Vladimir Carvalho
Iphan finaliza levantamento de acervo das peças de Vladimir Carvalho
Correio Braziliense
Iniciado no começo deste ano, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em parceria com a Universidade Federal do Tocantins (UFT), finalizaram o levantamento sobre o acervo de Vladimir Carvalho. Essa etapa é o ponto inicial para o avanço da criação de um inventário e, posteriormente, para a busca de um espaço de qualidade que fornece a atenção e cuidado necessários que esses materiais demandam.
Recentemente, o acervo recebeu mais um equipamento de grande valor simbólico, um projetor de 35mm da Embaixada da França. Para o cineasta, a chegada desse projetor representa o fechamento do ciclo cinematográfico de um filme, que começa na captação das imagens pela câmera e termina no aparelho que entrega a obra para o espectador. "O projetor é uma espécie de ponto final no processo cinematográfico, porque é quando o filme entra em contato com o público. No conjunto do acervo, ele fecha um ciclo", afirma.
Um dos mais importantes documentaristas brasileiros, Vladimir Carvalho é o guardião da memória e da história do cinema nacional e, principalmente, do brasiliense. Além dos 60 anos de contribuição com obras de audiovisual, o documentarista possui um vasto acervo cinematográfico, localizado na Fundação Cine Memória, criada e mantida pelo mesmo.
Nascido na Paraíba e morador de Brasília desde o final de 1969, Vladimir passou os últimos 54 anos pesquisando, coletando e armazenando memórias e registros físicos da história do cinema brasiliense. A coleção vai desde livros, filmes, equipamentos, objetos, fotos, recortes, documentos e até uma sala de projeção. "Eu tenho coisa como meia tonelada de equipamentos, entre câmeras, refletores e material fotográfico", afirma.
A casa que abriga a Fundação Cine Memória fica localizada na W3 Sul, e hoje, os dois andares são tomados por um verdadeiro museu do cinema brasiliense e nacional. Entretanto, a localização não permite qualquer outra atividade que não seja residencial e, por isso, Vladimir Carvalho sonha e luta para que todos os materiais e equipamentos recebam um espaço de cuidado e de visitação para a população.
"Eu estou doando para qualquer instituição que seja pública, ou até privada, que tenha condições de abrigar em lugar seguro, respeitável, de fácil acesso para as pessoas, mas que tenha a garantia de segurança", afirma. "Eu estou trabalhando para que isso seja definitivo", completa.
Para Vladimir, a busca por esse espaço é o passo inicial para a criação de uma cinemateca em Brasília, que permite a democratização do acesso a essa memória física, coletada e cultivada por Vladimir. "Tem uma importância histórica e memorialística, e conta parte da história do cinema realizado em Brasília", ressalta. "É uma prévia para um grande cinemateca que se criará na capital da República", finaliza.
Revista online | Godard, o gênio exausto
Vladimir Carvalho*, especial para a revista Política Democrática online (47ª edição: setembro/2022)
A morte consentida de Jean-Luc Godard pode sinalizar para muitos o final de uma era cinematográfica marcada desde a primeira vanguarda, nos anos 1920, por uma incessante busca de legitimação de uma atividade artística que, de cara, se autodenominava de Sétima Arte, com técnica e linguagem próprias. Cedo seria respaldada pela formação de uma mentalidade que nasceu com os cineclubes, os críticos e as revistas especializadas – o que hoje é conhecido de forma generalizada por cinefilia. Teorias e posturas estéticas renovadoras já se faziam sentir ao tempo do cinema soviético com Sergei Eisenstein, Dovijenko, Dziga Vertov e outros até a explosão que foi o Cidadão Kane, de Orson Welles, nos anos de 1940.
Na década posterior, os franceses jogaram papel importante a partir da ação desenvolvida pela Cinemateca Francesa e com o aparecimento do grupo liderado por André Bazin, grande influenciador e principal crítico da revista Cahiers du Cinéma, que se tornaria célebre e em cujo agitado seio surgiria o até ali desconhecido franco suíço. Ao lado de outros, como François Truffaut, Jacques Rivette, Eric Rohmer e Claude Chabrol, compondo a tendência que seria conhecida, ou apelidada, de “jovens turcos”. Mais tarde, alguns deles se renderiam aos encantos da prática cinematográfica como ativos diretores que defendiam a todo custo a autonomia de um cinema autoral, desde ali, em confronto com o poderio dos produtores que condenavam por princípio o filme clássico francês e valorizavam uma política de autores.
Nesse clima de camaradagem solidária, o futuro autor de Acossado (1960) pontificou-se como um ferrabrás da crítica atento à condução moderadora de Bazin, mas em franco contraste com Georges Sadoul, um marxista militante, que sempre defendeu o cinema soviético não só do período eisensteiniano como também os das gerações posteriores. Godard foi desde sempre um anarquista, pontificando-se na avaliação e cotação dos filmes, no famoso Conseil des Dix, da revista.
Em 1960 Godard vai à “guerra” com uma narrativa desconcertante e uma linguagem inédita até aquele momento. O público delirou com Acossado, e a crítica foi obrigada a reconhecê-lo. Segue-se com igual liberdade estética, Uma Mulher é uma Mulher (1962) e O Desprezo (1963). Depois a política faz a festa em Masculino, Feminino (1966); a moda godardiana continua em Made in USA (1966) e em A Chinesa (1967), que radicaliza em termos de desdramatização e nos aspectos políticos. É um cinema diametralmente oposto aos clássicos americanos, mas que tinha muito da simpatia que os “jovens turcos” nutriam pelos filmes B, nos Cahiers. Porém, ainda não era, claro, o Godard radical e em mutação do Grupo Dziga Vertov, do final dos anos 1960, e que, em Maio de 68, se confunde com os estudantes revoltados, filmando nas barricadas de Paris.
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E foi nessa rumorosa onda de 1968, num veemente protesto contra a demissão do carismático Henri Langlois, da curadoria mor da Cinemateca Francesa, que o Festival de Cannes foi atropelado e quase não aconteceu. Godard protagonizou a cena principal, pendurado nas cortinas do Palais, impedindo que as sessões começassem, com ampla cobertura da imprensa. Em Paris, a redação dos Cahiers, na rua Marbeuf, virara um comitê de agitação em favor dos estudantes; e a temperatura subiu quando o filme de Jacques Rivette, A Religiosa, foi proibido. Novamente é um empedernido Godard que toma as dores e defende Rivette e seu filme, rompendo com o grande André Malraux, então ministro da Cultura, em carta que passou aos anais como uma irrespondível peça de condenação do Estado gaullista.
