Novo ano, vidas negras continuam sendo interrompidas pelo racismo

Enquanto as mortes de pessoas negras forem consideradas problemas individuais, país não avançará contra o racismo, avalia Kelly Quirino
Foto: Victor Moriyama/Getty Images
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Kelly Quirino  / Revista Política Democrática online

Ano Novo. Vida Nova. Só que não! Para as pessoas negras no Brasil, ano novo, problemas antigos e vidas interrompidas. A vida de Moise Mugenyi Kabagambe, congolês, foi interrompida após ser violentamente agredido por 3 homens em um quiosque no Rio de Janeiro. 39 pauladas por taco de beisebol interromperam os sonhos que este jovem projetou para 2022.   

Outra vida interrompida foi a de Durval Teófilo Filho. Morador de um condomínio fechado no Rio, o vizinho disparou três tiros contra ele, achando que era bandido. Sabe o que estes dois homens tinham em comum? Eram negros em um país racista. Eram negros em um país que mata a cada 23 minutos um jovem negro. Eram negros e ser negro no Brasil é ser suspeito. É ser ladrão. É ser alvo.   

Estas mortes não podem ser individualizadas. Não é culpa apenas dos três homens que mataram Moise ou do militar da Marinha que matou Durval. O Estado e a Sociedade Brasileira são culpados por estas mortes.   

Só que fica complicado o Estado se responsabilizar, se alguns programas de televisão não avaliam como racismo a morte do Durval, por exemplo. Afirmo isto, porque estava de férias com a minha família quando soube do assassinato do Durval por meio do Programa Balanço Geral. O apresentador Reinaldo Gottino estava fazendo enquete entre as pessoas que estavam no palco, indagando se era racismo a morte do Durval. Ele mesmo exprimia a opinião dele: “Não é racismo”. Se o objetivo era impedir um assalto no condomínio, um tiro apenas seria suficiente para imobilizar o infrator enquanto a polícia é acionada. Quando o militar disparou três tiros, ele proferiu por ser um corpo negro.   

Para o apresentador, um homem branco, classe média e privilegiado, não é possível enxergar o racismo neste crime. Porque ele não deve ter sido abordado por um segurança em uma loja e não deve ter sentido as pessoas atravessarem a rua por medo, ao vê-lo e associá-lo a bandido.   

São situações assim que homem negro vive no Brasil. É uma desumanização construída por séculos de animalização destes corpos, que podem sofrer todo tipo de violência e inclusive morrerem, porque não são seres humanos.   

Enquanto as mortes de pessoas negras forem consideradas problemas individuais no Brasil, não avançaremos em políticas públicas de combate ao racismo. Só que o racismo no Brasil não é debatido amplamente. Ainda que as manifestações em âmbito mundial do Black Lives Matter, em 2020, tenham fomentado a discussão do racismo no país, ainda é um fenômeno tímido perto dos 500 anos de naturalização de violência e morte dos corpos negros.   

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Ocorre que o brasileiro tem preconceito de ter preconceito, como já dizia Florestan Fernandes, gerando negacionismo permanente sobre a existência do racismo no Brasil, e, assim, o fenômeno continua interrompendo as vidas de pessoas negras.   

E pelo fato de as pessoas brancas não viverem situações constrangedoras por causa da cor da pele e de nem terem suas vidas e sonhos interrompidos por causa do racismo, se sentem à vontade para questionar a morte do Durval como uma consequência do racismo em um programa de televisão.   

O professor e advogado Silvio de Almeida, em seu livro Racismo Estrutural, afirma que o racismo precisa ser tratado no Brasil com o um problema complexo. Um sistema complexo possui inúmeras variáveis. Assim, cai por terra a prática de tratar o fenômeno de forma individualizada. Se é complexo, é preciso nomear. Não conseguimos solucionar algo que não tem nome. O país está avançando porque estamos conseguindo nomear o racismo nos últimos anos.

Depois de nomear, temos que compreender porque acontece. O processo de escravidão, a colonização, o sistema de hierarquia que classificou as pessoas em brancas, negras, indígenas. Não faltam autores que abordam estes temas, e elenco alguns nomes como Abdias do Nascimento, Lélia Gonzalez, Luiza Bairros, Maria Beatriz Nascimento, Guerreiro Ramos, Oracy Nogueira, além de sociólogos clássicos como Florestan Fernandes, Octavio Ianni e Carlos Hasenbalg.   

Depois de nomear e entender o processo, precisamos nos engajar na luta antirracista. Se queremos um projeto de país democrático e com menos desigualdade, toda população brasileira precisa aceitar que há racismo no Brasil (nomear e aceitar), estudar sobre o tema (letramento racial), compreender que não é um problema individual, ao contrário é complexo e multifatorial e, por fim, propor soluções para as diferentes áreas da sociedade para combater e erradicar o racismo.   

Não é uma solução simples. É gradual, processual e urgente. Não podemos aceitar que outros Moise e Durval morram por causa do racismo. E é justo que estas pessoas possam ter expectativas com um Ano Novo e concretizar sonhos de uma Vida Nova sem racismo.

*Kelly Quirino é doutora em Comunicação pela Universidade de Brasilia (UnB), Mestre em Comunicação Midiática e Jornalista Diplomada pela Universidade Estadual Paulista. Pesquisa jornalismo, relações raciais e diversidade. 

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de fevereiro/2022 (40ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP).

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

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