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Elena Landau: ‘Queremos achar convergência política diante do descalabro’

Ex-diretora do BNDES defende alternativa à polarização e diz que empresários ‘caíram no conto’ de Paulo Guedes

Pedro Venceslau, O Estado de S.Paulo

Uma das integrantes da linha de frente do grupo 'Derrubando Muros', a economista e colunista do Estadão Elena Landau comandou nesta terça-feira, 14, um seminário sobre reforma do Estado do qual também participaram ou participarão outros expoentes de sua geração da PUC-Rio: Armínio Fraga, Pérsio Arida André Lara Resende (o evento continua nesta quarta-feira). Autointitulado uma "iniciativa cívica", o movimento tem 92 integrantes, entre empresários, banqueiros, políticos, economistas e intelectuais de várias áreas. O objetivo é buscar pontos de convergência e criar pontes em torno de um objetivo comum: combater o presidente Jair Bolsonaro.        

Elena Landau ganhou notoriedade nos anos 1990, por colaborar com o Programa Nacional de Desestatização. Em 1994, durante o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, ela se tornou diretora do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) Ali permaneceu até 1996. Também passou pelo conselho administrativo da Eletrobrás.Nessa entrevista ao Estadão, a economista fala sobre os pontos que podem unir a terceira via. Ela critica duramente o ministro da Economia, Paulo Guedes, que considera “sem noção de realidade”.

Quais propostas econômicas unem a terceira via que vai de Ciro Gomes a João Amoêdo?

O Estado que a gente pensa é progressista, liberal, inclusivo e sustentável. Isso é fácil de a gente discutir. O grande problema é chegarmos a uma convergência sobre os meios de chegar lá. Esse é o desafio do seminário: um mínimo de convergência, não só na economia, mas na política também. A minha visão de Estado vai ser diferente da do Ciro, evidentemente. Um é mais intervencionista, eu sou mais liberal. Temos que achar algum tom de convergência. A ideia (de criar o grupo 'Derrubando Muros') é mais política e institucional diante desse descalabro que estamos vivendo. 

É possível encontrar pontos de convergência na economia com o PT e estar ao lado do partido se o adversário for Borsonaro no segundo turno?

É muito cedo para pensar nesse tipo de coisa. O Derrubando Muros é uma tentativa de construir uma terceira via. Não vou antecipar o segundo turno neste momento. A gente está trabalhando, quando chegar a hora vamos decidir o voto.    

Como avalia a estratégia de privatizações do governo Bolsonaro? Até onde devem ir as privatizações? 

Este governo não está fazendo privatização nenhuma por enquanto. Ele conseguiu autorização do Congresso Nacional para a privatização da Eletrobrás, que saiu muito ruim, e tem outro projeto para os Correios. A minha visão é que se deve privatizar tudo aquilo que o setor privado pode assumir, incluindo os Correios. Sou radicalmente a favor das privatizações, mas o que deve ser um pressuposto de todos no grupo é a responsabilidade fiscal. Prometer responsabilidade fiscal é o mesmo que prometer ser honesto: isso é pressuposto. Sem ele não há responsabilidade social. Não dá para dissociar uma coisa da outra. 

Qual deve ser o papel do Estado na recuperação e no crescimento da economia?

O Estado deve permitir que o setor privado floresça. Tem que dar segurança jurídica, uma boa regulação, fiscalização e respeitar os contratos. Uma coisa importante para ser discutida no grupo são evidências em políticas públicas. Sair do desejo e ver o que deu certo e o que deu errado no Brasil. Todas as políticas de grande intervenção geraram inflação e desemprego.  Temos que ver também o que deu errado: intervenção em juros e no câmbio não dá certo. O Brasil melhorou com o tripé econômico, a flutuação do câmbio e o Banco Central independente. Essas coisas devem ser defendidas, pois passaram por vários governos, independente da ideologia. Imagine se o Banco Central não fosse independente nesse momento?

Vários empresários, banqueiros e pessoas do mercado financeiro estiveram na Avenida Paulista no domingo na manifestação contra Bolsonaro. A ficha caiu?

Não faço parte do mercado financeiro, mas alguns apoiaram Bolsonaro no passado porque eram anti-PT ou caíram no conto do Paulo Guedes. Não é só a questão econômica que importa. Há uma crise institucional muito grave. A defesa das instituições democráticas é a pauta mais importante do Brasil. Isso está unindo os empresários de consciência. Sem democracia não tem mercado nem economia. 

Qual a sua avaliação sobre o desempenho do Paulo Guedes?

É a mesma avaliação de sempre, de 30 anos atrás, 2018 e hoje. Ele é uma pessoa completamente inábil e sem nenhuma noção da realidade. É um economista de palestra. Nada do que está acontecendo me surpreendeu.  

Fonte: O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,queremos-achar-convergencia-politica-diante-do-descalabro-diz-landau-sobre-terceira-via,70003840305

      


O Estado de S. Paulo: 'Já sou contra privatizar Eletrobrás pelo custo ao governo, melhor vender a Caixa', diz Elena Landau

Economista critica a insistência do governo em atropelar o Congresso e propor uma Medida Provisória para vender as ações da companhia no mercado; segundo ela, privatização perdeu a importância e se tornou 'mero simbolismo'

Anne Warth, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA - O governo vai acabar tendo que pagar para privatizar a Eletrobrás, diz a economista Elena Landau. Ex-diretora da área de privatizações do BNDES durante o governo Fernando Henrique Cardoso e colunista do Estadão, Landau critica a insistência do governo em propor, mais uma vez, uma Medida Provisória para capitalizar (vender ações no mercado) a companhia. Para ela, será uma tentativa de atropelar o Congresso, já usada no passado sem sucesso, e que vai trazer mais insegurança jurídica ao processo, já que a tendência é que o texto caduque antes de ser aprovado.

Landau afirma ainda que a privatização da Eletrobrás perdeu relevância e se tornou mero simbolismo. “O setor elétrico anda bem sem a Eletrobrás, e o governo vai acabar pagando para privatizar. Eu já sou contra a privatização nesses termos. Isso não me mobiliza mais”, afirmou, ao Estadão/Broadcast. Confira os principais trechos.

O que a sra. achou da ideia do governo de enviar, novamente, uma Medida Provisória para privatizar a Eletrobrás?

Qualquer proposta dentro do programa de privatizações demanda enorme segurança jurídica e aceitação por parte dos investidores e do mundo político. Não pode ser feito por MP, que só tem força de lei enquanto não caducou, e depois que caduca, perde validade e cria uma enorme insegurança jurídica. Se for para simplesmente repetir o que já está no projeto de lei que enviaram ao Congresso, que respeitem e não atropelem o Congresso Nacional. Não podem mandar MP para cortar o caminho. E se for para autorizar a contratação de estudos para a privatização, cai no requisito da inconstitucionalidade, pois uma MP dessa natureza não teria nem urgência, nem relevância. Não tem sentido nenhum. Isso já foi tentado no governo Temer e a MP 814 caducou. Todo mundo viu que ia dar errado e mandaram um projeto de lei. Estão repetindo o erro. Ainda que fosse aprovado, daria uma rigidez muito grande ao processo todo. Se precisasse mudar qualquer item da lei, teria que voltar ao Congresso para ajustar. O projeto de lei deve ser votado apenas depois dos estudos e ter apenas aquilo que realmente precisa de lei, como a descotização. Mas aí dá pra fazer uma lei apenas sobre descotização.

O governo considera que precisa dar uma sinalização positiva ao mercado com a renúncia de Wilson Ferreira Jr. A sra. considera que a MP seria esse sinal?

Não sei como o mercado comprou, em algum momento, que a privatização da Eletrobras iria andar no governo Bolsonaro. No governo Temer até tudo bem, porque privatizaram sete distribuidoras e era uma gestão com agenda claramente liberal e reformista. Era crível acreditar na privatização da Eletrobrás no governo Temer, mas no governo Bolsonaro não tem abertura comercial, não tem reforma administrativa. Como vão acreditar na privatização da Eletrobrás? Por isso a saída de Ferreira Jr é tão significativa, porque era o único empenhado na privatização. A MP é uma resposta atabalhoada a isso.

Na sua opinião, qual seria a melhor alternativa para privatizar a Eletrobrás?

Recuar completamente e fazer um único pedido ao Congresso, que é a revogação do trecho do artigo 31 da Lei 10.848, do governo Lula, que excluiu a Eletrobrás e suas subsidiárias do Programa Nacional de Desestatização (PND). Sou a favor de retomar as privatizações como sempre foi feito. Nesse caso, a ordem dos fatores altera o produto. Definir a modelagem antes da autorização de venda é um erro. Entrega ao Congresso uma competência que é do Executivo, quando o Legislativo não tem estrutura técnica para isso. Politicamente é um erro, você precisa começar o jogo da negociação política com uma série de supostos ganhos, como redução das tarifas, dinheiro para o Norte e o São Francisco, e o Congresso sempre vai pedir mais. Não é mais fácil rever todos os encargos setoriais e subsídios para carvão, fontes renováveis, agronegócio, em vez de abater esse custo das tarifas com outorga? Quem definiu o valor que irá para o São Francisco? É preciso um estudo muito detalhado sobre o valor da outorga (quanto a União receberá na operação), incluindo a questão de Tucuruí. É uma questão técnica, não política.

Como a sra. vê a questão da capitalização?

A capitalização foi decidida em 2018, mas dentro das circunstâncias da Consulta Pública 33, para evitar que a Eletrobrás ficassem de fora e perdesse a oportunidade de descotizar a energia de suas usinas (ou seja, vender a energia a preço de mercado). A partir disso, aproveitando a capitalização, daria para diluir a participação da União na empresa. Veio o projeto de lei e o tempo foi passando. O bônus de outorga contribuiria para o resultado primário de 2018, mas essas circunstâncias fiscais hoje são muito diferentes. Em três anos, poderiam ter feito estudos paralelos de forma a maximizar o retorno ao Tesouro, para avaliar os modelos possíveis, as memórias de cálculo e a outorga. Falta transparência nesse processo, que é algo fundamental no programa de privatizações e no serviço público. E ainda tem a questão de Tucuruí (uma das maiores hidrelétricas da Eletronorte, cuja concessão vence em 2024), que era um futuro longínquo em 2018 e agora está próximo demais para ser ignorado.

Onde estão as resistências à privatização da Eletrobras?

