Day: fevereiro 17, 2022

Chuva em Petrópolis: Cinco soluções para evitar que tragédias se repitam

Júlia Marques / O Estado de S.Paulo

Desastres como o ocorrido em Petrópolis reforçam a importância de políticas habitacionais no Brasil que retirem de forma permanente a população de áreas de risco. Ao mesmo tempo, será preciso investir em produzir e comunicar bem os alertas para que, em situações de urgência, quem vive em áreas de risco tenha tempo de deixar suas casas. 

Especialistas ouvidos pelo Estadão afirmam ainda que medidas como a recomposição vegetal de encostas e margens dos rios também contribuem para tornar as cidades menos suscetíveis a desastres. Os deslizamentos em Petrópolis, que deixaram dezenas de mortos, ocorreram após uma chuva intensa e concentrada

Revista Política Democrática online
Gestão ineficiente de riscos ambientais potencializa tragédias no Brasil

Temporais como este devem se tornar mais frequentes com o aquecimento global, afirmam os cientistas. Mudanças na temperatura do planeta alteram o regime de chuvas e podem provocar tempestades fortes, que atingem determinadas áreas em poucas horas. 

Veja a seguir cinco soluções apontadas por especialistas para evitar que desastres como o de Petrópolis se repitam:

Auxílio-aluguel, uso de imóveis ociosos e parceria para obras

É preciso apostar em políticas de habitação para que populações em áreas de risco sejam remanejadas de forma permanente, afirma Pedro Côrtes, geólogo e professor da Universidade de São Paulo (USP). Isso pode ocorrer de diferentes maneiras: pagamento de auxílio-aluguel, compra de imóveis para realocar a população das áreas de risco e até a criação de novos bairros em regiões seguras são alternativas.

“O volume extraordinário de chuva assusta, mas isso não isenta o poder público de um trabalho de prevenção”, afirma o pesquisador da USP. Em São Paulo, por exemplo, uma das possibilidades é o uso de apartamentos vazios na região central, diz o especialista.

Estratégia semelhante foi adotada pela prefeitura de Maricá (RJ), que anunciou a compra de imóveis desocupados para alocar quem mora em regiões vulneráveis. O remanejamento, no entanto, enfrenta barreiras econômicas. 

“Com os interesses imobiliários em uma cidade, é muito difícil imaginar que vamos encontrar áreas seguras para ter moradias para todo mundo”, pondera Victor Marchezini, sociólogo de desastres e pesquisador do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden). 

Se há dificuldade em realocar a população, obras e parcerias com os moradores podem ajudar a mitigar os riscos. Marchezini cita uma solução adotada para encostas no Recife: a prefeitura entra com material de construção e apoio técnico e os moradores com mão de obra para fazer reparos contra deslizamentos. 

Nem sempre as obras, porém, dão conta de desastres causados pelo grande volume de chuvas.

Aprimorar as ferramentas para produzir alertas de desastre

Se há população em áreas vulneráveis, então é preciso aprimorar os sistemas de alertas. Hoje, o Cemaden - criado após a tragédia na Região Serrana em 2011, que deixou 918 mortos - faz um monitoramento de risco de deslizamentos de terra e enxurradas a partir de informações sobre o volume de chuvas. Essas informações são repassadas às Defesas Civis locais e precisam chegar até a ponta: a população.

Fazer as previsões, no entanto, tem se tornado mais desafiador agora. “Temos, em função de mudanças climáticas, maior dificuldade de fazer previsões meteorológicas”, afirma Côrtes, da USP. Avanços tecnológicos na área de meteorologia podem ajudar.  

Comunicar avisos de risco à população e criar rotas de fuga

No meio do caminho entre a detecção de risco de desastres e a população, há gargalos. Nem todos os municípios têm Defesas Civis, que deveriam receber esses avisos. E, em alguns locais que têm, falta o básico para o trabalho, como computadores. Segundo especialistas, é preciso melhorar o trabalho desses agentes. 

Além disso, mesmo que a região conte com equipes estruturadas, a existência do alerta nem sempre significa que a mensagem vai chegar aos moradores, evitando as mortes. Segundo Marchezini, não basta que a população receba avisos de desastre: é preciso saber para onde ir em caso de risco e qual o caminho até o abrigo. Isso tem de ser treinado de forma preventiva, antes que o temporal aconteça. 

Além de sirenes - como havia em Petrópolis -, estratégias para retirar momentaneamente as pessoas de suas casas diante de riscos de deslizamentos podem incluir até ligações e envio de mensagens nos celulares, diz Matheus Martins, especialista em drenagem urbana e professor da Escola Politécnica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). 

Transformar centros urbanos em 'cidades esponja' 

Enquanto os mecanismos de alerta se estruturam, políticas ambientais têm de ser colocadas em prática para reduzir os impactos do clima nos centros urbanos. Incentivos para quem mantém áreas verdes em casa e faz captação da água de chuva são algumas das ferramentas para transformar centros urbanos no que cientistas chamam de “cidades esponjas”, capazes de absorver mais água. 

Uma das formas de fazer isso é por meio do chamado IPTU Verde, quando o imposto fica mais barato para quem adota práticas sustentáveis em suas propriedades. 



Recuperar os rios e apostar em saneamento

Gestores também devem investir em recuperar a forma mais natural do rio - as canalizações podem tornar as enchentes mais frequentes - e na ocupação vegetal das bacias hidrográficas, afirma Martins, especialista em drenagem urbana da UFRJ. 

Até obras de saneamento são importantes para evitar deslizamentos de terra, uma vez que parte do problema de erosão pode estar no lançamento de esgoto nas encostas. 

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Fonte: O Estado de S. Paulo
https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,chuva-em-petropolis-cinco-solucoes-para-evitar-que-tragedias-se-repitam,70003981553


Maria Cristina Fernandes: Transição precipitada em Brasília

Maria Cristina Fernandes / Valor Econômico

A mais de sete meses das eleições, há um surto de proatividade no ar de Brasília como se a transição já tivesse começado. É um movimento que parece obedecer mais aos interesses de seus protagonistas do que aos daquele que ainda tem urnas a computar para confirmar seu favoritismo.

A movimentação parte do pressuposto de que não se viabilizará uma alternativa à polarização. O diagnóstico é baseado numa cristalização de voto, inédita em campanhas eleitorais, dos dois principais polos. “Entre Deus e o diabo nunca houve terceira via”, resumiu o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, naturalmente identificando-se ao primeiro dos personagens.

Além da legião de infiéis que pode ficar no meio do caminho até 2 de outubro, a síntese de Lula tem levado a uma corrida desarvorada pela concretização de propostas que podem abrir portas para o país, adornar o currículo dos proponentes ou nenhuma das alternativas anteriores.

Tome-se, por exemplo, o envolvimento do PT na solução legislativa para o preço dos combustíveis. O partido vestiu a camisa que diz não ao quanto-pior-melhor. Move-se pela percepção de que o aumento desenfreado no diesel pressiona os juros e agrava a dívida pública, cenário ruim para quem quer que se eleja e pior, ainda para o eleitor.

Ao protagonismo de dois senadores petistas, o autor de uma das propostas, Rogério Carvalho (SE), e o relator, Jean Paul Prates (RN), uniu-se a presteza do senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG). Os dois primeiros enfrentam as mudanças na política de alianças do PT rumo à concessão de vagas majoritárias a aliados nos Estados.

Já o terceiro recusou-se a engrossar a fila de nanicos da terceira via e hoje está empenhado em manter para o PSD o principal posto de poder do partido, a Presidência do Senado, cuja negociação passa pelo presidente a ser eleito. Pacheco desobstruiu todos os caminhos para o PT. Ainda assim, a proposta acabou adiada.

Como as demais patrocinadas pelo Centrão, a proposta petista estava virando uma torre de babel. De uma desoneração restrita ao diesel acabou se estendendo à gasolina, duplicou o alcance do auxílio gás e, na criação de uma conta para a estabilização das tarifas, avançou sobre fundos constitucionais e reservas cambiais.

Prates apresentou a proposta na Fundação Perseu Abramo, com a presença dos ex-presidentes Lula e Dilma Rousseff e ouviu que o partido não avalizaria o uso de recursos fiscais, das reservas ou dos fundos. A um deles, que assistia a reunião por vídeo, reagiu: “Sua posição é igual a de Paulo Guedes”.

O senador diz que é possível abrir mão de todos esses recursos vetados pelo PT e ainda dispor de um rol de alternativas - de royalties às participações especiais - que ganham com a alta de preço e financiariam esse colchão de amortecimento das tarifas.

Mas se já é difícil assumir um compromisso de resultado numa tramitação qualquer, dirá quando se trata de uma proposta com tamanho impacto no meio de uma campanha.

Não deu outra. A votação acabou adiada, com desgastes que agora não se acumularão apenas sobre o presidente Jair Bolsonaro e os governistas mas também sobre o PT e seu candidato a presidente. Se o partido aquilata o risco e resolve enfrentá-lo, é jogo jogado. “Pior seria nos omitirmos”, diz Prates. Pode ter razão, mas não há dúvida que a conjuntura está prenhe de personagens que entraram nessa de governar no lugar de Bolsonaro porque não têm nada a perder.

Um dos motivos do adiamento foi o pedido do presidente da Câmara para acertar os ponteiros da proposta de maneira a que, aprovada no Senado, viesse a tramitar mais facilmente na Câmara.

Pacheco e o presidente da Câmara, Arthur Lira (PL-AL) hoje disputam quem presta mais serviços àquele cuja volta à Presidência da República dão como certa. Depois que a proposta da PEC dos combustíveis de seu partido na Câmara teve que recuar, Lira abriu espaço para o jogo de Pacheco com o PT prosperar e agora se aproximou.

O presidente da Câmara já havia dito ao Valor que sua prateleira é sortida. Tem reforma tributária, administrativa e até o fim do teto dos gastos, mercadoria que já se acreditava esgotada. Preço sob consulta e entrega imediata ou entre a eleição e a posse.

Foi a vez de Pacheco anunciar que a votação da reforma tributária na CCJ do Senado. Isso depois de as duas Casas passarem os últimos dois anos se debatendo entre a proposta de uma e da outra.

Se a campanha de Lula se servir de todas as bandejas que os garçons do Congresso lhe apresentam vai chegar a outubro empaturrada e com dificuldade de encontrar a porta de saída.

Também se viram bandejas circulando no Tribunal de Contas da União na decisão que deu curso ao processo de privatização da Eletrobras. A decisão contemplou os interesses assumidos no governo e, principalmente, no Congresso, desde a tramitação da MP da Eletrobras, votação que ficará para os anais da barganha nacional. O ministro Vital do Rêgo foi vencido, mas no voto dele e de outros ministros, foi dada a senha para contestações futuras em tribunais superiores.

Não havia garçons na entrevista do presidente do Banco Central à Miriam Leitão, na GloboNews, mas o tom estava francamente contaminado pela capitulação das finanças à ideia de que Lula já levou. Não se tratou de uma análise política, mas de preços do mercado, que fique claro.

