se enganado ao anotar a casa 58 no livro de registros e ao dizer que obteve autorização do "seu Jair" para entrar no condomínio.


Eugênio Bucci: ‘Economia criativa’ ou o mito da cultura lucrativa

Avizinha-se a política cultural dos incultos, representada pela destruição dos brucutus

O primeiro anúncio de que a produção de bens culturais se havia transformado numa indústria ordinária, banal, comum veio na forma de notícia ruim. Mais que ruim, agourenta. A expressão “indústria cultural”, formulada nos anos 40 do século passado por dois filósofos da Escola de Frankfurt, Theodor Adorno e Max Horkheimer, deixou todo mundo mal na foto. A dupla acusou os “capitães” da indústria cultural de substituírem o artista criador pelo “trabalho fungível” de anônimos, numa linha de montagem que endeusava o gosto do consumidor (que era gosto nenhum) e explorava a diversão das massas como um “prolongamento do trabalho”.

O negócio do entretenimento, então na sua adolescência, foi retratado como um engenho para alienar gente e assegurar o domínio do capital sobre as macacas de auditório. Ato reflexo, como recompensa pela má notícia que deram, Adorno e Horkheimer levaram a fama perpétua de pessimistas rabugentos. Mesmo assim, como a filosofia dos dois era boa, a influência ficou. Não dá pensar a cultura sem pagar pedágio a eles.

O segundo anúncio de que a produção de bens culturais se tinha transformado numa indústria veio na forma de euforia deslumbrada. Com excitação e ganância, a “economia criativa” foi proclamada, transformando em virtude e geração de riqueza o que a Escola de Frankfurt via como vício e manipulação.

Os pesquisadores desse filão dizem que o conceito começou a ganhar corpo nos tempos da conservadora Margaret Thatcher, primeira-ministra do Reino Unido de 1979 a 1990. Ela gostava de ter um publicitário por perto. Chamou marqueteiros competentes para a sua campanha e depois para o seu governo. Quando precisava convencer o contribuinte sobre isso ou aquilo, recorria ao advertising. Com essa predileção, a dama de ferro teria dado projeção aos negócios da publicidade, das produtoras de vídeo e de outros ramos que, em conjunto, formam a tal economia criativa.

A coisa só vingou mesmo alguns anos depois, entre 1997 e 2007, quando o trabalhista Tony Blair ocupou a cadeira que tinha sido de Thatcher. Blair pôs a economia criativa no centro das políticas públicas que implementou no Ministério (department) de Cultura, Mídia e Esportes. Daí em diante, em diversos países os “gestores públicos” passaram a olhar para a cultura como quem consulta um business plan, e a expressão economia criativa – hoje entendida como um setor que envolve tudo o que se relaciona com internet, turismo, grandes eventos, como a Olimpíada, y otras cositas más – entrou pesado no linguajar dos governos.

Frankfurt entregou ao mundo um pesadelo claustrofóbico com o nome de “indústria cultural”. Em resposta, a economia criativa nos devolveu a solução dos sonhos. Capitalismo também é cultura – ou, melhor, só há cultura no capitalismo. O movimento se adensou e se globalizou. Agentes públicos um pouco hipsters, que às vezes não usam gravata, situados num ponto equidistante (e improvável) entre a frieza contábil de Margaret Thatcher e a terceira via etérea de Tony Blair, passaram a professar o mantra de que cultura boa é cultura que gera impostos e financia o Estado. A onda pegou.

Foi quando o Brasil entrou no circuito. Tardia, mas consistentemente, o conceito de economia criativa vem fincando pé, com ares novidadeiros, em terras brasileiras, num contexto que exige de nós um pouco de reflexão (crítica, por certo, mas não macambúzia). Há riscos no ar. Quando a Inglaterra, dona do British Museum, da BBC e do Channel Four, vislumbra uma dimensão também econômica em atividades culturais, é uma coisa. Quando o Brasil, que incinera florestas e museus, começa a vislumbrar na devastação cultural oportunidades para o capitalismo, e mais nada, a coisa é monstruosamente outra. Os burocratas pátrios deram de fazer contas esquisitas. Dizem que festivais de música são meritórios porque anabolizam as taxas de ocupação de hotéis e geram tributos. Cifras casuísticas aparecem para metrificar a relevância cultural, enquanto um ornitorrinco microeconômico, um curiosíssimo “Ebitda” do setor público, se converte em indicador das artes.

Assim, a cultura é intimada a dar “retorno” para os cofres públicos, sendo tratada no mesmo nível que as corridas de Fórmula 1, a Marcha para Jesus, a Parada Gay ou o Círio de Nazaré. Ora, o que é cultura? Simples: cultura é o que faz tilintar o caixa da indústria do turismo. O resto é desperdício. Se você quiser montar uma peça de teatro para espectadores que morem na comunidade, esqueça. Eles não vão abarrotar a rede hoteleira. Se você quer uma biblioteca pública para moradores de rua, um abraço.

É claro que a produção cultural pode fomentar novos mercados de trabalho, e isso é muito bom – basta ver o sucesso do polo de indústria cinematográfica que se abriu no Recife, um exemplo gritante de conciliação entre o êxito econômico e a conquista cultural. O problema da adoção um tanto replicante do conceito de economia criativa entre nós não está aí, mas em outro lugar: está na redução do vasto universo da cultura e das artes a um organismo cuja mensuração cabe numa planilha de Excel.