Hoje, na área política, estão concentradas no presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), por causa de Furnas, e na bancada do Norte, nos senadores Eduardo Braga (MDB-AM) e Davi Alcolumbre (DEM-AP). Mas há as resistências de sempre, como os fornecedores, que sempre cobram sobrepreço para vender para a União e usam muitas vezes práticas não republicanas, dos empregados e das corporações.

Como vender a ideia da privatização e vencer a resistência da sociedade?

O discurso da privatização precisa mostrar os benefícios desse processo. A privatização da Gerasul, hoje Engie, mostra o potencial de uma empresa que sai da gestão pública, sem amarras de compras, crédito e recursos humanos. Ela era um pedaço da Eletrobrás e já chegou a valer mais do que a Eletrobrás. A melhor peça a favor da privatização desse governo foi o estudo sobre salários e privilégios das estatais. Vender estatal com o discurso fiscal é muito ruim, ainda mais depois do déficit por causa da covid-19. Os críticos vão fazer uma conta de padaria e dizer que entrará R$ 15 bilhões quando o buraco é muito maior. Além disso, depois da capitalização bilionária que fizeram na Emgepron (estatal militar), o discurso fiscal ficou muito fragilizado. 

Com tantas críticas ao processo, a senhora ainda é a favor da privatização da Eletrobrás?

Para mim, a privatização da Eletrobrás se tornou uma questão de simbolismo, porque não tem mais relevância. O setor elétrico anda bem sem a Eletrobrás. O governo vai acabar pagando para privatizar. Eu já sou contra. Não me mobiliza mais.  Em 2011, a Eletrobrás tinha 34% da geração, hoje tem 30% e em 2024 terá 24%; na transmissão, era 52% em 2011, hoje é 45% e em 2024 será 39%. A empresa não investe mais, está minguando, e os maiores interessados em reverter esse processo deveriam ser os funcionários, pois o investimento se tornou uma questão de sobrevivência para a empresa.

Se a Eletrobrás fica de fora, qual sua lista prioritária de privatizações?

Estou muito mais focada no simbolismo de vender ValecEBCTelebrás, fazer um pente-fino nas empresas dependentes do Tesouro Nacional, ver qual delas se justifica além da Embrapa. Cadê as escolas com banda larga da Telebrás? Para que serve a Valec? A EBC se tornou a TV Bolsonaro e agora compra novela do bispo Edir Macedo, que é um aliado. Se for para comprar novela, comprem da Globo porque é muito melhor. Estou muito mais interessada em vender a Caixa e acabar com o populismo do presidente Pedro Guimarães, que usou o banco para avançar no mercado das fintechs, abrindo agência quando todo mundo está fechando, um cara supostamente liberal fazendo o uso mais populista possível de um banco público. O estrago que a Caixa faz no setor bancário é muito maior que o da Eletrobrás no setor de energia. 

O governo diz que a mudança no comando da Câmara vai fazer a privatização andar. A sra. acredita nisso?

O próprio ministro Bento Albuquerque já falou que a privatização ficará para 2022. Fazer privatização no meio de uma campanha presidencial, com o presidente contra, eu nunca vi. Já vi em 1998, mas Fernando Henrique e todo o governo eram a favor. Alguém acha que Bolsonaro vai apoiar? Só se for em fevereiro, com o Congresso distraído e tudo aprovado em 2021. De qualquer forma, com a mudança no comando da Câmara, a desculpa de jogar a culpa no Rodrigo Maia (DEM-RJ) caiu. Perdemos uma Câmara reformista, Maia era um aliado da agenda liberal. Alguém acha que o PP de Arthur Lira (AL) é a favor? 

Mas as resistências à agenda de privatizações vão além do Congresso?

Não precisa atravessar a Esplanada dos Ministérios para encontrar inimigos da privatização. Eles estão na própria Esplanada. Valec, Ceitec, EBC, todas as estatais militares. Os ministros que comandam essas empresas são os inimigos. O governo se especializou em jogar a culpa nos outros. Bolsonaro ainda é o mais consciente deles, é um mentiroso contumaz, mitômano, que fala com uma seita que acredita em tudo que ele fala e para o resto distribui cargos. Já o ministro Paulo Guedes vive numa realidade paralela, cria e acredita. O mágico não pode acreditar na mágica. Bolsonaro não é maluco, maluco é quem acredita nele. Vai fazer o que quiser e pegou Guedes para ser seu fiador. Como já disse o ministro da SaúdeEduardo Pazuello, “é simples assim, um manda e outro obedece”. É um governo populista e vai dar muito trabalho para explicarmos, no futuro, esse interregno populista que nada tem a ver com liberalismo. Guedes prestou um grande desserviço à causa liberal ao participar desse governo e não implantar nada da pauta liberal. 

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Correio Braziliense: "Bolsonaro empurrou o Brasil para o caos", diz ex-diretora do BNDES

Elena Landau afirma que a postura negacionista do presidente da República e as omissões na pandemia do novo coronavírus são motivos mais do que suficientes para o impeachment. Ela se diz pessimista em relação à retomada do crescimento econômico

Vicente Nunes e Rosana Hessel, Correio Braziliense

A economista e advogada Elena Landau, ex-diretora do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e uma das responsáveis pelo Plano Real, não tem dúvidas de que o presidente Jair Bolsonaro precisa ser destituído do poder, porque “ele empurrou o Brasil para o caos, ao cometer uma série de crimes e tornar-se um perigo para a democracia”.

Para ela, dado ao que viu nos dois primeiros anos de governo, é muito difícil ser otimista em relação ao Brasil. O crescimento econômico previsto para este ano, entre 3% e 4%, é, no entender dela, meramente estatístico e, enquanto não houver um compromisso efetivo com reformas estruturais, o país continuará patinando, com aumento da pobreza e das desigualdades sociais.

Elena ressalta que a política liberal vendida com ênfase pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, perdeu-se no caminho e o que se vê, agora, é um arremedo do liberalismo.“A base do liberalismo é clara: reforma do estado, simplificação do sistema tributário, abertura comercial e educação. O governo não tem nada nessas quatro premissas”, afirma. “Bolsonaro nunca foi um liberal”, frisa.

Uma grande preocupação, segundo Elena, são as eleições para as presidências da Câmara e do Senado. O fato de os candidatos favoritos para as duas Casas estarem totalmente alinhados ao Palácio do Planalto “é assustador”, pois indica, em caso de vitória deles, total subserviência ao Executivo e às pautas de costumes, que, se aprovadas, resultarão em um atraso sem precedentes do Brasil.

Por isso, acredita ela, um processo de impeachment, mesmo que desgastante, deve ser levado adiante. Elena afirma que o descaso com o sistema de saúde, o caos em Manaus e a política deliberada do presidente da República contra a vacinação são fatos mais do que suficientes para um afastamento do ocupante do cargo mais alto do país. A seguir, os principais trechos da entrevista ao Correio.

O Brasil está em uma situação complicada, com problemas diplomáticos e uma nova ordem global se estabelecendo com a posse de Joe Biden no comando dos Estados Unidos. Como fica o país nesse contexto mundial? O país vai continuar como pária ou Bolsonaro terá de se enquadrar?
O país está colhendo o que plantou durante dois anos, com uma adesão única ao ex-presidente Donald Trump, com a mesma ideologia, com o mesmo negacionismo, com uma espécie de seita que foi derrotada pela covid-19 nos Estados Unidos. Bolsonaro, pelo menos, cumprimentou Biden, o que já é surpreendente. Agora, ele é cínico, porque fala de aliança pelo meio ambiente, mas não vai fazer nenhuma mudança naquilo que é essencial para integrar o Brasil, de novo, ao mundo nas discussões sobre as transições das fontes energéticas, com respeito ao meio ambiente. Pode ser que, neste primeiro momento, ele esteja fazendo uma cortesia diplomática. Mas, se o Ernesto Araújo (ministro das Relações Exteriores) continuar à frente como ideológico dessa política de relacionamento internacional, nada vai mudar.

E qual será o preço que o Brasil pagará por isso?
Isso é uma pergunta muito difícil de responder, porque os investidores ameaçam, dizem que não vão trazer dinheiro para o Brasil. Mas, aí, tem um leilão de saneamento, e o leilão funciona. Eu fico me perguntando quando é que as pessoas vão desistir de vez deste país. Sai capital da Bolsa, depois volta o capital para a Bolsa... Eu não sei qual é o limite e quanto vamos pagar ante a discriminação que o Brasil sofre no resto do mundo. O país virou um deboche internacional. No caso da covid-19, nem os governantes ultradireitistas, populistas-nacionalistas, estão combatendo tanto a ciência quanto Bolsonaro. Todo o mundo está vacinando e apoiando a vacina. Agora, a insistência de Bolsonaro na sua política antivacina pagará um preço. Chegou o momento em que as pessoas vão dizer que ele não é tão confiável. Como é que se pode investir quando o presidente ameaça com um golpe democrático, quando o chefe do Ministério Público fala da antessala do estado de defesa? Há sinais muito graves. E, até então, o pessoal foi deixando acontecer. Mas, o tratamento em relações às mortes da covid-19 e o que aconteceu em Manaus, com a posse de Joe Biden, obviamente, podem ter um efeito maior do que a indignação com a questão ambiental.

A senhora falou que não entende o fato de haver investimento em saneamento ou em qualquer outro projeto de infraestrutura, que acaba entrando dinheiro no país quando há licitação. Isso não ocorre porque envolve projetos de longo prazo e acredita-se que o governo Bolsonaro vai durar apenas quatro anos?
Essa é exatamente a minha interpretação. Os investidores devem estar dizendo: essa pessoa desequilibrada e totalmente inapta para conduzir o país vai durar só mais dois anos. E esse grupo que está com ele, que se entende poderoso e está com as mangas de fora, vai recuar. Mas acho que a questão da covid-19 vai começar a pegar. A falta de humanidade, a falta de respeito pela vida humana, a insistência no uso da cloroquina, a insistência de não usar máscara... Bolsonaro virou uma piada do Trump.