A interlocutores das autoridades monetárias nacionais surpreende a admiração que passaram a nutrir pelo gesto do presidente eleito do Chile, Gabriel Boric, que convidou o presidente do Banco Central chileno do governo Sebastian Piñera, Mario Marcel, para a Fazenda.

No Chile, o gesto foi visto como a saída encontrada por Boric para evitar que os conservadores partissem para bombardear o plebiscito que confirmará a nova Constituição, na qual está pendurado o futuro governo. No Brasil, a capitulação do mercado precede a eleição, o que não significa que as baterias não possam ser recarregadas depois da posse.

Roberto Campos Neto tem admiradores no PT. Como cabe tudo nessas bandejas de Brasília, a colocação de seu nome, à sua revelia, vem com um combo: a possibilidade de Lula escolher o presidente do BC. Precipitado? É claro. Num país cujo presidente fantasiou-se de estadista do outro lado do planeta e quer mobilizar as Forças Armadas para uma guerra dentro de seu próprio país, tudo ainda pode acontecer.

Fonte: Valor Econômico
https://valor.globo.com/politica/coluna/transicao-precipitada.ghtml


William Waack: O mundo de sempre

William Waack / O Estado de S. Paulo

O que Vladimir Putin está fazendo com a Ucrânia equivale a um choque elétrico em quem pensa e acompanha relações internacionais. Cobri para o Estadão a queda do Muro de Berlim, em 1989, e confesso que também fui contagiado pelo sentimento geral de que ali nascia um “mundo melhor”.

Era entendido como um mundo no qual não mais se tolerariam mudanças de fronteiras pelo emprego da força bruta, e no qual os Estados teriam soberania para fazer escolhas. A esse “mundo melhor” o fotógrafo Hélio Campos Mello e eu assistimos na linha de frente quando ampla coligação internacional, apoiada inclusive por Moscou e comandada pelos americanos, expulsou em 1991 do Kuwait o exército invasor do ditador iraquiano Saddam Hussein.

Seria o tal “fim da História”, ou a predominância de um sistema internacional que coroava a ordem liberal liderada pelos Estados Unidos desde 1945. No fundo, nossas vidas de repórteres empolgados com a ação, as violentas emoções e nossas experiências de combate em primeira mão acabaram tornando difícil entender qual mundo ali na verdade continuava.

De Tucídides (Guerra do Peloponeso, 411 a.c.) a Hans Morgenthau (Politics Among Nations ”, 1949), o pai da moderna disciplina das relações internacionais é o mundo descrito pelas relações de poder e emprego de força entre as potências. Para adeptos da escola do hiper-realismo, como Henry Kissinger, não existe outra coisa entre países senão o desejo por segurança e, em consequência, a luta pelo poder.

Nesse sentido, importam pouco sistema econômico, crenças religiosas ou filosofias políticas e ideológicas de cada potência – mas, sim, seu “interesse nacional”, subordinado, em primeiro lugar, à segurança. Note-se que é exatamente esse conceito, o da “segurança indivisível”, que os russos estão colocando em primeiro plano nas negociações em torno da crise da Ucrânia.

Não é à toa que se “desenterrou” artigo de Kissinger de 2014 no qual ele já antecipava que a solução da crise da Ucrânia é a submissão (gostem os ucranianos ou não) desse país a um estado de “neutralidade” imposto pela Rússia. E foi tão lido o artigo da semana passada do historiador Noah Harari, segundo o qual a crise da Ucrânia levanta como questão central saber se as relações internacionais evoluem para evitar (e não viver de) guerras.

É uma pergunta crucial cuja resposta vai sair da maneira como China (e Rússia) vão moldar a ordem internacional na qual os Estados Unidos não mandam mais sozinhos. A História humana é a da mudança para melhor (Harari) ou a da inevitabilidade da tragédia (Kissinger)? Até aqui, os fatos estão dando razão a Kissinger.

Fonte: O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,o-mundo-de-sempre,70003981599


Malu Gaspar: A Polícia Federal entra na campanha eleitoral

Malu Gaspar / O Globo

Se havia dúvidas sobre a instrumentalização da Polícia Federal em favor dos interesses políticos de Jair Bolsonaro, uma nota publicada pela corporação em seu site na última terça-feira ajudou a eliminá-la.

“Moro mente”, dizia o texto, em resposta a uma declaração do ex-juiz da Lava-Jato dada no dia anterior. Numa entrevista, Moro disse que “hoje não tem ninguém no Brasil sendo investigado e preso por grande corrupção” e afirmou que a PF não tem mais autonomia sob Bolsonaro. Segundo a nota oficial, Moro mente porque, nos últimos três anos, a corporação realizou 1.728 operações contra a corrupção, e o maior número de ações ocorreu em 2020.

A última afirmação não necessariamente contradiz a anterior, mas isso não vem ao caso. O que importa é que Moro é um político em campanha, e a Polícia Federal é uma instituição de Estado. Foi por isso que a nota e seu tom agressivo chamaram a atenção.

Os ex-diretores da corporação e ex-ministros da Justiça de diversos governos que consultei, à esquerda e à direita, dizem que nunca viram manifestação semelhante antes, nem nas crises mais brabas. Além do mais, se a PF está na berlinda há meses, não é pelo número de operações que realiza, mas pelas que deixa de fazer.

Outro dia mesmo o delegado William Tito escreveu que o presidente da República não havia prevaricado ao não dar andamento às denúncias de irregularidades na compra da Covaxin — porque, segundo Tito, a Constituição não diz expressamente que é dever do presidente mandar apurar suspeitas de desvios de dinheiro público.

Desde o início do mandato de Bolsonaro, delegados que tentaram denunciar o então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, foram afastados de seus cargos. No setor que investiga autoridades com foro privilegiado junto ao Supremo, foram todos substituídos depois de conflitos sobre o rumo de investigações mais sensíveis.

A própria denúncia de Moro sobre a suspeita de interferência de Bolsonaro na PF — segundo o presidente, a “minha Polícia Federal” — é alvo de um inquérito no Supremo, que ainda não foi concluído e em que a direção da corporação é parte interessada.

Em dezembro, a PF realizou uma operação de busca e apreensão na casa do presidenciável Ciro Gomes (PDT), que a acusou de ter “objetivo claro de tentar criar danos” a sua pré-candidatura. Ciro também chamou a PF de “braço do Estado policialesco de Bolsonaro, que trata opositores como inimigos a serem destruídos fisicamente”.

Há duas semanas, Bolsonaro se recusou a depor sobre o vazamento de dados sigilosos de um inquérito da própria PF, numa live em que sugeriu ter havido fraude nas urnas eletrônicas em 2018.

Quando a delegada Denisse Ribeiro concluiu que ele e seu parceiro de live, o deputado Filipe Barros (União Brasil-PR), haviam cometido um crime, Barros disse que as conclusões de Denisse eram de “um absurdo sem tamanho” e que tomaria “medidas jurídicas cabíveis” para responsabilizá-la.

Assim como não houve nota pública em resposta a Ciro Gomes, também não houve comunicado oficial em defesa do trabalho de Denisse Ribeiro ou da autonomia da PF. Agora, as coisas parecem ter mudado. E se amanhã Lula, Doria ou qualquer outro candidato atacar a corporação, como vai ser? A Polícia Federal rebaterá a todos?

Em sua nota pública, a cúpula da PF afirma que não é função da corporação “produzir espetáculos” e que ela “não deve ser usada como trampolim para projetos eleitorais”. Está certíssimo. Só que, se pretende se mostrar independente, íntegra e autônoma, a PF precisa se manter longe de bate-boca político.

Quando decide responder, e de forma tão agressiva, a um candidato em campanha, a direção da polícia faz justamente o que diz repudiar e se joga de cabeça no debate eleitoral.

Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/malu-gaspar/post/policia-federal-entra-na-campanha-eleitoral.html


Maria Hermínia Tavares: Na viagem à Rússia, Bolsonaro vai do nada para coisa alguma

Maria Hermínia Tavares / Folha de S. Paulo

Diferentes chefes de governo têm se envolvido com menos ou mais apetite na política externa de suas nações. Embora a responsabilidade final sempre caiba ao primeiro mandatário, a formulação de objetivos, bem como a sua efetivação, depende do capital político do chanceler de turno e da elite do corpo diplomático profissional.

Fala-se em diplomacia presidencial quando é marcante o papel do titular do Executivo na condução dos assuntos estrangeiros, respaldando a imagem nacional que se queira projetar, assim como as prioridades do país em suas relações com o mundo. Basta lembrar a força simbólica da ida do pragmático Richard Nixon à China, em 1971, inaugurando o degelo das relações dos Estados Unidos com o império do revolucionário Mao Tse-tung e mudando o mundo.

Na nossa história recente, Fernando Henrique e Lula desempenharam com maestria o papel de presidentes diplomatas, personificando —cada qual a seu modo— o Brasil democrático em busca de mais protagonismo internacional.

No primeiro caso, o intelectual que vencera a hiperinflação bancava a disposição do país de abrir sua economia e aproveitar as oportunidades criadas pela globalização. No segundo caso, o líder sindical transformado em dirigente político de um grande partido social-democrata exibia a face de um Brasil empenhado em combater a pobreza e as desigualdades de poder no sistema internacional.

Provados na oposição ao autoritarismo, um e outro estavam credenciados a afiançar o compromisso do país com as instituições livres, o respeito aos direitos humanos, o multilateralismo, o acatamento das regras internacionais e a ênfase em soluções pacíficas para os conflitos.

Em benefício de uma política externa com metas e meios definidos, acumularam vasta milhagem para se fazer presentes em foros mundiais ou cultivar os interesses bilaterais. Começaram sempre pela vizinha Argentina, pilar da presença brasileira na região. Ambos foram ainda à Rússia, parceira comercial de certa monta e, como o Brasil, membro fundador da coalizão dos Brics.

Já agora, instigador do isolamento internacional do país, sem a mais remota ideia do que hoje move a grande agenda planetária, muito menos do que seria uma política externa à altura dos imperativos nacionais, Bolsonaro deu de ir a Moscou sem plano nem propósito, numa hora especialmente crispada no Leste Europeu.

Na melhor das hipóteses, seu beija-mão a Putin renderá ao Brasil benefícios semelhantes aos da incursão a Nova York de seu secretário da Cultura, Mario Frias —para encontrar dois produtores da Broadway e um astro do jiu-jitsu.

Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/maria-herminia-tavares/2022/02/na-viagem-a-russia-bolsonaro-vai-do-nada-para-coisa-alguma.shtml


‘Bolsonaro é o sintoma mais alarmante da deterioração do sistema político‘

Equipe da RPD e participação especial do Embaixador Paulo Roberto de Almeida

Prestes a completar 200 anos, o Brasil vive uma crise de esperança em um processo que não começou com o governo Bolsonaro, mas bem antes, a partir de 2013/2014, resultando no impeachment de Dilma Rousseff (PT) e no que veio depois, com as crises sucessivas de natureza política, econômica-social, moral, que, a exemplo do que vivem os argentinos há mais de 80 anos, não desembocam em nenhum verdadeiro começo novo, mas apenas falsos começos, avalia o jurista, diplomata, historiador e ex-ministro Rubens Ricupero, entrevistado especial desta edição número 40 da Revista Política Democrática online.