O Brasil já pagou caro, e ainda paga, pela tecnocracia na política econômica. As contas até que fecham na bottom line, mas, como gente não é uma constante matemática, a vida social desanda. Agora o Brasil pagará ainda mais caro pela tecnocracia cultural. Avizinha-se de nós a política cultural dos incultos, e olhe que essa é a parte “menos ruim” do tablado nacional: a outra parte, a “mais pior”, é representada pela política de destruição cultural dos brucutus, os tais que censuram filmes e campanhas publicitárias com “temática transgênero”, que arrancam dos exames de vestibular menções à ditadura militar e, além de não lerem Paulo Freire, não sabem fazer conta de mais ou de menos.

De um lado, a cultura vira negócio sem conteúdo em busca de lucros ilusórios e esdrúxulos. Do outro lado, vira cinzas fumegantes. Saudade de Theodor Adorno.

*Jornalista, é professorda ECA-USP


Eliane Cantanhêde: E a impessoalidade?

Decisões de presidentes devem obedecer ao interesse público, não o pessoal, familiar ou de grupos

Alguém precisa avisar ao presidente Jair Bolsonaro que ele foi eleito para presidir o País, não para se tornar dono da República e fazer o que bem entende. Pelo princípio da impessoalidade, definido no artigo 37 da Constituição, o mandatário tem de tomar decisões de acordo com o interesse público, não ao sabor dos seus interesses, vontades e crenças pessoais, nem para favorecer a si, à família, aos amigos ou a grupos específicos. Há controvérsias se é exatamente assim que Bolsonaro governa, fala e age.

O exemplo mais chocante foi a indicação do filho para a mais importante embaixada do planeta, a dos EUA. Trata-se de um jovem de 35 anos que nunca pisou no Instituto Rio Branco, não é especialista na área nem um personagem de destaque na vida nacional. É filho do presidente, ponto.

E os dois exemplos mais recentes são retaliações do cidadão Bolsonaro, que aproveita o principal gabinete do Planalto e uma caneta Bic para se vingar de desafetos. Um é o cancelamento do contrato da Petrobrás com o escritório de advocacia do presidente da OAB, Felipe Santa Cruz. Outro é a dispensa de publicação de balanços de companhias abertas em jornais. “Não precisa dar dinheiro para um cara da OAB”, aplaudiu Bolsonaro, que falou de forma cruel sobre o desaparecimento do pai de Felipe na ditadura militar, remexendo uma ferida que não é só da família Santa Cruz, mas de toda a Nação.

Onde está o interesse público no cancelamento do contrato? O escritório, especializado em Justiça do Trabalho, evitou em 2018 rombo de R$ 5 bilhões à Petrobrás em causas trabalhistas. Logo, a companhia não dá dinheiro “para o cara”, remunera um serviço bem feito.

“Retribuí parte daquilo que grande parte da mídia me atacou”, disse Bolsonaro, assumindo a intenção de vingança quando desobrigou a publicação dos balanços. A decisão é do governo, mas o interessado é o ex-candidato, insatisfeito com as revelações da imprensa sobre seu passado e entorno desde a campanha. Como, aliás, ela tem o dever de fazer.

Lembra a punição ao fiscal do Ibama que multou o cidadão Jair por pescar em área protegida. O fiscal cumpriu seu dever, o cidadão descumpriu a lei. Quem riu por último? Aquele que, flagrado na infração, pensou: “Ah, esse aí me paga!”. Pagou mesmo. O pescador assumiu e usou o poder contra um pobre fiscal.

Também não se pode classificar de impessoalidade a decisão do presidente de “não dar nada para esse cara”. Desta vez, não o presidente da OAB, mas o governador do Maranhão, Flávio Dino, do PCdoB, um desses “paraíba” que ousam ser de esquerda. Do varejo para o atacado, o governo federal conseguiu punir o Nordeste inteiro, com apenas 2,2% dos empréstimos da CEF.

É um direito de Bolsonaro não gostar de Dino, como é dos governadores do Nordeste não gostar de Bolsonaro. Mas não é um direito da pessoa do presidente usar seu poder contra uma região, a segunda mais populosa do Brasil. O interesse dessa população está acima das birras do Jair.

E o que falar sobre o Coaf, que identifica movimentações financeiras atípicas e, assim, municia os órgãos de fiscalização e controle contra a lavagem de dinheiro, prima-irmã da corrupção? Ia tudo bem, até que o Coaf bateu os olhos numa dinheirama de um tal de Queiroz.

Esse foi o fio da meada de uma história ainda muito mal contada sobre contratações, salários, depósitos e esquemas nos gabinetes do clã Bolsonaro. Tal como o fiscal do Ibama, o Coaf está sendo punido por simplesmente fazer o que tinha de fazer. Podia pegar todo mundo, não o filho “01” do presidente, Flávio, agora senador.

Pimenta nos olhos dos outros é refresco, mas nos olhos do poder arde, causa irritação e, no caso dos Bolsonaro, gera retaliação. O problema é combinar com a Constituição. O artigo 37 é claro, preciso, um alerta.


Cida Damasco: Tudo pela economia?

Crença na retomada, apesar das loucuras do presidente, esbarra no investimento

A reforma da Previdência está bem encaminhada, as propostas para reforma tributária já mobilizam o Congresso e a equipe econômica, mal ou bem, tenta buscar algumas saídas para romper a estagnação. Quem gosta de tapar os olhos e os ouvidos para as loucuras de Bolsonaro tem tudo para se convencer de que a economia é um território isolado, onde investidores e empresas se abrigam para fazer negócios, bater metas e ganhar cada vez mais dinheiro.

