Alon Feuerwerker: A utilidade do olavismo na transição entre narrativas. E a certeza que faz a economia sofrer

Em disputas políticas encaixar a narrativa desejada é mais ou menos como encaixar a pegada no quimono do oponente no judô: meio caminho andado para deixar o adversário de costas no chão. E na política um ippon vale tanto quanto no tatame.

Mas a política tem especificidades. A narrativa bem encaixada exige não ser percebida como narrativa, mas tradução única e fiel da realidade. Melhor ainda se a transição entre narrativas contraditórias acontece imperceptivelmente.

Por exemplo, a narrativa dominante do momento conta que o governo Bolsonaro se divide entre ideológicos e pragmáticos. Estes vêm encaixando melhor a pegada no quimono adversário do que aqueles, e estão em certa vantagem.

Mas quando foi mesmo que a luta contra a chamada velha política e o chamado fisiologismo perdeu de repente protagonismo em favor da ética da responsabilidade?

E depois ainda dizem que o presidente é ruim de jogo. Será? Veja você que ele deixou para ceder espaço político-orçamentário quando isso está sendo quase implorado pelo establishment, em nome da centralidade da sacrossanta reforma da previdência social.

Bolsonaro vai cometer o que a opinião pública chama fisiologismo, mas o custo político será quase zero. Ponto. Significa sem turbulências? De jeito nenhum. A turma do PSL, por exemplo, parece inconsolável por não ter como governar sozinha.

Ou ocupar sozinha os cargos apetitosos.

Acontece que o establishment já percebeu: não é suficiente mandar o mercado pressionar o Congresso, e junto intimidar as excelências com a ameaça de aplicar a força policial. Aliás, quanto mais cedo o ministro da Justiça notar isso melhor (para ele).

O governo é meio neófito, mas leva jeito de ter entendido que governos só têm duas opções: governar ou colapsar. E é sempre bom lembrar: não se conhece poder que preferiu o suicídio político para manter a coerência na narrativa original.

Na Argentina os liberais antes celebrados como paradigma agora congelam preços e controlam câmbio. Vale a velha regra do Império, adaptada: nada mais parecido com um heterodoxo que um ortodoxo politicamente pressionado.

Qual é o problema do presidente? Ele precisa fazer o caminho de volta da nova para a velha política sem perder substância, e mora aí a utilidade do chamado olavismo. Este serve para reafirmar a autenticidade. Como foram a política externa e as políticas sociais para Lula.

Bolsonaro tem três opções: 1) rompe com o círculo militar e com a dita velha política e naufraga amarrado ao leme da nau olavista, 2) rompe com o olavismo e aceita virar um pato manco tutelado com menos de seis meses de governo ou 3) segue o jogo.

Fica claro agora que a recentíssima ofensiva olavista-bolsonarista contra os generais tratou de colocar uma barreira de contenção ao namoro da elite com um certo sonho bonapartista-institucional-militar-chique.

Onde está o problema? As duas análises de conjuntura anteriores (em www.alon.jor.br) chamaram a atenção para o efeito político das dificuldades econômicas. Um governo de base gelatinosa e conflagrada fica mais vulnerável quando falta pão.

As projeções econômicas têm sofrido, mas não principalmente por causa de incerteza nas reformas. É porque se contrai a demanda agregada. E quanto mais certeza de que vai haver reformas mais o consumidor temerá o arrocho, e mais se retrairá. Pelo menos no curto prazo.

As projeções econômicas aceleraram o mergulho exatamente quando a reforma da previdência ganhou mais musculatura e deu sinais de passar. O que está fazendo a economia sofrer não são as incertezas, é a certeza do dinheiro pouco.

O risco para o governo é alguma hora consolidar a narrativa de que a economia vai mal por causa da zorra política. Por enquanto as estatísticas mostram que o eleitorado está lançando o problema na conta do PT. Mas alguma hora o centrismo hibernante vai dizer que a bagunça bolsonarista é a culpada.

Será uma narrativa conveniente, pois a opção seria admitir que a política econômica talvez não seja tão boa assim. E isso nem pensar.

Mais ou menos o que está acontecendo na Argentina. A narrativa preferida do péssimo momento eleitoral da direita é “a economia não colapsou por causa das políticas do Macri, mas pelo medo da volta da Cristina”. Será?

Nas receitas como a de Paulo Guedes as coisas costumam piorar antes de melhorar. Não sei quanto de fato Bolsonaro curte o olavismo, mas o presidente parece acreditar que precisa do radicalismo e do histrionismo dele para atravessar o tempo das vacas magras.

Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Murillo de Aragão: A primeira liberdade

Apesar da deseducação e do preconceito — independente da origem ideológica —, o direito de livre expressão irá triunfar. Sem tolerância não iremos a lugar algum

Uma das lutas da humanidade é para podermos falar o que pensamos sem sermos punidos, coagidos ou até mesmo mortos. A essência da evolução é a liberdade de expressão, que precede a liberdade de imprensa. Na constituição norte-americana, a primeira das liberdades é a de expressão, conhecida como a liberdade das liberdades. Sem ela, as demais não se realizam.

Observando a história recente da humanidade — para não irmos muito longe —, a supressão desse direito é o objetivo dos regimes de exceção. Hitler, Stalin, Mussolini, Tito, Perón, Vargas, Castro, Mao, Chávez e tantos outros ditadores trataram de limitá-la. Muitos deles usaram das franquias democráticas para chegar ao poder. E lá, trataram de suprimi-la. No entanto, a resistência às ditaduras se dá no exercício, ainda que precário, da livre expressão das ideias. Algo tão relevante que muitos projetos de poder buscam influir na formulação de conceitos de liberdade para, no final das contas, controlar a circulação da informação.

Um estudo da Freedom House, organização internacional independente que pesquisa o estado da liberdade de expressão, informa que vivemos treze anos seguidos de declínio no exercício dos direitos políticos e dos direitos civis. Os ataques à liberdade de expressão, incluindo aí as atividades jornalísticas, seriam decorrentes da era de radicalismos em que vivemos.

