Míriam Leitão: O exagero que derruba a tese
24 de março de 2019Míriam Leitão,O Globo,POLÍTICA HOJEPaulo Guedes
Paulo Guedes tem sólida formação intelectual, mas recorre a exageros para defender suas teses e aceita ideias que não caem bem a um liberal
O ministro Paulo Guedes seria mais convincente se não exagerasse nos números, cálculos e versões para confirmar seu ponto. Ele tem argumentos fortes que independem de distorção superlativa. Quando for à Câmara falar da reforma, seria bom que ele evitasse o que fez na sua eloquente e fluente fala nos Estados Unidos. Guedes disse em Washington que o Brasil foi governado 30 anos pela esquerda. Foram 13, na verdade. Os 30 anos incluiriam até José Sarney, Collor e Temer. Ele diz que nenhum presidente teve coragem de enfrentar a crise fiscal, mas o país teve 16 anos de superávit primário e tem a Lei de Responsabilidade Fiscal.
O fato de o Brasil estar desde 2014 com déficit primário é grave. Torçamos para que ele nos leve de volta ao superávit. Se ele quiser dizer que o presidente Bolsonaro terá a coragem de enfrentar o déficit, seria ótimo se o fizesse em bom português. Não precisa usar uma linguagem chula que transforma coragem em sinônimo de parte da anatomia sexual masculina. Isso não pegou bem nos Estados Unidos, uma sociedade aberta, na qual as mulheres têm cada vez mais poder, inclusive no mundo corporativo. Isso não pega bem no Brasil.
O ministro Paulo Guedes está correto em dizer que durante as últimas décadas o total do gasto público como percentual do PIB cresceu ano após ano. A democracia atendeu às demandas sociais represadas, mas também errou ao distribuir benesses a grupos corporativistas. A dívida aumentou no governo de Fernando Henrique porque ele colocou na contabilidade explícita o que durante a ditadura estava fora das estatísticas. Eram os chamados esqueletos. Os números têm história.
Todos os governos fizeram mudanças na Previdência. A reforma do ex-presidente Lula reduziu alguns privilégios no setor público, como o fim da paridade e integralidade para servidor civil. Agora será a vez de Jair Bolsonaro. Ele não é o primeiro e, ao contrário do que o ministro Guedes disse nos Estados Unidos, a reforma não acabará com privilégios. Vai de novo apenas reduzi-los em alguns pontos, e até elevar, no caso dos militares.
A insistência em agradar o chefe e afinar o discurso com a ala mais radical levou o ministro no discurso da Câmara Americana de Comércio a fazer seguidas críticas à mídia. Colocou-a como exemplo dos perdedores que, segundo ele, divulgam uma imagem falsa do presidente. E disse que a mídia “se encantou com o establishment”. Equívoco. Quem cobriu sistemática e intensamente os casos de corrupção no Brasil foram os grandes órgãos de imprensa. E o fizeram sem poupar qualquer lado envolvido. O processo virtuoso de enfrentamento da corrupção não é obra do presidente Bolsonaro, mas sim do Ministério Público, Polícia Federal e Justiça, e a eles a mídia brasileira, forte e independente, deu total cobertura ampliando o alcance das informações.
Ao tecer loas aos Estados Unidos, Paulo Guedes elogiou a abertura do comércio americano. Os Estados Unidos são um país de economia aberta, um pouco menos agora com o presidente Trump. Da perspectiva do Brasil, essa abertura tem falhas. Trump impôs sobretaxa e cotas às exportações brasileiras de produtos siderúrgicos. Depois, criou a possibilidade de contornar o bloqueio, mas houve aumento na burocracia. Eles subsidiam produtos agrícolas fortemente, como a soja, e isso restringe a entrada do Brasil em terceiros mercados.
Exemplo de exagero nefasto foi proclamar Olavo de Carvalho o “líder da revolução”. Não há uma revolução em curso. Não é bom para o próprio ministro perfilar-se no grupo dos aduladores de Olavo. Não é justo com ele mesmo, Guedes, que tem autonomia intelectual. Não faz bem entrar numa briga intestina, da qual deveria guardar distância. Se é para ter um lado, é o do grupo mais racional.
Na cena política reescrita por Paulo Guedes, está havendo no Brasil uma união perfeita de liberais e conservadores para derrotar os tais “30 anos” de esquerda no Brasil. Um liberal como ele é, de convicções firmes e antiga coerência, não pode estar confortável com um discurso tão iliberal quanto o que impera em certas áreas do governo, com o tom de caça aos hereges em diversas áreas, a repressão a professores, as teses retrógradas sobre mulheres e até a censura à educação sexual infantil. Um liberal de boa cepa não convive com tanto obscurantismo e isso ele pode conferir se revisitar os clássicos que formaram seu pensamento.
Elio Gaspari: Está no ar a barafunda Bolsonaro
24 de março de 2019Bolsonaro,Folha de S. Paulo,POLÍTICA HOJE,elio gasparigoverno bolsonaro
Governo enriquece Lei de Murphy: se algo pode dar certo, trabalha para que dê errado
Jair Bolsonaro superou as marcas de impopularidade de seus antecessores no início do primeiro mandato. Com viés de piora, esse desempenho deve-se em parte a um processo de autocombustão, mas nem tudo pode ser atribuído a Bolsonaro. Ele teve a ajuda de ministros civis e militares.
Resolveram fazer uma reforma da Previdência. Poderiam ter seguido a sugestão do economista Paulo Tafner, fatiando-a. Mandariam primeiro o corte dos privilégios dos marajás e depois cuidariam dos miseráveis. Resolveram juntar as duas brigas. Vá lá.
É elementar que a profissão e a Previdência dos militares nada têm a ver com as dos servidores civis. Poderiam ter separado as duas questões. Não só juntaram os debates, como decidiram botar no combo um projeto de reestruturação da carreira militar, coisa que não tem nada a ver com a Previdência.
Todas essas decisões embaralham o debate e dificultam a aprovação de algo parecido com o projeto original do governo. Como alguma reforma haverá de ser aprovada sempre se poderá cantar vitória. Afinal, Fernando Henrique Cardoso e Lula também fizeram reformas da Previdência. Nenhum deles atritou-se com o presidente da Câmara.