Entretanto, no âmbito de certa crítica, “a sua utopia de um cinema marxista, de parceria autoral com a classe trabalhadora, resultou tão frustrada quanto a aliança dos estudantes com os proletários da Renault”, como argutamente observou o crítico e escritor Sergio Augusto.
A propósito do perfil muitas vezes contraditório do autor de Je Vous Salue Marie (1985), podemos recordar aqui episódio ocorrido durante o Festival Internacional do Filme, o histórico FIF, do Rio de Janeiro. Godard compareceria ao mesmo para a apresentação do seu filme Alphaville. Tudo acertado, pouco depois ele mandou um telegrama desistindo de participar, num gesto de protesto e condenação da ditadura militar no Brasil. Instalada a confusão, surpreendeu a todos, negando peremptoriamente a autoria da mensagem, e atribuindo-a a terceiros. Quando tomou conhecimento da negaça, o crítico Robert Benayon, da revista Positif, rival dos Cahiers, presente ao evento brasileiro, desabafou para quem quisesse ouvir. Para ele, tratava- se de “mais uma daquele fascista!”. Nesse tempo, andava o autor dessas notas, trabalhando como assistente de Arnaldo Jabor, num filme que realizou sobre o FIF, Rio, Capital do Cinema, e ouviu os comentários acerca desse lance, nos bastidores da sede da mostra, no Copacabana Palace.
Essa época no Rio foi muito marcada pelos filmes e paixão pelos diretores da Nouvelle Vague. Uma pequena multidão de cinéfilos não arredava o pé das sessões do Cinema Paissandu, no Flamengo. Ali enturmei-me levado pelas mãos de Cosme Alves Neto e assisti, imerso na euforia da rapaziada, a quase todos os filmes de Godard lançados ali naquele ano de 1968. A cidade tomada pelo alvoroço político e pela revolta em virtude da morte de Edson Luiz, secundarista assassinado pela polícia no restaurante Calabouço, no aterro do Flamengo, estava transtornada. O clima era de insegurança e medo, mas filmes como Tempo de Guerra, de Godard, nos convocavam à ação, e, portanto, era também do Paissandu que partíamos para engrossar as fileiras da célebre Passeata dos Cem Mil. O Maio de 68 estava fresquinho em nossas agitadas cabeças. Mesmo sabendo das restrições ao autor de Masculino, Feminino, taxado até de fascista pelo pessoal da revista Positif, numa linha editorial que confrontava com os Cahiers du Cinéma, eu pouco ligava. Já havia lido os elogios de Georges Sadoul à Aruanda, o filme de Linduarte Noronha, em que atuei como roteirista e assistente, e num rompante juvenil pouco me interessava que Godard o achasse um stalinista superado pelo tempo, que já era tomado pelo revisionismo que resultou das sérias denúncias feitas por Kruschev; nem tomáramos conhecimento das restrições de Lévi Strauss ao franco suíço; tampouco da ojeriza que Jeanne Moreau lhe dedicava. Godard vivia agora a sua febre maoísta junto ao Grupo Dziga Vertov. E era nosso herói.
Muito depois é que tomaríamos conhecimento das peripécias do nosso ídolo quando da realização de seu filme Vento do Leste. Ele proporia a Glauber Rocha, que fazia importante participação na obra, que juntos destruíssem o cinema como arte. O brasileiro, sagaz como sempre, logo sacou que Godard começava a sucumbir à depressão e militava numa espécie de autodestruição, e a sua resposta foi a de que ele, Glauber, ao contrário, optava pela construção de um cinema inovador e de salvação, no Brasil e no Terceiro Mundo.
Confira, abaixo, galeria de imagens:
Gênio consumado, mas profundamente contraditório e iconoclasta, talvez naquele momento já se manifestasse no espírito de JLG o quadro psíquico que o dominou no fim da vida, depois da realização de filmes não tão brilhantes e plenos de vigor, como os daquela fase em que fez sombra a toda uma geração do cinema francês da Nouvelle Vague. Oriundos quase todos dos Cahiers, o qual terminou, é bom lembrar, por apoiar o Cinema Novo brasileiro, especialmente promovendo seus autores mais importantes e mais afinados com o ideário da revista, como é o caso de Glauber Rocha, Cacá Diegues e Gustavo Dahl.
Embora tumultuada, a existência de Godard foi profícua e intensa, mas sua morte assistida parece se justificar pelo cansaço e esgotamento que o vitimou, e sua descida se deu também pela inexorável ação, digamos assim, da força da gravidade em vista do peso de seus 91 anos. Que descanse em paz!
Sobre o autor
*Vladimir Carvalho é um cineasta e documentarista brasileiro de origem paraibana.
** O artigo foi produzido para publicação na revista Política Democrática online de maio de 2022 (47ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da publicação.
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Vladimir Carvalho fala sobre o filme de "Giocondo Dias - O Ilustre Clandestino"
João Rodrigues, da equipe da FAP
Sucesso no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, em 2019, o documentário “Giocondo Dias - O Ilustre Clandestino” foi o tema principal de entrevista do cineasta Vladmir Carvalho ao Canal Brasil.
Na entrevista, Vladmir fala sobre o sucesso do filme, que retrata a vida do líder comunista baiano Giocondo Dias, militante da esquerda que viveu dois terços de sua vida na clandestinidade e liderou o PCB como secretário-geral.
Confira abaixo vídeo da entrevista na íntegra.
Lucília Garcez deixa marca como referência na literatura brasileira
Ex-conselheira da FAP e professora aposentada da UnB morreu por complicações de câncer de pulmão
Cleomar Almeida, da equipe FAP
Professora aposentada do Instituto de Letras da Universidade de Brasília (UnB) e ex-conselheira da Fundação Astrojildo Pereira (FAP), Lucília Helena do Carmo Garcez deixa como legado a referência da literatura e defensora de livros. Ela morreu, nesta quinta-feira (23/9), aos 71 anos, vítima de câncer de pulmão, em Brasília.
O velório está marcado para às 14h desta sexta-feira (24/9), na Capela 5 do cemitério Campo da Esperança da Asa Sul. Lucília estava internada no Hospital Daher havia duas semanas, por causa de complicações da doença e da quimioterapia.
Integrante da Academia Brasiliense de Letras e da Associação Nacional dos Escritores (ANE), a professora propagava a ideia de que o livro é a principal ferramenta para transformar a vida das pessoas. Educação, para ela, era o maior capital que uma sociedade poderia ter em busca de equidade e justiça social.