Rubens Ricupero esteve presente em grandes momentos da diplomacia e da política brasileira. Ainda muito jovem, em 1962, era o terceiro secretário do Itamaraty e o único em Brasília para receber Robert Kennedy antes de uma tensa conversa com o então presidente do Brasil, João Goulart. Foi ministro da Fazenda durante o processo de implementação do Plano Real, em 1994.  Ao longo de sua experiência, ele analisa a conjuntura política de nosso país atualmente como preocupante. "Passamos décadas praticamente estagnados, com recessões cada vez mais graves, interrompidas por espasmos curtos de recuperação, logo seguidos por quedas muito fortes. Tomados em conjunto, tais sinais configuram uma crise de sistema, não só econômico, mas político e social. Sinto apreensão cada vez maior com o sistema político brasileiro", lamenta.

"Chegamos aos 200 anos de vida independente em um momento negativamente crítico de nossa história. O que temos visto até agora é a incapacidade de autorreforma pela velha razão de os principais beneficiários do sistema serem os que teriam de fazer as reformas, cortando na própria carne. Nesse sentido, Bolsonaro representa o sintoma mais alarmante da deterioração mórbida do sistema, um indício de que sua disfuncionalidade atingiu um nível em que ele começa a se autodestruir, avalia.

"Não acredito que a eleição vá representar em si mesma uma saída para a crise do sistema. Se a eleição levar ao poder não só um presidente, mas também um Congresso mais consciente da gravidade da crise, menos patrimonialista, poderá surgir a oportunidade de uma ampla negociação para enfrentar esses problemas que vêm da legislação partidária, da eleitoral, do orçamento “secreto”, das emendas de relator, tudo o que tem de ser modificado para que o sistema recupere um mínimo de funcionalidade", acredita Ricupero.

A ascensão da extrema direita no Brasil também é outro tema preocupante para Ricupero. "Há entre nós a atitude de não levar a sério pseudo filósofos como Olavo Carvalho e discípulos, porque de fato são charlatães, mas charlatães que tiveram impacto. Olavo de Carvalho atingiu milhares de pessoas e desencadeou um movimento de ideias e de ação, utilizando ideias vindas de filósofos e intelectuais italianos, franceses, fascistas, pós-fascistas, tradicionalistas reacionários e transformou isso tudo em ideias pasteurizadas de fácil consumo por pessoas sem formação universitária".

Na avaliação do ex-ministro, "foi um movimento que começou no domínio das ideias mediante a criação de editoras, lançamento de cursos de Filosofia online. Tudo isso ocorreu fora da universidade e da academia, que os desprezavam pelo primitivismo intelectual, pela irracionalidade, pela linguagem, os palavrões escatológicos de Olavo de Carvalho, sem que a academia percebesse que Olavo atraia militares, policiais militares, financiadores, gente de todo tipo, fazendo a cabeça de toda essa gente", completa.

"É uma ilusão pensar que essas coisas vão desaparecer por milagre se Bolsonaro for derrotado nas urnas. Se Lula for eleito, vai voltar ao poder 12 anos depois que o deixou. Nesse intervalo de tempo considerável, o Brasil e o mundo mudaram, não são mais os mesmos. O Brasil de hoje não é o Brasil de 2010, quando Lula terminou seu segundo mandato, em 2010 não havia, por exemplo, uma extrema direita organizada e coordenada no país", acredita. Confira, a seguir, os principais pontos da entrevista de Rubens Ricupero à Revista Política Democrática online.

Revista Política Democrática Online (RPD): São múltiplos os temas que se podem explorar com o Embaixador Rubens Ricupero no amplo universo da celebração do bicentenário da independência do Brasil, sobretudo agora que também assume a cátedra José Bonifácio, da Universidade de São Paulo. Vamos centrar-nos, no entanto, em torno de três balizas fundamentais. A primeira seria um balanço do que o Brasil fez até agora, isto é, um stock taking de 200 anos de Estado Nação e 130 anos de República, sublinhando o que se deixou de fazer e o que cumpre fazer. A segunda: como conciliar uma visão apologética do que o governo tentou fazer em 200 anos e uma abordagem crítica do Brasil nesse bicentenário em setembro próximo. E a terceira: como edificar uma sociedade melhor do que a que herdamos. Embaixador, vale a pena comemorar o bicentenário da independência?  

Rubens Ricupero (RR): Eu me alegro muito que essa conversa prometa conduzir a uma abordagem mais ampla do tema, porque há muito tempo me preocupa essa questão do bicentenário. Em palestra na Academia Brasileira de Letras, em 2019, no ciclo “O que falta ao Brasil”, indiquei que faltava a esperança, a esperança no sentido laico de que o amanhã será melhor do que o ontem, e que o futuro, melhor do que o passado e melhor do que o presente. Dei à minha palestra o título “Brasil, um futuro pior que o passado?”, com ponto de interrogação porque, de uns anos para cá, estávamos em fase aguda de autoquestionamento. Muito intenso, o processo não começara com o governo Bolsonaro, mas bem antes, a partir de 2013/2014, resultando no impeachment e no que veio depoisForam crises sucessivas de natureza política, econômica-social, moral, que, a exemplo do que vivem os argentinos há mais de 80 anos, não desembocam em nenhum verdadeiro começo novo, mas apenas falsos começos, que chegam acompanhados de sinais inquietantes como a incapacidade, desde os anos 80, de crescer economicamente. Passamos décadas praticamente estagnados, com recessões cada vez mais graves, interrompidas por espasmos curtos de recuperação, logo seguidos por quedas muito fortes.   

Tomados em conjunto, tais sinais configuram uma crise de sistema, não só econômico, mas político e social. Sinto apreensão cada vez maior com o sistema político brasileiro – sistema como sinônimo de regime, isto é, de uma determinada configuração histórica que começa em certo momento, que tem uma estrutura de poder definida, uma Constituição formal, certas características de regime eleitoral, partidário, relações entre os poderes de Estado e que, cedo ou tarde, deixa de ser funcional, passa por crises sucessivas e finalmente se esgota e dá lugar a novo sistema. Desde a independência, a história do Brasil pode ser vista como uma sucessão de regimes.   

O primeiro, que não chega a ser um regime pela fugacidade, foi o do início da independência, com duração de menos de dez anos, que termina com a abdicação de Dom Pedro I. Foi consequência do que Otávio Tarquínio de Souza chamava do equívoco de se ter feito a independência do Brasil com um príncipe português. Foi uma falsa independência, ou uma independência parcial. Tanto assim que muitos autores do século 19 achavam que a verdadeira  independência principiava no sete de abril de 1831, quando o imperador abdica. Nesse momento, ele reassume sua tendência natural que era a de se preocupar com os assuntos da sua dinastia em Portugal. Era esse o interesse existencial de Dom Pedro I, não os destinos do Brasil.   

O segundo regime, passada a fase tumultuada da regência, começa com a maioridade de Dom Pedro II, não no sentido cronológico de 1840, data em que tinha 15 anos incompletos, mas 1848, quando começa efetivamente a governar. Vai durar uns 40 anos, de 1848 a 1889, o regime do Segundo Império, de uma estabilidade que é sinônimo de estagnação, crescimento econômico anêmico, timidez em enfrentar o problema da escravidão e outros desafios.   

"O bicentenário brasileiro está em curso e não terminará no marco cronológico, que é 7 de setembro. Vai terminar apenas na data das eleições porque uma coisa é a cronologia, outra coisa é a realidade, é a história, é o espírito de uma época"

Esse regime morre em 1889 porque não foi capaz de se auto reformar, de se modernizar, de se tornar mais efetivo, demorou demais em enfrentar a necessidade de grandes reformas, a maior das quais a abolição, e morre por causa disso. Começa então a Primeira República que também não data propriamente de 1889 porque esses primeiros anos de turbulência, intervenções militares, guerra civil na época de Floriano, representam as dores do parto de um novo regime. Ele começa, de fato, com Prudente de Moraes, Campos Salles e vai durar até 1930. Mas, já a partir de 1910 com Hermes da Fonseca se inicia o declínio, fases prolongadas de crises entrecortadas por momentos de aparente recuperação. Mais uma vez se configura o problema que já tínhamos identificado antes, isto é, o regime não é capaz de autorreforma, não é capaz mesmo quando começa o movimento tenentista, as denúncias sobre o sistema eleitoral, sobre a oligarquia, a escolha dos presidentes por um pequeno grupo e acaba derrubado pela revolução de 1930. Portanto, a duração real, de 1894, começo do governo de Prudente de Moraes, até outubro de 1930, não chega a 40 anos.    

A seguir, temos esse período dos 15 anos que é o nascimento do Brasil moderno, da indústria, da modernização da administração, que coincide com evolução institucional agitada – Revolução de 30, Revolução de 1932, Constituição de 1934 – passa pela fase repressiva, sombria, do Estado Novo, chegando ao fim em 45. A partir de 46, temos outro regime – o da Constituição de 1946 – um dos mais curtos, durará menos de 20 anos, encerrando-se com o golpe militar de 1964. Após os 20 anos do regime militar, com atos institucionais, constituições passageiras, violações frequentes da própria institucionalidade imposta pelos militares, inaugura-se o período atual.   

O sistema corrente tem início em 1985 com a saída dos militares do poder e com a estruturação institucional da Constituição de 1988, com nova organização partidária, eleitoral, papel ativo do Ministério Público, do Supremo Tribunal, tudo que conhecemos. Esse sistema tem um início tumultuado: a morte de Tancredo, a posse de Sarney, o enfrentamento da dupla herança maldita dos militares: a da crise da dívida externa e da tendência à hiperinflação (os militares deixaram o poder em parte porque fracassaram em enfrentar essas duas questões).   

O começo da incapacidade brasileira de crescer já se inicia, portanto, no regime militar, é alguma coisa que antecede a Nova República, que finalmente se consolida depois do impeachment de Collor, com Itamar, o Plano Real e vai ter seu período de fastígio. Assim como a República Velha teve sua idade dourada, o período dos governos de Rodrigues Alves, Afonso Pena, um pouco mais, uns nove anos de estabilidade e prosperidade, o da Nova República serão os 16 anos dos mandatos duplos de Fernando Henrique e de Lula.   

Depois disso, percebe-se o início de uma decadência ininterrupta, que temo ser difícil de reverter, uma espécie de caminho de autodestruição do sistema político, devido às razões conhecidas: legislação permissiva favorecendo a proliferação de partidos, na verdade mais sindicatos de interesse para ter acesso aos recursos do fundo partidário, dificuldade de maioria em parlamento fragmentado, com poderes quase de regime parlamentarista que exacerba ao máximo o patrimonialismo, a utilização dos mandatos para controlar recursos públicos para fins ilícitos ou irracionais, culminando na situação atual na qual o Congresso controla a parte mais importante do orçamento, sem nenhuma responsabilidade em relação aos efeitos negativos para a economia, perpetuando a estagnação e o desemprego.   

RPDHá tempo para se corrigirem as distorções? Por exemplo, as eleições de outubro próximo poderão contribuir para um novo Brasil?  