Como combater a intransigência e a perda da nossa liberdade de expressão? Em essência, necessitamos de mecanismos institucionais e, sobretudo, de uma atitude consciente. Tais mecanismos se consolidam a partir de três vetores básicos: educação para a cidadania, marcos regulatórios adequados e garantia de que o direito de expressão seja exercido sem limitações e com responsabilidade. Na prática é preciso capacidade para educar, capacidade para fazer boas leis e capacidade de aplicá-las.

O Brasil de hoje, ainda precariamente educado para o debate, deve aprender a conviver com o contraditório e com a diversidade de opiniões. Sem a tolerância e o respeito aos que pensam diferente não iremos a lugar algum. As expressões de deseducação, intolerância e preconceito — independente da origem ideológica — não atendem aos interesses da cidadania. Apesar das turbulências dos tempos de hoje, acredito que a liberdade de expressão irá triunfar no País, ainda que a luta esteja apenas começando.


Dom Odilo P. Scherer: Assembleia da CNBB - Escutar os jovens

Nos seus desafios e nas suas expectativas se mostram os rumos da sociedade do amanhã

O Santuário Nacional de Aparecida sediou, de 1.º a 10 de maio, a 57.ª Assembleia-Geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), com a participação de cerca de 330 bispos católicos, representantes das 275 dioceses do Brasil. Realizada anualmente, a assembleia tem o objetivo principal de tratar de assuntos relevantes para a vida, a organização e a atuação da Igreja Católica no País, de forma a atender às demandas da missão da Igreja em todas as suas dimensões, sempre em sintonia com as orientações do papa Francisco e da Santa Sé.

Os principais assuntos tratados foram a definição das diretrizes quadrienais da ação da CNBB e da Igreja no Brasil, o acompanhamento da vida social, econômica e política do País, assuntos de doutrina da fé e liturgia, a preparação do sínodo da “Pan-Amazônia”, a ser realizado em Roma no próximo mês de outubro, e a situação religiosa no Brasil, especialmente no que se refere aos jovens. Durante a sua assembleia, a CNBB também elegeu o seu novo quadro diretivo para o próximo quadriênio. E não faltou muita oração e também um dia de retiro espiritual, pregado por dom José Tolentino, bispo português responsável pelo arquivo secreto do Vaticano e pela biblioteca pontifícia.

A pluralidade de assuntos e temas abordados durante a assembleia denota a amplitude e a riqueza dos campos de atuação da Igreja Católica no Brasil, que, atenta à sua missão religiosa, não deixa de dar a sua contribuição para o bem comum, estimulando e orientando seus membros a serem cidadãos participativos nas suas comunidades, em vista da edificação de comunidades locais bem constituídas e atentas às mais diversas realidades humanas em que estão inseridos. Um bom cristão também há de ser um bom cidadão.

Nesse sentido, a juventude está merecendo uma atenção especial da Igreja e o papa Francisco dedica um empenho pessoal aos jovens. Nas suas palavras, “os jovens são o agora de Deus” e necessitam de maior atenção da Igreja. Nas expectativas e nos desafios dos jovens mostram-se os rumos para a construção da sociedade do amanhã. “Eles são, de certa forma, o termômetro para avaliar como está a sociedade”, disse Francisco no encontro com os bispos da América Latina durante a Jornada Mundial da Juventude, no Panamá, em janeiro deste ano.

Diversas têm sido, ao longo do tempo, as iniciativas da Igreja voltadas para os jovens. Na América Latina, em 1979, a Conferência de Puebla fez a opção pelos jovens no continente. Seguramente, porém, a iniciativa que teve maior relevância e visibilidade, nesse sentido, foi a Jornada Mundial da Juventude, promovida por São João Paulo II a partir de dois eventos: o jubileu dos jovens, em Roma, no Ano Santo da Redenção de 1984, e o encontro mundial dos jovens realizado no Ano Internacional da Juventude proclamado pela ONU, em 1985.

Logo em seguida, o mesmo papa dedicou uma carta apostólica aos jovens, convidando-os a participarem de um encontro em Roma, em 1986. Essa foi a primeira Jornada Mundial da Juventude, que teve continuidade no ano seguinte, no encontro internacional de jovens de Buenos Aires. A Jornada Mundial da Juventude, realizada a cada três anos, tornou-se um encontro internacional de peregrinação de jovens, aos quais o mesmo São João Paulo II dedicou estas palavras: “Vós sois a esperança da Igreja. Vós sois a minha esperança!”.

Bento XVI deu continuidade às jornadas da juventude e convocou três delas durante o seu pontificado. Francisco fez o mesmo e sua primeira participação no evento foi no Rio de Janeiro, em 2014. Ainda permanecem bem vivas as imagens impressionantes dos milhões de jovens na orla de Copacabana, aos quais o papa dirigiu palavras encorajadoras e pediu que descessem às ruas e participassem com esperança da construção do seu futuro.

Francisco, porém, percebeu que os novos tempos pediam para ir além: era preciso dar a palavra aos jovens, para falarem com toda a liberdade. Já não bastava falar sobre a juventude ou falar aos jovens, a partir de paradigmas preconcebidos, era necessário ouvi-los. E ele mesmo deu o exemplo na preparação da assembleia do Sínodo dos Bispos sobre a juventude. A primeira etapa da preparação da assembleia sinodal consistiu numa ampla pesquisa e escuta dos jovens, que dela tomaram parte aos milhares, sem restrições de fé ou ideologia.

Em setembro de 2017, Francisco presidiu em Roma um seminário sobre a condição juvenil no mundo, com a participação de centenas de jovens provenientes de muitos países. Foi a etapa preparatória para o sínodo, realizado em outubro de 2018, com o tema O jovem, a fé e o discernimento vocacional. Mesmo sendo o sínodo um organismo episcopal, a assembleia sinodal também contou com significativa participação de jovens de vários países.

Fruto desse sínodo sobre o tema da juventude foi a exortação apostólica Christus vivit(Cristo vive), publicada em abril passado. Na sua assembleia-geral, a CNBB acolheu esse documento pontifício, que deve assinalar um novo método no trabalho com os jovens. Desse método fazem parte a escuta empática, a discussão, o discernimento e a ação. O próprio papa destacou a importância desse passo para a Igreja no final da reunião sinodal: “Uma vez que a Igreja escolheu ocupar-se dos jovens neste sínodo, ela, no seu conjunto, fez um opção muito concreta e considera esta missão uma prioridade pastoral decisiva, à qual deve investir tempo, energia e recursos”. Sem dúvida, serão esforços compensadores, pois aos jovens devem ser dedicadas as melhores atenções e energias.

A CNBB encarregou uma comissão de estudar e propor um projeto de iniciativas e ações para a juventude no Brasil, contando com as diretrizes do papa Francisco na sua exortação apostólica.

*Dom Odilo P. Scherer, cardeal-arcebispo de São Paulo


João Domingos: Em estado de anarquia

Atualmente, os líderes partidários não lideram e o baixo clero reina

Pergunta-se muito por que um Congresso tido como o mais inexperiente da História, em que as lideranças políticas influentes podem ser contadas nos dedos, tem conseguido emparedar o governo como o atual tem emparedado. Não dá para destacar nenhuma vitória do presidente Jair Bolsonaro no Parlamento neste governo. Derrotas há aos montes. Nem um decreto presidencial que tratava da ampliação do número de funcionários com poder para determinar o que é documento secreto e ultrassecreto escapou. E olha que decreto é ato normativo do presidente da República, sem necessidade de passar pelo crivo dos congressistas. Mas estes têm o poder de sustá-lo caso o considerem abusivo. Foi isso que fizeram. Outro decreto, este sobre a facilitação do porte de arma para diversas categorias profissionais, assinado nesta semana por Bolsonaro, corre o risco de cair. A Mesa da Câmara já encontrou nele diversas irregularidades.

Volta-se à pergunta: por que um Legislativo inexperiente, tido como o mais fraco se comparado com os anteriores do período pós-redemocratização, mostra-se tão forte diante do Executivo? É possível que a resposta esteja na forma como Bolsonaro decidiu se relacionar com deputados e senadores e seus respectivos partidos. Já durante a campanha boa parte do eleitor de Bolsonaro foi contaminada pela ideia de que tudo o que havia no Congresso era ruim, fazia parte da velha política, ladra e corrupta. Eleito, Bolsonaro anunciou que não faria acordos políticos e partidários para montar seu governo. Cumpriu a palavra.

Bolsonaro, no entanto, não conseguiu impor à Câmara seu candidato preferido, o deputado João Campos (PRB-GO). Não porque não tivesse tentado. É que os partidos de centro e de centro-direita logo perceberam que, se já tinham sido escanteados na montagem do Ministério, se eram a cada dia mais mal-afamados, seriam reduzidos a pó se permitissem a vitória de um candidato do Palácio do Planalto. Juntaram-se em torno de Rodrigo Maia (DEM-RJ), conhecido articulador, naquelas alturas já com a experiência de dois mandatos de presidente da Câmara, líder e presidente do DEM por anos.

No Senado até que Bolsonaro conseguiu impedir a eleição de Renan Calheiros (MDB-AL), muito mais por erros do próprio senador de Alagoas do que por méritos na articulação a favor de Davi Alcolumbre (DEM-AP), que chegou lá com a ajuda de uma improvável união da Rede, PSB, DEM, PSL, PSDB e partidos de centro. Acontece que Alcolumbre tem suas ambições. Não pode ser considerado um aliado do governo. Tanto é que teve atuação destacada na articulação que obrigou Bolsonaro a aceitar a recriação de dois ministérios.

Ao optar por montar sua equipe sem a participação de partidos políticos, Bolsonaro acabou por tirar poder dos líderes partidários. Antes, esses líderes podiam atrair liderados para suas causas a partir de promessas em nome de ministérios que detinham no governo. Sem ter o que prometer agora, eles não conseguem arrancar compromisso de ninguém. Tornaram-se líderes de nada. Tanto é que, nas negociações para a recriação dos ministérios das Cidades e da Integração Nacional, os líderes prometeram a Bolsonaro que manteriam o Coaf com o Ministério da Justiça. Veio a votação na comissão da medida provisória que reordenou o governo e poucos votantes obedeceram. O Coaf foi transferido para o Ministério da Economia à revelia do que os líderes pediram.

O que se vê hoje no Congresso é uma espécie de anarquia generalizada, em que cada um faz o que quer, pois a figura do líder praticamente se tornou decorativa. Ao tirar, de forma indireta, o poder dos líderes, Bolsonaro abriu também as portas para o domínio do baixo clero.


Elena Landau: É a lama, é a lama

Ampliar o acesso ao saneamento básico é questão de justiça social

Esta semana o relatório do senador Tasso Jereissati para a MP 868 foi aprovado na Comissão Especial. É um assunto urgente. No Brasil, quase 35 milhões de pessoas não têm acesso à água tratada e quase metade da população não tem serviço de coleta de esgoto. Espero que esse quadro vergonhoso sensibilize os nossos parlamentares, porque a votação nas duas Casas tem de ocorrer até dia 3 de junho para que a medida provisória não caduque.

É espantoso como um projeto de lei de tamanha importância possa enfrentar dificuldades para sua aprovação. A resistência maior vem dos ditos “partidos progressistas”. A ampliação do acesso ao saneamento básico é uma questão de justiça social. Vivendo no esgoto não há igualdade de oportunidades possível. Hoje ainda convivemos com dois Brasis: no Sudeste, o índice de abastecimento de água é 91,2% e o de coleta de esgoto 78%; no Norte é 55,4% e 10,5%. Numa ponta, o Amapá tem a pior estatística do País, com investimento per capita de R$ 30, na outra, São Paulo com dez vezes mais.

A MP desenha um novo marco regulatório. É um passo gigante para a superação do fosso entre cidadãos brasileiros. Traz soluções para os problemas que afastam as empresas privadas. Elas atuam em apenas 6% do setor, mas respondem por 20% do investimento total. Ou seja, proporcionalmente, aplicam bem mais que o setor público. A consequência são indicadores de qualidade, em média, melhores do que as estatais.

Os que se opõe ao projeto são, em sua maioria, simplesmente contra a possibilidade de privatização. Ignoram que a insegurança regulatória afeta investimentos tanto públicos quanto privados, que juntos não somam a metade dos gastos necessários para a universalização. Esquecem também da absoluta falta de recursos públicos que não tem solução a curto prazo, mesmo com a aprovação da reforma da Previdência. Deixam em segundo plano a péssima qualidade de vida de milhões de brasileiros para defender velhos interesses corporativos.

A privatização é crucial para reverter essa tragédia nacional. A meta para universalização prevista para 2033 não será alcançada. O investimento anual é menos da metade do necessário. Não é por acaso que, segundo a OMS, estamos em 123.º lugar no ranking do saneamento.

O projeto traz mais segurança jurídica ao setor. Ataca dois pontos relevantes: a multiplicidade de regras e os entraves decorrentes da titularidade municipal. Hoje, cada município pode estipular as próprias condições para a operação, ainda que não tenham competências para fiscalização. O relatório aprovado contorna esses problemas propondo a harmonização das regras e ampliação da atuação da Agência Nacional de Águas (ANA), que deverá definir normas de referência nacional, ajudando a simplificar todo o sistema regulatório. Ao criar o conceito de prestação regionalizada, permite a reunião de diferentes municípios numa única operação, sem eliminar a possibilidade de prestação de interesse local. E ainda garante que os municípios com menor atratividade façam parte dos blocos mais disputados.

Outros fatores importantes para a atração de investidores são a solução de conflitos por mediação e o reembolso de investimentos não amortizados.

Em 2016, 18 Estados procuraram o BNDES para apoio na venda de suas empresas de saneamento. Pouco se avançou até o momento por conta de um marco regulatório confuso. A nova lei é necessária para destravar essas operações de venda.

Em meados dos anos 90, vários governadores venderam ativos, na grande maioria, empresas distribuidoras de energia, porque necessitavam de recursos para novos investimentos. Com exceção de poucas distribuidoras que permaneceram estatais, os indicadores de qualidade melhoraram significativamente no setor elétrico. Lucraram os contribuintes e usuários desse serviço que, a exemplo da telefonia, é hoje universal.

Duas décadas depois, o quadro se repete: restrição fiscal e ativos estatais que necessitam de vultosos investimentos. Novamente, a privatização das empresas estaduais é parte da solução. O mesmo choque de qualidade pode acontecer com saneamento.

Não dá para deixar essa oportunidade passar quando em pleno 2019 quase metade dos brasileiros vive na lama.

*Economista e advogada


Bruno Boghossian: Governo não faz muito esforço para manter poderes de Moro

Ex-juiz veste capa de superministro, mas descobre que política é sua criptonita

O governo não faz muito esforço para segurar o Coaf nas mãos de Sergio Moro. A recente derrota do superministro no Congresso mostra que, além da resistência de alguns partidos à expansão de seus poderes, nem sempre Jair Bolsonaro estará na retaguarda para defendê-lo.

A decisão que abriu caminho para tirar o órgão de controle financeiro do Ministério da Justiça expõe uma vulnerabilidade política. Até a última hora, Moro tentou convencer os parlamentares a apoiarem o fortalecimento de sua pasta. O Planalto, no entanto, agiu como se aquela fosse uma batalha particular do ex-juiz.

Quando a votação foi aberta na comissão especial, o líder do governo usou apenas 22 segundos para defender a vontade de Moro. O sempre estridente Major Olimpio (PSL) não brigou pela palavra e a deputada Joice Hasselmann (PSL) só chegou para acompanhar a derrota.

O isolamento ficou completo quando o chefe da Casa Civil pediu que o PSL, partido do presidente, deixasse o trem seguir sem o vagão de Moro. Onyx Lorenzoni procurou os deputados e pediu que aprovassem logo no plenário a medida que reorganiza o governo, deixando o Coaf de lado.

Bolsonaro entregou Moro de bandeja ao Congresso para evitar derrotas maiores. O presidente tem um capital político limitado e, até agora, não conseguiu formar uma base aliada que seja fiel a suas causas. Ele decidiu preservar seus poucos trocados para outras brigas.

Quando convidou Moro para o governo, Bolsonaro lhe prometeu amplos poderes, incluindo o Coaf. Antes de dar de ombros para o órgão, o presidente já havia vetado uma escolha do ex-juiz para um conselho e atropelado as restrições feitas pelo ministro aos decretos que facilitaram o acesso a armas de fogo.

Moro é um personagem mais popular do que Bolsonaro, mas as derrotas sucessivas e o respaldo vacilante do presidente impedem que o subordinado ofusque o próprio chefe. O ex-juiz trocou a toga pela capa de superministro, mas descobriu que a política é sua criptonita.


Eliane Cantanhêde: Faroeste

Bolsonaro não escancara o porte de armas por questão política, mas por obsessão

Parece obsessão e é mesmo: com tantos problemas gravíssimos no Brasil, econômicos, fiscais, sociais, éticos, o presidente Jair Bolsonaro só pensa em ampliar a posse e agora escancarar o porte de armas a níveis nunca antes vistos ou imaginados. Assim, causa a euforia dos armamentistas e o pânico dos que são contra.

Pode-se deduzir que Bolsonaro dedicou os dois primeiros projetos realmente dele à flexibilização da posse e do porte de armas por uma questão político-eleitoral. Ele estaria dando satisfação a seus eleitores e mantendo a “bancada da bala” nutrida e unida a seu favor. Mas não é só.

Por trás dos decretos, está a paixão incontida do presidente por armas, uma paixão que ele transferiu de pai para filho e transformou em política de governo num país onde tiroteios, balas perdidas e mortes de policiais, criminosos, cidadãos e cidadãs comuns são parte da paisagem. Multiplicar as armas em circulação vai reduzir esse banho de sangue? Se até policiais justificadamente armados morrem nos confrontos a tiros, por que os leigos estarão mais protegidos?

O anúncio do novo decreto de Bolsonaro foi um tanto atípico, curioso: ele fez solenidade no Planalto para a assinatura e anúncio, deixou vazar uma ou outra medida e guardou a grande surpresa (ou o grande susto) para o dia seguinte, com o texto publicado no Diário Oficial da União (DOU).

São tantos os absurdos que cada jornal pôde escolher sua manchete, cada telejornal abordou um ângulo, cada coluna deu um enfoque diferente. Foi uma farra de novidades a serem anunciadas, digeridas e, por muitos, repelidas. O próprio ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, disse um tanto constrangido que a medida é “em função das eleições”. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, anunciou estudos sobre a constitucionalidade. Partidos e entidades começam a entrar na justiça. Aparentemente, só os bolsonaristas de raiz, além de quem faz das armas um negócio e tanto, estão soltando fogos. Enquanto não soltam tiros.

Armas que sempre foram de uso restrito das Forças Armadas vão passar a circular por aí em mãos de leigos. Quem mora em área rural está liberado para portar um revólver no coldre. Usuários de aviões sentarão lado a lado de pessoas armadas. Crianças e adolescentes não precisarão mais de autorização judicial para aprenderem a atirar, basta os pais deixarem – ou melhor, incentivarem.

Na solenidade do Planalto, Bolsonaro produziu uma foto histórica, cercado de políticos de terno e gravata, fazendo gestos que simbolizam armas. Pou! Fogo! Mas, mesmo nesse meio, o presidente se limitou a anunciar que o decreto facilitaria o porte de armas para caçadores, colecionadores, atiradores esportivos e praças das Forças Armadas. Que nada!

No dia seguinte, a edição do DOU trazia uma lista de 20 categorias liberadas para saírem em ruas, avenidas, locais públicos em geral, com suas armas fartamente carregadas. O atual limite de 50 cartuchos deu um salto estonteante para mil.

Não precisarão mais comprovar a efetiva necessidade de portar armas todos os políticos com mandato no País, advogados indiscriminadamente, caminhoneiros autônomos, habitantes de áreas rurais acima de 25 anos, até jornalistas que atuem na área policial. Em 2018, os brasileiros com porte de armas somavam 36,7 mil. Agora, vão disparar para perto de 20 milhões. Um grande, imenso e incerto faroeste. E com 13 milhões de desempregados.

Com seus decretos, armas, cartuchos e Olavos, o presidente só mantém o que já tem: sua tropa na internet. Ele precisa olhar para o que está perdendo e ampliar sua agenda. Ou melhor: conectar a agenda e o governo com a realidade.


Míriam Leitão: Sinais mistos no Congresso

Apesar da derrota de ontem, há confiança no Congresso e no governo de que a reforma passará, se novos erros forem evitados

A reforma da Previdência pode ser aprovada na Câmara ainda antes do recesso. Essa previsão é feita por quem entende o movimento do Congresso e essa esperança aumentou na equipe econômica depois do início da tramitação na Comissão Especial. Apesar disso, ontem foi um dia de derrota para o governo na Câmara, com a retirada do Coaf da área do ministro Sérgio Moro e o adiamento da votação da MP que reestrutura a administração do governo.

O que azedou muito o clima ontem na Comissão Especial que analisou a MP 870, da reforma administrativa, foi de novo a sucessão de ataques nas redes virtuais contra parlamentares que votaram pela volta do Coaf ao Ministério da Economia. O vereador Carlos Bolsonaro postou a lista dos que votaram a favor da retirada do órgão da pasta da Justiça, e isso foi a senha para o início de ofensas.

— A gente já não sabe se é o filho ou se é o pai que comanda isso, mas o fato é que eles acham que tudo se passa no mundo virtual. Não é apenas um governo sem articulação. Ontem era como se só fosse honesto quem quisesse manter o Coaf na mão do Moro. E isso é uma ofensa até para o Ministério da Economia. No resto do mundo, órgãos semelhantes ficam na área econômica. E aí? Onde está o erro? —disse um líder político.

No episódio, houve mais um detalhe que mostra como não há estratégia política, e foi isso que o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, deixou claro. Quando um parlamentar aliado pediu a leitura das MPs anteriores à 870, ele acabou impedindo que ela fosse votada. A MP é importante para o governo por tudo o mais que está nela, porque é o desenho da administração do governo Bolsonaro. Houve discussão também sobre a volta da Funai para a Justiça, mas no resto estaria aprovada a reforma como foi proposta. Agora, ficou mais incerta essa votação antes do prazo em 3 de junho.

Apesar dessa bateção de cabeça, e das sequelas da milícia digital, várias fontes com quem eu falei, no governo ou no Congresso, demonstraram a mesma confiança de que a reforma pode terminar de ser votada na Comissão e ir para o plenário no fim de junho ou começo de julho. Antes, portanto, do recesso.

No Ministério da Economia, a confiança vem do fato de que eles acham que conseguiram responder à maioria das questões que bloquearam reformas anteriores.

— Sempre falaram que era preciso combater as fraudes e cobrar as dívidas previdenciárias, pois nós mandamos para o Congresso a MP 871 que trata das fraudes e vamos cobrar as dívidas — explica um dos integrantes da equipe. Essa MP 871 tira dos sindicatos rurais o poder de confirmar o tempo de contribuição para a aposentadoria do setor rural, e isso é até mais importante do que o aumento da cobrança do núcleo familiar que está na reforma. Em outro ponto que está sendo combatido, o BPC, a aposta feita na equipe econômica é que a mudança ficará, mas como opcional.

No Congresso o que se diz é que a reforma será desidratada na parte da transição, pela pressão das corporações. Isso reduzirá o total da economia, mas que deverá ficar acima de R$ 800 bilhões em dez anos. E desta forma conseguirá passar.

Ontem eu entrevistei no meu programa na Globonews a economista Solange Vieira, da Susep, que fez parte do grupo de formulação da proposta. Ela exibiu o mesmo otimismo que eu vi em outros integrantes da equipe econômica. Mas ela, a única mulher no grupo, defende que não haja diferenciação de idade de aposentadoria de homem e mulher. Perdeu a discussão internamente:

— Na equipe eu sou a pessoa que se sente mais à vontade, por ser mulher, de ser contra o tratamento diferenciado. A mulher quer condições iguais de trabalho, salário igual, ser respeitada em casa e no trabalho. Sobre a dupla jornada, é isso que está errado e não é a idade de aposentadoria. Não vejo motivo para a gente ter direito de se aposentar mais cedo.

De qualquer maneira, nos debates, de um lado e de outro, há quem defenda que haja mais vantagens ainda para a mulher. O problema da proposta é ser contraditória. No setor rural, homens e mulheres se aposentam com a mesma idade, pela reforma.

Vai ser ainda um caminho difícil até a aprovação. Esse otimismo que captei ontem pode desaparecer se o governo continuar envolvendo-se em brigas inúteis. Para ganhar a guerra é preciso escolher as batalhas. O governo Bolsonaro escolhe. As erradas.


Bernardo Mello Franco: Ao esnobar Funai, Moro empurra índios para evangélicos e ruralistas

Sergio Moro não quis contestar Bolsonaro na agenda da liberação das armas. Ao fazer o mesmo com a Funai, empurra os índios para o colo de evangélicos e ruralistas

Sergio Moro mobilizou a tropa lavajatista para tentar manter o Coaf no Ministério da Justiça. Não demonstrou o mesmo interesse em reaver a Funai, retalhada numa canetada de Jair Bolsonaro.

Em janeiro, o presidente transferiu o órgão indigenista para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, da pastora Damares Alves. A atribuição de demarcar terras indígenas foi para o Ministério da Agricultura, entregue à bancada ruralista.

Na quarta-feira, Damares informou que pretende manter o que restou do órgão. “A Funai tem que ficar com a mamãe Damares, não com o papai Moro”, disse. O titular da Justiça lavou as mãos sobre o assunto. “Não tenho interesse de ficar com a Funai”, desdenhou.

Entre a gracinha da pastora e o desprezo do ex-juiz, joga-se o futuro de quase 900 mil indígenas. Eles se dividem em 305 etnias, falam 274 línguas e dependem da proteção do Estado. Dezenas de tribos estão sob ameaça permanente de grileiros, garimpeiros e jagunços.

Apesar do desdém de Moro, uma comissão mista do Congresso aprovou ontem o retorno da Funai à configuração original, na pasta da Justiça. Agora o tema será votado nos plenários da Câmara e do Senado.

O senador Randolfe Rodrigues, da Rede, diz que a Funai foi “esquartejada e esvaziada” por Bolsonaro. “Entregar as demarcações para os ruralistas foi o mesmo que nomear raposas para cuidar do galinheiro”.

A ambientalista Adriana Ramos, do Instituto Socioambiental (ISA), lembra que os índios ajudam a manter a floresta em pé. “O índice de desmatamento nas terras indígenas é menor até do que nos parques nacionais”.

Nos últimos 40 anos, a Amazônia perdeu 20% da sua cobertura florestal. Nas terras indígenas, a devastação foi de apenas 2%, segundo dados oficiais.

Bolsonaro já deixou claro o que pensa sobre a questão indígena. “Não demarcarei um centímetro quadrado a mais de terra”, disse. Em outra ocasião, ele comparou índios em reservas a animais no zoológico.

Moro não quis contestar o chefe na liberação geral das armas. Ao fazer o mesmo com a Funai, ajuda a empurrar os índios para o colo de evangélicos e ruralistas.


César Felício: No limite, lá "nos finalmentes"

Bolsonaro e Congresso conversam, com o revólver à mesa

O mais ilustre admirador de Olavo de Carvalho gosta do fio da navalha. Ao assinar o decreto que permite o rearmamento da sociedade, o presidente Jair Bolsonaro afirmou que foi "no limite da lei". "Não inventamos nada e nem passamos por cima da lei. O que a lei abriu de oportunidade para nós, fomos lá no limite. Lá nos finalmentes".

Em ocasião muito anterior, Bolsonaro afirmou que, no que depender dele, oferecerá aos trabalhadores regras que "beiram a informalidade". É um presidente na fronteira, no limiar da irresponsabilidade. Mas que não cruza a linha divisória.

Ao longo dos seus 28 anos como deputado, que lhes deixaram o cheiro impregnado no paletó, como disse na cerimônia de anteontem, Bolsonaro se acostumou a nunca compor. Também nunca rompeu: a quebra da institucionalidade foi um arroubo da juventude, quando chegou a ser acusado, em matéria da revista "Veja" de 1987, de ter desenhado croquis para a instalação de bombas na adutora do Guandu. Ao ser absolvido pelo Superior Tribunal Militar, no ano seguinte, já estava virtualmente fora do Exército, em campanha bem sucedida para vereador.

Olavo de Carvalho não foi importante para Bolsonaro ganhar a eleição, ao contrário do que o presidente diz. O aiatolá da Virgínia e seus jagunços digitais são importantes agora, para Bolsonaro testar seus limites frente aos que podem tutelá-lo ou àqueles que tem a atribuição constitucional de controlar o Executivo.

Retratar Olavo de Carvalho como o Rasputin dos tempos atuais talvez não seja a melhor analogia. Rasputin era um charlatão que seduziu a família do czar, era visto como um enviado de Deus, e a partir daí passou a exercer influência na corte. A comparação será válida caso o olavismo se volte, com o mesmo 'placet' régio que desfruta hoje, contra determinados personagens a quem não interessa ao presidente desestabilizar, ao menos por enquanto, como Paulo Guedes e Sergio Moro. Há método no modo bolsonarista de agir, e não desnorteio.

O presidente sabe que conduz um governo de minoria parlamentar e usa as redes sociais como quem coloca um revólver sobre a mesa. Não há sinais de que pretenda dispará-lo contra o Legislativo, porque sabe que o outro lado também está armado. A maneira como a elite política aniquilou Dilma Rousseff ainda é uma lembrança viva na mente de todos em Brasília.

Bolsonaro pode colocar o verniz ideológico que desejar em suas atitudes, tentar transformar as escolas e universidades em quartéis ou fiscalizar publicidade do Banco do Brasil durante o resto de seu governo, mas jamais conseguirá suprimir o fato de que comanda uma máquina pública falida, limitada na capacidade de induzir crescimento ou de conter as consequências sociais do ajuste que lhe é imposto fazer.

Para pagar as contas, lacração no Twitter não é suficiente. Ele precisa do Congresso para não naufragar. Como há disposição entre os parlamentares em aprovar alguma reforma da Previdência, há jogo, desde que Bolsonaro aprenda a ceder.

A quinta-feira terminou com os bolsonaristas na Câmara obstruindo a votação da medida provisória da reforma administrativa, naquele que seria o grande teste da base no Congresso. A aliança tática contra Moro entre o Centrão e a oposição na Comissão Especial que analisou o tema sugere a abertura de uma vertente perturbadora para o Executivo. Tudo isto em um dia que começou com um café da manhã de parlamentares com o coração do governo: o próprio presidente e Santos Cruz, Paulo Guedes e Onyx Lorenzoni.

A semana irá virar com a corda esticada, o que aumenta o cacife de Rodrigo Maia como negociador. A julgar pelo retrospecto de Bolsonaro, o mais provável é que o presidente redobre a aposta na crispação. Haverá mais dança sobre o vulcão.

Quanto à guerra entre Olavo, seus seguidores e os generais, há um componente inequívoco de luta por espaço dentro do governo. Não à toa, coincide com o desenrolar da crise a demissão da militante Letícia Catelani de uma diretoria da Apex, por obra do novo comando da agência, nas mãos de um militar.

Era uma queda previsível, desde que o contra-almirante Sergio Segovia foi nomeado para a presidência do órgão, no dia 2 de maio, quinta-feira, em ato tornado público no dia seguinte, em edição extra do "Diário Oficial da União".

Naquele dia, Letícia escreveu em redes sociais que estava sendo alvo de "diversos ataques". O tiroteio de Olavo contra Santos Cruz, tido como o mentor da mudança, começou no sábado. Letícia perdeu o cargo na segunda-feira, dia 6, data em que o ex-comandante militar do Exército, general Eduardo Villas Bôas, saiu em defesa do ministro da Secretaria de Governo.

Enquanto foi diretora de Negócios da Apex, a empresária entrou em atrito com dois presidentes da agência, ambos defenestrados: Alecxandro Carreiro e Mario Vilalva.

Audácia
Sérgio Cabral Filho está condenado oito vezes na primeira instância, com penas que somam 197 anos. Acumula 29 denúncias por corrupção e lavagem de dinheiro. Nos últimos meses, em depoimentos ao juiz Marcelo Bretas, começou a confessar ter sido protagonista de esquemas de propina no Rio de Janeiro desde meados dos anos 90, quando se tornou presidente da Assembleia Legislativa. Buscou comprometer seus antecessores no governo do Rio de Janeiro, os seus sucessores, o cardeal, o prefeito da capital, seu antecessor e um vasto et cetera. Provoca um certo espanto portanto a publicação de um artigo seu no jornal "O Dia", em que se aventura a recomendar ao presidente Jair Bolsonaro a privatização da Petrobras.

"Em busca do tempo perdido, presidente, venda a Petrobras. Os bilhões de barris do Pré-Sal só serão usufruídos pelo povo brasileiro se forem explorados, no máximo, nos próximos dez anos. Há profissionais maravilhosos na Petrobras, de gabarito internacional. Todos serão absorvidos pelas empresas privadas". Ao apenado nunca lhe faltou audácia.


Trotsky da Netflix, uma análise de José Carlos Monteiro na revista Política Democrática online

Na sexta edição da revista Política Democrática online, José Carlos Monteiro publica um ensaio exclusivo sobre Trotsky da Netflix. Confira trechos, a seguir:

Cleomar Almeida

A quem interessava a grotesca “desconstrução” de Leon Trotsky (1879-1940) e da revolução soviética promovida na minissérie Trotsky (em russo: Троцкий) pelo Pevry Kanal russo e encampada pela plataforma norte-americana de streaming Netflix? A julgar pela repercussão dos oito episódios da minissérie, tanto no âmbito interno como no exterior, a produção parece ter atingido seus objetivos: admiradores do líder revolucionário a detestaram, ao passo que anticomunistas brasileiros e americanos (e moderadamente europeus) vibraram.

Ainda (ou cada vez mais), percebe-se a existência de um sentimento antissocialista. Basta ler as manifestações nas redes sociais e em certa mídia ocidental. O seriado surge, assim, num contexto de populismos direitistas e ferozmente antagônicos à Rússia ou ao que ela representa em termos de continuidade ou evocação do passado. Mas a Rússia se esquiva de qualquer associação com a ideologia do passado.

» Acesse aqui a sexta edição da revista Política Democrática online

A operação Trotsky teve como pretexto o centenário da Revolução de 1917, cuja comemoração o governo de Vladimir Putin ignorou. Afinal, astuciosamente, o putinismo quer distância de comunismo e de imagens e valores de seus “pais fundadores”, empenhado como está em forjar sua “ideologia do futuro”. Onde se inscreve precisamente esta megaprodução televisiva, elaborada nos moldes das mais facciosas biopics hollywoodianas?

Uma oportuna reflexão de Vladimir Surkov, conselheiro de Putin, nos sugere que a perspectiva dos realizadores consistia em que a linguagem da minissérie deveria ser “aceitável para público suficientemente amplo, porque o sistema político que opera na Rússia é feito não só para atender futuras necessidades domésticas, mas também para garantir significativo potencial como artigo de exportação”.

Daí a empolgação da Netflix ao ver Trotsky em lançamento mundial no Mipcom, mercado internacional de conteúdos audiovisuais, que acontece em Cannes. “É a primeira série dedicada a Trotsky na história da Rússia”, alardeou Konstantin Ernst, diretor do Pevry Kanal, do qual a rede americana comprou a minissérie na suposição de que ela tinha os ingredientes postulados por Ernst: “Trotsky se parecia com um herói do rock and roll: fuga da prisão, revolução, amor, exílio e morte.” Uma equação, sem dúvida, de inspiração hollywoodiana.

 

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Simon Schwartzman: Confiança e autonomia das universidades

... infelizmente, contra comissários e coronéis truculentos não há muito que se possa fazer

Mais do que um preceito legal, a autonomia das universidades é uma condição necessária para que cumpram o papel que a sociedade espera delas, como principais depositárias da cultura, polos de criação de novos conhecimentos e instituições formadoras de profissionais competentes. Assim como não são os pacientes que dizem aos médicos como devem ser tratados, não são os governos (ou os estudantes) que podem dizer às universidades o que e como devem pesquisar e ensinar, porque são os professores e os pesquisadores, e não os governantes ou os estudantes, que trabalham na fronteira do conhecimento e dos estudos.

Isso, claro, no mundo ideal.

No mundo real, a autonomia depende de uma relação de confiança entre as universidades e a sociedade, que, quando existe, reconhece e valoriza a autoridade intelectual dos professores e contribui com seu dinheiro. No passado, quando as universidades eram pequenas e professores e alunos provinham das mesmas elites dos governantes, essa relação de confiança se estabelecia de forma quase automática. No mundo de hoje, com universidades gigantescas, grandes orçamentos e professores e alunos provenientes de diferentes ambientes e condições sociais, essa relação de confiança fica abalada, fazendo com que movimentos políticos pressionem e governos desenvolvam sistemas complicados e nem sempre bem-sucedidos de avaliação do desempenho das universidades e restrições no acesso a recursos e no seu uso.

Essa desconfiança tem suas razões, porque o exercício da autonomia pode facilmente se converter ou se confundir com a mera defesa de interesses e privilégios corporativos. Mas quando os pacientes ou o dono do hospital começam a dizer aos médicos o que fazer e políticos, burocratas e movimentos sociais a mandar nas universidades, nem a medicina nem a educação conseguem funcionar direito. A agressividade recente do ministro da Educação contra as universidades federais é só um exemplo extremo dessa perda de confiança, que precisa ser recuperada.

Essa recuperação requer um trabalho permanente de ambas as partes. Os sistemas de avaliação externa vieram para ficar, mesmo que, como no Brasil, custem muito e deixem de avaliar o que mais interessa. Apesar do que diz a Constituição, as universidades federais brasileiras nunca foram autônomas, porque não têm controle sobre seus recursos, rigidamente administrados pelo governo central. A quase totalidade se vai em salários e aposentadorias, e os demais custos – custeio, investimentos, criação de cargos – devem ser negociados um a um pelos reitores, que precisam mostrar lealdade aos ministros ou recorrer a pressões políticas para sobreviver.

As universidades paulistas têm mais autonomia para administrar seus recursos. Mas todas estão submetidas às mesmas regras do serviço público e sujeitas a permanente assédio de órgãos de controle ou grupos políticos quando buscam ampliar sua liberdade de ação, sobretudo na área financeira.

Para recuperar sua legitimidade, as universidades públicas precisam se preocupar mais seriamente com a qualidade e a relevância do que produzem, mostrar melhor o que fazem e assumir a responsabilidade pela administração de seus recursos, saindo do colo confortável, mas sufocante, do serviço público. O formato das organizações sociais, adotado com sucesso pelo Instituto de Matemática Pura e Aplicada e pelo Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais, mostra como fazê-lo. É preciso diversificar as fontes de recursos, inclusive pela cobrança de matrículas dos alunos, por um mecanismo que não discrimine os mais pobres, como o financiamento vinculado à renda futura adotado na Austrália e outros países; e entrar definitivamente no mercado de talentos, negociando contratos flexíveis e salários competitivos para diferentes setores e áreas de conhecimento.

É preciso também adquirir mais autonomia em relação aos grupos de interesse internos, estabelecendo sistemas de governança com forte participação externa.

O governo, em vez de alternar entre aceitar tudo e pagar a conta, para garantir apoio ou com medo dos protestos, ou partir para o ataque, precisa desenvolver um sistema mais adequado de avaliação e associar o financiamento público ao desempenho efetivo das instituições, mediante contratos de gestão, e não seus custos históricos. Um bom ponto de partida seria levar a sério as recomendações do relatório da A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), publicado no final de 2018, sobre como reformular o sistema brasileiro de avaliação da educação superior. Ao invés de avaliar cada curso, aumentar a responsabilidade das instituições sobre o que fazem; deixar de lado o Enade, com seus rankings sem padrões de qualidade e os índices cabalísticos que ninguém entende, e introduzir dados objetivos sobre desistência, empregabilidade e custos; e criar uma agência de avaliação independente, fora do Ministério da Educação.

As instituições de educação superior e de pesquisa, públicas e privadas, com todos os seus problemas, são também um patrimônio inestimável, construído ao longo de décadas, habitadas por pessoas competentes, motivadas e comprometidas com o trabalho que fazem, que precisam ser tratadas com carinho. No final dos anos 1970, o israelense Joseph Ben-David, famoso historiador e sociólogo da ciência, veio ao Brasil a convite de José Pelúcio Ferreira, então presidente da Finep, envolvida com o reerguimento da pesquisa e da tecnologia brasileiras, abaladas com os expurgos do regime militar. Perguntado sobre a dificuldade de construir instituições e a facilidade com que elas podem ser destruídas, respondeu que, infelizmente, contra comissários e coronéis truculentos não há muito que se possa fazer. É necessário evitar que isso aconteça novamente.

*SOCIÓLOGO, É MEMBRO DA COMISSÃO NACIONAL DE AVALIAÇÃO DA EDUCAÇÃO SUPERIOR (CONAES)