Lucília era casada com o cineasta e documentarista paraibano Vladimir Carvalho, de 86, e deixou três filhas (Adriana, Fabiana e Cristina) de um casamento anterior, além de cinco netos.
Vladimir lembra-se da esposa como uma mulher carinhosa e cheia de alegria de viver. Segundo ele, Lucília gostava de cuidar do jardim, da casa como um todo. "Era uma liderança enorme na família. Sempre tinha uma palavra de conforto, uma doçura imensa. Mantinha a harmonia e a amizade entre todos”, contou.
Nascida em Uberaba (MG), em 8 de julho de 1950, ela chegou a Brasília em 1966. Era doutora em linguística pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e mestre em teoria da literatura pela UnB. Foi professora de língua portuguesa do Instituto Rio Branco, responsável pela formação de diplomatas, por oito anos.
Em carta sobre o aniversário de Brasília em 2020, Lucília destacou a admiração pelo céu no lugar e definiu a linha do pôr-do-sol como "desnuda, extravagante, aberta ao infinito".
"Adotar Brasília como minha cidade misturou-se com definir os rumos da vida, fazer outras escolhas fundamentais. Tudo está enraizado naquelas manhãs ensolaradas nos gramados da UnB", escreveu.
Nota oficial da FAP
Nós, conselheiros, diretores e colaboradores da Fundação Astrojildo Pereira manifestamos de público nosso pesar pelo falecimento de Lucília Helena do Carmo Garcez. Professora da Universidade de Brasília, Lucília dedicou sua vida profissional e sua militância cotidiana à promoção da educação, da cultura, com ênfase na difusão do livro e da leitura como instrumentos indispensáveis para esses fins. Lucília participou do grupo presente nas primeiras reuniões que resultaram na criação da Fundação Astrojildo Pereira, integrando, posteriormente, mais de uma vez, seu Conselho Curador. Apresentamos nossas condolências a Vladimir de Carvalho, também militante histórico da Fundação, e a todos os familiares de Lucília.
Livros de Lucília Helena Garcez
https://www.estantevirtual.com.br/livros/lucilia-helena-do-carmo-garcez
RPD 35 || Henrique Brandão: Giocondo, um comunista abnegado e gentil
Documentário sobre o histórico militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), de Vladimir Carvalho, já está à disposição do grande público no NOW, da NET
Já se encontra disponível no Now o documentário “Giocondo - O Ilustre clandestino”, do veterano cineasta Vladimir Carvalho, um dos mais representativos documentaristas brasileiros. Narra a vida de Giocondo Dias, histórico militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB).
O filme mostra a participação de Giocondo em momentos decisivos da política dos comunistas: o levante militar de 1935, no Rio Grande do Norte, do qual foi o principal líder; o breve período da legalidade pós-Segunda Guerra (1945/47), quando o PCB elegeu 14 deputados federais e um senador (Luiz Carlos Prestes); a luta contra a ditadura e a política de frente democrática contra o regime militar fascista, em divergência com as forças de esquerda que defendiam a resistência armada; a campanha pela legalidade do PCB, nos anos de 1980.
A trajetória de Giocondo se confunde com a própria história do velho Partidão. Cabo Dias, como era conhecido por sua patente militar, viveu a maior parte da existência na clandestinidade, a serviço da causa em que acreditava. Não é para qualquer um. É preciso a fibra dos fortes e a abnegação dos convictos para suportar durante tanto tempo as privações de uma vida clandestina.
Segundo o diretor Vladimir Carvalho, o documentário levou dois anos para ser realizado: “assumi a produção desse filme e fiquei dois anos ralando. É um perfil em segunda-mão, porque é visto pelos raros contemporâneos do Giocondo Dias”, disse o cineasta, em entrevista para a “Agência Brasília”, em 2019, quando o longa foi exibido no encerramento do Festival de Brasília.
De fato, o filme se vale muito do depoimento de quem conviveu com Giocondo. E isso tem uma razão de ser. Cuidadoso, sempre atuando com extrema discrição, é natural que não exista quase nada de imagens de arquivos dos tempos em que Giocondo atuava na clandestinidade.
É por meio de um mosaico de entrevistas com ex-companheiros de organização que emerge a figura de um dedicado militante comunista, rígido nas normas de segurança, mas doce e gentil no convívio pessoal.
Em um emocionado depoimento, sua filha, Ana Maria Dias, fala dos encontros esporádicos com o pai, sempre cercados de extrema cautela para não comprometer a segurança. Uma situação difícil para os dois. Não é fácil abdicar do convívio familiar.
Dois momentos se destacam no documentário: o primeiro é o perfil que Jorge Amado faz de Giocondo no livro “Navegação de Cabotagem”, onde o trata por Neném – apelido cunhado pela mãe de Giocondo – do tempo em que ambos, nascidos na Bahia, agitavam as ruas de Salvador. É uma narrativa carinhosa. Jorge Amado revela que um dos personagens de seu romance, “Tenda dos Milagres”, foi inspirado no amigo comunista: “o coloquei em uma tribuna de comício durante a guerra, falando em nome dos trabalhadores”.
O outro trecho marcante do filme é a descrição, em detalhes, da retirada clandestina, no auge da ditadura militar, de Giocondo do Brasil. Prestes já estava em Moscou desde o início dos anos de 1970. O cerco da repressão havia apertado sobre os dirigentes do PCB. Muitos, inclusive, caíram e até hoje estão desaparecidos.
Por sugestão de José Salles (membro do Comitê Central), que se encontrava na União Soviética, montou-se uma complexa operação que envolveu comunistas brasileiros e argentinos, além de dirigentes da antiga URSS. Os depoimentos relatam em minúcias o vai e vem dos procedimentos que acabaram por levar Giocondo a Moscou, em 1976. Em todo o processo, o cabo Dias manteve-se sereno e disciplinado, preocupado com a segurança dos demais envolvidos.
Vários depoimentos expõem as divergências internas, no exílio, entre os membros do Partidão. Nesse cenário, Giocondo se impõe por sua capacidade de dialogar, qualidade destacada por todos. Soube usá-la com maestria, construindo pontes entre as correntes políticas do partido. Acabou sendo um dos formuladores e porta-voz da política de frente ampla democrática que o Partidão preconizou na luta contra a ditadura. Sua habilidade de ouvir os outros terminou por levá-lo à Secretaria-geral do PCB, em substituição a Luiz Carlos Prestes.