RR: O que temos visto até agora é a incapacidade de autorreforma pela velha razão de os principais beneficiários do sistema serem os que teriam de fazer as reformas, cortando na própria carne. Nesse sentido, Bolsonaro representa o sintoma mais alarmante da deterioração mórbida do sistema, um indício de que sua disfuncionalidade atingiu um nível em que ele começa a se autodestruir. Não acredito que a eleição vá representar em si mesma uma saída para a crise do sistema. Se a eleição levar ao poder não só um presidente, mas também um Congresso mais consciente da gravidade da crise, menos patrimonialista, poderá surgir a oportunidade de uma ampla negociação para enfrentar esses problemas que vêm da legislação partidária, da eleitoral, do orçamento “secreto”, das emendas de relator, tudo o que tem de ser modificado para que o sistema recupere um mínimo de funcionalidade. Se não conseguir fazer isso, o novo presidente não conseguirá governar, a crise se agrava e em algum momento, o regime que já dura há 37 anos (1985-2022) acabará como acabaram seus antecessores por meio da ruptura institucional.   

"Indiquei que faltava a esperança, a esperança no sentido laico de que o amanhã será melhor do que o ontem, e que o futuro, melhor do que o passado e melhor do que o presente"

RPDAté onde chegamos nesses 200 anos?  

RR: Chegamos aos 200 anos de vida independente em um momento negativamente crítico de nossa história. Há certos centenários ou bicentenários mais propícios. Por exemplo, os argentinos se orgulham de que o primeiro centenário deles coincidiu com momento de apogeu do país (1910).  Essa é uma visão nostálgica, de certa forma aristocrática, dos que se identificavam com o regime liberal das grandes famílias, que deliberadamente ignoram que os festejos do centenário argentino ocorreram sob estado de sítio, diante de ameaças anarquistas, do medo causado pela “Semana Roja” das greves proletárias. Um analista político argentino, Rosendo Fraga, chegou a afirmar: "No  segundo século, os argentinos se empenharam em destruir tudo que haviam construído no primeiro". Embora exagerada, essa visão serve para mostrar que, no caso da Argentina, havia ao menos circunstâncias objetivas que justificavam a gabolice. Era um país que parecia ter dado certo, admirado no exterior, recebia importantes visitantes estrangeiros, ocupava posição de destaque entre as economias do mundo e os maiores exportadores.  

O Brasil nunca viveu situação semelhante. O primeiro centenário brasileiro não foi um momento de euforia. Em 1922, o Brasil fizera um balanço de seu passado, sobretudo dos 35 anos da república, e tinha encontrado um déficit monumental. Houve até um esforço da geração nascida com a República, que não conhecera a monarquia, a levar avante o que, na época, chamavam de inquérito, uma consulta a intelectuais. Vicente Licínio Cardoso, organizador do inquérito, publicou o livro À margem da história da República, que continha artigos de Oliveira Viana, Alceu Amoroso Lima, Gilberto Amado, de alguns dos principais intelectuais de então. Foi um livro de consciência crítica sobre a república, revelando realizações muito aquém do esperado.   

Os acontecimentos que marcaram o primeiro centenário nem sempre estavam explicitamente ligados ao centenário, mas exprimiam o desejo de uma reconstrução de alguma forma inspirada pelo centenário. A Semana de Arte Moderna teve essa intenção de modernizar a cultura e a percepção do Brasil, de redescobrir a vida e a cultura do povo. Tratava-se, pois, de uma inspiração ligada em sentido amplo ao centenário. Na mesma linha, situou-se a fundação em Niterói do Partido Comunista do Brasil e, quase ao mesmo tempo, a do Centro Dom Vital por Jackson de Figueiredo, renovação do pensamento católico. O movimento tenentista de cinco de julho também visa justamente a mudança do sistema político-eleitoral. O ano do centenário no caso brasileiro vale não tanto pela grande exposição que foi feita no aterro, depois da demolição do Morro do Castelo – note-se, deixando sem moradia milhares pessoas pobres. Vale não pelos acontecimentos festivos e sim por esses esforços de refundação.   

RPDPodemos supor que a celebração agora poderá voltar-se mais para estudos históricos de nossos primeiros 200 anos independentes?  

RR: Espero que sim, embora já se tenha feito muito a respeito. Na elaboração do meu artigo sobre o bicentenário, me inspirei na obra monumental de Pierre Nora “Os Lugares da Memória”. Num trecho do livro, o autor afirma que vivemos hoje uma situação curiosa, uma espécie de tensão dialética. De um lado, uma multiplicação dos aniversários a comemorar, uma espécie de mania de comemorações. A França chegou até a criar uma repartição pública para a coordenação das comemorações nacionais. E, do outro lado, uma contestação cada vez mais dura às comemorações, cuja expressão mais recente é a destruição de monumentos e estátuas. No caso brasileiro, tenho a impressão de que a prioridade não seja tanto de promover grandes estudos históricos. É claro que sempre há espaço para dizer coisas novas, mas, se tivermos de escolher, eu escolheria me concentrar em uma visão de futuro. Já tivemos na USP trabalhos admiráveis sobre o período da formação do Estado. O professor István Jancsó, que morreu em 2010, coordenou um projeto temático que se chamava “Brasil, a formação do Estado e da Nação”, uma obra enorme com 20 e poucos pesquisadores de mais de dez universidades. Como já existem também vários trabalhos recentes sobre José Bonifácio, concluí que não deveríamos nos propor a refazer esses trabalhos, como ocorreu no centenário, por exemplo, com a publicação dos Anais da Independência, de toda a documentação sobre o reconhecimento, tudo isso é louvável, mas na minha situação, quase com 85 anos, com pouco tempo disponível, prefiro olhar para a frente.   

RPDQual deveria ser o balanço dessa produção com olhos no futuro?  

RR: Como o balanço de qualquer país, o nosso também se divide em luzes e sombras. Gosto de usar a imagem da construção, que aliás não tem nada de original, a ideia de construção ou formação é uma ideia presente, como mostrou Antônio Candido, na obra de quase todos os intérpretes do Brasil, a ideia de formação, da sociedade patriarcal, da economia, do Brasil contemporâneo, até no livro do próprio Antônio Cândido sobre a formação da literatura brasileira. É uma ideia antiga que vem dos anos 20, dos anos 30.  

Parece óbvio que toda nação seja uma construção permanente, que não termina nunca, a não ser quando é demolida e vira ruínas como em Roma até aparecer nova construção em cima. Mas a história é isso, é uma construção permanente com altos e baixos. Estamos vivendo no Brasil um momento de demolição. O  presidente Bolsonaro mesmo declarou em várias ocasiões que tinha vindo não para construir alguma coisa e sim para demolir.  

Temos 200 anos de história com muita coisa admirável realizada, que não se deve ignorar, dando ênfase apenas ao que falta. Em contraste com o orgulho dos argentinos sobre o seu primeiro centenário, o que vemos se olharmos para 1922? Um país que não tinha nenhuma universidade, a não ser a criada no papel em 1921. Mesmo em 1950, ano da eleição de Vargas, havia somente 45 mil ou 46 mil pessoas inscritas em cursos superiores. No ano passado, chegou-se a oito milhões e 600 mil. Não se pode dizer, então, que o Brasil ficou parado. Entramos no século 20, em 1900, com 17 e meio milhões de habitantes, dos quais 86% de analfabetos totais, muitos remanescentes da escravidão, recém terminada. Havia enorme população marginal, com subemprego. A expectativa de vida mal chegava a 30 anos. No Rio de Janeiro, até Oswaldo Cruz se tornar o diretor da saúde pública, em todos os anos, desde a época de Dom João VI até 1906 ou 1907, os óbitos eram mais numerosos do que os nascimentos, a cidade só crescendo por migração. Maria Luiza Marcilio, fundadora da história estatística no Brasil, escreveu um belo estudo a esse respeito, baseado em pesquisas primárias em arquivos de paróquias. Não se pode dizer, portanto, que o Brasil não caminhou nada nesses 200 anos, por isso é preciso assinalar o que se fez e o que se deixou de fazer.   

RPDA celebração do bicentenário tem data marcada para terminar?  

RR: O bicentenário brasileiro está em curso e não terminará no marco cronológico, que é sete de setembro. Vai terminar apenas na data das eleições porque uma coisa é a cronologia, outra coisa é a realidade, é a história, é o espírito de uma época. É como se costuma dizer que o século 20 não começou em 1901, começou de verdade em 1914, quer dizer, o espírito do século começa em 1914 com a Grande Guerra. No nosso caso, o terceiro centenário só começa depois que terminar essa fase penosa a que estamos assistindo, que esperamos seja superada pelo processo eleitoral. A partir de então, começará nosso terceiro centenário, oxalá sob o signo da esperança.   

O historiador argentino Luis Alberto Romero, que escreveu ensaios interessantes sobre o bicentenário argentino, diz algo que é evidente, mas vale a pena lembrar. Diz ele: os grandes aniversários, como os centenários de uma nação, impõem duas perguntas obrigatórias, ou melhor, uma pergunta e um desafio, a primeira pergunta é: o que nós fizemos? E o desafio é: o que nos falta fazer, o que nós temos que fazer?  

"Sinto apreensão cada vez maior com o sistema político brasileiro – sistema como sinônimo de regime, isto é, de uma determinada configuração histórica"

RPDAproveitando esse gancho, pergunto o que podemos fazer para recuperar a imagem do Brasil no exterior e infundir nos jovens a honra do serviço à pátria também no exterior?  

RR: Não me vejo em condições de dizer o que o Brasil deve fazer. Posso dizer o que eu gostaria que o Brasil fizesse. É um processo, não propriamente reservado a intelectuais porque a questão da comemoração do bicentenário é um dever de cidadania, que todos devem cumprir, isto é, a ideia de comemorar, de lembrar juntos significa que temos de indagar se existe uma memória coletiva unificada, indiferenciada ou se essa memória coletiva é formada de fragmentos de memória, e, nesse caso, até que ponto os fragmentos de memória convergem como peças de mosaico para formar algum desenho com sentido.   

É possível dizer que exista uma memória unificada brasileira sem levar em conta a memória nos negros, a memória dos povos originários, a memória das mulheres, a memória de todos aqueles que nunca tiveram uma posição de direção do processo histórico e, ao contrário, foram oprimidos e marginalizados? Acredito que não. O que existe na realidade é uma memória fragmentada. A única maneira de tentar juntar os fragmentos de memória é dando voz às pessoas, em uma primeira etapa, para exprimirem suas queixas e, em uma segunda etapa, para manifestarem o que desejariam construir.   

A cátedra José Bonifácio é algo de limitado à USP. Por isso, preciso da ajuda de vocês, para a melhor disseminação de ideias que espero possam ser compartilhadas pelo maior número possível de pessoas da população. Reconheço para isso meus limites: não conheço as pessoas representativas da comunidade negra, do movimento dos povos originários e outros similares.  