Mas isso tem um custo grande. E a fatura será de mais mortes…
Pois é. Eu acho que, agora, as pessoas começarão a mudar diante da troca de comando nos Estados Unidos e do recrudescimento da pandemia, com a segunda onda da covid-19. E, diante da total falta de organização e de planejamento e gestão do governo para comprar a vacina, e do desprezo pela ciência, Bolsonaro mostra quem realmente é. Ele radicaliza quando insinua um golpe na democracia. Ele ameaça com as Forças Armadas. O procurador-geral da República, Augusto Aras, fala da antessala do estado de defesa. Felizmente, os parlamentares estão sendo pressionados por seus eleitores para tomarem uma posição em relação à avaliação do impeachment. Acho que está mudando. É óbvio que, se a sociedade for mais firme na defesa da democracia, na exigência de um trato humanitário decente, os investidores vão começar a ficar mais ressabiados. Até então, tínhamos a questão do meio ambiente, e alguns investidores ameaçaram sair do país. Mas, tinha uma história de que estava tudo sob controle e as instituições estavam funcionando. Agora, temos um Bolsonaro isolado do mundo. Trump já era uma caricatura. Bolsonaro é uma subcaricatura do Trump. O impeachment está sendo falado de uma maneira mais aberta. A sociedade está reagindo mais. O STF (Supremo Tribunal Federal) reagiu prontamente à fala do Aras. A própria associação dos procuradores reagiu. Ninguém está aceitando mais as maluquices do Bolsonaro.

O Brasil aguentaria um outro impeachment em um espaço tão curto de tempo?
Olha, vou dizer uma coisa: fui contra o impeachment da Dilma Rousseff, porque, com o impeachment, a gente não encerrou o ciclo da Nova Matriz Econômica, da heterodoxia. Eu era a favor que a Dilma governasse até o fim para que seu ciclo se encerrasse. Quando ela saiu dois anos antes, por uma questão muito técnica, que foi a pedalada fiscal — boa parte da população não entende o que é uma pedalada e não sabe diferenciar o que é restos a pagar etc —, Dilma ficou como vítima. E ainda teve aquele desvio completamente inconstitucional do (ministro do STF) Ricardo Lewandowski. Olhando para trás, o governo Temer conseguiu botar o Brasil nos trilhos. E acho que o Brasil aguenta outro impeachment, sim. O Brasil não aguenta é esse presidente. Se lembrarmos, começou-se a se falar de impeachment um pouco antes da covid-19, por causa dos ataques ao STF. Depois, veio aquele vídeo da reunião ministerial de 22 de abril, e voltou a se falar de impeachment. Contudo, o que se viu foi Bolsonaro sobreviver a essas coisas. Ele se acha um super-homem. Acha que pode fazer qualquer coisa. Vimos o desastre da condução do presidente durante a crise da covid-19, agora, com um ministro absolutamente incompetente, que já devia ter sido demitido, que é o Eduardo Pazuello (Saúde), assim como Ernesto Araújo (Relações Exteriore) e Ricardo Salles (Meio Ambiente). Se pegarmos todo o ministério de Bolsonaro, o conjunto da obra é um dos piores que o Brasil já teve.

Qual seria o argumento que mais sustentaria, do ponto de vista jurídico, um processo de impeachment? O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, tem mais de 60 pedidos na gaveta e não escolheu nenhum até agora…
Essa coisa de que impeachment é só política, evidentemente, se você não tiver um apoio bem fundamentado para o Congresso poder avaliar, não sai. Mas tem que tentar. A população tem que pressionar. Se não for aberto nenhum processo, porque ele continua com o apoio de uma seita, fica a ideia de que ele pode cometer qualquer crime. Não é possível cometer tantos crimes, como Bolsonaro cometeu, e deixar passar porque acha que não vai ter apoio. Ele cometeu crimes de responsabilidade, de falta de decoro com o cargo… O Rodrigo Maia se arrependeu de não ter feito nada e, agora, está dizendo que o presidente é incapacitado para conduzir a segunda onda da covid-19. Porém, é um pouco tarde para se arrepender. Ele tinha que ter aberto o processo antes.

Com o novo desenho das presidências do Congresso, diante da possível vitória dos candidatos do Planalto, Arthur Lira (PP-AL), na Câmara, e Rodrigo Pacheco (DEM-MG), no Senado, há espaço para um processo de afastamento andar?
As chances ficarão muito menores. Mas, também, nada garante que Baleia Rossi (MDB-SP) ou a senadora Simone Tebet (MDB-MS) darão andamento se não for feito um pedido bem fundamentado. Hoje, há uma pressão maior pelo impeachment do que tínhamos antes. Tem pressão sobre os deputados, pessoas que votam no PSol pedindo para que a Luiza Erundina retire a candidatura (à Presidência da Câmara) para poder eleger o Baleia Rossi logo de cara e mostrar a fragilidade de Bolsonaro. As pessoas mais engajadas estão olhando as eleições na Câmara e no Senado, exatamente, como a antessala do impeachment. O quadro é muito ruim dentro da perspectiva de uma vitória de Lira. O Baleia continua uma interrogação, mas, pelo menos, a gente sabe o que ele não é.

Quais são riscos de país ter as duas Casas do Congresso presididas por dois candidatos apoiados pelo Planalto?
O presidente interfere, de forma descarada, na eleição da Câmara e do Senado. E temos dois candidatos que declararam apoio absoluto ao presidente. Mas não sabemos o que o Planalto vai propor. Isso é gravíssimo. Do ponto de vista econômico, não faz diferença, porque tivemos um Congresso reformista nesses dois anos. Se o governo quisesse, se o Paulo Guedes (ministro da Economia) quisesse, e se ele tivesse um plano, teria feito reformas. Agora, corremos um risco de ir para um Congresso que pode ser entreguista. Vale lembrar que o governo teve propostas devolvidas, uma coisa raríssima, porque havia coisas de muito baixa qualidade, especialmente, na questão de armamento e de polícia. Com o possível novo comando da Câmara e do Senado, isso não deverá se repetir.

Há o risco de o Congresso priorizar a pauta de costumes?
Com certeza. A submissão do Congresso ao Planalto será a volta da pauta de costumes. Será muito grave essa submissão, porque vai perpetuar o bolsonarismo.

Por que a pauta econômica, de reformas, encalhou?
O Paulo Guedes acha que o Congresso não gostava da pauta dele. Mas ele não tem pauta. Nunca teve. Entregou a PEC Emergencial e foi para casa. Ele não trabalhou pela aprovação da PEC. Agora, o ministro da Economia fala que pode voltar com a nova CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira). Ele só está esperando o Lira sair vitorioso para voltar com a proposta à Camara. Há uma reforma tributária possível de andar, de discussão e de qualidade. Mas o ministro está esperando o Lira para emplacar a obsessão dele. A pauta do Paulo Guedes é ruim do ponto de vista econômico.

Nesse contexto de crise sanitária, de crise política, o país não cresce. As pessoas estão desesperadas, sem perspectiva. O desemprego é recorde, a pobreza está aumentando, com desigualdade social assustadora. Como reverter esse quadro?
Vou dizer uma coisa: estou muito pessimista com a economia. E esse é um dos motivos que acho que o impeachment tem que ser julgado da mesma forma e com a mesma motivação que ocorreu para tirar a Dilma, que foi a crise econômica. As pessoas se engajaram no impeachment da Dilma porque ela, de fato, estava destruindo o Brasil. Ninguém aguentava mais a situação em que o país estava em 2015. Basta lembrar a conjuntura econômica do Brasil naquele ano. Esses elementos estão ocorrendo com Bolsonaro. Ele não tem ninguém no governo capaz de fazer um projeto de país. Não temos uma reforma administrativa que faça sentido. O governo não tem uma proposta de reforma tributária que pare em pé. Temos uma sequência de ministros da Educação muito ruins. Em um momento mais grave da covid-19, quando o país precisa aumentar a produtividade, não há uma coordenação, o que faz com que o fosso da desigualdade cresça pela falta de acesso à educação e pela falta de conectividade da banda larga. A Telebras, que foi recriada para trazer a banda larga, não faz o que tem que fazer. O governo está parado, esperando acontecer para botar a culpa em alguém. O que fazer é evidente. Esperava-se que o governo fizesse alguma coisa, mas o Paulo Guedes não se mexeu para o que precisava do Congresso. A abertura comercial era esperada desde o início, mas ele não fez. No momento em que o presidente baixa para zero a tarifa de importação para armas e munições, mostra que ele pode baixar a tarifa daquilo que quiser, na hora que quiser. Não precisa nem de estudo técnico para justificar isso. A economia é muito fechada, a indústria automobilística brasileira é a mais atrasada e não preparou suas plantas nem para pessoal nem para uma economia em transição energética. Ainda há impostos elevados, custos trabalhistas elevados... Nada das reformas que se esperava que fizesse veio. E não foi por falta de ajuda. O Temer, quando saiu, deixou tudo pronto. A agenda do Banco Central que está andando e que é muito boa, é continuação do trabalho que o Ilan (Goldfajn) começou.

O fato de o Brasil perder as fábricas da Ford era mais do que esperado? Outras empresas
devem sair do país?
Esse é o retrato da morte anunciada de uma indústria fraca. O Brasil não exporta mais carros para ninguém. O Brasil tem um dos piores carros do ponto de vista tecnológico, com a indústria dependente de subsídios, mas não tem contrapartida. Se você olhar o que faz (Emmanuel) Macron na França e o que fez (Barack) Obama nos Estados Unidos, os apoios dos governos foram para incentivar a transição energética e investimentos em capital humano. Os 5 mil profissionais demitidos da Ford não estão preparados para a nova demanda do mercado de trabalho. Isso é gravíssimo. Não há preocupação com a qualificação, não tem planejamento, não tem como olhar dois anos à frente. Eu sou muito pessimista.

A senhora acredita que o país crescerá neste ano? É possível algo entre 3% e 4%, como prevê o mercado, nesse contexto tão adverso?
A maior parte do crescimento que está se cogitando é estatística. A base de comparação é muito baixa. Com a nova onda da covid-19, sem auxílio emergencial, que segurou a queda do PIB no ano passado, acho que essas previsões vão acabar sendo revistas.

A senhora é a favor da volta do auxílio emergencial?
Não sou contra. Sou a favor da Lei de Responsabilidade Social.

E o que seria isso?
Isso significa que é preciso fazer uma reforma dos benefícios sociais, para focalizar melhor os recursos. A gente viu que, com o auxílio emergencial, que foi uma resposta rápida, veio como tinha de ser feito, mas, depois de dois meses, percebemos que havia sido destinado para muitos que não precisavam e um grupo que precisava acabou ficando de fora. O que precisa ser feito é focalizar os gastos sociais para quem, de fato, precisa e ter uma alternativa para quem está no mercado informal, que tem renda, mas tem volatilidade. A Lei de Responsabilidade Social foi proposta pelo senador Tasso Jereissati (PSDB-CE) e tem como base um programa desenhado pelo grupo Livre, juntando propostas de um programa elaborado por três maiores dos especialistas em desigualdade. Seria um auxílio permanente, respeitando a restrição fiscal, com foco na criança e na educação, e ainda dá conta do mercado informal.