“Giocondo – O ilustre desconhecido” é um filme importante, pois ajuda a resgatar uma personalidade política que, por seus traços pessoais avesso aos holofotes, corria o risco de permanecer na penumbra.
O PCB é a mais antiga organização comunista do país. Ano que vem, será o ano de seu centenário. Com certeza, Giocondo Dias será lembrado como uma das figuras decisivas na construção da bela trajetória de lutas dos comunistas.
* Henrique Brandão é jornalista e escritor.
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de setembro (35ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.
Cineclube Vladimir Carvalho será reaberto com entrada gratuita
Filme A Hora da Estrela, de Suzana Amaral, marca a reabertura do Cineclube Vladimir Carvalho.
João Rodrigues, da equipe da FAP
Em 3 de setembro (sexta-feira), a partir das 13h30, o Cineclube Vladimir Carvalho apresenta o filme A Hora da Estrela, de Suzana Amaral, baseado no livro homônimo sobre a escritora Clarice Lispector. A exibição marca a reabertura do espaço, localizado na Biblioteca Salomão Malina, no Conic. A entrada é gratuita.
“Giocondo Dias - O Ilustre Clandestino” é tema de podcast
O cineasta Vladmir Carvalho fala sobre a chegada do filme ao NOW, da NET, e da história de vida desse importante personagem da história política do Brasil
João Rodrigues, da equipe da FAP
Sucesso no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, em 2019, o documentário “Giocondo Dias - O Ilustre Clandestino” chegou à disposição do grande público no NOW, da NET, uma das maiores plataformas de streaming do Brasil, nesta semana. O filme retrata a vida do líder comunista baiano Giocondo Dias, militante de esquerda que viveu dois terços de sua vida na clandestinidade e liderou o PCB como secretário-geral.
Além de resgatar um importante personagem da história política do Brasil, sobretudo na resistência à ditadura, o documentário é uma obra notável do cineasta Vladimir Carvalho, convidado desta edição do podcast da Fundação Astrojildo Pereira. O programa conta com perguntas de Caetano Araújo (diretor-geral da FAP, sociólogo e consultor do Senado), Ivan Alves Filho (jornalista, historiador e escritor), Renato Ferraz (jornalista e gerente de Comunicação da FAP), Gilvan Cavalcanti de Melo (editor do blog Democracia Política e novo Reformismo) e Luiz Carlos Azedo (colunista do Correio Braziliense e do Estado de Minas).
Ouça o podcast!
O episódio tem áudios do filme “Giocondo Dias - O Ilustre Clandestino Online”, documentário #MINHABRASÍLIA 60 Candangos e do Canal Curta!, no Youtube.
O Rádio FAP é publicado semanalmente, às sextas-feiras, em diversas plataformas de streaming como Spotify, Google Podcasts, Youtube, Ancora, RadioPublic e Pocket Casts. O programa tem a produção e apresentação do jornalista João Rodrigues. A edição-executiva é de Renato Ferraz.
Confira o documentário no link: www.nowonline.com.br/filme/giocondo-dias-o-ilustre-clandestino/1838586.
O homem de Sputnik se mantém como comédia histórica há 62 anos
Premiado, o filme O homem do Sputnik, do diretor Carlos Manga, lançado em 1959, será debatido nesta quinta-feira (22/7) em mais um evento do ciclo de webinars da Biblioteca Salomão Malina e Fundação Astrojildo Pereira (FAP), em pré-celebração ao centenário da Semana de Arte Moderna, marcado para o ano que vem. A transmissão será realizada, a partir das 17 horas, no portal da entidade e redes sociais (Facebook e Youtube).
Assista!
Em novembro de 2015, o filme entrou na lista feita pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine) dos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos. Foi listado por Jeanne Santos, do Cinema em Cena, como “clássico nacional”.
A comédia narra as peripécias de um homem simples que pensa que o satélite russo Sputnik 1 caiu no galinheiro de um sítio. A notícia se espalha e ele é perseguido por espiões de todos os tipos até que a verdade vem à tona.
Na época, o estreante Jô Soares, ainda como “Joe” Soares, fez o papel de um espião americano no Brasil. A inclusão desse espião fez com que o diretor Carlos Manga perdesse uma bolsa de estágio nos EUA. O filme teria sido visto por 15 milhões de espectadores.
O enredo é marcado por um casal de caipiras comerciantes de ovos, Anastácio e Cleci, que são surpreendidos por um estrondo em seu galinheiro. Ele encontra entre suas galinhas um globo metálico. No dia seguinte, ela lê no jornal sobre o acidente com o satélite russo Sputnik e reconhece na fotografia um objeto semelhante ao que caiu em seu quintal.
Anastácio, então, leva o globo à casa de penhores e mostra-o para a funcionária Dorinha. Ela liga para o jornal onde trabalha seu namorado, Nelson, e lhe conta o fato. Alberto, jornalista inescrupuloso, ouve a conversa entre o casal e conta a novidade ao chefe do jornal.
Nelson vai ao encontro de Anastácio e pede a ele que esconda o objeto. Anastácio coloca-o dentro do poço. A notícia de que o Sputnik caiu no Brasil vira primeira página dos jornais.
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Anastácio e Clecy se transformam em celebridades. Hospedam-se no Copacabana Palace, onde recebem propostas de grupos de russos, americanos e franceses que tentam seduzir Anastácio, apresentando-lhe a cantora francesa Bebe.
Os interesses desmedidos dos estrangeiros pelo satélite levam os dois à loucura. Anastácio é raptado pelos franceses e Nelson pelos americanos. Fogem e voltam para a casa de Anastácio. Russos, americanos e franceses os seguem, disputando o valioso troféu, que ninguém sabe onde está.
Anastácio revela o local onde o Sputnik se encontra e todos se alvoroçam. Não encontram nada no poço. Ao passar pelo local, o sacristão diz que pegou o Sputnik e transformou-o em pára-raios para a igreja. Os agentes estrangeiros partem decepcionados e Anastécio Cleci voltam para casa, mas se deparam com o verdadeiro Sputnik que acabara de cair no galinheiro. (Com informações públicas)
Ciclo de Debates sobre Centenário da Semana de Arte Moderna
10º evento online da série | Modernismo, cinema, literatura e arquitetura.