Sobre como redespertar nos jovens a esperança, gostaria de contar experiência que tive, anos atrás, antes do ano 2000, quando  estava ainda na UNCTAD. Na ocasião, sugeri a Michel Camdessus, ex-diretor do FMI e meu amigo pessoal desde os tempos em que éramos ambos frequentadores da missa da igreja dos jesuítas de Georgetown, em Washington, ideia inspirada na Revolução Francesa. Como se sabe, a Revolução teve sua origem na eleição para a Assembleia Nacional, do Terceiro Estado, da nobreza e do clero, sobretudo a eleição para o terceiro Estado que se fez por paróquias. Em cada paróquia, as pessoas redigiam um cahier de doléances, um caderno de dores, de queixas, de reclamações. Milhares desses cadernos sobreviveram, e é isso que permite um retrato fantástico de qual era o estado da França no fim do Antigo Regime e na véspera da Revolução. Todo ano, Camdessus reunia no verão, em sua casa de Bayonne, um grupo de amigos para debater ideias. Naquele ano, o tema era o que esperar do século 21 e o novo milênio. Sugeri então: por que, em vez de cahiers de doléances, não escrevemos cahiers d’espérance? Isto é, quais são as razões credíveis, não fantasias, que nos levam a crer que o terceiro milênio será melhor que o segundo ou o primeiro?   

A primeira resposta foi a de Michel Camdessus, que me pareceu notável: “A razão de acreditar que o terceiro milênio vai ser melhor é a emancipação da mulher. A mulher até agora praticamente não tinha voz, ocupava na maioria das culturas posição subalterna, dominada. Vivemos milênios, na maior parte da história, como se a humanidade utilizasse apenas metade do cérebro, agora passamos a utilizar a outra metade”.   

Esse exemplo pode ser adaptado ao nosso propósito. Temos de indagar: “quais são as razões para crer que o terceiro século do Brasil será melhor que os dois anteriores? Em outros termos, o que temos de fazer para que a realidade futura seja melhor que a presente e a passada? 

Refiro-me não a motivos de political fiction, sim a motivos credíveis, razoáveis, quais são as condições para que o futuro do Brasil seja melhor que seu passado? É claro que cada um, cada setor tem de partir de sua própria realidade para responder. Não me cabe, por exemplo, falar em nome dos negros, dos indígenas, dos marginalizados. Imagino que haverá muita queixa, muita expressão legítima de mágoa contra a história brasileira, que foi madrasta para muitos setores do povo.  

Esses setores não têm razão nenhuma para fazer uma celebração festiva ou apologética do bicentenário. O índio no Brasil viu sua condição piorada, passou a viver sob ameaça de extinção desde o começo da colonização dos portugueses. No ano 2000, na comemoração dos 500 anos da chegada dos portugueses, o governo se esqueceu dos índios, o que causou naturalmente uma reação da parte deles de contestação à comemoração do que para os povos originários não passara do começo do extermínio, da escravização.  

O negro então tem razões especiais para ser contra o bicentenário. Logo no começo da independência, pressionado pelos ingleses, o governo brasileiro assinou o tratado para pôr fim ao tráfico a partir de 1830. Em novembro de 1831, a lei votada na época da Regência Trina, quando o ministro da Justiça era o padre Feijó, proibia a importação de africanos e determinava que qualquer africano introduzido no Brasil, a partir daquela data, fosse imediatamente libertado. Não aconteceu nem uma coisa nem a outra. Mais de um milhão de africanos foram importados ilegalmente, com a conivência, a cumplicidade ativa das autoridades. O Brasil se tornou, assim, o único caso de país que teve uma escravidão contra sua própria lei, ao menos no caso dos escravizados chegados depois de 1831 e de seus descendentes. Estou convencido de que, em termos puramente jurídicos, os negros brasileiros teriam direito líquido e certo a uma indenização porque o Estado brasileiro violou sua própria lei. A escravidão era legal, mas o tráfico não era.  

Como mencionado antes, o processo de construir o futuro tem de ter duas etapas, o cahier de doléances e o cahier d’espérances, e tem de dar voz a quem não tem voz. Não é a minha voz. Ontem (3/02), por exemplo, conversei por zoom com a Marta Suplicy sobre a exposição alusiva à Consciência Negra da prefeitura de São Paulo, que teve uma primeira edição no ano passado e agora se prepara a segunda. Ela talvez tenha como tema o bicentenário. Quem deve planejar não seremos nós, a ideia é chamar negros representativos para que se organizem e digam o que esperar do terceiro centenário no Brasil. São os membros da comunidade negra que têm de dizer o que, do ponto de vista deles, desejariam que fosse o terceiro século do Brasil.  

"O que temos visto até agora é a incapacidade de autorreforma pela velha razão de os principais beneficiários do sistema serem os que teriam de fazer as reformas, cortando na própria carne"

RPDQual seria a melhor maneira de seu ponto de vista de celebrar o bicentenário?

RR: Minha visão de brasileiro, de 84 anos, descendente de imigrantes italianos, embora muito pobres, branco, de olho azul, não é a mesma de outros brasileiros. Tenho de comparar minha visão com a dos outros. O maior desafio da escolha do objeto de reflexão no bicentenário é que não podemos abarcar tudo, como uma espécie de “museu de tudo”, desde agricultura, indústrias, minas, instituições políticas, eleitorais, cultura, seria uma enciclopédia do Brasil, isso não vamos poder fazer.   

Diante de desafio semelhante na Argentina, Luis Alberto Romero declarou: "No meu artigo, vou deixar de fora a sociedade e a economia, porque não tenho condições de falar sobre isso. Vou me concentrar só em três elementos: a Nação, a República e o Estado". Ora, já isso é gigantesco, um programa para uma vida toda, não é? Se, ao lado disso, tivermos de analisar a economia, a sociedade, a universidade, então é um mundo...  

Temos de escolher alguns temas que sirvam como eixos principais, talvez quatro ou cinco: desigualdade, democracia, meio ambiente, desenvolvimento, cultura. O primeiro seria a desigualdade. Se fizermos um inquérito com os brasileiros, veremos que a maioria, quando interrogado sobre:  “Qual a pior herança dos 200 anos, o que faltou fazer?", não hesitaria em responder: "É a herança da desigualdade". Não somos o único país desigual, todos os países são desiguais em algum grau, mas sabemos que, no nosso caso, a situação é excepcional, terrível, assustadora. Não se pode sair à rua sem que o problema nos entre pelos olhos. Vejo isso aqui, em São Paulo, minha cidade, uma das mais avançadas do país. Outro dia fui à Praça da Sé, o centro antigo da cidade. Vi a praça inteira ocupada por um acampamento imenso de tendas de pessoas que não têm onde morar. A periferia, aquilo que ficava a quilômetros e que em São Paulo não se via por causa da topografia da cidade, a periferia virou o centro. Aquilo que se dizia no Rio de Janeiro nos anos 50, que o morro um dia vai descer, já aconteceu. Não dá mais para ignorar o problema da desigualdade.   

Não tenho receita de como resolver isso, temos de ouvir os cientistas sociais que vêm aperfeiçoando ideias efetivas sobre como lidar com a desigualdade no Brasil. Não me refiro apenas à desigualdade de renda e de fortuna, mas à desigualdade de cor, o problema do racismo, o problema dos negros, dos índios, dos refugiados e imigrantes, o problema da igualdade de gênero, da mulher, tudo isso na rubrica desigualdade.  

Um segundo tema seria a democracia, que abarcaria o sistema político, o sistema eleitoral, o sistema partidário, o parlamento, o acesso de todos à justiça, a polícia, em suma, os Direitos Humanos na sua totalidade, só aí já é outro universo. Uma terceira rubrica é o meio ambiente. Se não acertarmos com a solução adequada para evitar o agravamento do aquecimento global, a destruição da Amazônia, das florestas, das nascentes de água, nem precisaremos nos preocupar com os demais problemas porque a sociedade tal como a conhecemos deixará de existir. Um quarto grande tema será o desenvolvimento, a economia, a vida material, pois sem base econômica, não temos como fazer funcionar o restante. Como podemos voltar a crescer?  

Esses grandes temas não esgotam a agenda: por exemplo, educação e saúde podem ser incluídos tanto em desigualdade como em democracia. Mas aquelas quatro rubricas pelo menos permitiriam organizar a reflexão e a discussão. Faltaria ainda falar sobre a necessidade de renovação da cultura, das ideias, das artes. 

Resumindo, diria que a visão de futuro deve começar pelas queixas, não tanto ou somente do passado, mas, sobretudo, do presente, cahier de doléances. Um exemplo concreto: os negros e índios vão querer conservar as cotas, ampliar as ações afirmativas. Cada setor terá um determinado programa.  

RPDApesar de tudo, embaixador, o senhor é otimista?  

RR: Essa questão demanda qualificações. Impressiona-me que a ascensão da extrema direita no Brasil tenha começado no terreno intelectual. Há entre nós a atitude de não levar a sério pseudo filósofos como Olavo Carvalho e discípulos, porque de fato são charlatães, mas charlatães que tiveram impacto. Olavo de Carvalho atingiu milhares de pessoas e desencadeou um movimento de ideias e de ação, utilizando ideias vindas de filósofos e intelectuais italianos, franceses, fascistas, pós-fascistas, tradicionalistas reacionários e transformou isso tudo em ideias pasteurizadas de fácil consumo por pessoas sem formação universitária. Foi um movimento que começou no domínio das ideias mediante a criação de editoras, lançamento de cursos de Filosofia online. Tudo isso ocorreu fora da universidade e da academia, que os desprezavam pelo primitivismo intelectual, pela irracionalidade, pela linguagem, os palavrões escatológicos de Olavo de Carvalho, sem que a academia percebesse que Olavo atraia militares, policiais militares, financiadores, gente de todo tipo, fazendo a cabeça de toda essa gente.   

É uma ilusão pensar que essas coisas vão desaparecer por milagre se Bolsonaro for derrotado nas urnas. Se Lula for eleito, vai voltar ao poder 12 anos depois que o deixou. Nesse intervalo de tempo considerável, o Brasil e o mundo mudaram, não são mais os mesmos. O Brasil de hoje não é o Brasil de 2010, quando Lula terminou seu segundo mandato, em 2010 não havia, por exemplo, uma extrema direita organizada e coordenada no país. Será que Lula está consciente disso?  

"Não acredito que a eleição vá representar em si mesma uma saída para a crise do sistema"

Toda essa mudança começou no domínio da cultura, da vida intelectual, das ideias. Mesmo que as desprezemos por considerá-las ridículas, muitas vezes lunáticas, são ideias que produziram graves efeitos. Vejam os Estados Unidos, um país cujo futuro me preocupa mais que o do Brasil porque lá a divisão é mais profunda, a extrema direita é incomparavelmente mais forte do que aqui, com grande chance de voltar ao poder. E lá também tudo começou no domínio das ideias que circulam à margem das academias.   

Temos de reagir, entre outras maneiras, por uma revolução da cultura, porque nossa cultura não está respondendo à altura.  Nossa cultura tradicional, da academia, ficou demasiado presa a essas bobagens do tipo currículo Lattes, de revistas de peer review que contam pontos na carreira universitária, coisas em si necessárias, mas que, em excesso, transformam a vida do espírito em burocracia universitária, em torre de marfim, mandarinato. Perdeu o contato com o mundo real das pessoas de carne e osso, não há nem de longe uma figura comparável a Mário de Andrade. Por mais que hoje tenha se tornado moda criticar o movimento de 22, a verdade é que ele foi uma autêntica revolução cultural, uma profunda mudança na maneira pela qual os brasileiros se viam a si mesmos, ao povo simples, a arte popular, a herança do passado. Mário de Andrade fez a cabeça das pessoas, sou velho o suficiente para ter ouvido Tristão de Ataíde no centro Dom Vital dizer em uma conferência: "Toda minha geração antes do Modernismo sentia vergonha do passado colonial, do estilo barroco, de Minas Gerais, nós, quando se começou a demolir as antigas casas do velho Rio, achávamos ótimo porque tínhamos vergonha de que um francês viesse ao Brasil e visse aquilo; quem nos abriu os olhos foi o Mário, foi ele que nos tomou pelas mãos, nos levou a Ouro Preto, nos levou a todos os lugares em que se precisava valorizar essa raiz brasileira".   

Hoje, não temos gente assim. É preciso começar a reconstrução por meio da cultura brasileira, das ideias, do pensamento.   

Vocês me perguntam se sou otimista. Penso nisso como Gramsci que, em certa ocasião, escreveu ao irmão Carlo para censurá-lo por haver contado à mãe sobre o estado lastimável em que o tinha encontrado na prisão. Aliás, o próprio Gramsci ao ser transferido de prisão e rever, depois de anos preso, seu rosto no espelho do banheiro do trem, teve um choque fortíssimo de não reconhecimento. Na carta ao irmão, Gramsci reformulou o programa de vida traçado por Romain Rolland “pessimista na inteligência, otimista na vontade”. Assim descrevia seu ideal, que me permito fazer meu: 

     “o homem deveria alcançar um grau máximo de serenidade estoica, e adquirir a convicção profunda de que possui em si mesmo a fonte das próprias forças morais, de que tudo depende dele, de sua energia, de sua vontade, [...] – a ponto de jamais desesperar e não cair nunca mais naqueles estados de espírito – vulgares e banais – a que se chamam pessimismo e otimismo. Meu estado de espírito sintetiza esses dois sentimentos e os supera: sou pessimista com a inteligência, mas um otimista com a vontade”. 

No fundo, o que Gramsci e outros fizeram foi dar expressão a uma verdade que todos temos presente na consciência, a de que o futuro não está traçado, não está pré-determinado, ele não está escrito nas estrelas, o futuro vai depender do que a gente fizer ou deixar de fazer, tanto o futuro do Brasil como o de qualquer outro país. Até pouco tempo atrás, a gente tinha aquela ilusão de que os Estados Unidos, por exemplo, seriam um país de democracia irreversível, que só poderia se aperfeiçoar com o tempo. Com a eleição de Trump e tudo que aconteceu, vimos que não era assim. Já tínhamos aprendido isso com o nazismo na Alemanha, antes disso com o fascismo na Itália, isto é, nenhuma comunidade humana, nenhuma formação social, nenhuma nação, pode afirmar: “Cheguei ao ponto mais alto de realização, a partir de agora, vou me deitar na rede e usufruir porque não terei mais problemas”. Na realidade, nada está garantido, tudo pode piorar, caminhar para trás, uma linha tênue separa a civilização da barbárie, a história tem um componente muito grande de tragédia.  

Receio que o futuro brasileiro, nos próximos 100 anos, terá momentos muito difíceis. Vejo com dificuldade como esse sistema político que temos dará lugar a um sistema menos disfuncional, pode ser que isso venha acompanhado de violência. Todos os regimes ou sistemas políticos que tivemos terminaram por ruptura institucional, isto é, por rompimento das regras constitucionais.  

A ruptura da base institucional é violenta por abandonar as regras anteriormente aceitas, porque a mudança não ocorre em obediência, mas em violação às normas estabelecidas. Nem sempre vem acompanhada de violência física, de guerra civil, de destruições, apesar da frequência dos câmbios violentos. A frase de Marx em O Capital de que “A violência é a parteira de toda a sociedade velha que está prenhe de uma sociedade nova” tem muito de verdade.  

Basta pensar nas convulsões da França na Revolução de 1789, nas de 1830, 1848, na Comuna de 1871; no final wagneriano do nazismo na Alemanha, do fascismo na Itália. Até os Estados Unidos não escaparam à prova da violência no nascimento da sociedade pós-escravagista com a espantosa e mortífera violência da Guerra Civil.  

Já no caso do Brasil, felizmente fomos em geral poupados de extremos de violência física nas rupturas da proclamação da República, da própria Revolução de 30, não tanto no golpe de 1964, no seu melancólico fim. Quem sabe o que reserva a história para o carcomido regime brasileiro? 

"O presidente Bolsonaro mesmo declarou em várias ocasiões que tinha vindo não para construir alguma coisa e sim para demolir"

RPDO senhor nos deixa com certo sentimento antecipado de inveja por não podermos desfrutar dos diálogos que promoverá na Cátedra José Bonifácio.  

RR: Não se preocupe, serão todos transmitidos por canais virtuais. É de meu interesse também que as discussões se multipliquem, para compensar esse debate paupérrimo que nos assola, sobretudo em ano de eleições. É claro que não vamos conseguir afetar diretamente a campanha eleitoral, mas a gente deveria fazer um esforço para que o resultado das reflexões sobre o bicentenário influencie de alguma maneira o debate público.   

SAIBA MAIS SOBRE O ENTREVISTADO

*Rubens Ricupero é diplomata aposentado e historiador. Embaixador junto à ONU e ao GATT em Genebra, nos Estados Unidos e na Itália. Assessor de Tancredo Neves e José Sarney. Ministro do Meio Ambiente e da Amazônia. Ministro da Fazenda. Secretário-Geral da UNCTAD (Genebra). Professor do Instituto Rio Branco e da UnB. Atualmente é titular da Cátedra José Bonifácio da USP. Autor de vários livros, sua última obra é A diplomacia na construção do Brasil 1750-2016 (Editora Versal, 2017)”.

** Entrevista especial produzida para publicação na Revista Política Democrática Online de fevereiro/2022 (40ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

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"Cultura contrastante" marca modernismo e tropicalidade de Bye Bye Brazil

João Vitor, da equipe FAP, com edição do coordenador de Publicações, Cleomar Almeida

Dirigido por Carlos Diegues, o filme Bye Bye Brazil (1979) é, segundo o professor de história do cinema Ulisses de Freitas Xavier, impregnado de brasilidade. “A gente vê o modernismo, a tropicalidade e a exposição de cultura diversa e contrastante por meio de uma longa  viagem por este país continental”.

O longa será tema de debate nesta quinta-feira (17/02), a partir das 17 horas, em evento online da Biblioteca Salomão Malina e Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília.

A transmissão será no site e Youtube da fundação, assim como no Facebook da biblioteca. Além de Xavier, o cineasta e documentarista Vladimir Carvalho confirmou a participação na live.



Apesar da nudez em Bye Bye Brasil, o professor diz que o filme não pode ser considerado como pornochanchada. “O filme está longe de flertar com as célebres comédias eróticas brasileiras, mas é comum confundir qualquer filme brasileiro deste período com pornochanchada”, afirma.

O crítico Xavier destaca a cena em que a trupe encontra o senhor do cinema ambulante (Jofre Soares), que está exibindo “O Ébrio”. “É o encontro de um Brasil que deixava de existir com outro país”, analisa. 

Ele avalia que o longa mostra um Brasil que se descortinava em 1980. “Bye Bye Brasil fala também de americanização e globalização, mas nos diz muito dos contrastes de um país perverso com seu povo, cujos meios de comunicação serviriam para a alienação e exploração”, diz.

“O filme capta muito bem o papel, por vezes perverso, da TV e de como ela ajudou a destruir culturas tradicionais”, afirma Xavier sobre o filme que será debatido. 

Premiado pela Federação de Cineclubes do Estado do Rio de Janeiro em 1980, Bye Bye Brasil é comédia dramática com trilha sonora de Chico Buarque. O filme foi distribuído pela Empresa Brasileira de Filmes S.A (Embrafilme) e tem 110 minutos de duração.

Ciclo de debates O modernismo no cinema brasileiro

Webinar sobre Bye Bye Brasil (Carlos Diegues, 1980)
Dia:
17/02/2022
Transmissão: a partir das 17h
Onde: Perfil da Biblioteca Salomão Malina no Facebook e no portal da FAP e redes sociais (Facebook e Youtube) da entidade
Realização: Biblioteca Salomão Malina e Fundação Astrojildo Pereira

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Paulo Fábio Dantas Neto: Brasil e Bahia - Luzes alternativas no fim do túnel

Paulo Fábio Dantas Neto / Democracia e Novo Reformismo

Ganham intensidade e densidade os movimentos do pré-candidato Lula da Silva em direção à ocupação do centro político. São passadas largas, porém, calibradas para construir um caminho que, de um lado, confirme e consolide, pela política, a posição de liderança que as pesquisas de intenção de voto há meses lhe conferem, sendo a vitória no primeiro turno uma hipótese alimentada, ainda que não posta como condição ou prioridade. De outro lado, Lula começa a sinalizar a busca de construção antecipada de uma governabilidade, para o caso de vitória. Ele não é o único ator a fazer movimentos agregadores, mas é o principal e, até aqui, o que tem mais chance de ser bem sucedido, porque tem procurado usar sua dianteira nas pesquisas como capital político para perseguir esses seus dois objetivos de modo complementar, sem contradição ou mesmo paralelismo entre eles. Se conseguir controlar os radicais da sua turma (ainda que os use também para endurecer negociações) o sucesso é provável.

Um dos terrenos em que o ex-presidente tem se mostrado em plena forma é o dos entendimentos para articular, à sua estratégia na eleição presidencial, soluções negociadas para as competições estaduais. Tem buscado, com aparente êxito inicial, levar para discutir, nesse terreno dos arranjos estaduais, até mesmo quem, a princípio, está fixado, prioritariamente, em conquistar espaço próprio na disputa nacional, como é o caso de Gilberto Kassab e seu PSD.  Há poucos dias, movendo pedras num tabuleiro em que se joga o jogo presidencial associado às disputas estaduais no Rio de Janeiro e em São Paulo, Lula atraiu o PSD e deu um tranco no PSB, que tem colocado óbices à concretização de uma federação partidária de esquerda nos termos em que o PT a deseja e propõe. Fixando-se no nome de Fernando Haddad (PT) em São Paulo, depois do PT ter acenado com apoio a Marcelo Freixo (PSB) no Rio, Lula provocou um bate-cabeça no PSB, entre a intenção de Marcio França de ensaiar uma resistência paulista (inclusive acenando a Ciro Gomes) e a de Freixo de mostrar-se carioca da gema e, para garantir o apoio do PT, não se dispor a participar dela. Ao agirem pensando mais nos seus quadros estaduais, ambos os socialistas deram passos em falso e, hoje, estão mais perto de terem suas pretensões a cabeças das respectivas chapas deslocadas para o Senado (França) ou até para a Câmara (Freixo). O gesto complementar de Lula para tirar espaço do PSB e pressioná-lo a um acordo foi mostrar simpatia, junto a Kassab e ao prefeito Eduardo Paes, pela inclusão do PSD nas tratativas em curso nos dois estados. No caso do Rio, o argumento é que um candidato de Paes ampliará mais que Freixo a frente contra a reeleição do governador, apoiada por Bolsonaro.  No de São Paulo, a pressão sobre o PSB inclui propor a Kassab abrigar no PSD seu virtual vice, Geraldo Alkmin.

