Tadeu Chiarelli: Notas sobre o futurismo italiano e o modernismo de São Paulo 

Modernismo de São Paulo foi muito distante da dimensão experimental e desestabilizadora do melhor futurismo italiano, avalia Chiarelli
Foto: 'Síntesis fascista' de Alessandro Bruschetti/Reprodução
Foto: 'Síntesis fascista' de Alessandro Bruschetti/Reprodução

(…) Ora, segundo modernos, erro grave o Impressionismo. 

Os arquitetos fogem do gótico como da arte nova, filiando-se, para além dos tempos históricos, nos volumes elementares: cubo, esfera, etc. Os pintores desdenham Delacroix como Whistler, para se apoiarem na calma construtiva de Rafael, de Ingres, do Greco. Na escultura Rodin é ruim, os imaginários africanos são bons. Os músicos desprezam Debussy, genuflexos diante da polifonia catedralesca de Palestrina e João Sebastião Bach. A poesia… “tende a despojar o homem de todos os seus aspectos contingentes e efêmeros, para apanhar nele a humanidade”…Sou passadista, confesso [1] 

Faz alguns anos, me convidaram para uma conferência em que deveria tratar das relações entre a pintura e a escultura do futurismo italiano e a arte do modernismo de São Paulo. Quase não aceitei o convite porque, em termos de artes visuais, os dois movimentos não poderiam estar mais distantes. 

Lançado em 1909, o futurismo esteve ligado às vanguardas históricas, comprometidas com a experimentação e com a quebra de paradigmas da arte tradicional. Já o modernismo – “oficiamente” lançado em 1922 –, caracterizou-se por uma produção ligada ao Retorno à Ordem, um fenômeno artístico internacional, de refluxo das vanguardas, ocorrido no período entreguerras.

Se a pintura e a escultura futuristas se caracterizam pelo experimentalismo tanto formal como material, explicitanto os índices da modernidade – velocidade; multidão, e, ao mesmo tempo, o estilhaçamento do eu, frente às novas condições sociais –, a arte do modernismo, no fundo, se apoia em uma proposta que pode ser associada, no limite, às considerações do teórico neoclássico alemão, J.J. Winckelmann. Esse teórico, na segunda metade do século XVIII, propunha que a arte estivesse sempre presa a uma “nobre simplicidade e a uma grandeza serena”.[2] Por mais estranha que pareça esta relação entre o modernismo paulistano e o neoclassicismo, não se deve esquecer o conselho que o crítico Mario de Andrade deu à pintora Tarsila do Amaral, em junho de 1923: “(…) Creio que não cairás no cubismo. Aproveita dele apenas os ensinamentos. Equilíbrio, Construção, Sobriedade. Cuidado com o abstrato. A pintura tem campo próprio (…)”[3]

Gerardo Dottori, 'Batalha aérea sobre o golfo de Nápoles', 1942.
'Velocidade de automóvel' (1913), de Giacomo Balla.
Tato (Guglielmo Sansoni), 'Voar sobre o Coliseu em espiral', 1930.
Fortunato Depero, 'Arranha-céus e túneis' (Gratticieli e tunnel), 1930.
Ivo Pannaggi, 'Trem em movimento', 1922.
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Gerardo Dottori, 'Batalha aérea sobre o golfo de Nápoles', 1942.
'Velocidade de automóvel' (1913), de Giacomo Balla.
Tato (Guglielmo Sansoni), 'Voar sobre o Coliseu em espiral', 1930.
Fortunato Depero, 'Arranha-céus e túneis' (Gratticieli e tunnel), 1930.
Ivo Pannaggi, 'Trem em movimento', 1922.
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Sabemos muito bem que Tarsila “caiu” no cubismo, mas num cubismo entendido como ferramenta para reforçar uma ordem estrutural do universo plástico. Para a pintora, não vamos nos esquecer, o cubismo era o exercício “militar” pelo qual todo artista deveria passar.[4] 

Mesmo Menotti Del Picchia – um intelectual que fazia parte do “lado B” do modernismo – associava o cubismo à grande tradição da arte: 

O cubismo – reagindo contra o impressionismo diluidor e invertebrado – tem, no fundo, a chancela parnasiana. O esforço de sintetismo, de estrutura sólida, de equilíbrio de materiais concretos, de sentido arquitetônico que se dá hoje à escultura, à pintura, à poesia e à prosa – imposições disciplinadoras de velhos cilícios clássicos – não será uma das vitórias do classicismo, uma reação no fundo antirromântica?[5] 

Seu compromisso com a grande tradição da arte fez com que o modernismo absorvesse um interesse pelo valor artesanal da obra – o que impedia qualquer “subversão” à grande pintura e à grande escultura (nada, portanto, de colagens ou do uso de materiais heterodoxos). Por outro lado, no entanto, trazia também a busca de síntese da forma, o que retirava seus artistas mais significativos (com exceção de um certo Portinari) de uma adesão irrestrita ao realismo mais convencional. Ou seja: a pintura e a escultura do modernismo podem ser pensadas como estruturalmente conservadoras e superficialmente “modernas”, devido, justamente, à representação esquemática que imperava na maioria da produção do grupo, de Anita a Portinari[6]

Estabeleço tais paradigmas, sem a intenção de desqualificar os artistas do modernismo. Inclusive, penso que, por terem conseguido manter um equilíbrio entre tradição e a busca de síntese (essa última aproximando-os da “arte moderna”), eles devem ser reconhecidos por terem sabido se adequar às demandas do meio paulistano, que solicitava uma arte “diferente”, porém ligada à tradição. 