Não é por acaso que, nas últimas duas semanas, enquanto se sucediam declarações e atitudes desastrosas do presidente, executivos de grandes empresas e dos mercados saíram a público para declarar que a economia vive um ciclo que “nunca antes” se viu nesse País. Sobre o destempero de Bolsonaro, ou o silêncio ou a consideração de que não compromete a economia.

Nos mercados, o bom humor é visível: a Bovespa se sustenta acima dos 102 mil pontos e o dólar abaixo dos R$ 3,90. No setor produtivo, os indicadores permanecem desfavoráveis, embora o discurso e a torcida de alguns analistas sejam de que finalmente a virada começou. Só como exemplo, a produção industrial está em queda generalizada e opera no nível de 2009. E o mercado de trabalho ainda frágil deixa à margem 28,4 milhões de pessoas, a chamada mão de obra subutilizada – que reúne desempregados, quem trabalha menos do que poderia e também quem não tem ânimo para sair de casa em busca de uma vaga.

A chave para aproximar esses dois mundos é o investimento. Há consenso de que um crescimento sustentado e não aos soluços, como tem ocorrido no Brasil, depende da retomada dos investimentos. Que estão, nesse momento, em 15,5% do PIB, bem abaixo do desejado e perto do fundo do poço da década, de 15% em 2017. E essa retomada, por sua vez, depende não só do fortalecimento da demanda existente como dos sinais de que País teremos mais à frente.

É justamente nesse ponto do roteiro que entra o Bolsonaro falastrão, do “sou assim mesmo” – aquele que parece governar com o fígado, mas no fundo mira a fidelização dos seus 30% de “consumidores”. Dá para enumerar pelo menos três grandes contenciosos políticos e sociais, que poderão invadir aquele terreno aparentemente “isolado” da economia. Em primeiro lugar, os ataques de Bolsonaro ao presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, e seus desdobramentos despertaram críticas inflamadas até nas fileiras dos aliados do Planalto dentro do Congresso, onde se encontram os principais projetos de interesse do governo.

Além disso, a investida contra o Inpe, em razão das estatísticas sobre o avanço do desmatamento, e a descortesia com a visita do chanceler francês – Bolsonaro trocou o encontro por um corte de cabelo – confirmam sua aversão às questões ambientais, decisivas para ampliar a inserção do Brasil e suas empresas no mercado internacional e, em particular, para garantir o aval ao festejado acordo entre Mercosul e União Europeia.

Em terceiro lugar, o “conjunto da obra” provoca reações contrárias no Supremo Tribunal Federal (STF), explicitadas na derrubada da MP de demarcação das terras indígenas e na manifestação dura do decano Celso de Mello. Reações potencializadas pelo cerco da turma de Curitiba aos ministros Dias Toffoli e Gilmar Mendes, exposto nos vazamentos da Lava Jato.

É claro que guerra de posts nas redes sociais, por si só, não afasta investidores interessados em licitações de estradas, aeroportos e outras obras de infraestrutura: segundo levantamentos do Estado, o programa de desestatização do governo Bolsonaro pode render mais de R$ 450 bilhões. Mas caso os embates do Planalto com o Congresso e o Judiciário resultem em obstrução de projetos, idas e vindas em decisões importantes, enfraquecimento dos instrumentos de controle e regulação, comandantes de grandes grupos pensarão duas vezes antes de colocar seu dinheiro no Brasil.

Por mais que o Congresso esteja disposto a levar adiante uma agenda econômica consequente – e tudo indica que isso está na cabeça de empresários e executivos –, não dá para imaginar que será possível passar ao largo das tempestades criadas pelo presidente. Um cenário que deixa à mostra a vulnerabilidade do “tudo pela economia”. Inclusive na economia.


William Waack: Os números que não mentem

O Brasil tem lições a dar em questões ambientais, mas está na defensiva

Números e narrativas não necessariamente coincidem e o Brasil é vítima de uma delas, com relevante repercussão internacional, sobretudo diante do anunciado acordo de livre-comércio entre União Europeia e Mercosul.

Exemplo clássico de números absolutos que não conseguem “narrar” corretamente uma situação é o da criminalidade. No Atlas da Violência do Ipea, verifica-se que São Paulo, com 4.631 mortos, figura entre os primeiros na lista de homicídios de 2017. Com menos da metade desse número – 2.203 casos – o Rio Grande do Norte está “confortavelmente” lá no meio da lista. Mas, em termos relativos, o Rio Grande do Norte apresentou uma taxa de 62 mortos (arredondando) por 100 mil habitantes em 2017. A mesma taxa para São Paulo era de 10, brutalmente inferior à do Rio Grande do Norte.

Vamos agora a um dos pontos nevrálgicos da discussão que o governo brasileiro terá de enfrentar ao tentar convencer europeus – governos e, especialmente, consumidores de produtos agrícolas brasileiros – de que o País atende aos padrões internacionais para o emprego de agrotóxicos. A narrativa consolidada é a de que o Brasil é o campeão mundial de uso de agrotóxicos, e o número absoluto não mente. Agrotóxicos são commodities, cotadas em dólares, e o valor do consumo brasileiro é o maior do mundo (indicando, portanto, a quantidade de toneladas compradas).