Webinário sobre o filme O homem do Sputnik, direção de Carlos Manga
Dia: 22/7/2021
Transmissão: a partir das 17h
Onde: Perfil da Biblioteca Salomão Malina no Facebook e no portal da FAP e redes sociais (Facebook e Youtube) da entidade
Realização: Biblioteca Salomão Malina e Fundação Astrojildo Pereira
Edmílson Caminha: O cineasta Vladimir, de São Saruê a Brasília
São muitos os grandes nomes que a cultura brasileira deve à Paraíba: o pintor Pedro Américo, o poeta Augusto dos Anjos, os escritores José Américo de Almeida, José Lins do Rego e Ariano Suassuna, o teatrólogo Paulo Pontes, os músicos Jackson do Pandeiro, Sivuca, Geraldo Vandré... Ponha-se, entre esses paraibanos ilustres, o cineasta Vladimir Carvalho, referência do documentário no Brasil, autor de artigos, memórias e análises que se reúnem no livro Jornal de cinema (São Paulo : É Tudo Verdade, 2015). Com a modéstia de quem não precisa autopromover-se para alcançar o reconhecimento da crítica e a admiração do público, Vladimir exalta os colegas, louva os amigos e se compraz em enaltecer-lhes o talento, mas tal é a importância de que se reveste, como ser humano e como profissional, que ao fim ninguém parece maior do que ele próprio, pela grandeza que lhe enobrece a vida e pela excelência que lhe consagra a obra.
Textos claros, objetivos, corretos, como nota Amir Labaki, na apresentação: “A elegância do estilo de Vladimir espelha sua sólida formação literária. A precisão e o dinamismo remetem às experiências pontuais no ofício de jornalista, de colaborador eventual a repórter em tempo integral, como ganha-pão no período mais duro da ditadura militar”. Leia-se, por exemplo, o que diz de José Américo de Almeida, o lendário político paraibano que se dispõe a recebê-lo:
Homem feito, eu achava a figura inatingível, posto a salvo da abordagem do restante dos mortais, na redoma sagrada em que o mantinha uma confraria de admiradores. Até que um dia, no exercício do jornalismo, fui colocado vis-à-vis com o mito, realizando uma entrevista com “o velho”, como o chamavam na Paraíba. Ele já estava na fase do recolhimento da praia de Tambaú fazia cerca de dez anos, em meados da década de 60. Reserva moral da Nação, como diziam, mas sem mandato, fazia pensar num navio velho encalhado no mar sereno do Cabo Branco.
Com saber de historiador, Vladimir compõe um abrangente painel do filme documentário brasileiro, a partir do célebre Aruanda (1959), de Linduarte Noronha, que teve Carvalho como assistente. Sua “luz nordestina, que explode como se fosse sempre meio-dia, sol a pino, com o mundo pegando fogo, agredindo retinas e ambientes”, torna-o, “até o lançamento de Vidas secas, de Nelson Pereira dos Santos, a mais resoluta e contundente proposta de cinema brasileiro”. É o marco fundador da geração paraibana em que o crítico Paulo Emílio Sales Gomes percebeu uma “inelutável teimosia”, tamanhas as carências e dificuldades que se antepunham àqueles jovens com o sonho de fazer cinema.
Iniciava-se a década de 1960, quando na provinciana João Pessoa, e em muitas outras cidades brasileiras, multiplicavam-se os cineclubes (como o de Fortaleza, dirigido por Eusélio Oliveira) e as sessões dos “cinemas de arte” no circuito comercial. Nas do Cine Diogo, em Fortaleza, às 11h da manhã de sábado, experimentei a emoção de assistir, pela primeira vez, a Teorema, de Pasolini, Persona, de Bergman e Sempre aos domingos, de Serge Bourguignon. Tempo em que se desencadearam paixões de uma vida inteira, como a do paraibano de Picuí que não por acaso se chama “Ivan Cineminha”, dono de dezenas de cadernos em que, desde a juventude, anota minuciosamente a ficha técnica dos milhares de filmes a que assistiu. Conhecimento profundo que o fez desmentir, no “Programa do Jô”, ninguém menos do que Anthony Quinn, que dissera nunca haver trabalhado atrás das câmeras, como diretor. “Trabalhou, sim. É que o filme não é bom, e ele prefere esquecer...”
Antes, milhões de espectadores divertiam-se com as comédias da Atlântida, recheadas de músicas e de histórias de amor, protagonizadas por Oscarito, Grande Otelo, Cyll Farney, Eliana, José Lewgoy, Dercy Gonçalves e Zé Trindade. Tão rendosas para Luiz Severiano Ribeiro, dono da produtora e de centenas de salas de cinema pelo Brasil, que incomodaram Hollywood, lembra Vladimir:
Foi tal o êxito da chanchada, mesmo desprezada como gênero chulo pela intelectualidade, que, segundo se diz, motivou a vinda para o Brasil daquele que seria uma espécie de xerife do cinema americano, o louro e bigodudo Harry Stone. Ele trataria de dissuadir Severiano de continuar produzindo a chanchada, que claramente tomava espaço dos filmes de Tio Sam no mercado exibidor. Como a rede de cinemas de Severiano também dependia de contratos com as distribuidoras americanas para exibição dos filmes de Hollywood, terminou por capitular. O advento da TV no Brasil e seu consequente impacto sobre o público fizeram o resto, e a chanchada foi aos poucos sendo arquivada.
Depois veio o Cinema Novo, com Glauber Rocha, Leon Hirszman, Joaquim Pedro de Andrade, Arnaldo Jabor, Cacá Diegues, que Vladimir Carvalho comenta com lucidez e honestidade crítica, em prefácio para o livro de Pedro Simonard sobre a geração que ganharia prêmios em festivais e resenhas lisonjeiras nos Cahiers du Cinéma:
Uma evidência que salta aos olhos neste ensaio tão sensível é que uma circunstância do Cinema Novo, talvez a mais marcante, o seu viés messiânico de dono da verdade, quase anula a sua proverbial veia contestadora e inconformista, atestando de certo modo a sua alienação e inata identificação com a classe dominante, como a reiterar que “a ideia dominante é a ideia da classe dominante”.