Com o Orçamento da forma como está e com a dívida pública bruta encostando em 100% do PIB, é possível um programa de renda para os mais pobres?
Sim, pois temos uma crise humanitária. O país, hoje, não consegue voltar a um lockdown a essa altura, porque temos um presidente que não dá exemplo, faz questão de aglomerar, não usa máscara em cerimônias e diz que não é preciso se vacinar. Só é possível, de novo, conseguir decretar um lockdown se tiver apoio para as pessoas ficarem em casa. A situação é muito ruim. A vacina é urgente. Temos uma crise humanitária muito séria e, nesse cenário, o Congresso não deveria estar em recesso. Deveria estar funcionando para discutir exatamente temas como esse. Poderia discutir a Lei de Responsabilidade Social. Mas o Congresso vai querer fazer algo mais populista, que é estender o auxílio emergencial. Não sei de onde virá o dinheiro.

Como a senhora avalia a política liberal com a qual o governo foi eleito?
Primeiro, é preciso qualificar o que é política liberal. Porque essa coisa de dizer que liberalismo é liberdade econômica e ponto, eu não concordo. Isso é só um grupo de pensadores que acham que é só olhar para a liberdade econômica que o resto vem atrás. Não há nada nesse governo que seja liberal. Primeiro, Bolsonaro é aquela imagem acabada de um não-liberal. É o cara da extrema direita que não acredita na ciência, não acredita na sustentabilidade, não respeita os Três Poderes, é a favor da tortura e gosta de exaltar ditadores. Bolsonaro é o oposto da ideia do liberalismo. Guedes entrou no governo porque Bolsonaro foi o único que o aceitou. Ele sabia que Bolsonaro não era liberal e quase estragou a reforma da Previdência. Se não fosse o Congresso e Rodrigo Maia, nem reforma da Previdência o país teria. Temos um problema de um governo não ter vocação para ser liberal com um ministro completamente incompetente, sem nenhuma habilidade política e sem nenhuma visão política. Guedes perdeu, de fato, o prestígio que tinha e, hoje, o que ele quer fazer, Bolsonaro impede. O presidente impede uma focalização dos benefícios sociais, impede uma reestruturação necessária no Banco do Brasil e ninguém pede demissão, como o (Henrique) Mandetta fez. Vão aceitando tudo o que o Bolsonaro faz.

É tudo pelo poder?
Se você não tem nenhuma abertura comercial, se não houve privatização... Outro dia, fiz um levantamento dos dados dos governos Collor, Itamar, Fernando Henrique Cardoso. Todos privatizaram mais de 10 empresas em dois anos. Todos. O Paulo Guedes não consegue fazer. Ele ainda propôs uma reforma administrativa que não vai adiantar nada, porque não tem impacto nenhum a curto prazo. O presidente não quer. O ministro é um sujeito completamente inexpressivo. Não tem como ficar otimista. A base do liberalismo é clara: reforma do estado, simplificação do sistema tributário, abertura comercial e educação. O governo não tem nada nessas quatro premissas.

O que se tem então é o populismo?
Exatamente. Só há populismo e ministros completamente inexpressivos. E alguns atrapalham a agenda liberal, como são os caso do Ernesto Araújo e do Ricardo Salles. O Pazuello já virou piada e um desprestígio para a eficiência dos militares. O resto fica calado para não atrapalhar. E o Paulo Guedes, quando fala, vira meme. Fica dizendo que está segurando o pacote, esperando o novo presidente da Câmara. O país está sem um condutor.

É possível esperar mudanças nesses próximos dois anos de governo? Ainda dá para fazer o que tem que ser feito para o país voltar a crescer e gerar emprego e renda para a população?
Com Bolsonaro, não. Pelo contrário. Acho que Bolsonaro, sentindo-se acuado ou mais forte, vai ser abertamente populista. Ele pode desistir do Paulo Guedes e colocar um desses heterodoxos, alguém da nova teoria humanitária, alguma pessoa que vai achar que investimento público gera crescimento.

E ainda tem a perspectiva de o Banco Central subir juros, o que será um baque neste momento com a economia tão frágil…
Isso é outro agravamento. Com a pressão da inflação, o Banco Central retirou o forward guidance (instrumento que sinalizava manutenção da taxa de juros baixa), com a expectativa de subir os juros. É um cenário muito complexo. E o Brasil é pária do mundo. A sorte é que o setor agrícola é muito forte e está sustentando o país.

A indústria tem, hoje, a menor participação no PIB desde o final dos anos 1940. Como vê isso?
O processo de desindustrialização já estava acontecendo. A própria indústria não se preparou para a mudança tecnológica, e a automobilística, que, no mundo todo, está migrando para carros híbridos, treinando pessoal e mudando suas plantas, no Brasil, não faz nada, porque está acostumada a viver com subsídios. Acho que a responsabilidade é da indústria também. É óbvio que há uma carga tributária e uma burocratização que atrapalham muito, mas há pouca inovação. Onde houve inovação tecnológica foi na agroindústria.

Na sua avaliação, existe a possibilidade de surgir um candidato forte a ponto de bater Bolsonaro em 2022 ou a reeleição dele está dada?
Eu vejo possibilidade sim. Acho que Bolsonaro mostrou que é totalmente incapacitado para conduzir o Brasil. Ele aproveitou a onda anti-PT. Por isso, o candidato para batê-lo não pode ser de esquerda, senão, vai gerar, de novo, uma polarização. Essa polarização a gente não quer. Ela está menor.

Mas, hoje, não tem esse candidato?
Tem candidatos que não se apresentaram abertamente. Hoje, o único que se apresentou foi o João Doria (PSDB-SP). Mas tem o Ciro Gomes (PDT-CE), que é candidato permanente, o Flávio Dino (PC do B-MA), o Luciano Huck, o Eduardo Leite (PSDB-RS), o Fernando Haddad (PT-SP)... Candidatos, teremos. Mas podem aparecer outros nomes, como o Paulo Hartung (MDB-ES), Tasso Jereissati (PSDB-CE). Nomes bons, temos.

Vimos isso em 2018, e Bolsonaro foi eleito…
Pois é. Hoje, estamos falando que poderia ter um médico na Presidência (Geraldo Alckmin/PSDB-SP). Mas, quando o médico falou que precisava fazer um acordo com o Centrão para fazer reforma, perdeu a eleição. Agora, Bolsonaro se aliou ao Centrão e ninguém achou nada demais. Acho que, exatamente pelos erros na eleição de 2018 e com a derrota de Trump e a vitória de Biden, que é um conciliador dentro do Partido Democrata, que não tem propostas radicais, há um ensinamento para nós. Depende da sociedade brasileira encontrar esse nome.


Elena Landau: Bolsonaro falou, Bolsonaro avisou

O que esperamos para impedir o avanço do mal que o presidente representa?

Bolsonaro é um mentiroso contumaz. Ele sabe que mente quando diz que o STF o impediu de agir na pandemia. Mente também quando compara a covid-19 a uma gripezinha. Mente quando fala que defende o meio ambiente. Mente quando alega que houve fraudes nas eleições de 2018. Mente quando nega usar órgãos do governo para proteger seu filho. Mente o tempo todo, sem enrubescer.

A mentira contagiou o ministro da Saúde. Os dois tiveram que engolir a vacina do Doria. Irritados, inventaram um apoio financeiro ao Butantan – que não existiu. O governo boicotou como pôde. Em ato falho, o presidente chegou a lamentar a aprovação da Anvisa ao falar: “Apesar da vacina”, em uma entrevista.

Dizem até que apagou de suas contas a defesa da propaganda da cloroquina. Eu não o sigo. Mas os prints não mentem, são eternos.

Há método na sua suposta loucura, burrice ou negacionismo. Tratar seus atos como coisa de maluco é tudo que ele quer. Como no Brasil não temos a emenda 25 para apear incapazes do comando, a vida segue.

Ele mentiu na campanha quando disse que não iria tentar a reeleição. Desde o primeiro dia de seu mandato, ela é sua obsessão. Já avisou que se perder em 2022 vai melar o jogo. O que aconteceu no Capitólio há duas semanas pode ser tentado aqui em maior escala. A militarização de seu governo, os privilégios concedidos aos policiais e militares, o desmonte dos mecanismos de controle de armas e munições são sinais de sua intenção.

Não consegue esconder sua irritação com o sucesso do Butantan e o fiasco da gestão de seu governo na compra e distribuição de vacina. E, previsivelmente, subiu o tom dizendo que as Forças Armadas é que decidem se temos democracia ou não. A sorte dos brasileiros é que, se depender da competência dos “pazuellos” em sua volta, o golpe fracassará por questões de logística.

Diante de tudo isso, é inexplicável a passividade dos nossos parlamentares. Maia comandou a pauta reformista, a começar pela mudança na Previdência, e sua gestão será marcada positivamente por isso. Mas também será lembrada pelo engavetamento de dezenas de pedidos de impedimento de Bolsonaro. Notas de repúdio não adiantaram nada. Às vésperas de entregar o cargo, é tarde demais para espernear.

Crime de responsabilidade é o que não falta. É só escolher. Quando o vírus começou a se espalhar no Brasil, muitas vozes se colocaram contra o impeachment porque poderia agravar a crise sanitária. Pois é, hoje são mais de 210 mil mortes, que continuam crescendo. Nem os melhores modelos estatísticos conseguem fazer prognósticos, porque a incompetência do ministro da Saúde e de seu chefe é fora de qualquer padrão.

No futuro, quando a história cobrar as responsabilidades, Pazuello, como Eichmann, vai alegar que estava só obedecendo ordens. Bolsonaro é um simples capitão reformado, quando deveria ter sido expulso do Exército, mas, como presidente da República, é o comandante em chefe das Forças Armadas.

Afastar o presidente é a mais importante ação de combate à pandemia e redução de mortes potenciais, sem contar os riscos à democracia.

Dizer que impeachment é ato político deixa nossos deputados em uma zona de conforto. Muitos usam Collor e Dilma para justificar sua inação. Só foram afastados quando perderam apoio. Mas quem retira esse apoio senão o próprio Congresso? Não temos certeza do número de parlamentares favoráveis à abertura do processo de afastamento. Indiferente a isso, as redes sociais iniciaram a contagem de votos e começam a pressionar seus deputados. Mesmo sem passeatas, podemos nos manifestar.