Mas, considerados em relação à área cultivada, ao tamanho da produção e à média de produtividade em função do uso desses agrotóxicos (um cálculo que leva em conta o consumo em dólares de pesticidas em relação à produtividade média por hectare de agricultura), os números da FAO, a agência da ONU para alimentação e agricultura, colocam o Brasil em situação incomparavelmente mais confortável do que potências europeias como França, Alemanha, Itália e Reino Unido (para curiosidade, os grandes vilões nessa comparação são Japão e Coreia).

Em outras palavras, é o Brasil que deveria acusar e não ser acusado de abusar do uso de agrotóxicos. Mas o País está acuado no debate internacional e não foi capaz ainda de encontrar uma fórmula para provar que os números que não mentem e contam como são os fatos relevantes deveriam favorecê-lo nas negociações duríssimas, com intrincados interesses cruzados (objetivamente, ambientalistas e protecionistas, por exemplo), que estão apenas começando.

Nessa questão específica, a do uso de agrotóxicos, sucessivos governos brasileiros perderam a batalha de comunicação doméstica também.

Projeto de lei tramitando no Congresso para atualizar normas legais e permitir acesso a agrotóxicos mais modernos (menos tóxicos e venenosos, e que podem ser aplicados em dosagem menor) virou “PL do veneno”. O debate já se afastou dos argumentos científicos, suplantados pelo berreiro ideologizado.

De fato, o Brasil tem exemplos a dar para o mundo em energia renovável, biocombustíveis, aumento da produtividade na agropecuária e é uma formidável potência produtora de alimentos – sem, para isso, ter aumentada a área cultivada. Mas não é esta sua imagem externa, uma situação apenas em parte criada por grupos organizados vinculados ou não a interesses governamentais estrangeiros e comerciais. Diante das avenidas que podem se abrir com o acordo entre Mercosul e União Europeia, o governo brasileiro está diante da urgente necessidade de desenhar uma estratégia que o tire da atual postura defensiva.

Proferir frases contundentes em reuniões internacionais de cúpula, como o G-20, energiza e mobiliza o público cativo interno. Mas é pouco.


Zeina Latif: Sinais confusos

Com a saída de Levy do BNDES, sacrificou-se um quadro técnico preparado

O comportamento do PIB brasileiro calculado mensalmente pelo Banco Central – 2% abaixo do fechamento de 2018 em abril, já descontado o padrão sazonal – sinaliza uma economia que voltou a encolher, coincidindo com a queda da confiança dos empresários. Diante desse quadro, o setor privado aguarda as indicações do governo quanto à agenda econômica para o Brasil voltar a crescer. Os últimos sinais, porém, foram na direção contrária.

O presidente Bolsonaro defendeu a criação de uma moeda única com a Argentina. Uma boa ideia, mas apenas para aquele país. Apesar de a crise fiscal no Brasil ser grave, a inflação está baixa e as reservas internacionais são elevadas, situação oposta à argentina. Uma moeda única implicaria juros mais elevados dos que os praticados atualmente pelo Banco Central. Certamente, esse tema não irá prosperar, devido aos ambientes econômicos tão distintos dos países. No entanto, a fala do presidente não foi um bom sinal, pois sugere a ausência de clareza dos problemas econômicos.

Outra notícia negativa foi a não inclusão de mudanças de regras para aposentadoria de servidores de Estados e municípios no relatório da reforma da Previdência apresentado na Comissão Especial da Câmara. Os Estados enfrentam, em diferentes graus, grave crise fiscal, principalmente por conta de gastos elevados e crescentes com a Previdência.

Apesar de o relatório não ser obra do Executivo, este tem sim responsabilidade sobre seu conteúdo. Faltou mais empenho do governo na coordenação e no diálogo com os governadores, de forma a buscar soluções majoritárias. Aparentemente, o governo julgou que incluir os entes subnacionais reduziria as chances de aprovação da reforma. O próprio Bolsonaro afirmou que o tema da Previdência dos entes subnacionais era problema do Congresso. Este raciocínio ignora os riscos fiscais no nível federal decorrentes da crise dos Estados. Desconsidera também que o colapso dos serviços públicos impacta a aprovação do governo e que a diminuta capacidade de investimento dos Estados pesa no crescimento da economia.

Além disso, o relatório embutiu temas alheios à Previdência, como o aumento da tributação de bancos, com a justificativa de que isso agradaria a sociedade. Elegeu-se um vilão para ser penalizado, sem qualquer estudo técnico e diagnóstico respaldando a decisão. Isso faz mais mal do que bem para o crescimento.

O Brasil precisa de reforma tributária, e não de improvisos para ajudar a pagar as contas. Sem contar que a decisão não afeta o cumprimento da regra do teto, que impõe limite ao crescimento dos gastos, independentemente do comportamento da arrecadação.

Essa decisão aumenta a imprevisibilidade do sistema tributário, enquanto o setor privado se ressente com as mudanças frequentes de regras do jogo, sem critérios. Ainda que não tenha sido decisão do governo, este deveria se colocar frontalmente contra a medida. Ao não fazê-lo, é natural que outros segmentos do setor privado temam novas medidas tributárias contra seus setores. Mais uma fonte de incertezas.

Novos ajustes na proposta de reforma da Previdência poderão ocorrer até a votação no plenário da Câmara, possivelmente no segundo semestre. Que se evitem decisões equivocadas para garantir o emblemático R$ 1 trilhão de impacto fiscal no nível federal. Não é apenas o valor que importa.