Momentos de peso na cinematografia nacional ganham testemunhos históricos de quem os viveu em pessoa. Assistente do diretor Eduardo Coutinho no célebre Cabra marcado para viver, Vladimir e companheiros interrompem as filmagens no Engenho Galileia, interior de Pernambuco, ante a notícia do golpe militar que depusera Jango. Escondidos câmera, tripé e acessórios no meio do mato, o grupo caminhou por entre espinhos e pedras do sertão, milagrosamente a salvo dos jipes do Exército em patrulha pelas redondezas. Foi quando o aprendiz de cineasta soube que, documentarista por vocação e escolha, jamais provaria o glamour dos tapetes que levam às palmas de ouro de Cannes e aos leões de Veneza: em sociedades injustas e violentas como a nossa, fazer documentários é expor-se corajosamente aos riscos da denúncia, do desafio, do confronto perigoso com tiranos e corruptos. Ante a força de quem podia prender, torturar e dar sumiço, crismava-se o diretor do longa-metragem que chegaria às telas em 1971, pela obstinação com que vencera toda espécie de contratempo e obstáculo:
Nascia o embrião de São Saruê, com filme vencido, rebatedores feitos de quadros-negros dos grupos escolares; rapadura e farinha, pouca água. Um dia esquecemos um monte de latas da película já rodada em cima de um lajedo; quando voltamos pela caatinga espinhenta já era meio-dia, o sol no zênite, torrando tudo. As latas de filme estavam como chaleira quente fervendo, mudou toda a composição química, e o resultado é a textura pulverizada de areia que o documentário apresenta hoje, e os críticos dizem que foi “a troca do conteúdo pela forma através de uma imagem trepidante”. Que nada...
A O país de São Saruê, juntam-se O homem de areia (1982), O evangelho segundo Teotônio (1984) e O engenho de Zé Lins (2006), referências do que se pode compreender como “ciclo nordestino” na obra de Vladimir Carvalho. A homenagem ao romancista de Fogo morto é das maiores que já se fizeram a escritores brasileiros, com passagens comoventes. No leito em que morria de câncer, sem forças para aliviar a comichão nas partes íntimas, Zé Lins pede ao amigo Thiago de Mello que lhe coce os “quibas”. Lembrança que o poeta revive, entre lágrimas: “Eu meti a mão pela calça do pijama e cocei...”, gesto de grandeza que nem todo homem teria para com o pai.
Conterrâneos velhos de guerra (1990), Barra 68, sem perder a ternura (2000) e Rock Brasília – Era de Ouro (2011) destacam-se no “ciclo brasiliense” do diretor. O primeiro é um clássico, a ser obrigatoriamente citado em qualquer estudo sobre a construção da nova capital. Impressiona o depoimento do urbanista Lúcio Costa, que teima em negar a chacina de trabalhadores no canteiro de obras da Construtora Pacheco Fernandes. Ante a insistência do entrevistador Vladimir, põe por terra o refinamento do intelectual que se ilustrou em Paris e declara ser tudo invenção dos motoristas de táxi, eles gostam muito de mentir... E se tiver mesmo acontecido, que representa a morte de alguns operários, ante a epopeia que foi construir aquele colosso? Momento de insensibilidade e de pequenez humana, que a história brasiliense deve à argúcia com que Vladimir arranca a verdade de quem, no teto da casa-grande, dá as costas aos que se amontoam na senzala. Donos do poder insolentes o bastante para, sob o tacão do AI-5, invadir a Universidade de Brasília, humilhar professores e perseguir estudantes, violência que Barra 68 mantém viva na memória dos que a sofreram e no espírito alerta dos que se recusam a tê-la de novo. Tempos medonhos cuja trilha sonora poderia ser das bandas Capital Inicial, Legião Urbana e Plebe Rude, a dizer e a cantar que ainda assim não se deve perder a esperança, com o valor que lhes confere o cineasta: “Este rock and roll, que ganharia a mais extraordinária visibilidade nacional, é o primeiro e mais bem-sucedido produto de toda a cultura saída da estufa brasiliense”.
Essa, a obra do diretor que faz de um filme bem mais do que “a maior diversão”, segundo aquele velho slogan. Para Vladimir Carvalho, cinema é realidade, cultura, história, documento, verdade, saber, a juntar as pontas de duas fantasias, a dos pobres de São Saruê e a dos nobres que dançam quadrilha na Praça dos Três Poderes. Grande, triste e desoladora metáfora de uma terra chamada Brasil.
*Edmilson Caminha é escritor, jornalista, professor de literatura brasileira e de língua portuguesa. É consultor legislativo (aposentado) da Câmara dos Deputados. Tem artigos, ensaios e entrevistas publicados na Revista Brasileira, da Academia Brasileira de Letras (Rio de Janeiro); Revista da Academia Mineira de Letras (Belo Horizonte); revista Clã, Revista da Academia Cearense de Letras e jornais O Povo e Diário do Nordeste (Fortaleza); Jornal de Letras, RioArtes e Jornal da ABI (Rio de Janeiro); D.O. Leitura (São Paulo); Suplemento Literário Minas Gerais (Belo Horizonte); A Tarde (Salvador); O Dia e Diário do Povo (Teresina); Correio Braziliense e Jornal da Associação Nacional de Escritores (Brasília); O Cometa Itabirano e O Trem (Itabira, MG), entre outros.
Vladimir Carvalho: O Sedutor do Sertão
Surpreende-nos, mais uma vez, Ariano Suassuna, depois do interregno que foi a sua exitosa e longa cruzada com as aulas-espetáculo, que divertiu e mobilizou o país de norte a sul – e da publicação póstuma do prometido Romance de Dom Pantero no Palco dos Pecadores (2017) – com a descoberta recente deste “novo” rebento de sua lavra, O Sedutor do Sertão, que só recentemente veio a lume, em requintada brochura também da Editora Nova Fronteira. É o resultado de providencial descida aos baús do grande criador, realizada com o aval do condomínio de herdeiros de Ariano pelo crítico e professor Carlos Newton Júnior, que também é o autor de judiciosa e brilhante apresentação do volume.
A obra faz jus, como era de se esperar, à descomunal imaginação criadora do autor de A Compadecida, de uma infinita capacidade de absorver o espírito das fábulas do romanceiro popular nordestino de onde saltam, luminosas, a astúcia e a graça do sertanejo na sua luta tenaz para sobreviver. Mas de uma forma tão candente que a transposição eleva e sublima a ação de seus personagens, tal como vemos em seu teatro e também em seus romances encabeçados, sobretudo, por A Pedra do Reino, que já nasceu clássico como sabemos. O que nos faz rir e pensar simultaneamente.
Quem se divertiu com as proezas de João Grilo e Chicó naquela peça, inclusive na sua versão para o cinema, vai se fartar de rir com as rocambolescas aventuras pícaras desse impagável Malaquias Pavão, o tal sedutor, “aguardenteiro, conquistador, folheteiro e cambiteiro”, imbatível rei da simpatia nas relações com outros homens ou com o mulherio de maneira geral. Aliás, o livro pode ser, por seu humor contagiante, um bálsamo que nos vem socorrer bem a propósito, nessa quadra de tão penosa travessia em vista do coronavirus.