A barafunda vai além da reforma. O ministro Sergio Moro resolveu peitar Rodrigo Maia com mais uma de suas jeremíadas. Tomou umtranco e ficou em paz. Durante a visita de Bolsonaro a Washington, o ministro das Relações Exteriores foi humilhado, um filho do presidente disse que os brasileiros que vivem nos Estados Unidos sem documentação são “vergonha nossa” e o condestável da Economia informou que gosta de Coca-Cola e da Disneylândia. (Quem passava dias sozinho na Disney era o professor Mário Henrique Simonsen, mas ele nunca anunciou isso a uma plateia de empresários.)
Se tudo isso fosse pouco, Bolsonaro disse na Casa Branca que acredita “piamente” na reeleição de Donald Trump. Sentiu cheiro de banana e foi procurar a casca para escorregar. Os dois presidentes que mais ajudaram a ditadura brasileira foram Lyndon Johnson e Richard Nixon. Um encantou-se com o marechal Costa e Silva, o outro com Emilio Médici. Ambos foram eleitos com memoráveis maiorias e acabaram naufragando. Amaldiçoado, Johnson desistiu da reeleição. Acuado, Nixon renunciou. Os presidentes brasileiros não disseram coisa parecida. Trump nunca teve a força de qualquer um desses antecessores.
A Lei de Murphy diz que, se uma coisa pode dar errado, errado ela dará. O governo do capitão parece disposto a enriquecê-la: Se uma coisa pode dar certo, trabalham para que dê errado.
BRETAS PRENDEU TEMER PORQUE QUIS
Lula foi para a carceragem de Curitiba depois de ter sido indiciado, denunciado e condenado em duas instâncias. Temer foi encarcerado sem ter sido ouvido, indiciado, denunciado ou condenado. Tudo bem, o juiz Marcelo Bretas prendeu-o preventivamente e decisão judicial deve ser cumprida.
Na sua decisão o doutor Bretas reconheceu que Temer não foi condenado e ofereceu uma “análise ainda superficial” dos crimes que o ex-presidente teria cometido.
Cuidando do “superficial”, ocupou 40 páginas de sua decisão. Sua análise faz sentido, e muito, mas é apenas uma opinião. Justificando a prisão preventiva de Temer, Bretas não escreveu uma só linha.
Justificou-a genericamente, quando associou-a à de outros integrantes da “suposta organização criminosa”, e nisso ocupou três páginas. Nelas, justificou as preventivas porque “no atual estágio de modernidade, bastam um telefonema ou uma mensagem instantânea” para ocultar “grandes somas de dinheiro”. (São Paulo tem rede de telefonia desde o início do século passado.)
Mais: o coronel Lima, faz-tudo de Temer, cuidava de apagar rastros e documentos no próprio escritório. (Bretas não fez qualquer referência à tentativa de depósito de R$ 20 milhões em dinheiro vivo na conta do coronel.)
Mesmo admitindo-se que tudo o que Bretas atribuiu a Temer na sua “análise ainda superficial” seja apenas parte de uma horrível verdade, as razões que citou para encarcerá-lo preventivamente são ralas.
O Brasil teve dois ex-presidentes presos. Um porque foi condenado. O outro não foi ouvido, indiciado, denunciado ou sentenciado. Os tempos estranhos ficaram mais estranhos.
EREMILDO, O IDIOTA
Eremildo é um idiota e acredita em tudo o que dizem os presos, a polícia e os procuradores, só não entende como alguém entrou numa agência bancária para depositar R$ 20 milhões em dinheiro vivo.
Alguém deveria carregar duas malas, cada uma pesando 25 quilos.
O cretino acha que existe um vídeo registrando a passagem desse estranho personagem pelo banco.
O Ministério Público informou que esse fato “ainda precisa ser investigado e apurado”.
RICO, COM SARAMPO
O governo propagou a ideia de que trocou a condição de pedinte na Organização Mundial do Comércio por um assento no clube dos ricos tornando-se eventual membro da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, a OCDE.
Não é bem assim, porque a China está na mesma gaveta que o Brasil na OMC e tanto o México como a Grécia são membros da OCDE.
No mesmo dia em que o governo festejou essa possível baldeação, a Organização Mundial da Saúde tirou o Brasil da lista de países que erradicaram o sarampo.
Quando o delegado brasileiro for a uma reunião da OCDE e perceber que o sueco não chega perto dele, saberá por quê.
BASTA!
Nunca é demais lembrar como funcionava o tribunal de cassações da ditadura. Reuniam-se os ministros que integravam o Conselho de Segurança Nacional e um coronel lia a biografia do acusado.
Em 1969, o conselho estava reunido e o oficial começou e ler os dados pessoais de uma vítima: “Simão da Cunha, mineiro, bacharel...” O general Orlando Geisel interrompeu-o: “Basta!”
Seguiu-se uma grande gargalhada. Cunha foi cassado sem que fosse lida a acusação.
BOA NOTÍCIA
Uma dezena de fundações privadas cacifam o programa Ensina Brasil, que seleciona jovens formados em universidades públicas e privadas interessados em trabalhar por dois anos como professores nas redes escolares do país. Eles já atuam em alguns municípios de Pernambuco, Espírito Santo, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Programas semelhantes existem em 45 países.
A sabedoria convencional ensina que poucos recém-formados em seja lá o que for topariam trabalhar dois anos como professor. Pois neste ano o Ensina Brasil teve 10 mil candidatos para 123 vagas. Depois de um processo seletivo, eles passam por quatro semanas de curso presencial em São Paulo e assistem a 2.000 horas de aulas a distância. A ideia do projeto é achar gente interessada em melhorar a educação no país, formando lideranças nessa área.
Os jovens que entram no Ensina Brasil recebem os salários da escola e uma pequena ajuda do programa.
Como nem tudo são flores, há estados onde os sindicatos de professores não querem nem ouvir falar no assunto.
*Elio Gaspari, jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada".
Ascânio Seleme: O homem mais odiado do Brasil
24 de março de 2019Michel Temer,O Globo,POLÍTICA HOJEascânio seleme
O título um dia foi de Paulo Maluf, no Colégio Eleitoral de 1985, quando ele disputou a Presidência com Tancredo Neves, que era o símbolo da redemocratização brasileira. Depois, foi de Fernando Collor de Mello, no auge da CPI que resultou na sua cassação por corrupção. Antes, Collor já havia experimentado o ódio nacional ao congelar todas as contas bancárias dos brasileiros. Mais recentemente, coube ao deputado Eduardo Cunha o troféu de mais odiado do país. Ele era unanimidade nacional. Sua cassação e posterior prisão foram festejadas de Norte a Sul.