Bom lembrar também que não afastar um presidente por medo das ruas, pode torná-lo mais ousado. Lula foi reeleito após o Mensalão, e terminamos com o Petrolão, escândalo muito maior.

Não é admissível que um presidente não seja sequer cobrado por suas atitudes. Bolsonaro escapou impune de atos contra segurança nacional, ameaças de morte a presidentes, elogios à tortura e crimes de homofobia e misoginia. Se acha invulnerável. Sem limite, vai radicalizando. Com sua campanha contra vacina e uso de máscaras, e o estímulo à aglomeração, comete crime continuado de responsabilidade contra a saúde dos brasileiros.

Penso em meu pai neste momento. Sou filha de pai judeu e mãe católica. Meu pai, ateu, nem sequer fez seu bar mitzvah. O judaísmo para ele não tinha relação com religião. Quando dei a ele o livro da Hannah Arendt, sobre o julgamento de Eichmann, vi meu pai se transformar. Pela culpa de ter conseguido fugir da Romênia, cobrava internamente de seus parentes não terem ficado para lutar contra o nazismo, de terem visto o antissemitismo crescer sem reagir, pensando que “não vai acontecer comigo” ou “alguém vai parar esse monstro”.

Pois é como me sinto agora. O que estamos esperando para impedir o avanço do mal que Bolsonaro representa.

*ECONOMISTA E ADVOGADA 


Elena Landau: Ho, ho, ho

Mesmo que o calendário de fim de ano seja uma ficção, ele deixa a gente sonhar

Antes de mais nada, boas-festas para todos. Parece um desejo quase impossível neste ano terrível de 2020. Mais de 180 mil brasileiros não estarão nem nas mesas com suas famílias, nem via zoom, nem em grupos de zap. A vacina é o principal pedido para Papai Noel, juntando adultos e crianças na esperança de um milagre de Natal. Só que, do mundo imaginário ao real, um longo caminho nos espera. Os imunizantes apareceram em tempo recorde no mundo, mas por aqui a politização da saúde, a negligência, a incompetência, reflexo do pouco caso oficial, tornam o acesso dos brasileiros à vacinação um sonho duvidoso e incerto.

No jornal, o Bonequinho me recomenda uma ida ao cinema para ver a nova versão de Poderoso Chefão e a declaração de amor a Babenco. Junto com as ofertas de viagem e hotéis que chegam, me soa como bullying. Parece que há uma realidade paralela. E há; está refletida na imagem de um Bolsonaro possuído, discursando na Ceagesp. Nem Joaquin Phoenix faria melhor.

A saudade do beijo e do abraço é enorme. Até da turbulência de um voo de verão, para ver amigos na cidade de São Paulo, eu sinto falta. É a volta da normalidade, com seus perigos e delícias. São meus sonhos mesquinhos, mas não posso fingir que não é o que quero para 2021. Fazer planos. Enquanto isso, vou atravessando este momento, seguindo Guimarães Rosa: “A felicidade se acha em horinhas de descuido”. É procurar.

Com a chegada do fim do pior ano da minha vida, há um natural alívio gerado pela mística ideia de que a virada da meia-noite nos trará um mundo novo. Estava nesse espírito até que recebi um meme “Antes de entrar 2021, eu quero ver o trailer”. De fato, com esse governo, tudo sempre pode piorar. Para quem tem alguma dúvida, recomendo assistir o documentário Cercados, na Globoplay. Em duas horas, o resumo da atuação do Capitão Morte. O deboche e o desprezo pelos brasileiros sendo revivido dia a dia.

Nove meses se passaram desde os primeiros sinais da pandemia e o documentário mostra a escalada das mortes. Impressionante. Fiquei pensando como ainda estamos, passivamente, como sociedade, aceitando a permanência na Presidência da República de uma pessoa que comete crimes contra a saúde de seu povo de forma tão consciente e premeditada. Quantos mais precisarão morrer? Aí vejo o resultado das pesquisas de opinião e a perplexidade aumenta. De volta à Idade das Trevas. 

Se o presidente é um irresponsável, para dizer o mínimo, o que dizer das nossas instituições? Uma agência reguladora, capturada pelo mais mesquinho critério político, se junta no desrespeito aos brasileiros a um Ministério da Saúde, que obedece a qualquer ordem porque (acha) que tem juízo. 

A vida vai seguindo como se fosse natural encher três Maracanãs com vítimas da covid-19. E Pazuello nos pergunta por que tanta ansiedade, tanta angústia? Diz que podemos confiar nele, o rei da logística, que deixou testes perderem validade esquecidos em um canto qualquer. 

Negociações para presidência da Câmara e do Senado continuam com base nas mesmas pautas comezinhas, tratando a responsabilidade de Bolsonaro na tragédia da pandemia como questão menor.

E a vacina é só o primeiro passo. Ano que vem ainda serão sentidos os graves efeitos da pandemia, que escancarou a realidade da desigualdade social. Os tais invisíveis. Habitação insalubre, falta de saneamento e acesso a itens básicos de higiene, desigualdades na educação e transporte público de péssima qualidade foram estampados nos jornais. Não dá mais para varrer para debaixo do tapete.

Apesar disso, não há nenhuma iniciativa do governo. Representante supremo do mundo da fantasia, o ministro da Economia foi abduzido de vez pela realidade paralela. Sumiu, junto com as reformas prometidas. E enquanto isso, no apagar das luzes, a diretriz orçamentária é votada a toque de caixa, com seus puxadinhos e sem obedecer os ritos tradicionais. Em fato inédito, Orçamento mesmo, só em fevereiro. Pelo jeito, já vamos começar 2021 devendo 2023.

Não há perspectiva de crescimento sustentado. Nem há na agenda nenhuma política social de qualidade. O único alento é que não ficamos parados esperando as novidades da semana que vem e uma Lei de Responsabilidade Social foi proposta.

Para sorte de muitos, a sociedade civil se mobilizou; cestas básicas foram distribuídas, vizinhos se cuidaram e doações de todo tipo apareceram. Tem quem pense ser esse um novo normal, mais humano, que veio para ficar. Não acredito nisso. As aglomerações e o abandono dos cuidados mostram como é fácil tudo isso se desmanchar no ar. São necessárias políticas públicas bem desenhadas e permanentes que possam, ao menos, reduzir a segregação da população e salvar vidas.

Este dezembro está sendo um teste para meu lado Pollyanna, peço desculpas pelo pessimismo. Afinal, é hora de festejar. Mesmo que o calendário de fim de ano seja uma ficção, ele deixa a gente sonhar. Então vamos lá, são só mais 13 dias. Feliz 2021.

Mas se a tristeza baixar em você, cante Belchior, como faz Emicida: “Ano passado eu morri, mas esse ano não morro”.

*ECONOMISTA E ADVOGADA 


Elena Landau: Juntos e misturados

É fundamental melhorar a qualidade dos gastos sociais no País

O senador Tasso Jereissati acaba de propor uma Lei de Responsabilidade Social (LRS). O PL 5.343/2020 é a etapa final de um trabalho de advocacy, que reuniu a academia, o Livres, o Centro de Debate de Políticas Públicas (CDPP) e um grupo de parlamentares envolvidos com o tema da renda cidadã, infância e educação. A sociedade civil se organizou e ocupou o vácuo deixado pelo Executivo em assunto da maior importância.

Algumas ideias já vinham sendo estudadas desde o início da pandemia. Várias propostas circulavam em seminários e artigos, incluindo desde a ampliação do programa Bolsa Família até a criação de uma renda mínima universal.

Muitas delas esbarraram na falta de fontes de financiamentos. Era preciso buscar uma solução que melhorasse a qualidade das despesas, respeitando os limites fiscais. O Brasil não gasta pouco com social, quando incluídos no total os programas de transferência e aposentadorias – priorizando mais idosos que crianças.

auxílio emergencial foi feito às pressas para atender aos efeitos humanitários, econômicos e sociais da covid-19. Seu redesenho se apresenta como uma oportunidade para a criação de um projeto permanente, mais eficaz no combate à pobreza.

Em maio, o Livres, do qual sou presidente do Conselho Acadêmico, realizou um debate com dois de nossos conselheiros, Ricardo Paes e Barros e André Portela, especialistas em políticas sociais. O Livres é um movimento suprapartidário e defende uma agenda liberal, que vai além da pauta econômica. É conhecido como “liberal por inteiro”, porque entre seus princípios estão a busca de igualdade de oportunidades e inclusão, o que abarca tanto o combate à pobreza quanto a redução de desigualdades e maior mobilidade social.

Desse encontro, surgiu a ideia de montar uma proposta de unificação de diferentes políticas de transferência, com melhor focalização dos gastos sociais. Hoje, se reconhece que se desembolsou mais do que o necessário com o auxílio emergencial, o que, de um lado, permitiu relativa recuperação de certos setores da economia, mas gerou uma piora dramática nas contas públicas.

Para sugerir uma alternativa, o Livres buscou outros especialistas, que sugeriram um trabalho em três dimensões. A primeira, a focalização e a unificação de benefícios. A segunda, uma atenção ao mercado informal de trabalho, cujo problema não é tanto de baixa renda, mas de volatilidade da renda. E, por fim, um projeto que respeitasse os limites fiscais do teto de gastos. Vinicius Botelho, Fernando Veloso e Marcos Mendes aceitaram o desafio.

Bom lembrar que, no início dos trabalhos, o presidente já havia interditado qualquer ideia de unificação de benefícios, que previa revisão do salário família e abono salarial, com a frase populista e de grande impacto político: “Não vou tirar dos pobres para dar aos paupérrimos”.

Independentemente da decisão do governo, a proposta foi levada ao CDPP, que, através de seu diretor e sócio fundador, Ilan Goldfajn, abraçou a ideia de imediato e deu todo apoio financeiro e logístico. Uma contribuição fundamental para a viabilização do projeto. Foi então desenhada uma proposta de Lei de Responsabilidade Social.

Para isso, foram realizados debates preliminares com outros especialistas da área social, que trouxeram boas contribuições. Reuniões mais amplas se seguiram até a versão final. O trabalho completo pode ser encontrado no site do CDPP. Ele traz também sugestões legislativas para sua implementação.

Foi organizado com o presidente da CâmaraRodrigo Maia, uma apresentação a alguns parlamentares, que já se empenhavam na busca de uma política de transferência de renda nova e permanente, entre eles o senador Tasso Jereissati, autor do PL da Lei Responsabilidade Social. 

Não só os efeitos da pandemia ainda serão sentidos em 2021, como é fundamental melhorar a qualidade dos gastos sociais. O País vem enfrentando há anos as consequências de políticas fiscais irresponsáveis, que geraram recessão, desemprego e aumento da desigualdade.

A mobilidade social no Brasil é muito baixa, filhos de pobres e de pais com baixa escolaridade já nascem com seu destino marcado. Uma das propostas do estudo é incentivar a conclusão do ensino médio com a criação da Poupança Mais Educação. Além disso, é necessário enfrentar questões de desigualdade que começam já na primeira infância, sem abandonar a responsabilidade com as contas públicas. 

O PL apresentado por Tasso Jereissati traz, como é natural na busca de viabilização política, algumas modificações. Entre elas, a previsão de redução de 15% nas renúncias tributárias caso as metas de redução da pobreza não sejam atingidas.

A Lei de Responsabilidade Social, com relatoria do senador Antonio Anastasia, se aprovada, mostra a importância da advocacy, um movimento que se inicia na sociedade civil para sugestões de políticas públicas. Foi um trabalho conduzido por muitas mãos. 

*ECONOMISTA E ADVOGADA 


Elena Landau: Memória tumultuada

Ministro Guedes marcou sua gestão por tentar adaptar a realidade a seus devaneios

A Controladoria-Geral da União (CGU) organizou um seminário sobre Os Desafios da Desestatização há poucos dias. Uma das estrelas do evento foi Paulo Guedes, que se confessou frustrado por não ter vendido nada, apesar das promessas de campanha. De fato, é inexplicável que um governo eleito com uma pauta de desestatização tão clara e com metas tão ousadas tenha feito tão pouco.

Infelizmente, não ouvimos um mea-culpa. Sem um bom entendimento dos desafios, não se consegue traçar um plano para superá-los. Repetindo a cantilena de sempre, atribui aos acordos políticos no Congresso a responsabilidade da tibieza do programa. Mas não disse em que exatamente nossos parlamentares estão atrapalhando.

Como não há desejo de vender Petrobrás, Caixa ou Banco do Brasil, muito pouco depende de anuência do Legislativo. Só a Eletrobrás está pendente. A lista de intenções do governo chama atenção pela ausência das empresas que não precisam de autorização específica, como EBC, EPL, Infraero ou Valec. Ou mesmo, a liquidação de outras, como Hemobrás.

Enquanto o ministro falava, o Gabinete de Segurança Institucional enviava para publicação no DOU uma resolução recomendando a criação da Alada – Empresa de Projetos Aeroespaciais SA. Já será a segunda estatal criada neste governo.

Se for para achar os inimigos da privatização, Guedes não precisa atravessar a rua, estão todos na Esplanada dos Ministérios. Cabe a ele, como presidente do Conselho do PPI, convencer seus colegas a desapegarem de suas estatais.

Ao final, não faltou, é claro, a promessa de fazer quatro grandes vendas em 2021. Semana que vem, ano que vem, 90 dias, tanto faz. Ninguém dá bola mesmo.

Não fosse o introito, a palestra não teria trazido nenhuma novidade. É ali que Guedes se revela como historiador. Em tom professoral, inicia explicando por que temos um Estado tão grande. A razão é ter sido moldado pelos militares, com objetivo de acelerar o tempo e aprofundar a infraestrutura. E então completa o raciocínio: “A estrutura de Estado foi montada durante um regime politicamente fechado… Era até relativamente sofisticado que em vez de ter um, houve um rodízio de presidentes. Então, ao contrário de alguns lugares onde a gente pode caracterizar claramente como um regime ditatorial, aqui o Congresso ficou funcionando, operando, havia uma eleição indireta”.

Guedes marcou sua gestão por tentar adaptar a realidade aos seus desvarios. São os trilhões das privatizações, os 40 milhões de testes do amigo inglês ou o mundo se surpreendendo com o Brasil. Mas, dessa vez, passou de qualquer limite. Pode fazer a projeção delirante que quiser, mas reescrever a história política do País não dá. É um desrespeito a quem viveu durante o regime militar; a quem perdeu parentes para a tortura; aos que foram exilados; aos inúmeros deputados cassados, assim como ministros do STF; à imprensa que foi calada; aos artistas censurados; à toda sorte de perseguição que sofreram os que ousaram se colocar contra esse regime “relativamente sofisticado”.

Sem falar na herança econômica da hiperinflação, da concentração de renda, da década perdida e das suspeitas de corrupção que envolviam obras faraônicas, como a Transamazônica ou as usinas nucleares de Angra.

Ele pode até ser a favor do golpe e da ditadura, mas não pode fingir que não aconteceu. Impossível ignorar as atrocidades do governo muito sofisticado de Garrastazu Médici.

Diz ele que tinha apenas 13 anos quando foi “instalado” o governo militar, muito jovem para ter percepção ou opinião. Eu nem era nascida quando Getúlio se matou, nem por isso eu posso afirmar que o presidente morreu de causas naturais.

Para quem leu Keynes três vezes no original, deve ser fácil encarar os cinco volumes de Elio Gaspari. Se tiver com preguiça pode ir direto para o A Ditadura Escancarada.

Eu tinha seis anos quando veio o golpe. Com apenas dez, ouvi com meu pai o discurso de Mario Covas e lembro dele dizendo: “Belíssimo, mas vai ser cassado”. Logo depois, veio o AI-5. Quem era um adolescente em 64, já era um homem em 68.

Paradoxalmente, Guedes falou do ato institucional mais de uma vez em seu mandato. A memória volta quando lhe convém. Pode ser ato falho de quem acha melhor governar sem Congresso.

Ao fim da palestra, prometeu o desfazimento do Estado gigante porque “agora temos um governo liberal-democrata”. Com um porta voz desses não é à toa que o liberalismo tem sido tão questionado.

Vade retro.


Um belo resultado dessas eleições e uma boa notícia para os liberais: o aumento da diversidade nas Câmara de Vereadores pelo País.

*Elena Landau, economista e advogada


Elena Landau: Muito barulho por nada

Decreto 10.530 pedia anúncio cuidadoso para mostrar à população sua importância

23h59: Bolsonaro assina Decreto 10.530, que inclui a atenção primária à saúde no Programa de Parcerias de Investimentos (PPI).

00h00: Bolsonaro revoga o Decreto 10.530.


Profissionais da área da saúde, do setor público e privado, reagiram imediatamente ao decreto. Contra e a favor, mesmo sem saber do que se tratava exatamente. Era vago e não mencionava nenhuma forma de venda de Unidades Básicas de Saúde (UBS) ou delegação de atividades-fim. Quando o ministro da Economia, Paulo Guedes, tentou explicar que urubu não era louro, já era tarde.

A desconfiança geral tinha algum sentido, afinal, o PPI foi criado para conduzir a desestatização. Se tem a impressão digital do programa, alguma forma de participação do setor privado há de aparecer. A publicação do decreto veio sem mais explicações, e seguia recomendação do conselho do PPI, criado em 2016, por Temer. Esse novo conselho incorporou as antigas funções do Conselho Nacional da Desestatização, que era responsável pela privatização desde o governo FHC, e foi ampliado para incluir os investimentos em infraestrutura.

Na nova estrutura, foi montada uma secretaria específica para a coordenação desses projetos e avaliação das diversas formas de contratação e prestação de serviços em vários setores, com forte concentração na área de transportes. A Secretaria do PPI já foi vinculada à Casa Civil e agora está na Economia. Seria dela a responsabilidade pelos estudos na área da saúde.

A Secretaria de Desestatização, criada em 2019, veio para dar corpo às promessas de campanha de Guedes. Ligada diretamente ao ministro é voltada à alienação de controle de estatais ou prestadoras de serviços públicos, ou para liquidação de empresas.

O novo organograma tornou o procedimento para desestatização bastante burocrático. Criou-se uma instância a mais. Uma empresa para ser listada para privatização precisa passar pela análise prévia do PPI. De suas resoluções saem tanto a lista de projetos de infraestrutura a serem licitados no âmbito do PPI, assim como empresas a serem vendidas ou liquidadas no âmbito do PND (Plano Nacional de Desenvolvimento). Em tese, estudos técnicos preliminares dão base às suas deliberações.

As duas secretarias cuidam de seus respectivos programas e tratam da desestatização nas suas diversas formas – leilões de controle, diluição de capital, concessões ou novas formas de contratação de parcerias com setor privado. Cabe um mundo de iniciativas para reposicionar o Estado brasileiro na atividade econômica.

Para quem não está acostumado com esses procedimentos e normas, deve parecer muito confuso. O consolo é que para quem está acostumado também não está dando para acompanhar. A governança não é clara. Ninguém sabe quem manda. O desastroso episódio da “Privatização do SUS” é o maior exemplo.

O Decreto 10.530 apenas dava efetividade a uma resolução, a n.º 95, de 2019, do próprio conselho do PPI, que é presidido pelo ministro da Economia, e composto por ministros da Casa Civil e de outras áreas ligadas a projetos em discussão, exatamente para contribuir com o conhecimento específico e coordenar ações dentro do ministério setorial. Apesar disso, Pazuello (ministro da Saúde) foi pego de surpresa em meio à controvérsia da vacina do Doria. Como o ministro confessou nunca ter ouvido falar do SUS, sua participação parece não ser mesmo necessária.

Parcerias com o setor privado na saúde não são novidade, seja na forma de PPPs ou organizações sociais, as OS. Há casos de sucesso e de fracasso. Estudos são relevantes se pretende-se ampliar a experiência de parcerias e melhorar a oferta e a qualidade dos serviços públicos.

No próprio PPI já há um projeto em andamento, incluído em julho, pelo Decreto 10.423, também com base em uma resolução do conselho. Trata-se do Hospital Fêmina, do Grupo Hospitalar Conceição. Não houve grande divulgação e não se viu resistência política nem corporativa.

O Decreto 10.530 tratava de Unidades Básicas de Saúde, uma área muito sensível politicamente. Tudo pedia um anúncio cuidadoso, mostrando para a população a importância do projeto. A sua revogação imediata sepultou o assunto, adiando uma importante discussão que poderia trazer benefícios à sociedade. Simples estudos para conclusão de obras serão abandonados pelo caminho. Era uma esperança para que hospitais passassem a trabalhar com autorização do corpo de bombeiros em dia, ao menos.