A prosopopeia desse sujeito estradeiro, capaz de enganar até o diabo, se passa nas terras que vão do sertão ao brejo, na Paraíba, típicas paisagens do Nordeste, lembrando, em muito, e guardadas as proporções, os lances da cavalaria decadente do Dom Quixote de Cervantes, uma das inegáveis influências de Suassuna. Não à toa, Pavão se faz acompanhar de seu fiel estribeiro, Miguel Biôco, “baixo, careca, meio estrábico”, para cuidar de seu cavalo Rei de Ouro. Isso tudo em pleno cenário e no desenrolar da Revolta de Princesa, uma briga entre o coronel Zé Pereira e o presidente (como eram chamados à época os governadores) João Pessoa, que se antecipou à Revolução de 30, deflagrada a partir da morte deste último, como é sabido.
É esta peça rara que tenho sob meus olhos, porém em sua forma original, um manuscrito datilografado em tipos hoje borrados, sob o amarelo que a passagem do tempo marcou. Guardo-o como preciosa relíquia em meus arquivos, porque me foi passado, em 1969, por Marcus Odilon Ribeiro, dublê de escritor e usineiro, amigo dileto, que pretendia transformá-lo num roteiro cinematográfico e produzir o filme dele resultante. Com o passar do tempo, o projeto foi sendo adiado e terminou por ser esquecido no longo período de vacas magras para o cinema brasileiro.
Não obstante, A Compadecida, a obra maior de Suassuna no teatro ter sido adaptada para o cinema pelo húngaro Georges Jonas (1969), que fez fortuna como publicitário em São Paulo, não obteve o êxito esperado. O gringo era incapaz de perceber o mínimo que fosse da cultura brasileira em geral, quanto mais da cultura nordestina. Mais fácil seria o mar secar ou uma baleia emergir das parcas águas de um açude no sertão.
Uma outra versão, muito melhor resolvida, foi a de Roberto Faria (1987), talvez o maior diretor-artesão do nosso cinema, no que pese o caráter estritamente circense que emprestou à sua realização, protagonizada pelos Trapalhões e conquistando grande parte do público. Entretanto, o sucesso mais retumbante viria pelas mãos de Guel Arrais (2000), tanto no cinema como na televisão. Senhor absoluto do tema, o pernambucano soube captar a essência dramatúrgica, o humor e o espírito universal do texto.
Afinal o nosso Ariano foi mestre dos mestres no seu ofício, como prova a genialidade deste O Sedutor do Sertão agora disponível. Não existe em nossa cultura dois Ariano Suassuna. Quem inventou o primeiro perdeu ou esqueceu a fórmula mágica.
*Vladimir Carvalho, Professor Emérito da Universidade de Brasília, jornalista e cineasta
Vladimir Carvalho: 1930 - A revolução nonagenária
Não foi uma insurreição de velhinhos como pode se supor a partir do título acima, até porque os longevos daquela época não chegavam facilmente aos noventa anos de idade como ocorre em muitos casos hoje, graças aos progressos das ciências. Trata-se mesmo é do grande movimento revolucionário que mudou, de certa forma, a fisionomia política e social do país e que, em outubro próximo, completará nove décadas. Os anos de 1920 já prenunciavam, em muitos setores da comunidade brasileira, uma vontade insopitável de mudanças e foram marcados por uma inquietação e um alarido com o fim de despertar o Brasil, o gigante adormecido pela inépcia e incúria da Primeira República, já precocemente velha.
Em cotejo com outros países estávamos estagnados. Não avançáramos no terreno das ciências, a educação era uma quimera e o analfabetismo batia no teto. A economia marcava passo no sobe e desce dos preços do café, nosso principal produto de exportação no mercado internacional, obrigando-nos a constantes queimas de divisas enfraquecendo o tesouro nacional. Nas artes, salvara-se - com ressalvas - o barulho feito pela Semana de Arte Moderna.
Seguíamos no ritmo lerdo, marcado desde muito pela oligarquia dos coronéis donos de terra, em prejuízo dos pobres e de uma classe média que, nos grandes centros urbanos, começara, porém, a dar sinais de inquietação. Os primeiros a se rebelarem contra este estado de coisas foram os militares, que vinham em desacordo com o governo de Artur Bernardes. Em julho de 1922, um grupo de tenentes dominou o Forte de Copacabana e depois de desigual, mas renhido combate, foram vencidos no episódio que ficou conhecido como Os Dezoito do Forte.
Os “tenentes” se reagrupariam em 1924 em torno de Luiz Carlos Prestes e Miguel Couto com o propósito de levantar o país, pregando a revolução, na tentativa de sublevar as populações marginalizadas pelas oligarquias e contra o governo. Encetaram heroica marcha que só terminaria em 1927, cobrindo 24 mil quilômetros de norte a sul do Brasil, a qual ficou conhecida lendariamente pelo nome de Coluna Prestes, em homenagem ao seu capitão comandante.
Seu feito seria enaltecido pelo poeta Pablo Neruda, mas, na prática e em termos revolucionários, não obteve o êxito pretendido, embora tenha permanecido como marcante estímulo político no espírito da classe média urbana. Os militares, leia-se o “tenentismo”, seguiram conspirando juntamente com as lideranças de jovens políticos dos partidos burgueses em ascensão, com forte protagonismo dos gaúchos.
No início de 1929, o presidente Washington Luís lançou a candidatura do paulista Júlio Prestes, do PRP, desrespeitando o pacto tradicional da política conhecida popularmente como “café com leite”. Era a vez dos mineiros, que entraram em reboliço. Desse tremendo mal estar resultou a criação da Aliança Liberal e o lançamento de Getúlio Vargas, ex-ministro da Fazenda, para presidente da República, tendo como vice o presidente da Paraíba, João Pessoa. As eleições de 1º de março de 1930 deram a vitória ao candidato oficial, apesar do aparente favoritismo de Vargas.
O pleito foi vastamente acusado de fraudulento, com protestos que nada alcançaram de positivo nos tribunais. Instalou-se, então, um período de insatisfação e conspiração entre as jovens lideranças e os tenentistas, que se posicionaram, mais uma vez, a favor de uma revolução. Demorou, mas justo em 26 de julho daquele ano, ocorreu para surpresa de todos o assassinato de João Pessoa perpetrado pelo advogado João Duarte Dantas, desafeto político deste. A polícia deste varejara o escritório de Dantas, confiscando e publicando cartas íntimas por ele escritas à sua noiva, Anayde Beiriz, poeta e feminista.