Durante todo o ano passado e boa parte do ano anterior, o homem mais odiado do Brasil foi o então presidente Michel Temer. O “Fora, Temer!”, que nasceu de uma contestação petista ao homem que conspirou contra a presidente Dilma e ajudou a arregimentar os votos necessários para o seu impeachment, acabou se espalhando e viralizou em todos os setores da sociedade. Ao deixar o governo, Temer tinha a aprovação de apenas 7% dos brasileiros. O que significa que 93% rejeitavam o presidente.
Sua prisão na quinta-feira passada pode ter servido para atender à gana que se tinha em Temer, mas não deixou o país melhor ou aliviado. O país não melhora com a prisão de ex-presidentes. Não melhorou com a prisão de Lula. Não vai melhorar agora. Tampouco dá para respirar aliviado, porque essa não foi a última mazela da nação. O Brasil está repleto de mazelas. Inclusive algumas novas, recém-incorporadas ao cardápio nacional. Mas claro que a sensação de satisfação com instituições como a Lava-Jato aumenta com esses episódios.
Há muitos outros homens públicos que atraem o ódio dos brasileiros. Alguns, como o senador Renan Calheiros e o deputado Aécio Neves, entram na mesma categoria de Maluf, Collor e Temer. E Lula. Esses dois são odiados porque respondem a inúmeros inquéritos por corrupção que não caminham porque param no Supremo Tribunal Federal. O brasileiro se sente afrontado com impunidade, e os dois parlamentares são ícones da impunidade. Sérgio Cabral passou da fase do ódio. As pessoas o enxergam como uma piada ridícula, tamanha a sua volúpia por dinheiro público. E, depois, porque ele está preso e vai mofar na prisão.
Como eles, algumas instituições também atraem a ira do brasileiro. Câmara e Senado, em primeiro lugar. O STF em seguida. O ódio à política é sócia do desamor pela corrupção, por isso o Congresso é tão atacado em todos os seus flancos. O mesmo pode-se dizer sobre o STF. As pessoas esperneiam e atacam o Supremo sempre que ele decide em favor daquilo que os brasileiros enxergam como relaxamento na caça aos corruptos.
Foi o que se deu na semana passada, quando o STF decidiu que caixa dois é crime eleitoral e deve ser julgado pela Justiça Eleitoral. A lógica que levou a esta decisão nem vem ao caso. O fato é que, aos olhos da maioria, seis dos 11 ministros (cinco foram contra) votaram para paralisara Lava-Jato, paralisaras investigações dos casos de corrupção que levaram dois ex-presidentes para a cadeia. Por isso, muitos hoje odeiam o STF como odeiam o Congresso.
O problema, ou o perigo, é quando o ódio à instituição se fulaniza. Hoje, em larga medida, as pessoas personificam seu ódio ao Supremo nas figuras dos ministros Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli. Gilmar, sobretudo. E o assédio que esses juízes sofrem há muito tempo passou do limite tolerável. Os ministros não são criminosos como os presos da Lava-Jato. Por isso, Toffoli instaurou inquérito para investigar a origem dos ataques ao STF. Quer corretamente proteger a integridade física dos ministros. Das demais integridades, cada um que cuide das suas.
Bernardo Mello Franco: ‘Mito’ liberal era fake news
24 de março de 2019Bolsonaro,O Globo,POLÍTICA HOJEbernardo mello franco
Proposta de reforma para os militares mostra que Bolsonaro continua o mesmo. Sua conversão ao liberalismo era conversa de campanha
A campanha de 2018 fabricou um novo Jair Bolsonaro. Ele se dizia convertido ao liberalismo, embora admitisse não entender nada de economia. Ao ser questionado sobre algum tema concreto, escapava com um gracejo: “Vou perguntar lá no Posto Ipiranga”. Era uma referência a Paulo Guedes, anunciado como futuro ministro da Fazenda.
O aval do banqueiro bastou para convencer o mercado. Com os parceiros habituais em apuros, empresários e investidores arrastaram todas as fichas para a candidatura do “Mito”. Agora eles começam a se perguntar se fizeram a aposta certa.
Nos últimos dias, Bolsonaro indicou que não está tão empenhado em entregar o que prometeu. “Eu, no fundo, não gostaria de fazer a reforma da Previdência”, disse, na quinta-feira. Ele acrescentou que seria “irresponsável” não mexer nas aposentadorias, mas a primeira frase foi a que soou mais sincera.
Não é só com palavras que o presidente mostra a que (não) veio.
Na quarta-feira, ele levou ao Congresso um projeto de reforma para as Forças Armadas. Em vez de cortar privilégios, incluiu benesses como o reajuste dos soldos e o aumento da gratificação no fim da carreira. Até o líder do PSL, Delegado Waldir, reclamou do truque.
“Não tem como explicar esse tratamento diferenciado”, resumiu. O episódio mostra que Bolsonaro continua a pensar como chefe do sindicato dos militares. Sua versão liberal era fake news de campanha, assim como o kit gay, a ameaça comunista e a conspiração para fraudar as urnas eletrônicas. Na viagem ao Chile, o presidente deu novos tiros contra a reforma.
Questionado sobre a prisão de Michel Temer, culpou os “acordos políticos em nome da governabilidade”. Os parlamentares entenderam o recado: ele não está disposto a fazer concessões para mexer nas aposentadorias.
Com o ambiente político em chamas, o segundo-filho Carlos Bolsonaro resolveu jogar mais gasolina na fogueira. “Por que o presidente da Câmara está tão nervoso?”, provocou nas redes sociais, referindo-se à prisão de Moreira Franco.
O ex-ministro é sogro de Rodrigo Maia, que passou uma descompostura no chefe do clã:
“Ele precisa ter mais tempo pra cuidar da Previdência e menos tempo cuidando do Twitter”. Há duas semanas, o ministro Guedes disse que só faltariam 48 votos para aprovar a reforma. A declaração irritou líderes partidários, que traçam um cenário muito mais complicado. A paciência do mercado também começou a se esgotar, mas quem comprou o “Mito” em 2018 sabia estar diante de um papel de alto risco.