Em outra frente, não foi nada alvissareira a decisão de forçar o pedido de demissão de Joaquim Levy do BNDES. Sacrificou-se um quadro técnico preparado, com reputação mundial e que iniciou as chamadas “despedaladas” do banco quando ainda era ministro da Fazenda de Dilma. Parece faltar ao Planalto a compreensão sobre as dificuldades técnicas e da burocracia para conduzir essas políticas.

Esses erros do governo denunciam alguns problemas de diagnóstico sobre o baixo crescimento do País que precisam ser resolvidos para que se defina a agenda pós reforma da Previdência.

*Economista-chefe da XP Investimentos


Monica De Bolle: Presidentes minoritários e reformas

Bolsonaro cria ruído e está cercado de gente que gosta de fazer o mesmo, como comprar brigar inúteis

Presidentes minoritários têm sido há décadas a regra na América Latina, não a exceção. A exceção atual é o México de Andrés Manuel López Obrador e trata-se da única. Nos sistemas multipartidários e fragmentados que temos região afora, a prática para construir coalizões e consensos, sobretudo quando se pretende aprovar reformas de grande envergadura, é a de engajar-se naquilo que, no Brasil, nos acostumamos a chamar de toma lá dá cá. Em outros países, há outros nomes: na Colômbia, por exemplo, dá-se a isso a denominação de “mermelada”. Mesmo nos Estados Unidos, onde o sistema é nominalmente bipartidário – digo nominalmente pois, hoje, tanto republicanos quanto democratas estão internamente rachados – existe o “pork barrel politics”.

Toma lá dá cá, “mermelada”, e “pork barrel politics” significam todos mais ou menos a mesma coisa: o presidente oferece cargos a partidos “aliados” a fim de garantir a adesão à agenda que quer aprovar, e/ou disponibiliza recursos públicos para emendas parlamentares que favorecem políticos e sua base ou distrito – no caso em que o voto é distrital como nos EUA. Tais práticas dão margem a vários problemas. Quando cargos são alocados tendo como princípio a garantia de lealdade, ainda que temporária, as chances de que ministérios e agências governamentais sejam entregues a gente que não tem formação ou capacidade para exercer o cargo são elevadíssimas. Exemplos disso temos de sobra na história recente brasileira. Quando gastam-se recursos públicos para comprar a fidelidade dos parlamentares desperdiça-se muito dinheiro que poderia ser melhor alocado em outras áreas – de programas sociais a investimentos públicos.

A onda recente que varreu o mundo contra o modo “tradicional” de fazer política levou alguns líderes recém-eleitos na América Latina a se comprometer em acabar com a “mermelada”, ou com o que alguns chamam no Brasil de “velha política”. A ideia é auspiciosa e causa arroubos de esperança. Pena que na prática a tese não fique de pé por mais de par de meses, quiçá menos.

Iván Duque, o presidente colombiano eleito em meados de 2018, prometeu acabar com a “mermelada”. Nomeou técnicos para os seus principais ministérios sem qualquer consideração sobre os partidos aos quais pertenciam ou não – muitos não são filiados à agremiação alguma. Deixou cientistas políticos de cabelo em pé, mas agradou a população que nele votou. Dentre suas principais promessas de campanha estava a necessária reforma tributária para elevar a arrecadação. A Colômbia precisa urgentemente gerar recursos não só para atender as demandas regionais de territórios onde as Farc foram desmobilizadas pelo Acordo de Paz – e que, hoje, sofrem com a ausência de serviços públicos – como também para enfrentar a crise migratória da Venezuela. A Colômbia já recebeu cerca de 1,5 milhão de refugiados do país vizinho – esses em situação regularizada – e provavelmente outro milhão ou mais de pessoas em situação irregular, portanto não registradas. O problema tende a piorar com as incertezas que cercam o regime de Maduro, pressionando as contas públicas colombianas. Mas, mesmo em meio a tudo isso, Duque fracassou na tentativa de aprovar sua reforma tributária. Em vez da reforma ampla, ganhou migalhas do Congresso insatisfeito com o término da “mermelada”. Não surpreende que a popularidade de Duque, considerado um presidente frágil no país, tenha começado a cair.

No Brasil, Bolsonaro afirma que a “velha política” acabou, que não irá ceder às pressões do Congresso para aprovar a reforma da Previdência na qual ele já disse não acreditar muito. Bolsonaro é presidente mais fraco que Duque, já que seu partido não tem tradição ou força, ao contrário do par colombiano. Bolsonaro cria ruído e está cercado de gente que gosta de fazer o mesmo, como comprar brigas inúteis com o presidente da Câmara. Seu par colombiano sabe que sem “mermelada” a pior estratégia é brigar sem motivo com o Congresso. Duvido que Bolsonaro aprenda algo com seu par latino americano, ou com qualquer outra pessoa – o presidente não é afeito a muitas reflexões. Disso tudo o que fica é que o papo de “velha política” é conversa mole, o Congresso é o mesmo que sempre tivemos, voraz por benesses. Há momentos em que o realismo tem de prevalecer sobre o realismo tragi-mágico que nos impusemos. Não estou prendendo a respiração.