Na Bahia, parece que Lula tem, no seu partido e entre aliados, interlocutores mais convencidos de que a lei da gravidade funciona do plano nacional para o estadual. Apesar de na Bahia, à diferença do Rio e de São Paulo, o PT e seus aliados controlarem o governo estadual, serem amplamente predominantes na bancada baiana na Câmara e monopolizarem a do Senado, a nenhum deles ocorre a veleidade de armar suas estratégias em contraponto ou à revelia do eixo estruturante que é a disputa presidencial, eixo ao qual, para condicionar também as alianças majoritárias estaduais, junta-se agora, por conta de suas novas regras, a disputa para Deputado Federal.

Até essa terça-feira, 15/02, nove entre dez observadores da política estadual raciocinavam como mais que provável, no campo governista estadual, um arranjo que vinha sendo alimentado publicamente pelos grandes atores desse campo (o governador Rui Costa e os senadores Jacques Wagner e Oto Alencar), assimilado pelo PT como a melhor solução para o partido e seus deputados.  O senador Wagner tentaria voltar ao governo, disputando a eleição contra ACM Neto, ex-prefeito de Salvador, até aqui líder nas pesquisas de intenção de voto. O governador ficaria no posto sem ser candidato a nada – apesar da avaliação amplamente positiva, sua e do seu governo em pesquisas - para garantir apoio governamental à campanha ao Governo e ao Senado, bem como à eleição de deputados estaduais e federais. Quanto à vaga para disputar o Senado seria destinada à reeleição de Oto. Aplacar-se-iam, em nome da acomodação possível numa aliança que já dura quatro mandatos, os desejos originais do governador de disputar a vaga e o do atual ocupante de ser guindado à cabeça da chapa.

Boa parte do PT baiano parecia crer que a performance pré-eleitoral de Lula seria uma sopa nesse mel. Induziria a essa acomodação, para si interessante, que, em caso de êxito, prolongaria a hegemonia petista, ameaçada pela performance de ACM Neto. Por isso teve grande impacto ontem a notícia de que, sob a batuta de Lula, as duas maiores lideranças petistas do Estado cogitam entregar a cabeça da chapa ao PSD, representado na Bahia pelo senador Oto Alencar, indo o atual governador Rui Costa para a disputa senatorial, admitindo-se até que, durante a eleição, o Estado seja governado pelo vice-governador João Leão, quadro político filiado ao PP e que vinha a meio caminho de tornar-se dissidente. O dia de ontem inscreveu na pauta estadual essa outra hipótese de acomodação, agora uma guinada ampla, cujo objetivo político transcende muito ao que está em jogo na Bahia.

No dia seguinte à reunião com Lula, Jacques Wagner mantém o discurso de pré-candidato porque os entendimentos ainda não puderam ser concluídos. Afinal, nada com o PSD ocorrerá por osmose ou mera gravidade, seja na Bahia ou em qualquer lugar. Mas a solução pela candidatura de Oto Alencar tem muita razão de ser. Ela tem racionalidade para Rui Costa (que quer ser senador), para Wagner (que continuaria senador e talvez ministro, sem precisar se arriscar numa campanha contra Neto agora) e, principalmente, para Lula, que além de manter a base aliada mais unida na Bahia, precisa do apoio nacional do PSD para tentar ganhar no primeiro turno e talvez abrigar Alkmin, dando um chega pra lá final no PSB, que segue resistindo em São Paulo (a prioridade do PT), contra Haddad, o homem de Lula.

A solução Oto pode não atender a algumas razões presentes no PT baiano. Na sua militância fisiológica agarrada aos cargos do Estado e no que ali ainda há de militância ideológica. Contraria também planos de candidatos petistas ao legislativo, principalmente deputados estaduais que temem o que João Leão poderá fazer contra elas, em nove meses de governo, para favorecer candidatos da sua turma. Mas que valem essas razões contrariadas no PT baiano se comparadas à do coração lulo-paulista que bate no PT?

Suponho que o acordo ainda não está feito, em grande parte, porque Kassab tem opções. Ao menos duas. Acena-lhe também a agregação que, através da pré-candidatura de Simone Tebet, o MDB tenta com o União Brasil e dissidentes do PSDB. Parte desses últimos acenam, alternativamente, alimentando a pretensão originária de Kassab de lançar um candidato, com a filiação ao PSD do possível migrante governador tucano Eduardo Leite, ao tempo em que identificam, entre os novos quadros daquele partido, o capixaba Paulo Hartung como possível vice. Lula conhece os limites do poder de persuasão de ambos os acenos concorrentes que se fazem ao PSD. O primeiro esbarra na propensão dos referidos partidos tradicionais a privilegiarem a eleição de fortes bancadas. O segundo aceno incorre em problema diverso, que é o sotaque de “nova política” que possui a virtual chapa gaúcho-capixaba, que se propõe a um partido cuja alma é o pragmatismo da “política dos políticos”.   Mesmo assim Lula se empenha parecendo encarar essa adesão do PSD como uma meta relevante.

Mas retornemos à Bahia para dizer que o novo acordo não está concluído também porque Oto ainda não topou. Ele teria reeleição tranquila para o Senado, por que se arriscar assim?  Não é ingênuo e sabe que vai ser ainda mais difícil derrotar ACM Neto tendo João Leão no exercício do governo, durante a campanha. A garantia de que o tampão se empenhará na sua campanha é quase nula, pois a tendência é a máquina ser usada para eleger deputados em dobradinha inclusive com Neto.

Além disso, a tendência "natural" da maioria dos eleitores baianos é votar em Lula, em Neto e em Rui Costa, para o Senado. E nem Lula, nem Rui vai lutar além de um ponto igualmente inercial para reverter isso por causa de Oto. Assim como ACM Neto não vai brigar com eleitores de Lula e Rui para tentar eleger qualquer senador seu, ou apoiar Sergio Moro, Ciro Gomes ou outro candidato nacional qualquer.

Oto Alencar é um político experiente e sabe de tudo isso. Então resistirá, se puder, a disputar o governo. Mas as pressões são imensas. Primeiro, consta que houve um movimento de Rui, combinado com Lula, de expressar o desejo de disputar o Senado. Isso ameaça claramente a reeleição de Oto Alencar. Simultaneamente Lula oferece a Kassab a cabeça da chapa e Wagner, nos bastidores, admite desistir em favor de Oto. Arremate, quiçá necessário, será Lula acenar com uma posição federal em caso de derrota.

É possível intuir o clima. A pressão pode ficar insuportável e restar a Alencar aceitar e aproveitar a candidatura para, ao menos, aumentar um pouco mais sua bancada. E vai que a onda Lula é forte o suficiente para empurrá-lo e ele termina vencendo! É difícil pois Neto está forte, mas impossível não é.

Mas ACM Neto também é, de certa forma, beneficiado pela solução Oto. Enfrentar Wagner seria mais difícil. Logo, esse acordo, caso concretizado pela captura de Kassab para a nave lulista, tende a produzir uma despolarização na Bahia, como subproduto da agora mais resoluta caminhada de Lula ao centro.

Neto não quer confrontar Lula e Lula, sendo Oto o seu candidato, pode ficar também mais olímpico do que se o adversário de Neto fosse Wagner. No limite, Lula estará certo se pensar que um cenário com ACM Neto governador não será desfavorável a um governo seu. É provável que ACM Neto, se eleito, possa cumprir, durante o próximo quatriênio, papel político moderador da direita, similar ao que Aécio Neves cumpriu junto ao PSDB quando governou Minas durante o primeiro governo Lula. Se vingar, o acordão baiano (sua face exposta no campo governista estadual, assim como sua virtual face oculta, que pode ir mais além) pode ajudar, a médio prazo, a estabilidade política nacional.

Essa dialética baiano-nacional não é inédita. Vigorava no tempo do carlismo enquanto em Brasília e abaixo das Minas Gerais imaginava-se ser aquele fenômeno um simples resquício de coronelismo. Já é tempo de aposentar certos termos que não mais se reportam ao mundo real e encarar movimentos como os de ontem não como jabuticabas baianas, ou resiliências nordestinas, mas como exemplares de uma gramática política nacional. A conciliação tem muitos apelidos jocosos. Mas será sensato lhe atirar pedras quando Bolsonaro ainda nos desgoverna e o bolsonarismo insinua sobreviver ao seu mito?

Nada está escrito nas estrelas. Tudo está sendo escrito agora e nada foi ainda concluído. Os ventos podem mudar de novo, Kassab resistir ao acordo e preferir se juntar nacionalmente a alguma tentativa de terceira via.  Se isso ocorrer, muita coisa pode mudar nas alianças, na Bahia e em muitos lugares.

Se é provável que ainda tenhamos reviravoltas, creio que já temos algo a comemorar. Parece esgotado o tempo da preparação de pugilistas para entrarem num ringue pela faixa presidencial. Ciro Gomes, João Doria, Sergio Moro lançaram suas candidaturas com essa pegada. Passamos assim todo o ano de 2021. Esse momento parece exaurido e agora observa-se tentativas mais agregadoras, seja a de partidos tradicionais de centro e centro direita, seja a de Lula indo agora, de fato, ao centro. É a política de conciliação renascendo como unha. Isso é bom porque é o caminho para encarar a nossa maior questão de agora, que é nos livrar e livrar o país do pesadelo de Bolsonaro e revigorar a democracia. Não existem “objetivos estratégicos” ou "ideais históricos" que sejam mais importantes do que obter isso. Tem luz no fim do túnel.

*Cientista político e professor da UFBa.

Fonte: Democracia e Novo Reformismo
https://gilvanmelo.blogspot.com/2022/02/paulo-fabio-dantas-neto-bahia-e-brasil.html


Merval Pereira: Trapalhada internacional na viagem à Rússia

Merval Pereira / O Globo

A insinuação de Bolsonaro de que a anunciada, mas não comprovada pelo Ocidente, retirada de parte das tropas russas da fronteira com a Ucrânia teria sido consequência do encontro entre ele e o presidente da Rússia, Vladimir Putin, dá bem a dimensão das “limitações cognitivas” que o ministro do STF Luís Roberto Barroso vê no presidente.

Já havia caído no ridículo a versão do ex-ministro Ricardo Salles nesse sentido, publicada nas redes sociais, até que ele mesmo, humilhado pelas gozações impiedosas, veio a público dizer que se tratava de uma brincadeira. Também uma indicação de Bolsonaro ao Prêmio Nobel da Paz pela suposta interferência exitosa na crise tomou conta das redes sociais bolsonaristas, querendo criar um clima épico em torno da viagem extemporânea a Moscou.

Pois não é que o próprio presidente, mesmo sabedor do ridículo em que caíram seus adeptos, fez questão de sugerir publicamente que sua chegada, “coincidência ou não”, resultou numa amenização do ambiente? Bolsonaro já havia dito anteriormente, num improviso que deve ter arrepiado os cabelos dos diplomatas brasileiros não engajados em sua campanha, que o Brasil era “solidário” à Rússia.