Merval Pereira: Sobre o Supremo
24 de março de 2019Lava Jato,O Globo,Merval Pereira,POLÍTICA HOJEsupremo
A decisão de considerar a lavagem de dinheiro crime imprescritível tornou possível a prisão de Paulo Maluf
A disputa de interpretações de teorias jurídicas vem dando a tônica nos debates do Supremo Tribunal Federal. A denominação informal de cada um dos grupos mostra bem os parâmetros desta disputa. Os “garantistas” sustentam que qualquer decisão a ser tomada deve levar em conta a literalidade da lei para garantir os direitos fundamentais dos cidadãos.
Os “iluministas” ou “progressistas” buscam contornar eventuais obstáculos impostos pela literalidade com interpretações do texto legal, em busca da intenção do legislador para ter uma Justiça mais célere e eficiente. Assim, a jurisprudência atual é permitir a prisão em segunda instância, mesmo que a Constituição diga que ninguém pode ser considerado culpado até o trânsito em julgado de seu processo.
Para tanto, considera-se que o processo se encerra na segunda instância, e os recursos aos tribunais superiores (STJ e STF) podem continuar sendo feitos depois da prisão, pois são de caráter extraordinário. A decisão de considerar a lavagem de dinheiro crime imprescritível tornou possível a prisão de Paulo Maluf. Até hoje há a discussão sobre se lavagem de dinheiro é um crime instantâneo, que se encerra na sua consumação, ou se é permanente, como decidiu a Primeira Turma do STF.
O relator foi o ministro Edson Fachin, que levantou a tese, e não o ministro Luís Roberto Barroso, como escrevi aqui. Barroso votou a favor do relator juntamente com a ministra Rosa Weber e o ministro Fux, formando a maioria. O ministro Marco Aurélio, mesmo tendo votado a favor da prescrição, acompanhou a maioria no mérito.
Barroso é tido como expoente da ala “iluminista” do Supremo, mas ele recusa esse rótulo. “Sou a favor de um direito penal moderado. Porém, sério e igualitário. A queixa que existe é dos advogados criminalistas —que têm que fazê-la, por dever de ofício —e dos parceiros da corrupção, que não se conformam que o Direito Penal que valia para menino pego com maconha ou para o sem-teto que furtava desodorante no supermercado se aplique também a corruptos e criminosos de colarinho branco”. O ministro Luís Roberto Barroso afirma que “o Direito não ficou mais duro; ficou mais igualitário”. Para ele, “o garantismo”, em Direito, significa que o acusado tem o direito de saber do que está sendo acusado, o direito de se defender, de produzir provas, de ser julgado por um juiz imparcial e de ter acesso a um segundo grau de jurisdição”. Ele considera que está havendo uma distorção do conceito, “um garantismo à brasileira”, que seria um direito adquirido à impunidade, a um processo que não funciona, que tem recursos infindáveis, não acaba e sempre gera prescrição”.
No voto no caso Maluf, após concluir a parte técnica da argumentação, Barroso afirmou: “(...) considero que o rotineiro desvio de dinheiro público, seja para fins eleitorais, seja para o próprio bolso, é uma das maldições da República. (...) Este é um dos fatores que têm nos mantido atrasados e aquém do nosso destino, porque dinheiro público que é desviado é dinheiro que não vai para a educação, não vai para a saúde, não vai para melhorar estradas”. Ele acha que “a histórica condescendência que se tem tido no Brasil em relação a esse tipo de delinquência, aparentemente, está chegando ao fim. Punir a apropriação privada de recursos públicos é um marco na refundação do país”.
Clóvis Rossi: Contra o ódio, é preciso conversar
24 de março de 2019clovis rossi,floha de s. paulo,Economia,Europa,França,MacronTemas & Debates
Macron mostrou o caminho; será seguido aqui?
Duas iniciativas do presidente da França, Emmanuel Macron, talvez devessem ser replicadas no Brasil.
A primeira foi a convocação de um grande debate nacional: durante dois meses, desde meados de janeiro, se realizaram mais de 10 mil reuniões em todo o país. Macron participou de uma dúzia delas.
Objetivo: dar voz aos franceses, para entender a insatisfação popular. Que há insatisfação, é só ver a quantidade de gente que participa, todos os sábados, das manifestações dos "coletes amarelos".
A propósito: não vale confundir os protestos, quando pacíficos, com o vandalismo promovido pelos chamados "casseurs", que saem quebrando o que encontram pela frente. Não é civilizado.
Segunda iniciativa de Macron, levada a cabo na segunda-feira (18) e que avançou pela madrugada de terça (19): chamar ao Palácio do Eliseu 64 acadêmicos (filósofos, historiadores, sociólogos, economistas, cientistas), como se fosse o epílogo do grande debate nacional.
Por que acho que são iniciativas que deveriam ser imitadas?
Primeiro, porque o Brasil precisa conversar. O que há hoje é um monólogo dentro de cada tribo, não uma conversação entre uma tribo e outra (ou entre diferentes tribos).
Segundo, porque há no Brasil uma situação razoavelmente parecida com a que o filósofo Pascal Bruckner descreveu para Macron sobre a França. Lamentou, no Eliseu, "esta anarquia crescente, que faz da França um país em um estado de quase guerra civil latente, na qual o ódio de todos contra cada um parece triunfar".
Que há uma guerra civil mais que latente no Brasil é óbvio, embora de características diferentes. Que há ódio no ar (e nas redes sociais) é igualmente evidente.
Nessas condições, o brasileiro é hoje mais infeliz que nunca, a julgar pelo Relatório Mundial de Felicidade, divulgado há uma semana.
A média brasileira para 2018 era de 6,1, a mais baixa desde que se iniciou esse tipo de levantamento, em 2006. O país ficou no 32º lugar entre 156 países.
Para comparação: a França ficou em 24º, por mais que os franceses sejam tidos como resmungões o tempo todo, ao passo que os brasileiros são considerados risonhos.
Se a França, menos infeliz que o Brasil, se dispõe a conversar e se seu presidente chama acadêmicos para completar a conversa, não há razão lógica para que o Brasil se tranque em bolhas que não se comunicam.
Afinal, a eleição de 2018 revelou dois colossais blocos: os 57 milhões que votaram por Jair Bolsonaro e os 89 milhões que preferiram ou Fernando Haddad ou o voto branco/nulo ou nem sequer compareceram para votar.
Como parece altamente improvável que um bloco ou o outro seja subitamente tragado pela terra e, em consequência, o outro possa fazer o que bem entender, ou se decidem a conversar ou o ódio de todos contra cada um vai mesmo triunfar, como teme Bruckner no caso da França.