O clima virou e forte comoção popular sobreveio reacendendo o estopim da oposição. Juarez Távora, membro proeminente da Coluna Prestes, fechou com os gaúchos de Vargas e junto com José Américo de Almeida – secretário de estado de João Pessoa – foi à garra levantando o Norte e o Nordeste. O féretro do presidente partiu de navio do porto de Cabedelo, fazendo paradas estratégicas, com direito a discursos em várias capitais, até chegar ao Rio de Janeiro, onde multidões o levaram ao sepultamento. O resumo da tragédia virou história com imagens retumbantes dos gaúchos amarrando seus cavalos no obelisco da Cinelândia. Seguiram-se a deposição de Washington Luís e a consequente ascensão de Getúlio à presidência. Este é, em linhas gerais, o “enredo” do meu filme O Homem de Areia, realizado há quarenta atrás.
*Vladimir Carvalho, Cineasta, escritor e Professor emérito da Universidade de Brasília
Amir Labaki: Vladimir Carvalho finaliza documentário sobre líder comunista
Integrante do juri da competição brasileira do festival, diretor finaliza documentário sobre o líder comunista baiano Giocondo Dias
Aos 84 anos, aparentando dez a menos, Vladimir Carvalho participa até o próximo domingo (14) do júri da competição brasileira do É Tudo Verdade 2019 - 24º Festival Internacional de Documentários. Reprisa assim sua atuação como jurado da primeira disputa do evento, em sua segunda edição, em 1997.
Entre estes 22 anos, honrou-nos lançando longas-metragens em disputas, foi celebrado com retrospectiva por seus 80 anos, em 2015, e participou de incontáveis debates nas sedes em São Paulo e no Rio e durante itinerâncias no Recife e em Brasília, onde fixou residência há quase meio século.
A participação no júri, tendo por colegas a professora de cinema Sheila Schvarzman e o diretor Cristiano Burlan, criou a oportunidade para Carvalho lançar em São Paulo o DVD de seu mais recente documentário, "Cícero Dias, O Compadre de Picasso" (Bretz Filmes, R$ 49,90). Em parceria com o IMS-SP, a tarde de autógrafos foi aberta por um bate-papo com o público, que tive o privilégio de mediar.
Durante quase uma hora, o diretor paraibano de "A Bolandeira" (1968) e "Conterrâneos Velhos de Guerra" (1991) entreteve a plateia com memórias e reflexões. Remeteu a um debate familiar de 1948 entre seu pai e um tio, sobre o escândalo provocado pela primeira exposição de Cícero Dias (1907-2003) no Recife após uma década de estadia parisiense, marcada por sua guinada abstracionista, o interesse aceso em torno da obra do pintor de "Eu Vi o Mundo... Ele Começava no Recife" (1931).
Mais de meio século mais tarde, contou Carvalho, uma viagem para participar em 2005 do festival Paris Cinéma ofertou-lhe a oportunidade, não planejada, de gravar as duas primeiras fitas mini-DV que catalisariam seu documentário. Aqueles primeiros registros documentavam a grande exposição de Cícero Dias então em cartaz na Maison de L'Amérique Latine e o ateliê ainda preservado do pintor, além de entrevistas com sua viúva, Raymonde (1918-2013), e sua filha, Sílvia.
Uma hora antes do debate, conversei com Vladimir Carvalho exclusivamente para esta coluna. Comecei perguntando-lhe o que mudara na cena documental no Brasil no intervalo de duas décadas entre suas participações no júri. Ele destacou como o festival estabeleceu "uma plataforma" que "deu nova visualidade" aos documentários. "A área da distribuição e da exibição vai cedendo e vendo nossos filmes com outra ótica", sustenta.
Estas duas décadas foram as da superação da tradicional produção cinematográfica com película pela gravação digital. Indago a ele, que desenvolveu sua filmografia durante quase meio século em filme, qual foi o impacto. "O digital, para nós que fazemos documentário, foi uma mão na roda", comemora. "Você filma vendo o resultado. Você começa até a montar. Você monta filmando", destaca.
Seu novo projeto é um documentário de longa-metragem sobre o líder comunista baiano Giocondo Dias (1913-1987), que liderou o ainda PCB como seu secretário-geral desde a abertura, em 1980, até pouco depois da redemocratização com o fim do regime militar em 1985. "O título provisório é 'Giocondo Dias: Ilustre Clandestino'. Ele viveu mais de metade da vida se escondendo, usando outros nomes, nomes de guerra, não tinha paradeiro."
"Foi uma educação pela pedra", explica Carvalho, ele mesmo um ex-membro do antigo PCB. "Como simples cabo, ele foi baleado, em 1935, atropelando um soldado que ia atirar no governador", durante a chamada Intentona Comunista, no Rio Grande do Norte, que teve Giocondo Dias como um dos líderes militares em Natal.
"Desenvolveu-se um homem que não acreditava na saída pela luta armada. Foi tido como um antípoda de [Luís Carlos] Prestes, foi perseguido dentro do próprio partido. Amicíssimo, irmão de Marighella, era diametralmente divergente dele. Ele faz essa travessia vendo um horizonte de democracia. É uma trajetória ideológica de 'não às armas'."
Como realizar um filme sobre um militante condenado à invisibilidade pela vida na clandestinidade? "Isso se sente no filme", reconhece o cineasta. "Apelei para fotografias e testemunhas de companheiros dele. Estou trabalhando há dois anos. Já editei. Estamos negociando direitos autorais de arquivos de imagem e música".
"Vou fazer este filme em memória de meu pai", confessa, ao fim do papo. Luiz Martins de Carvalho, lembrou Vladimir num texto de 2013, foi "um bom militante do partido".
"Ele era um homem de sete instrumentos. Foi vereador em Itabaiana, na Paraíba, pós-1947, já pelo PSD. Eu me lembro de meu pai, com um candeeiro, lendo a primeira edição de 'O Cavaleiro da Esperança' [a biografia romanceada de Prestes escrita por Jorge Amado]. Morreu aos 39 anos, muito cedo. Eu o escuto. Ele está aqui. Meu pai é uma matriz. Muito pouca coisa me foi acrescentada depois. Foi a influência mais forte. Absoluta."
*Amir Labaki é diretor-fundador do É Tudo Verdade - Festival Internacional de Documentários.