Gafe numa hora dessas? Bolsonaro não sabe usar as palavras, e é possível que nem soubesse o que estava falando quando afirmou que o Brasil é solidário à Rússia. Ele provavelmente estava se referindo à economia e ao comércio, mas se solidarizar com a Rússia numa visita oficial é um erro absurdo neste momento de crise.

O Itamaraty deve estar de cabeça para baixo tentando explicar a confusão que Bolsonaro criou à toa com os Estados Unidos. Uma vantagem é que o Brasil está tão inexpressivo no cenário mundial, que tudo isso virou galhofa, sem maiores complicações diplomáticas. Mas não para Bolsonaro, que, com cara de sério, tentou explicar a “solidariedade” dizendo que o país apoiava qualquer outro que quisesse a paz. E por acaso Putin quer a paz? Se quer, todo o Ocidente, que se mobiliza para conter seu ímpeto guerreiro, estaria errado.

Nossa política externa, desde que Ernesto Araújo foi tirado do bolso do colete de Olavo de Carvalho para nos envergonhar internacionalmente, é inexistente, ou desastrosa. O governo Lula, que tinha uma política externa consistente e planejada, mesmo que enviesada para os países de esquerda, também não escapou de algumas tentativas frustradas de dar a ele uma importância maior do que tinha. Até mesmo existiram boatos de que Lula ganharia o Nobel da Paz.

Nada comparável, porém, ao amadorismo mambembe atual, que fere a tradição de eficiência do Itamaraty. Lula tinha conexões internacionais solidificadas desde os tempos de líder sindical com países governados por esquerdistas e ditadores antiamericanos. No primeiro ano de seu governo, fez uma visita a Muamar Kadafi em Trípoli e teve uma conversa reservada com o ditador numa tenda no meio do deserto.

Coincidência ou não, dias depois a Líbia anunciava abrir mão da construção de armas de destruição em massa. Mesmo com as teorias conspiratórias que incluíam um telefonema pessoal do então presidente Bush pedindo a intermediação de Lula, o então chanceler Celso Amorim, diplomata experiente e competente, evitou assumir essa patacoada. Disse a certa altura que “não vou dizer que tínhamos uma informação precisa, mas sabíamos para onde os ventos sopravam”.

No ultimo ano de governo, foi a vez de o Brasil se meter a intermediário de um acordo nuclear entre Irã e Estados Unidos, coadjuvado pela Turquia. Anunciado, os Estados Unidos de Barack Obama o rejeitaram, e o governo brasileiro divulgou uma carta que o presidente americano enviara a Lula, querendo provar que o governo dos EUA fugia de compromissos assumidos. Só que na carta de Obama estava definido que o Irã deveria “reduzir substancialmente” seu estoque de urânio de baixo enriquecimento na transição para o acordo internacional. Como Brasil e Turquia permitiam que o Irã continuasse a enriquecer urânio por um ano antes dessa transição, o governo americano recusou o acordo.

Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/merval-pereira/post/trapalhada-internacional.html


Luiz Carlos Azedo: Bolsonaro volta à carga contra as urnas eletrônicas

O presidente Jair Bolsonaro voltou a levantar suspeitas sobre a segurança das urnas eletrônicas e disse que até mesmo o novo presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Edson Fachin, não acredita no sistema eleitoral brasileiro. Em reposta, ontem, o TSE divulgou as informações prestadas às Forças Armadas sobre o processo eletrônico de votação.

Na terça-feira, Fachin, que assumirá a presidência da Corte na próxima semana, afirmara que a “Justiça eleitoral já pode estar sob ataque de hackers”. Segundo o magistrado, que escolheu o slogan “paz e segurança nas eleições” para o pleito deste ano, os ciberataques aumentaram nos últimos meses.

As ameaças partem não apenas de atividades criminosas, mas de países como Rússia e Macedônia. Segundo Fachin, relatórios internacionais indicam que 58% dos ataques têm como origem a Rússia. Coincidentemente, desde a semana passada, a polêmica sobre a segurança das urnas voltou às redes sociais. Segundo Bolsonaro, o Ministério da Defesa havia apontado falhas no sistema operacional. Na verdade, o que houve foi um pedido de informações sobre o funcionamento do sistema e seu sistema de segurança, devidamente respondido pelo TSE. Ataques de hackers são constantes nas eleições, mas, até hoje, não tiveram sucesso.

Diante das novas declarações de Bolsonaro, o TSE decidiu divulgar as perguntas dos militares e as respostas que deu. Uma delas foi sobre a substituição de cartões de memória por entradas USB, no novo modelo de urna eletrônica. O TSE respondeu que somente os dispositivos conhecidos que já integram a urna são aceitos nas portas USB: “Caso seja identificado um dispositivo não conhecido em qualquer porta, o sistema operacional da urna desliga a alimentação da porta USB. Dispositivos conhecidos conectados em portas diferentes da esperada resultam no bloqueio da urna pelo sistema operacional. Todo dado sensível que trafega pelo barramento USB é protegido por criptografia”.

O TSE também esclareceu que a fabricação de urnas eletrônicas é auditada diretamente na linha de produção, de acordo com as exigências técnicas e especificações estabelecidas na licitação dos serviços. “As urnas eletrônicas estarão submetidas a todos os eventos de fiscalização e auditoria. Os Testes Públicos de Segurança têm como objeto o último modelo de urna que teve seu sistema totalmente implementado e em produção”.

Descrédito

Mais uma vez, Bolsonaro tenta utilizar as Forças Armadas para desacreditar o processo eleitoral, o que faz parte de uma estratégia ensaiada em outros momentos, especialmente às vésperas do 7 de setembro do ano passado, com propósitos claramente golpistas. Essa estratégia é alimentada também pelo ministro da Defesa, Braga Neto, que incentiva os questionamentos e tem a ambição de ser vice-presidente da República.

A retomada da polêmica, de certa forma, contribuiu para que o general Luiz Fernando Azevedo, que antecedeu Braga Neto, tenha decidido não assumir a diretoria-geral do TSE, cargo para o qual havia sido convidado pelo ministro Luís Roberto Barroso, que deixa o comando da Corte. O ex-ministro da Defesa alegou motivos de família.

A logística de realização das eleições, tradicionalmente, conta com o apoio das Forças Armadas, não só para garantir a realização do pleito em regiões remotas ou de alta criminalidade, como também por razões logísticas — ou seja, o transporte e a segurança das urnas eletrônicas.

O recrudescimento da narrativa de Bolsonaro sobre a falta de segurança na apuração dos votos coincide com a viagem a Moscou, a convite do presidente russo Vladimir Putin. Hackers russos são acusados de interferir nas eleições norte-americanas em favor de Donald Trump, por meio de ataques de hackers e fakes news. Na terça-feira, o TSE fechou um acordo com as plataformas WhatsApp, Twitter, TikTok, Facebook, Google, Instagram, YouTube e Kwai para criar mecanismos para conter a disseminação de mentiras. No WhatsApp, deve ser implementado um canal para informar eleitores.

Entretanto, a rede social russa Telegram não tem escritório no Brasil e não participa do acordo. “Estamos todos preocupados e empenhados em preservar um ambiente de debate livre”, disse Barroso, ao anunciar o acordo, um de seus legados como presidente do TSE.

Como o vereador carioca Carlos Bolsonaro, filho de Bolsonaro, acompanhou o pai na comitiva em Moscou e manteve uma agenda paralela, como se estivesse fazendo turismo, há suspeitas de que estaria fazendo entendimentos para a contratação de hackers russos para a campanha. Eles são especialistas em fake news. Carlos é o responsável pela atuação do pai nas redes sociais, nas quais o presidente tem cerca de 45 milhões de seguidores.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-bolsonaro-volta-a-carga-contra-as-urnas-eletronicas/

Desmatamento impulsionado pela exportação pode criar boicote ao Brasil

Lucas Ferrante e Philip M. Fearnside / Amazônia Real

Publicamos uma correspondência na prestigiada revista Nature [1] em 20 de janeiro de 2022, disponível aqui, que explica como as exportações brasileiras impulsionam o desmatamento e o raciocínio para boicotes de importadores. Segue uma tradução do conteúdo:

O desmatamento no Brasil hoje está ameaçando o último grande bloco de floresta amazônica intacta. Instamos os países que importam grandes quantidades de soja e carne bovina do Brasil a tomarem medidas para deter essa destruição.

Cerca de 9,5% da soja exportada do Brasil e 5,3% de sua carne bovina vão para países europeus, com outros 79% e 52%, respectivamente, indo para a China [2]. Os importadores devem mudar para outros exportadores até que o Brasil elimine o desmatamento causado pela exportação.

O desmatamento no Brasil atingiu um recorde para os últimos 15 anos, com um salto de 22% na taxa anual [3]. Há anos, os pecuaristas do estado de Mato Grosso vendem suas pastagens por preços altos para produtores de soja e compram terras baratas mais ao norte para desmatar para a produção de carne bovina.

A prática agora está se movendo para o oeste do estado do Amazonas, onde a rodovia BR-319 (Manaus–Porto Velho) está fazendo incursões em uma vasta área de floresta tropical [4]. Os plantadores de soja do Mato Grosso já estão comprando as terras de fazendeiros em Rondônia, que, por sua parte, então adquirem terras baratas nesta nova fronteira.

Amplificar esse ciclo de desmatamento vai contra o compromisso do Brasil de mitigar as emissões de carbono [5].


A imagem que ilustra este artigo mostra área de desmatamento no Pará para o plantio de soja (Foto: INPE).


Notas:

[1] Ferrante, L. &P.M. Fearnside. 2022. Countries should boycott Brazil over export-driven deforestation. Nature 601: 318.https://doi.org/10.1038/d41586-022-00094-7

[2] Fearnside, P.M. 2021. China´s carbon emisson in Brazil, Science 373 : 1209-1210.

[3] Álvares, D. 2021. Sources: Brazil withheld deforestation data ’til COP26’s end. AP News, 19 de novembro de 2021.

[4] Fearnside, P.M. 2021. Audiências públicas BR-319: Um atentado aos interesses nacionais do Brasil e ao futuro da Amazônia. Amazônia Real, 28 de setembro de 2021.

[5] Ferrante, L. & P.M. Fearnside. 2021. Brazil’s deception threatens climate goals. Science 374: 1569.


Os Autores

Lucas Ferrante é doutorando em Biologia (Ecologia) no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). Tem pesquisado agentes do desmatamento, buscando políticas públicas para mitigar conflitos de terra gerados pelo desmatamento, invasão de áreas protegidas e comunidades tradicionais, principalmente sobre Terras indígenas e Unidades de Conservação na Amazônia.

Philip Martin Fearnside é doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Tem mais de 700 publicações científicas e mais de 500 textos de divulgação de sua autoria que estão disponíveis aqui: http://philip.inpa.gov.br.

Fonte: Amazônia Real
https://amazoniareal.com.br/paises-devem-boicotar-o-brasil-por-causa-do-desmatamento-impulsionado-pela-exportacao/