Lá como cá, a iniciativa tem que partir do chefe de governo. O presidente Jair Bolsonaro precisa ser convencido de que não adianta ficar conversando só com os seus.
Vale o que escreveu na sexta-feira (22) Brian Winter, editor-chefe de Americas Quarterly, após viagem ao Brasil e conversas com inúmeras pessoas que podem não ter votado por Bolsonaro, mas lhe disseram que "o país não pode aguentar outro fracasso".
Cultivar o ódio é namorar com o fracasso.
Ricardo Noblat: Para esquecer o passado
24 de março de 2019PPS,cidadania,Blog do Noblat,POLÍTICA HOJEveja
Tempos estranhos
“Cidadania”. É como se chamará doravante o Partido Popular Socialista (PPS), nome fantasia do antigo Partido Comunista Brasileiro (PCB) fundado em 1922.
Houve quem não gostasse do nome, e sugerisse que melhor seria chamá-lo de Partido da Cidadania.
A sugestão foi derrotada porque então a sigla do partido (PC) remeteria à agremiação original, e nestes tempos estranhos…
“Cidadania”, pois. Ou Cida.
A falência do PMDB
Frouxa reação
O ex-presidente José Sarney estava em sua casa no Lago Sul de Brasília quando soube da prisão do ex-presidente Michel Temer na manhã da última quinta-feira. À tarde, leu a nota onde seu partido, o PMDB, protestava contra a prisão. Considerou-a muito fraca.
Então telefonou para o ex-senador Romero Jucá (RR), presidente do partido, e recomendou que convocasse uma reunião de emergência da Executiva do PMDB e que divulgasse depois uma nota mais dura.
Desligou depois de ouvir Jucá dizer que para fazer isso não tinha confiança na maioria dos 21 membros da Executiva.
Cláudio de Oliveira: Por que Astrojildo e Cristiano foram expulsos do PCB?
24 de março de 2019PPS,Astrojildo Pereira,POLÍTICA HOJEFundação Astrojildo Pereira (FAP)
O jornalista fluminense Astrojildo Pereira e o advogado pernambucano Cristiano Cordeiro foram dois dos nove fundadores, em 25 de março de 1922, do antigo PCB, o primeiro partido da esquerda brasileira a se organizar nacionalmente. Ambos foram expulsos do partido em 1930 e 1947, respectivamente.
Astrojildo Pereira (1890-1965)
Astrojildo foi o primeiro líder do PCB até 1930, quando o partido sofreu intervenção da Internacional Comunista (IC), sediada em Moscou e comandada pelos partidários de Josef Stálin, o ditador da URSS.
Astrojildo foi afastado da secretaria-geral e depois expulso do PCB acusado de “desvio direitista de caráter menchevique martovista”.
Naquela altura, a IC recusava qualquer diálogo com liberal-democratas e passara a considerar a socialdemocracia como “irmã gêmea do fascismo”, inimigo número um a combater. Tal visão sectária favoreceu a vitória de Adolf Hitler na Alemanha, em 1932.
Já Astrojido liderou a criação, a partir de 1927, do Bloco Operário e Camponês (BOC), uma aliança formada pelo PCB, pelo PSB e por membros do Partido Democrático do Distrito Federal.
Em 1929, o bloco chegou a fazer uma aliança com o Partido Democrático de São Paulo, de liberal-democratas contrários ao Partido Republicano, agremiação conservadora que sustentou os governos da República Velha (1899-1930).
Astrojildo estava com uma posição política adequada à realidade brasileira e foi vítima do ultra-esquerdismo da IC.
Voltou ao PCB com a legalidade de 1945, após escrever uma humilhante carta de autocrítica. Permaneceu na condição de membro suplente do Comitê Central até sua morte, em 1965, no Rio de Janeiro, aos 75 anos.
Mesmo sem ocupar o centro das decisões políticas do PCB, desempenhou papel importante na renovação do pensamento da esquerda brasileira através da Novos Rumos, revista partidária que ajudou a editar.
Cristiano Cordeiro (1895-1987)
O PCB havia decidido candidatar Cristiano à Constituinte de 1933 pela legenda Trabalhador, ocupa teu posto!, em Pernambuco. Cristiano lançou sua candidatura no 1º de maio, em ato no Teatro Santa Isabel, no centro de Recife.
Recusou-se a colocar na sua plataforma eleitoral a formação de conselhos de operários, camponeses, soldados e marinheiros, isto é, de sovietes no Brasil.
Ele considerava a proposta alheia à realidade brasileira.
Cristiano conseguiu se eleger deputado. Porém, a comissão eleitoral anulou duas urnas de um bairro popular, reduto eleitoral do PCB, deixando Cristiano fora da Constituinte.
Em 1935, Cristiano foi eleito vereador pelo Recife. Em fins de 1934, contatado por Silo Meirelles, em nome da direção nacional do PCB, Cristiano se recusou a organizar um levante armado contra o governo de Getúlio Vargas.
Para Cristiano, um movimento conspiratório restrito aos quartéis e isolado da sociedade seria uma quartelada fadada ao fracasso.
Em vez disso, propôs Cristiano, o PCB deveria buscar derrotar Vargas não no plano militar, mas na esfera política, articulando uma frente que reunisse não só comunistas e socialistas, como também liberais contrários ao governo.
Dito e feito. O levante de novembro de 1935, organizado pelo PCB, foi facilmente derrotado e forneceu as condições políticas para que Getúlio Vargas promovesse um golpe de Estado em 1937 e instalasse a ditadura do Estado Novo.
Mesmo contrário e sem participar do movimento de 1935, Cristiano foi preso. Libertado um ano depois, só em 1937, por força de um mandato de segurança, conseguiu tomar posse como vereador. Com o golpe do Estado Novo, a Câmara Municipal foi dissolvida, Cristiano foi novamente preso e intimado a deixar a cidade.
Fugiu para Santos, em São Paulo, e depois transferiu-se para Goiás. Com o fim da ditadura, em 1945, voltou a Pernambuco. Por suas posições, foi expulso do partido em 1947.
Cristiano Cordeiro foi reintegrado ao PCB somente em 1980, aos 87 anos. Morreu em novembro de 1987, aos 92 anos de idade.
A partir de 1958, e especialmente depois de 1967, o PCB evoluiu para as posições políticas defendidas por Astrojildo e Cristiano: uma frente reunindo todos os setores democráticos com o objetivo de reestabelecer o Estado de Direito, conquistado afinal com a Constituição de 1988.