*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University


Simon Schwartzman: A fábrica de ilusões

Ensino superior precisa de visão de futuro, regras claras, mais flexibilidade e mais transparência

No Brasil todos querem ganhar na loteria, e muita gente joga, mesmo que pouquíssimos ganhem. No ensino superior é parecido: cerca de 7 milhões se candidatam todo ano ao Enem, disputando cerca de 300 mil vagas em universidades federais. Muitos dos que não passam vão para escolas privadas, em alguns casos com bolsas ou créditos educativos. Em 2017, 2,5 milhões de pessoas entraram em cursos superiores, a grande maioria no setor privado, e 1,2 milhão se formaram. Dados do Inep mostram que depois de quatro anos 31% dos estudantes haviam abandonado o curso e só 11% se formaram. O abandono é muito maior nas instituições privadas (37%) e em áreas como ciências matemáticas e computação (40%), ciências sociais (35%) e cursos à distância (42%).

A peneira, na verdade, começa antes. Hoje existe escola fundamental para todos, mas a qualidade, sobretudo nas redes municipais e estaduais, é muito ruim, e a grande maioria chega ao ensino médio mal sabendo escrever e fazer contas. Em 2018, 3 milhões de jovens entraram no ensino médio, mas só 2,3 milhões chegaram ao terceiro ano. Outro 1,4 milhão, de mais velhos, se matriculou em cursos de educação de jovens e adultos, em que a grande maioria não se forma – e a qualidade é pior ainda. É pior do que loteria, porque é um jogo de cartas marcadas: filhos de famílias mais ricas e educadas, que estudam em escolas particulares ou passam nos “vestibulinhos” das escolas federais, têm mais chances de conseguir boa nota no Enem, passar na Fuvest, escolher os melhores cursos ou ir para uma escola superior privada de elite. Já a grande maioria fica pelo caminho.

Ter educação superior hoje no Brasil significa ter uma renda média do trabalho de R$ 4.600 mensais, comparada com R$ 1.600 dos que têm nível médio e R$ 1.350 de quem só tem o fundamental. Mas depende muito do curso e da faculdade que a pessoa seguiu: cerca de metade das pessoas de nível superior trabalha em profissões de nível médio, com renda próxima de R$ 2.400. Para ter maiores benefícios é preciso entrar numa carreira disputada, como medicina ou engenharia, ou passar na prova da OAB ou num difícil concurso para cargo público: é para poucos.

Além do imenso custo pessoal para os milhões que gastam anos, dinheiro e esperança tentando uma carreira que nunca vão atingir, existe o custo público de manter tudo isso. Segundo dados da Secretaria do Tesouro, os gastos da União em educação superior passaram de R$ 32 bilhões a R$ 75 bilhões entre 2008 e 2017, em sua grande maioria na forma de salários para professores de tempo integral das universidades federais, enquanto o crédito educativo, concedido de forma indiscriminada ao setor privado até recentemente, chegou a mais de R$ 30 bilhões em 2016 e 2017. Tudo isso para financiar um sistema com 30% ou mais de ineficiência, sem falar na qualidade e pertinência do que é ensinado. O Ministério da Educação mantém um sistema extremamente complexo e caro de avaliação do ensino superior, com as provas do Enade e a divulgação de diferentes índices que não nos dizem quais cursos são efetivamente bons ou ruins, nem qual a empregabilidade dos formados, ou a eficiência das instituições no uso dos recursos públicos.

Outra ilusão é a suposta “indissociabilidade do ensino, da pesquisa e da extensão”, consagrada no artigo 207 da Constituição. Em seu nome, 87% dos professores das instituições federais e 80% das estaduais têm contratos de trabalho de tempo integral, e a maioria de dedicação exclusiva, elevando enormemente os custos, embora a pesquisa que mereça esse nome – regular, de padrão internacional e de impacto social e econômico – esteja concentrada numas poucas instituições, existam poucas patentes e grande parte dos artigos produzidos termine enterrada em revistas que ninguém lê. Em seu nome, também, as instituições de ensino são avaliadas pelo que elas não querem, não sabem fazer nem precisam – quantos professores doutores têm, quantos papers produzem, quantos cursos de pós-graduação oferecem.

Não será fácil sair desta situação. Não é possível reverter o relógio e limitar o acesso à educação superior, mas é possível melhorar as avaliações e oferecer uma gama de alternativas de estudo e formação para pessoas que chegam ao ensino superior com diferentes condições e necessidades. O “modelo de Bolonha”, adotado pela União Europeia e muitos outros países, consiste num primeiro ciclo de três anos de amplo acesso, seguido por mestrados ou cursos mais avançados. Além disso, existem amplos sistemas de formação vocacional que começa no ensino médio e continua no pós-secundário, em institutos e centros especializados. Transitar do sistema tradicional de cursos de quatro ou cinco anos para esse modelo não é fácil, mas é possível, se houver uma visão clara do que se pretende e estímulos adequados para que as instituições respondam.

O setor privado, que trabalha numa perspectiva empresarial, já se vem adaptando às novas condições, compensando a perda dos subsídios do crédito educativo por cursos à distância e ampliando a oferta de cursos “tecnológicos” de curta duração. O setor público necessita, sobretudo, de incentivos corretos para disputar e usar bem seus recursos, com contratos de gestão para cumprir metas diferenciadas e realistas, novas formas de governança e flexibilidade legal e institucional para responder a esses incentivos. E os estudantes devem compartir a responsabilidade e os custos de sua educação, sobretudo por meio de créditos educativos associados à renda futura.

O mercado tem suas vantagens, mas também problemas quando a competição se dá por baixos custos e venda de ilusões. O ensino superior brasileiro precisa de uma visão de futuro, regras claras de funcionamento, mais flexibilidade e mais transparência. E o Ministério da Educação, que é parte, talvez não seja a melhor agência para regular esse sistema.

* Simon Schwartzman é sociólogo e membro da Comissão Nacional de Avaliação da Educação Superior (CONAES)


Maílson da Nóbrega: A reforma da Previdência precisa tramitar sozinha

Sem ela não há futuro minimamente razoável para o governo e para o País

O êxito do governo de Jair Bolsonaro depende, essencialmente, de reformas para vencer dois desafios cruciais: 1) evitar a insolvência fiscal, o que depende da reforma da Previdência; e 2) adotar medidas para elevar a produtividade e, assim, expandir o potencial de crescimento da economia. Há, além disso, mudanças vinculadas a promessas de campanha, voltadas para os costumes e a segurança pública.

A complexidade da agenda dificilmente tem paralelo no País. Já vencemos outros graves desafios, como os de restaurar a democracia e superar o processo hiperinflacionário dos anos 1980 e 1990, mas em nenhum se requeria o difícil conjunto de mudanças deste momento.

É verdade que a agenda pós-Plano Real, como as da privatização e da eliminação de restrições ao capital estrangeiro, demandaram reformas constitucionais, mas as ações para enfrentar os dois citados desafios eram menos complexas. Situavam-se preponderantemente nas áreas da negociação política e do desenho de um plano para estabelecer o modelo do processo de estabilização monetária.

Hoje, o risco de insolvência e as demandas do eleitorado criam pressões para o ataque simultâneo a todos os desafios. E muitos se empenham em preparar medidas com esse objetivo. A área econômica elabora o projeto de reforma da Previdência, cuja apresentação ao Congresso Nacional depende apenas da chancela do presidente, após seu retorno a Brasília, recuperado da cirurgia recente. Ao mesmo tempo, o ministro Paulo Guedes, da Economia sinaliza propostas ousadas de privatização e abertura da economia, ligadas à produtividade. Enquanto isso, o Ministério da Justiça e Segurança Pública anunciou um pacote para combater a corrupção, atacar o crime organizado e coibir crimes violentos, o que implicará mudanças de porte no Código Penal e em outras áreas da legislação.

Ainda na campanha, Bolsonaro prometeu reduzir e simplificar a carga tributária, o que reiterou no Fórum de Davos. A redução é inviável, pois as despesas obrigatórias superam a receita, o que desaconselha perdas de arrecadação. A simplificação é desejável, mas pressupõe profundas mudanças nas regras tributárias, incluindo uma saída para a caótica tributação do consumo.

Entre os especialistas cresce a percepção de que chegou a hora de implantar um Imposto sobre o Valor Agregado (IVA), cobrado pela União e repartido automaticamente com Estados e municípios, eliminando o ICMS, o ISS, o PIS e a Cofins. Essa é a regra em mais de 150 países. Reforma semelhante, realizada na Índia em 2018, produziu aumento de dois pontos de porcentagem no potencial de crescimento da economia. O mesmo poderia acontecer por aqui, mas isso vai requerer difíceis negociações com os governadores em torno da respectiva emenda constitucional.

Ainda que menos polêmico nos dias atuais, o projeto de lei complementar que atribui autonomia operacional ao Banco Central foi incluído nas medidas prioritárias dos cem primeiros dias de governo. As esquerdas podem mobilizar as redes sociais com o objetivo de acirrar o sentimento antibanco que ainda existe no País. E a opinião pública menos informada pode comprar a ideia errada de que o projeto vai beneficiar banqueiros.

A agenda de costumes e de combate à corrupção tem elevado potencial de resistências no Congresso e no Judiciário, além de ser propícia à mobilização dos que a ela se opõem. Aliás, já se esboçaram as primeiras reações negativas de membros desses dois Poderes tão logo o ministro Sergio Moro anunciou o projeto e começou o diálogo com áreas relevantes. A abertura da economia é consensual entre os analistas, mas tende a enfrentar oposição no empresariado industrial, o que poderia dispersar apoios à reforma da Previdência.

Se a tudo isso acrescentarmos a ausência, até agora, de uma base parlamentar majoritária, teremos uma ideia dos riscos de levar adiante todas as mudanças de uma só vez, tanto as associadas aos desafios da insolvência fiscal e da produtividade, quanto as relativas a promessas de campanha. A simultaneidade ou mesmo o ataque a mais de um dos objetivos tende a dividir e dispersar esforços e apoios.

Deve-se lembrar, por último, que, apesar de a relação dívida pública/PIB, hoje em 76,7%, indicar o risco de insolvência fiscal, os mercados continuam investindo em papéis do Tesouro, baseados na narrativa de que haverá uma reforma da Previdência. Espera-se, além disso, que ela seja profunda e abrangente o suficiente para estabilizar em alguns anos essa relação e em seguida colocá-la em trajetória de queda. Sem a reforma ou com um projeto desidratado de suas ambições, essa narrativa desmoronará, provocando rápida queda de confiança e fuga de capitais, com todas as suas graves consequências, a principal delas a volta da inflação elevada e sem controle.

Por tudo isso, parece aconselhável que o governo, que já elegeu a reforma da Previdência como prioridade máxima, adote uma sequência que evite estabelecer concorrência com as demais reformas. Nenhuma outra é tão fundamental. Todas as restantes podem esperar. O fracasso na reforma da Previdência e seus devastadores efeitos econômicos e sociais corroeriam gravemente o capital político do presidente. O êxito que se espera do seu governo viraria simples quimera.

A sequência adequada requer não apenas, vale repetir, que a reforma da Previdência seja a primeira, como parece já estar decidido, mas também que se evite a simultaneidade com qualquer outra mudança capaz de gerar conflitos, dividir esforços, tumultuar a tramitação no Congresso ou elevar seus custos de transação. Não há futuro minimamente razoável para o governo e para o País sem a reforma da Previdência. É preciso que ela tramite sozinha.

*ECONOMISTA, SÓCIO DA TENDÊNCIAS CONSULTORIA, FOI MINISTRO DA FAZENDA


Monica De Bolle: Encurralados

Não tardará para que conflitos em torno das reforma da Previdência apareçam com mais clareza

“Não acho que quem ganhar ou quem perder, nem quem ganhar nem perder, vai ganhar ou perder. Vai todo mundo perder.” A frase, como muitos devem saber tamanha sua notoriedade, é de Dilma Rousseff. Na época em que a ex-presidente a proferiu em 2015, a opinião quase unânime era de que o amontoado de palavras sobre ganhar ou perder não fazia sentido algum, em linha com outros discursos e frases célebres de Dilma. Contudo, as reviravoltas no Brasil e no mundo que ocorreram nos últimos quatro anos tornaram o dito profético, sobretudo a asserção final: “Vai todo mundo perder.”

Quando esse artigo for publicado, já conheceremos o veredicto do Parlamento britânico sobre o plano de saída da União Europeia – o Brexit – negociado pela primeira-ministra Theresa May. Ao que tudo indica, May está encurralada. De um lado porque escolheu alijar das discussões parlamentares contrários ao Brexit tanto dentro de seu próprio partido, quanto na oposição. Tal estratégia para aplacar a base ruidosa de defensores do Brexit dentro do Partido Conservador deixou todos desconfiados: Theresa May, afinal, votou contra o Brexit. Portanto, seus correligionários sentem-se ou traídos ou ressabiados após a negociação de um acordo que, argumentam, não entregará o que tanto queriam.

Os argumentos sóbrios e os números frios, que mostram inequivocamente como sofrerá a economia do Reino Unido com a saída da UE estão sendo sumariamente ignorados pelos parlamentares dos dois partidos ante o estratagema de autoencurralamento que a primeira-ministra se impôs. Em caso de derrota do plano, todos perderão. No caso da menos provável vitória, todos também perderão – afinal, o Brexit é para lá de custoso em termos econômicos para a Grã-Bretanha.

Outro caso de autoencurralamento está em ampla evidência do outro lado do oceano. Há mais de três semanas, partes do governo norte-americano estão fechadas, funcionários públicos sem receber salários, por causa da intransigência de Trump com seu muro. Há notável quantidade de estudos técnicos mostrando que a imigração ilegal nos últimos anos tem sido menos pelo cruzamento da fronteira que separa o México dos EUA e mais por visitantes que entram no país pelos aeroportos com vistos válidos e permanecem após a expiração desses vistos.

Outros estudos revelam que barreiras físicas não são suficientes – ou mesmo viáveis em partes da fronteira, por isso não existem – para evitar, por exemplo, a entrada de drogas. É preciso ter aparato tecnológico mais sofisticado para tanto. Contudo, Trump prometeu entregar o muro durante a campanha, e agora finca o pé para tentar aplacar sua base de eleitores enquanto enfrenta democratas ávidos por investigá-lo em diversas frentes e por impedir qualquer de seus esforços legislativos. Enquanto não surge solução para o impasse, perdem todos. Quando surgir a solução, qualquer que seja, todos deverão também perder. A culpa pela paralisia prolongada e pela incapacidade de levar adiante uma negociação política deverá ser dividida entre Trump, republicanos, e democratas.

Voltando à frase de Dilma, ela remonta a uma reflexão interessante. A barganha privada, em que os dois lados tentam extrair algo do outro quando suas posições divergem, é mais simples do que a barganha política. Na barganha política há sempre um terceiro lado – os eleitores – a vigiar as negociações. Quando esses eleitores estão mais alinhados ao centro, a barganha política naturalmente acaba envolvendo concessões, ajudando a formar consensos e soluções para os embates. Contudo, quando esses eleitores estão polarizados nos extremos do debate, eles acabam agindo como força que enraíza posições duras. Nenhuma concessão no caso do Brexit, e portanto uma potencial derrota para May. Nenhuma concessão na questão do shutdown/muro de Trump, prolongando a angústia daqueles que sofrem diretamente e indiretamente os efeitos do fechamento parcial do governo. Conjecturo que nesses dois casos os impasses só poderão ser quebrados quando os custos de fincar o pé se tornarem excessivamente altos. Ou seja, quando ficar evidente que todos perderam, ainda que queiram posar de vencedores.

Encerro com uma breve nota sobre o Brasil. Não tardará para que conflitos em torno das reformas econômicas, sobretudo da contenciosa reforma da Previdência, apareçam com mais clareza. Temos no País um eleitorado polarizado diante do qual não foi exposta uma agenda econômica clara durante a campanha. Creio que estamos prestes a ver nossa própria versão dos encurralados do norte.

*Monica de Bolle é economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University