Em 2010, o governador Jaques Wagner inaugurou a primeira PPI da saúde, o Hospital do Subúrbio, e, mais recentemente, a prefeitura de BH teve a mesma iniciativa. Fica no ar a dúvida: para dar andamento a novas parcerias era mesmo necessário incluir rede básica no PPI, que tem cara de privatização, e, ainda por cima, sem a participação do Ministério da Saúde e profissionais da área, em plena pandemia?


Bom voto a todos. Eleição municipal é coisa séria. No Rio, estamos perto de nos livrar do pior prefeito de nossa história, a quem dedico: “O sol há de brilhar mais uma vez/Do mal será queimada a serpente/e o amor será eterno novamente”.

*ECONOMISTA E ADVOGADA


Elena Landau: 'Me chame pelo meu nome'

PEC do Amanhã se resume a uma reforma administrativa do ‘poder executivo civil’

Para tentar recuperar algum protagonismo no governo, o Ministério da Economia enviou sua proposta de reforma administrativa (PEC32/2020) e anunciou o início dos estudos para a venda dos Correios. Ainda que a bola esteja começando a rolar, como dizem os otimistas, não veremos resultados concretos no curto prazo. Se será coisa para inglês ver, ou não, só saberemos com o avanço das discussões.

A reforma não se aplica aos funcionários atuais, tendo sido apelidada de “PEC do Amanhã”. É limitada no espaço e no tempo. A privatização continua tímida e a presença do Estado na economia ainda é grande. A combinação dessas duas pautas, desestatizações e reforma do funcionalismo, é frequentemente resumida na expressão reforma do Estado. Trata-se de uma simplificação, porque são ações concentrados no Poder Executivo.

Dalmo de Abreu Dallari, no clássico Teoria Geral do Estado, ensina que o Estado é uno, ainda que possa se subdividir em funções. Os três Poderes são parte de um mesmo organismo, exercidos de forma independente e harmônica. Melhorias no funcionamento do Estado devem incluir ajustes nessas unidades. O objetivo é atender melhor o cidadão, exercendo com eficiência suas atribuições, sejam elas oriundas do Executivo ou dos outros Poderes, inclusive de órgãos autônomos, como Ministério Público e Tribunais de Contas.

A próxima etapa da reforma deve ser a aprovação de leis com indicadores de avaliação de desempenho dos servidores. Portanto, o Legislativo, sempre com enorme resistência a avaliar a si próprio, definirá os critérios de julgamento dos funcionários de outro Poder.

Os conselhos de ética, que deveriam analisar casos de quebra de decoro de deputados e senadores, deixam processos se acumular não importa a gravidade do caso. Ofensa verbal, disseminação de fake news, postagens racistas e rachadinha são práticas que vão sendo normalizadas pela falta de atuação desses conselhos. A desculpa vai do “todo mundo faz” à defesa – distorcida – da liberdade de expressão.

E o caso Flordelis? A deputada acusada de ser mandante do assassinato do marido. Não há justificativa. Diferente sorte teve Chico Rodrigues, pego com dinheiro em suas partes íntimas. Situação tão grotesca que o vídeo do flagrante está trancado no cofre da PF. Na pressão, o senador saiu de licença contrariado. A perda de mandato não está garantida. Mas podemos ficar tranquilos, porque, de todo modo, com seu afastamento, assume o suplente, seu filho.

Acusação de homicídio é novidade, mas dinheiro na cueca não. Em lugar de reais eram US$ 100 mil. Era o assessor de um deputado, que se tornou líder do governo anos depois. Sem limites, a ousadia aumenta. Claro.

Eles apelam para a justiça divina, mas confiam mesmo é na justiça dos homens. Há países em que um homem público, pego com a boca na botija, envergonhado, comete até suicídio, um haraquiri às vezes. Não precisamos exagerar. O abandono da vida pública já seria suficiente. Mas nosso novo normal é ver ex-condenados formarem a base do governo. Algo está fora de ordem.

O Judiciário também anda precisando de ajustes. Decisões monocráticas vêm crescendo de forma significativa. O que deveria ser exceção, virou regra. Muitas são – previsivelmente – revertidas pelo colegiado. Uma liminar do ministro Lewandowski suspendeu o programa de privatização por um ano. A encampação da Linha Amarela pela prefeitura do Rio foi determinada pelo presidente do STJ.

Ambas contrariaram jurisprudência dos próprios tribunais superiores, gerando insegurança jurídica em um país carente de investimentos.

Um traficante de altíssima periculosidade foi posto em liberdade por decisão do ministro Marco Aurélio. André do Rap imediatamente escafedeu-se, o que não deveria ser surpresa para ninguém, inclusive para quem concedeu o habeas corpus. A suspensão dessa liminar, também em decisão individual do presidente do STF, gerou mais uma crise na Corte. Acabou sendo confirmada com voto de todos os outros ministros. Mas era tarde. Enquanto isso, milhares de presos sem condenação apodrecem nas cadeias.

Com Ministério Público e Tribunais de Conta, o Judiciário não será atingido pelas propostas moralizadoras da reforma, como o respeito ao teto remuneratório constitucional, a eliminação dos penduricalhos e férias de 60 dias. Diz o governo que não poderia invadir competência de outros Poderes. Só que a proposta foi encaminhada através de uma emenda para modificar a Constituição, que, por óbvio, trata de todos Poderes. Desculpa esfarrapada.

Sem militares, sem a elite do funcionalismo, sem impacto imediato, a PEC do Amanhã se resume a uma reforma administrativa do “poder executivo civil”. E isso não é uma reforma do Estado.

Em tempo: o Senado aprovou o nome para o TCU, sem que haja vaga aberta no tribunal. Se a moda pega, vai ter nome aprovado para o STF com antecedência. Isso que é eficiência.

*ECONOMISTA E ADVOGADA


Elena Landau: Universo em desencanto

Vontade de apagar a História é característica de governos autoritários como este

Um amigo da família, publicitário da Kibon, era responsável por batizar os novos produtos da marca. Estava com especial dificuldade para o nome de um sorvete de frutas. Inquieto, taciturno, trancado em seu escritório, não queria ouvir um pio das crianças brincando. E nós, amedrontadas, obedecíamos. Até que um dia ele sai eufórico pela casa gritando: “Jajá de coco”, enquanto socava o ar como Pelé.

Essa lembrança me veio à cabeça logo que soube do nome do novo plano do governo, a ser lançado em um Big Bang Day. Imagino um grupo de técnicos reunidos em uma mesa na Esplanada a socar o ar, eufóricos com o grande achado.

O suposto plano é apenas um apanhado de iniciativas dispersas. Mistura assuntos emergenciais com questões estruturais. Não traz respostas de curto prazo para a saída da pandemia, nem projeto de longo prazo de crescimento. Nada de abertura comercial, redução drástica nos gastos tributários, revisão de regime especial do IR, abertura comercial, privatização ampla e reforma administrativa. E um choque educacional, nem pensar. Ainda tem a CPMF, é claro.

Mantém a aparência de um discurso de responsabilidade fiscal, ao mesmo tempo que acena com obras públicas e ampliação de programas como 0 Minha Casa, Minha Vida. Tudo com foco no Nordeste, mesmo sendo o déficit habitacional maior no Sudeste. Populismo é tudo igual. A exploração da tragédia social segue como a principal política econômica do País.

O teto se mantém como ficção. O pacote não estabelece claramente os mecanismos e gatilhos que o preservariam. Mesmo porque o presidente não está preocupado com o assunto. O teto vai morrendo por falência múltipla dos órgãos, em decorrência da doença crônica do clientelismo brasileiro.

Os saudosos do nacional desenvolvimentismo têm a romântica ideia de que gasto não importa, desde que se faça direito. Gastar bem no Brasil, isso sim, seria um novo Big Bang. O vice Mourão acaba de anunciar a compra de um satélite desnecessário. A desculpa é sempre a tal da soberania nacional, que também justifica a permanência de tantas estatais nas mãos do governo. A Valec deve atender a algum critério de soberania que me escapa.

Na reciclagem de ideias, até a capitalização da Eletrobrás, que perambula desde 2017, entrou na lista. Deverá ser modificada no Senado. E aposto que sai piorada. O Tesouro vai acabar pagando por ela em vez de receber. Nem sua privatização, nem a venda antecipada dos contratos da PPSA, vão transformar o modus operandi do Estado brasileiro.

Muda o governo e só muda o cliente. Empresas que interessam aos militares se mantêm intocadas e ainda recebem reforços financeiros. O expediente de capitalização de estatais é outra peneira oficial no teto. No apagar de 2019, foram R$ 10 bilhões em uma tacada. Agora, governo pede mais R$ 500 milhões ao Congresso. Mais uma vez, entre as contempladas, está a Emgepron. Corvetas e fragatas é a pauta prioritária.

O esforço de marketing não resolve. O plano está mais para a teoria do estado estacionário. De todo jeito, o dia do Big Bang foi adiado para a semana que vem ou por 13,7 bilhões de anos. Tendo o ministro da Economia como átomo primordial, talvez melhor não arriscar mesmo. Vai quê.

Bolsonaro parece que não gostou das propostas. Claro, só pensa na reeleição. O que importa é a continuidade do auxílio, o resto é perfumaria. Quer um programa assistencialista de fácil entendimento para oferecer. A diferença de R$ 30 no valor do auxílio, combinado com o fim do abono salarial, inviabilizou o anúncio do plano. Não foi o ambiente pesado no Senado, por conta de mais uma declaração desastrosa de Guedes, nem mesmo o crime de ameaça física do presidente da República a um repórter que fez a pergunta que não vai calar: “Por que sua esposa recebeu R$ 89 mil de Queiroz?”.

Quanto mais confusão na economia, melhor. Muda o foco. STF, trapalhadas dos filhos e a ameaça Queiroz o calaram, mas ele não mudou. Segue firme na agenda: militares, assistencialismo e obscurantismo. Contando com a fidelidade de todos seus ministros, inclusive Guedes, que não está sendo fritado. Apoia o projeto ideológico clientelista e só sai quando não for mais útil para o chefe. Vai taxando livros, coisa de elite, enquanto isenta a linha branca e mantém a Zona Franca.

Bolsonaro reclama da imprensa. Mas não foi cobrado pela passividade da Damares diante dos ataques de fanáticos religiosos a uma criança; pelo envio do quadro de Djanira, “Orixás”, para os porões do Palácio do Planalto nem mesmo pelo uso do avião da FAB por garimpeiros ilegais. A invasão da Cinemateca passou batida. Lá, além dos filmes nacionais, estão as imagens que carregam a memória do nosso País. Correm o risco de se perderem.

A vontade de apagar a História, o desprezo pela cultura, pela liberdade de expressão e pelos direitos humanos andam juntos em governos autoritários como este. Um cidadão que pensa, imagina, cria e desenvolve senso crítico, incomoda muito. Deve dar mesmo vontade de encher a boca de cada um de porrada.

*Economista e advogada


Elena Landau: Rios de tinta

Separei as melhores piores frases de Guedes ditas desde o início da pandemia

Meu querido mestre Sergio Bermudes conseguiu vencer o covid-19 depois de meses de muita luta. Grande notícia. Resolvi estudar Direito depois dos 40. Teria cinco anos de curso pela frente e estava impaciente para aprender. Pedi uma lista de leitura a um jovem professor. Com ar blasé ele respondeu: “melhor esperar”. Tudo tem seu tempo. Quase desisti do curso ali.

Um amigo me sugeriu conversar com Bermudes. Eu só o conhecia de nome por conta de uma vitória emblemática durante a ditadura. Muito jovem, foi o autor da petição inicial do caso Vladimir Herzog. Propôs uma ação civil pedindo que o Judiciário reconhecesse a responsabilidade do Estado pela morte do jornalista. Pela primeira vez, o Estado reconhecia que o Estado usava a tortura como instrumento.

Tomei coragem e pedi uma reunião, sem muitas esperanças. Me recebeu em sua casa para um delicioso almoço, em todos os sentidos.

Após quatro horas, saí de lá não só com uma lista de livros, mas com o convite para usar sua famosa biblioteca no escritório.

No antigo prédio da Marechal Câmara não havia espaço para me acomodar, nem mesmo uma mesa disponível. Sergio cedeu o sofá de sua sala e, na sua ausência, sua própria mesa. Isso foi em abril de 2002. Nesses 18 anos, fui estagiária, consultora para assuntos econômicos, sócia, e, acima de tudo, ele foi meu confidente, amigo e parceiro de dança.

Ouvindo suas teses nas discussões de casos com meus colegas aprendi muito mais que nos cinco anos de faculdade. Nos almoços, na disputada mesa da copa, as histórias, as piadas e a poesia são a sua marca, nada de trabalho. Me lembro dele declamando A Carolina, de Machado de Assis, em uma de nossas reuniões. Foi o primeiro de vários poemas e sonetos por ele recitados. Tem uma memória melhor do que elefante.

Nestes três meses que esteve lutando pela vida, Sergio não presenciou o criminoso tratamento deste governo com os infectados pelo vírus. Não ouviu o presidente debochar da gravidade da epidemia. Perdeu a demissão de dois ministros da Saúde e a entrega do cargo, de forma interina, a mais um dos militares, entre os 3 mil, que compõem este governo. Quando voltar a ler seu jornal diário vai ver que o número de mortos consegue lotar um Maracanã. Vai ficar surpreso com o fato que ainda não temos um ministro da Saúde e que as estatísticas confiáveis agora são aquelas divulgadas pelo pool de veículos da imprensa. Já imagino ele me perguntando: “o piloto sumiu?” Sumiu, está alimentando emas no palácio.

Sergio adora comentar as notícias do dia. Nos almoços, sempre vem com as inevitáveis perguntas sobre futebol, especialmente quando o Botafogo perde, e a economia do país: “e o dólar?” “Essa privatização da Eletrobrás sai mesmo?” E, em uma piada interna, vai perguntar o que estou achando do Pacheco, o personagem do Eça de Queiroz que é usado entre nós para identificar uns economistas que se acham.

Fui resgatar as frases de Guedes ditas desde o início da pandemia para contar a ele as peripécias de um Pacheco. Comecei com a “com 3,4 ou 5 bilhões a gente aniquila o vírus e os “40 milhões de testes semanais que o amigo inglês garantiu que vão chegar na semana que vem”, junto com a reforma tributária.

Nessa pesquisa das melhores piores frases de Guedes, encontrei uma dita ainda no início da campanha:

“Bolsonaro reconheceu que não entendia nada de economia (…) Queria um cara que estivesse ‘na lua’ e eu, por acaso, estava na lua”. Profética.

Sergio é o avesso da superficialidade. Mesmo sendo o grande processualista que é, e sabendo os Códigos de cor, continua, a cada caso, a buscar na lei a confirmação da estratégia escolhida para atender ao cliente. Filólogo, tem o Houaiss ao alcance da mão. Participar dos seus ditados para uma petição é um privilégio. Das teses jurídicas ao correto significado de cada palavra, tudo se aprende.

As peças do escritório tem sua marca pessoal. Usa títulos que levam o leitor direto à tese usada para explicar o mérito do pedido.

Nada de receita de livro-texto, como “Das Preliminares” ou “Do Pedido”. Os estagiários do escritório sofrem nas mãos de professores caretas. Eu quase fui reprovada por usar na prova seu estilo.

Sergio não gosta de petições longas e uma de suas expressões que mais me diverte é “Dispensem-se rios de tinta para demonstrar a nitidez da situação”. Descrever de forma concisa uma questão complexa é difícil, mas torna temas áridos em leitura acessível. Não vê necessidade de mostrar sua erudição mesmo tendo lido centenas de livros, no original.

Para escrever tudo que Sergio contribuiu para o Direito no país, e, especialmente, para minha vida, teria que gastar um rio Amazonas.

*Economista e advogada


Elena Landau: O Joelho Juvenal

'Escalavrada' é o adjetivo que define a democracia que vivemos no País hoje

A escatológica reunião ministerial já foi dissecada por muita gente, mas, mesmo assim, volto a ela. Não se pode banalizar a gravidade do que foi dito ali. Não é um novo normal. É anormal e perigoso. O que se viu foi um coro, quase unânime, em defesa de um golpe institucional. Ainda bem que veio a público.

Além do conteúdo, a forma de expressão das ideias foi chocante. Nem nas arquibancadas do Maracanã, que sempre frequentei, eu vi algo parecido. A ministra Damares, tão preocupada com obras do diabo, não enxergou o capeta sentado bem à sua frente.

Muita coisa foi escancarada nesse encontro. Ficou patente a urgência da aprovação da autonomia do Banco Central. A presença do presidente do BC, tanto no ato de desagravo a Moro, como nessa reunião, na qual fez coro com os descontentes com a mídia, é inaceitável. A independência que Roberto Campos Neto tem demonstrado na condução da política monetária pode ser questionada pela sua participação na vida política. Não é bom.

O show dos liberais de pau oco não passou despercebido. Guedes revelou o que pensa de empresas estatais e privatização. Se não puder servir a meus propósitos políticos, tem de vender essa droga logo, disse ele sobre Banco do Brasil. Se não me serve, vende. Nenhum liberal advoga em favor da desestatização em causa própria. Deve ser por isso que não se viu nenhuma reação sua à entrega do Banco do Nordeste ao Centrão. Foi, enfim, privatizado por Valdemar da Costa Neto.

A inveja do poder de Pedro Guimarães era evidente. Onyx deu de presente à Caixa o monopólio na distribuição dos R$ 600. Sendo de capital fechado, acionistas minoritários não atrapalham, é o que pensam os liberais deste governo. Governança, cuidado com a coisa pública e transparência só servem para atrapalhar. Qualquer semelhança com os governos intervencionistas não é mera coincidência.

Com essa proteção legal, a Caixa aproveitou para expandir sua atuação no segmento digital. Recusou a ajuda de instituições financeiras, mesmo diante das filas nas suas agências. Povo passando necessidade é apenas um pequeno sacrifício para que o banco avance na área das fintechs. De quebra, esse monopólio vinculou o auxílio ao governo. Já vimos esse filme antes. O populismo não tem ideologia.

Para liberais do Bolsonaro, competição só é boa no terreno alheio. Esse governo desmoraliza a desestatização. Não querem nem sabem fazer. E quando a defendem, é pelo motivo errado.

Temos um ministro Nem Nem: nem abertura comercial, nem reforma tributária, nem reforma administrativa, nem privatizações. Nem humanidade.

Em nenhum momento da reunião houve referência aos milhares de mortos ou aos milhões de desempregados, que sofrem com uma total falta de perspectiva, enquanto o governo amplia os estragos sobre a economia e saúde com seu combate terraplanista à quarentena. Em ato falho, o ministro da Economia se refere ao banco de desenvolvimento como “BNDE”, sem a letra S, de social. E, sem enrubescer, apoia os desatinos autoritários de seu colega da Educação. “Ô presidente, esses valores e esses princípios e o alerta aí do Weintraub é válido também, como seu … Nós tamos aqui por esses valores.”

É a eterna cantilena dos golpistas incompetentes; sempre precisam de mais tempo e liberdade para implantar seu projeto. A culpa é sempre dos outros.

Após a divulgação da queda do PIB no 1.º trimestre, Guedes pediu solidariedade e cooperação, palavras que soam falsas em sua boca. Pede a união da sociedade, não para obedecer ao que recomendam médicos e cientistas, mas para tentar salvar sua biografia, já marcada por promessas e devaneios não cumpridos. Mas podemos ficar tranquilos, porque a recuperação será em V, ainda que um V meio torto, como disse o ministro.

Ninguém está no governo Bolsonaro por acaso. Não surpreende que Salles, Weintraub e Damares não tenham sido demitidos. Surpreende que os demais presentes não tenham pedido demissão. Todos se tornaram coniventes com um protótipo de ditador que estimula a desobediência civil de uma população armada.

Tenho pensado em adjetivos para qualificar o que se passa neste momento no País. O “inacreditável” não dá mais conta.

Lia muito com meu filho quando ele era criança. Sua coleção preferida era uma série de Ziraldo, Corpim, que conta histórias de partes do corpo de forma divertida. O favorito dele era o Joelho Juvenal. A razão era menos a anatomia e mais o adjetivo usado para ilustrar as artimanhas do menino que deixava o joelho todo escalavrado. Meu filho adorava a palavra. Líamos a história repetidas vezes e ele gargalhando com o “escalavrado”.

Hoje, lendo com o neto, lembrei de Juvenal. E, imediatamente, me veio a imagem de uma democracia escalavrada. No dicionário é “o mesmo que: arranhada, golpeada, machucada”. Encontrei meu adjetivo.

*Economista e advogada