Em 1992, a maioria do PCB aprovou a mudança de nome para PPS, cujo instituto de estudos leva o nome de Astrojildo Pereira. Uma ala liderada pelo arquiteto Oscar Niemeyer recriou o partido, porém o novo PCB não conseguiu eleger representantes no Congresso.
*Cláudio de Oliveira é jornalista, cartunista e autor do e-book Lenin, Martov, a Revolução Russa e o Brasil
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O Estado de S. Paulo: ‘Presidente não demonstra capacidade de articulação’, diz Sérgio Abranches
24 de março de 2019O Estado de S. Paulo,Bolsonaro,POLÍTICA HOJE,sérgio abranchesgoverno bolsonaro
Para Sérgio Abranches, falta de uma coalizão com o Legislativo traz dificuldades para a governabilidade
Paulo Beraldo, O Estado de S. Paulo
Passados quase três meses desde sua posse, o presidente Jair Bolsonaro não mostra forças para fazer uma “aglutinação” no Congresso, agravando a tensão entre Executivo e Legislativo, avalia o cientista político Sérgio Abranches. “Existe uma percepção de que coalizão é igual corrupção. Não é. O que está posto agora é ver como formar uma nova coalizão. Isso implica um projeto de governo bem articulado, um presidente que assuma a liderança disso e que queira formar maioria em torno de ideias que unam e não desunam.” Autor do termo “presidencialismo de coalizão” nos anos 1980, Abranches afirma que “não faz sentido” o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), ser articulador político de qualquer agenda do governo. “Quem tem de fazer articulação é o presidente e suas lideranças, e elas não estão dando demonstração de ter capacidade para essa articulação.”
A seguir, os principais trechos da entrevista:
Como o sr. vê o cenário político?
A eleição de 2018 encerrou o primeiro ciclo do presidencialismo de coalizão, que organizou governo e oposição de 1994 a 2014. Em 2018, houve a substituição de um sistema partidário por outro, um realinhamento. Todos perderam com a eleição de 2018, com exceção do PSL. Esse ciclo caracterizado pelo duopólio na disputa pela presidência entre PT e PSDB, que também organizava tanto governo quanto oposição, começou a dar problema em 2014, teve o auge da crise com o impeachment em 2016 e se confirmou em 2018 quando esse sistema que estava em exaustão se encerrou. O que vemos agora são os resultados disso.
Quais as consequências disso?
Do ponto de vista de organização de governo no Congresso, uma das principais dificuldades é a pulverização. Em 2002, as cinco maiores bancadas representavam 67% do Congresso. Em 2018, os cinco maiores partidos têm 41% das cadeiras. O maior partido é de oposição, o PT, vivendo uma crise interna, e o segundo é o PSL, um partido invertebrado, que tem dado demonstrações de que não tem capacidade de ser pivô de uma coalizão em torno da qual os outros se aglutinam.
Por que falta essa capacidade ao PSL?
Desde o início, Bolsonaro disse que não ia fazer coalizão e não fez o menor esforço para montar maioria no Congresso. Segundo, porque o partido não tem vertebração, ainda precisa se demonstrar como uma organização partidária com ideias. Em terceiro, porque a liderança do Bolsonaro não é suficientemente forte para fazer uma aglutinação no Congresso. Nenhum dos requisitos de estabilidade de governabilidade está amparado: um presidente minoritário, um partido inorgânico, a falta de uma coalizão articulada, relações tensas entre Poderes.
Como sair do impasse?
Existe uma percepção de que coalizão é igual corrupção. Não é. O que está posto agora é ver como formar uma nova coalizão. Isso implica um projeto de governo bem articulado, um presidente que assuma a liderança disso e que queira formar maioria em torno de ideias que unam e não desunam. A crise política tem a ver com o fato que o primeiro ciclo se esgotou e não houve nenhum esforço por parte da liderança vitoriosa de levar adiante um novo ciclo, de estabelecer novas bases para o relacionamento entre Legislativo e Executivo.
Como a prisão do ex-presidente Temer impacta esse contexto?
Ela acontece num momento de acirramento do conflito entre o Legislativo e um clima de tensão dentro do MPF, do STF e de juízes de primeira instância. Vejo que a magnitude política da prisão de Temer se torna mais um ingrediente da crise política. Dá mais munição para os partidos, sobretudo o MDB, fazerem pressão no Congresso, para criar mais impasses e obter mais concessões do Executivo. O MDB, que hoje tem 34 eleitos, pode fazer muita pressão, exatamente por não haver nenhum partido grande e pelo PSL não ter força nem experiência. Todo mundo perdeu poder e o próprio presidente, ao não ser capaz de exercer uma liderança unificadora e perdendo popularidade, também fica sem espaço para dar solução a essa pulverização do poder. Os três Poderes estão dominados por um processo conflituoso que tem a ver com questões políticas fundamentais associadas a essa maneira pela qual se esgotou esse ciclo.
O que a perda de popularidade representa para o governo?
Quanto menor a popularidade, menos capacidade tem de atrair apoio no Congresso. O que atrai é popularidade, carisma. Bolsonaro foi eleito por um conjunto muito heterogêneo de eleitores. É difícil atender expectativas tão diferentes. Até agora, não atendeu nenhuma delas, a não ser a questão das armas (facilitou a posse), que é controvertida.
Como fica, por exemplo, o projeto da reforma da Previdência?
Vai sofrer muito mais por conta da perda de popularidade. Se não surgir uma forma nova de ativar as decisões no Congresso, acho que a reforma terá muita dificuldade. Não faz sentido o presidente da Câmara ser articulador político de qualquer agenda do governo, mesmo que seja do interesse dele. Quem tem de fazer articulação é o presidente e suas lideranças, e elas não estão dando demonstração de ter capacidade para essa articulação. Então, acredito que essa reforma está no limbo, à deriva.
Dorrit Harazim: O Chile errado de Bolsonaro
24 de março de 2019Bolsonaro,O Globo,Chile,POLÍTICA HOJEDorrit Harazim
Um primeiro relatório concluiu que 2.296 pessoas haviam sido assassinadas ou ‘desaparecidas’ em mãos de agentes do regime militar no país
O presidente Jair Bolsonaro pisou em solo chileno esta semana ofendendo de uma só tacada a memória do país anfitrião, a história do Cone Sul e o julgamento universal de humanidade. Só não ofendeu também a própria biografia porque desatinos repetidos não contam.