É a partir da análise de seus trabalhos que será possível notar que o modernismo paulistano, ao mesmo tempo em que pôde ser interpretado por alguns como uma afronta ao bom-gosto, para outros – por sua adesão à ordem estrutural da pintura e da escultura pós-vanguarda que praticavam – eles se tornaram mais uma estratégia de conciliação entre presente e passado – uma prática típica da elite de São Paulo e do país. Afinal, essa elite sempre soube naturalizar as diferenças e aparentemente zerar as contradições. 

Na arte modernista, por exemplo, não existiu a colagem (apenas o uso de sua lógica na pintura de Tarsila) e, muito menos, um direcionamento mais efetivo rumo à não-figuração. Pensavam: como e por que explorar a não-figuração no âmbito de uma arte que se pretendia “moderna”, mas, ao mesmo tempo, se mantinha comprometida com a necessidade de representar as paisagens humana física do Brasil? Afinal, para os modernistas era fundamental criar uma arte que representasse o homem e a natureza do país, porque, somente assim, teríamos uma “arte nacional”. 

Por todas as questões aqui anotadas, espero ter ficado clara a impossibilidade de um estudo que busque conexões entre as artes visuais da Itália futurista e do modernismo de São Paulo. É que esse último, de fato, estava mais próximo ao Novecento italiano (esse sim um movimento moderno conservador, ligado ao Retorno à ordem e ao fascismo). Portanto, muito distante da dimensão experimental e desestabilizadora do melhor futurismo daquele país (que, em grande parte, também aderiu ao fascismo). 


[1] ANDRADE, Mario. “Prefácio interessantíssimo”. Pauliceia desvairada, 1922. In ANDRADE, Mario. Poesia completa. Ed. crítica de Dileia Z. Mafio. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1987. Pág. 60.  

[2] WINCKELMANN, J.J. Reflexões sobre arte antiga. Estudo introdutório de Gerd A. Bornheim. Trad. De Herbert Caro e Leonardo Tochtrop. Porto Alegre: Movimento. Universidade Federal do Rio grande do Sul, 1975. Por mais estranha que possa parecer esta relação entre o modernismo paulistano e o neoclassicismo, não se deve esquecer o conselho que o crítico Mario de Andrade deu à pintora Tarsila do Amaral, em junho de 1923: “ (…) Creio que não cairás no cubismo. Aproveita dele apenas os ensinamentos. Equilíbrio, Construção, Sobriedade. Cuidado com o abstrato. A pintura tem campo próprio (…)”. Carta de Mário de Andrade a Tarsila do Amaral do dia 16 de junho de 1923. In AMARAL, Aracy. Tarsila sua obra e seu tempo. São Paulo: Perspectiva/Edusp, Vol. I, 1975, pág.365 e segs. 

[3] Carta de Mário de Andrade a Tarsila do Amaral do dia 16 de junho de 1923. In AMARAL, Aracy. Tarsila sua obra e seu tempo. São Paulo: Perspectiva/Edusp, Vol. I, 1975, pág.365 e segs. 

[4] – Carta de Mário de Andrade a Tarsila do Amaral do dia 16 de junho de 1923. In AMARAL, Aracy. Op. cit. pág.365 e segs. 

[5] DEL PICCHIA, Menotti. “Perpétua batalha”. Correio Paulistano. São Paulo: 18 de novembro de 1925, pág. 3 

[6] É claro que ao escrever, “de Anita a Portinari”, estou pressupondo uma continuidade entre os dois artistas algo absolutamente artificial. No entanto, visto com distanciamento, é possível entender que, ao que se sabe, apesar dos dois nunca terem trocado ideias sobre pintura, ambos possuíam parâmetros comuns, hauridos na Europa do entreguerras. 

*Tadeu Chiarelli é curador e crítico de arte, professor titular no curso de Artes Visuais da USP. Foi diretor da Pinacoteca de São Paulo (2015-17) e do Museu de Arte Contemporânea da USP (2010-14) e curador-chefe do Museu de Arte Moderna de São Paulo (1996-2000). É autor de vários livros sobre História e Crítica da Arte, entre eles “Arte Internacional Brasileira, com textos sobre os principais artistas do movimento modernista e da arte contemporânea produzida no Brasil’.

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de fevereiro/2022 (40ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP).

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

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