“Essa questão da dita ditadura aqui do Cone Sul tem que ser lavada à luz da verdade... Tem gente que gosta dele [do ditador Augusto Pinochet], outros que não gostam”, declarou ao desembarcar em Santiago para participar da gênese de um novo bloco regional de perfil direitista, o Foro para o Progresso e Desenvolvimento da América Latina.
Era uma defesa aberta do comentário pornográfico feito pouco antes por seu ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni: “No período Pinochet”, sustentara Lorenzoni em entrevista à Rádio Gaúcha, “o Chile teve de dar um banho de sangue. Triste. Mas as bases macroeconômicas fixadas naquele governo...” Traduzindo: há banhos de sangue que vêm para o bem de reformas econômicas.
Por uma amarga coincidência de calendário, no dia da chegada dos brasileiros uma notícia aguardada há décadas agitava a vida nacional chilena: o julgamento de um crime particularmente horrendo da era Pinochet (1973-1990) — o “Caso Quemados” — chegava ao fim com a condenação de 11 militares a penas entre três e dez anos de prisão. Mesmo para o padrão de brutalidade do regime da época, a ação de uma patrulha militar sempre fora mal digerida, por simpatizantes de Pinochet. Ela ocorreu numa tarde de julho de 1986, quando dois jovens que participavam de um protesto foram surrados, encharcados com gasolina, queimados vivos e despejados na periferia. Por uma patrulha militar. Moradores que encontraram os corpos contorcidos conseguiram salvar Quintana, que tinha 18 anos e está desfigurada até hoje. Rojas, de 19 anos, não resistiu.
Triste, diria Onyx Lorenzoni. É preciso lavar os fatos à luz da verdade, contestaria Jair Bolsonaro.
Essa lavagem da história já foi feita. O democrata-cristão e veterano conservador Patricio Aylwin tinha 71 anos em 1990 quando assumiu como primeiro presidente da redemocratização chilena após 17 anos de regime militar. Ele foi uma espécie de Tancredo Neves, guardadas as características dos dois processos políticos. “Uma transição bem-sucedida não é possível sem a reconstituição da verdade”, sustentava até morrer, aos 92 anos.
Em 1991, ao receber o relatório de 1.350 páginas encomendado à Comissão Nacional de Verdade e Reconciliação (Comissão Rettig), criada por ele para apurar denúncias de assassinatos, desaparecimentos e tortura, Aylwin foi à televisão em cadeia nacional. “O Estado e a sociedade como um todo são responsáveis pela ação ou pela omissão. Por isso, ouso assumir a responsabilidade pela nação inteira e, em seu nome, pedir perdão aos parentes das vítimas..”, disse ele, com voz embargada.
Aquele primeiro relatório elaborado por juristas e técnicos forenses ao longo de nove meses concluíra que 2.296 pessoas haviam sido assassinadas ou “desaparecidas” em mãos de agentes do regime militar. Em 2003, uma nova Comissão da Verdade sobre Prisão Política e Tortura (Comissão Valech), criada pelo ex-presidente Ricardo Lagos, listou 28.450 casos qualificados como vítimas oficiais de detenção ilegal, tortura, execução ou desaparecimento. E, oito anos atrás, o presidente Piñera, então em seu primeiro mandato, recebeu da mesma comissão um rol contendo 32 mil novas denúncias. Ou seja, não tem faltado luz à verdade.
O Chile tem, sem dúvida, muito a festejar — começando pelo Produto Interno Bruto que em 2018 acusou sua maior expansão dos últimos cinco anos. Mas convém não esquecer que Augusto Pinochet foi alvo de uma investigação também de suas finanças privadas. Ela durou nove anos. Segundo levantamento encomendado pela Corte Suprema do Chile, o ditador acumulara US$ 21 milhões ao morrer aos 91 anos. Apenas US$ 3 milhões desta fortuna podiam ser atribuídos a soldos. Ainda assim escapou de uma condenação por enriquecimento ilícito. Morreu em prisão domiciliar, condenado por violação de direitos humanos.
Não espanta, portanto, que os presidentes da Câmara e do Senado do Chile tenham se recusado a participar do almoço oferecido em homenagem a Bolsonaro por Sebastián Piñera. Eles conhecem a verdade. E respeitam a memória do país.
Luiz Carlos Azedo: Bolsonaro, que onda é essa?
24 de março de 2019governo,Correio Braziliense,Justiça,Partidos,POLÍTICA HOJE,Nas entrelinhas,Lava Jato,congresso,Eleições,políticaLuiz Carlos Azedo
“Bolsonaro foi o candidato antissistema, vê a proximidade com o centro político como ameaça ao seu prestígio popular e sinônimo de fisiologismo e o patrimonialismo”
Muita gente ainda não se deu conta de que o grande derrotado nas eleições foi o chamado centro democrático. E que o tsunami eleitoral gerou uma sucessão de swells que fazem a alegria dos surfistas da política. Em português, essa palavra significa “ondulação”. São vagas formadas por uma tempestade em alto-mar que se deslocam para a costa, gerando grandes ondas que se propagam por longas distâncias. Ao se aproximarem da praia, quando batem nas barreiras de corais ou bancos de areia, tornam-se ainda maiores; dependendo das condições climáticas e das características do local, podem se tornar gigantes.
Essa analogia tem tudo a ver com o momento político que estamos vivendo. É um erro supor que o grande derrotado nas eleições gerais passadas foi o PT, que chegou ao segundo turno e manteve a segunda bancada na Câmara, mesmo com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva preso. As forças centristas que ficaram de fora do segundo turno, e derivaram para o apoio a Bolsonaro, embora sejam as maiores derrotadas, mantiveram a ilusão de que esse apoio por gravidade lhes garantiria a preservação dos espaços de poder que ocupavam antes. Isso, até agora, vem sendo um ledo engano.
Estão como aquele banhista que permanece na areia tomando sol e se diverte com os surfistas que caem das pranchas, sem levar em conta que o calhau que os derrubou vai se espraiar. Quando menos espera, a onda invade a praia, carrega os chinelos, enche a toalha de areia e molha a carteira com os documentos. É mais ou menos isso que está acontecendo com os políticos que esperavam de Bolsonaro o mesmo tratamento recebido durante o governo de Michel Temer, que governou como se fosse primeiro-ministro, compartilhando o governo com o Parlamento. O ex-presidente e seu maior estrategista, o ex-governador fluminense Moreira Franco, estão presos. Outros políticos do MDB e partidos do centro investigados pela Operação Lava-Jato estão na mira do ministro da Justiça, Sérgio Moro, e seus amigos que continuam na força-tarefa encarregada de banir a corrupção da política
Bolsonaro não se propôs a fazer um governo de centro, a lógica da formação da sua equipe, sua forma de atuação e a narrativa política que adotou, assumidamente de direita, é incompatível com a construção de uma coalizão ampla. Bolsonaro foi o candidato antissistema, vê a proximidade com o centro político como ameaça ao seu prestígio popular e sinônimo de fisiologismo e o patrimonialismo. Está mais para Dilma Rousseff com sinal trocado, do que para Fernando Henrique Cardoso e Lula, embora o primeiro não tenha metido os pés pelas mãos como o segundo. Seus ataques à política tradicional são uma demonstração dessa incompatibilidade de gênios. Para manter a base eleitoral que o levou ao segundo turno, enquanto gozar de prestígio popular, não fará nenhum movimento em direção ao centro político que possa parecer aos seus eleitores um “estelionato eleitoral”. Somente um fracasso na economia, uma “vaca” sinistra, para usar a linguagem dos surfistas, pode levar Bolsonaro a um “arreglo”.
Previdência
Esse é o grande nó da relação do Palácio do Planalto com o Congresso, que continua sendo hegemonizado pelo centro. Tanto o PSL quanto o PT estão isolados. No Senado, com a eleição de Davi Alcolumbre e a escolha do senador Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE) para líder do governo, a situação é menos grave, a Casa gosta de “azeite”, mar liso. Na Câmara, somente se cria quem “entuba grebando de back”. Quem acompanha as sessões do plenário observa um “crowd” cheio de “prego”, ou seja, muitos novatos para poucas ondas. Nos bastidores, as raposas do centro político se articulam em torno de Rodrigo Maia (DEM-RJ), que vem sendo alvo de ataques do filho mais novo do presidente da República, o vereador carioca Carlos Bolsonaro, e dos partidários mais radicalizados do presidente da República.
Além de não poder dialogar com o PT, que está no seu papel de fazer oposição, Bolsonaro tem dificuldades com seu próprio partido, o PSL, que pauta suas ações pela antipolítica, concentrando os ataques no Supremo, além de defender interesses fortemente corporativos que estão em contradição com a reforma da Previdência. Mas há uma realidade inescapável: governar é uma ação política, implica interação com o Congresso, o Judiciário e a sociedade civil. Por essa razão, a semana começa com Bolsonaro e Maia se estranhando novamente.
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-swell-que-onda-e-essax/
Alon Feuerwerker: O Planalto quer um Congresso perfilado gritando “Ave Caesar, morituri te salutant". Vai funcionar?
24 de março de 2019congresso,Bolsonaro,Temas & Debates,Alon Feuerwerkergoverno bolsonaro
A frase está em latim: “Ave César, os que vão morrer te saúdam”. Era o brado dos gladiadores para o imperador romano antes de começarem os jogos no Coliseu. Os coitados dos lutadores, escravizados, não tinham mesmo muita opção.
O Palácio do Planalto quer mais ou menos isso dos políticos na Câmara e no Senado: que votem as medidas impopulares propostas pelo governo, especialmente a reforma da previdência, e conformem-se depois em morrer nas eleições.
Não chega a ser previsão apocalíptica, pois mesmo em plena onda antipetista ano passado os gladiadores de Temer, que deram a cara na luta para aprovar reformas, ou tiveram imensa dificuldade para voltar ou simplesmente não voltaram.
Jair Bolsonaro assumiu e distribuiu os cargos entre os dele. Oficiais da reserva e da ativa. Lava Jato. Seguidores de Olavo de Carvalho. E alguns quadros parlamentares vinculados às “bancadas temáticas”. Ou seja, não dividiu poder com ninguém.
Pôde fazer isso ao surfar no clamor por uma “nova política”, que segundo os formuladores dela consiste em trocar as pessoas más e impuras pelas boas e puras. Trata-se naturalmente de uma mistificação, mas de tempo em tempo encontra ouvidos crédulos.
Uma regra, sem exceção: a nova política de hoje é a velha política de amanhã. Entre o hoje e o amanhã sempre tem um tempinho para enrolar o distinto público. É um período em que o poder precisa dar passos decisivos para se consolidar.
Mas se a única opção do gladiador romano era obedecer o imperador e torcer para sobreviver até a luta seguinte, não é o caso dos parlamentares. Eles têm a alternativa de simplesmente não fazer o que o Planalto deseja, e esperar o tempo passar.
E são ajudados pelo governo Bolsonaro não ter sido a primeira escolha do establishment econômico e social. A boa vontade é limitada. Isso introduz um vetor de fragilidade potencial. Que aliás começa a se manifestar nas pesquisas de popularidade.
O Planalto acredita que vai dobrar o Congresso denunciando o “fisiologismo” em oposição ao patriotismo. As coisas são mais complicadas. Para os militares, garantiu-se o patriotismo deles embutindo na reforma uma generosa reestruturação da carreira.
O presidente talvez acredite que vai aprovar a mudança da previdência e também concentrar as chaves do orçamento federal nas mãos de seu grupo mais próximo, para alavancar a ampliação decisiva de uma base política própria em 2020 e 2022.
O bolsonarismo não deixa de ter alguma razão nesse desejo. Governos sem base própria enfrentam risco maior de colapso quando a popularidade declina além de um patamar. Com exceções, certos aliados só são úteis quando você não precisa deles.
Políticos são dotados de olfato sensível para o cheiro de sangue na água. Bolsonaro abre múltiplas frentes de atrito e é visto como mal menor por boa parte do establishment. Então basta esperar a hora em que o governo vai precisar de apoio.
A nova administração vem abrindo espaço inédito para referências religiosas, particularmente cristãs. Talvez fosse o caso de a turma dar uma folheada na Bíblia e estudar a interpretação de José para o sonho do Faraó com as vacas gordas e as magras.
#FicaaDica.
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Num governo de retificações quase diárias, a declaração mais retificada admite a participação brasileira numa intervenção militar na Venezuela. Ou a coisa está bagunçada além do razoável ou tem caroço debaixo desse angu.
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação