Revista online | Militares e o governo Bolsonaro: política ou partidarização?

País deve reconstruir pontes de diálogo para que integrantes das Forças Armadas somarem com sua presença a um projeto de nação
Presidente Jair Bolsonaro nas Forças Armadas | Foto:Jose Cruz/EBC
Presidente Jair Bolsonaro nas Forças Armadas | Foto:Jose Cruz/EBC

Paulo Ribeiro da Cunha*, especial para a revista Política Democrática online (47ª edição: setembro/2022)

Nesse último quadriênio, o país tem sido tencionado por questionamentos sobre a possibilidade de ruptura institucional, e analistas sustentam legítimas preocupações relacionadas à politização das Forças Armadas, associando o quadro atual a um cenário próximo ao do golpe civil militar de 1964. Apontamentos, evidentemente, sujeitos a controvérsias e, cautelosamente, aqui pontuados numa outra linha de análise, antípoda à tese de um golpe. 

E por quê? Antes, há que considerar que os militares nunca foram um corpo homogêneo na história do Brasil. Estiveram envolvidos na política ao lado das causas nacionais e progressistas. Ou, em outras épocas, contra o povo, por vezes, expressando grupos ou lideranças, bem como significativas influências na sociedade. 

Essa díade relacionada à presença política na história não encontra necessariamente osmose com a tentativa de partidarização das instituições vistas contemporaneamente, embora pontualmente possa ser identificada em muitas das ações políticas no período republicano. Recorrendo a um silogismo: toda ação partidária é política, mas nem toda agenda política é partidária. Esse é o ponto fulcral dessa linha de análise, mesmo que brevemente exposto. 

Além dessa presença na política, houve expressões ou influências de posicionamentos políticos e ideológicos à direita, como os Jovens Turcos, e à esquerda socialista e comunista nas muitas rebeliões de marinheiros e sargentos, ou entre alguns expoentes do movimento tenentista que fizeram história. Foram movimentos políticos sem conotações partidárias, cujas páginas de luta foram dignificadas nesta etapa inicial na Coluna Prestes/Miguel Costa, assim como no Movimento Revolucionário de 1935

Dessa conflituosa etapa histórica após os anos 1930, decorre, enquanto resposta, a Doutrina Góes Monteiro, resumindo um princípio de que não deve haver política no exército e sim a Política do Exército, ou seja, a política deve ser privilégio dos generais. Após advir a democracia entre 1945 e 1964, confrontada por um feroz anticomunismo, há de ser considerado que, nesse período da Guerra Fria, houve militares disputando pleitos presidenciais em todos os escrutínios. Um dado que chama atenção, comparativamente, é que o percentual de militares eleitos em 1946 é muito próximo ao da eleição de 2018, em que pese houvesse uma maior pluralidade política e ideológica. 

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Ao mesmo tempo, marinheiros, praças e oficiais procuravam ser reconhecidos enquanto cidadãos plenos numa democracia cujos limites de participação à categoria eram bem restritos na Constituição de 1946. Contudo, a Carta abria possibilidades concretas e emergia uma corrente de militares nacionalistas cuja centralidade e agenda eram pautadas na defesa da legalidade e da democracia, bem como nas causas nacionais, como o petróleo.

Em parte, havia um setor sob influência do Partido Comunista Brasileiro (PCB) confrontando militares que atuavam a favor de iniciativas golpistas junto aos civis na União Democrática Nacional (UDN). Descoladas de qualquer comparação com o atual momento, essas correntes digladiavam projetos de nação que expressavam também teoricamente escolas de pensamento como a ESG e antípoda e situada à esquerda ou no campo nacionalista, o Iseb. Essa ação a favor da legalidade contra o golpismo acabou derrotada em 1964 e foi significativa sua presença na política, já que, comparativamente, as demais categorias sociais e os militares foram os mais atingidos pelo golpe civil militar, segundo dados levantados no Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade (CNV).

Após o golpe civil-militar de 1964, alguns oficiais, praças e marinheiros aderiram à luta armada. Entretanto, a maioria optou pela resistência à ditadura atuando em partidos de oposição ou em associações, tendo em vista a restauração da democracia. Outros grupos militares à direita digladiaram na caserna, especialmente nos períodos de sucessão presidencial. Mas os embates internos no campo da política não foram superados nas décadas subsequentes com a redemocratização, bem como na Constituinte, cujo establishment militar operou com sucesso em relação às muitas propostas de oxigenação de suas instituições, emergindo tensas relações com os civis em face a tentativas de subordinação com a implementação do Ministério da Defesa. 

E, apesar de estarem distanciados das lides partidárias, concretamente, preservaram muito sua autonomia. Talvez, favorecidos pelo fato de que a maioria dos ocupantes do MD foi incapaz de estabelecer efetivas pontes de diálogo (salvas honrosas exceções vistas entre parlamentares do campo da esquerda). Há situação análoga no Congresso, cuja lacuna de compreensão da categoria não encontra respaldo na maioria dos parlamentares. Talvez seja essa a dificuldade herdada de um efetivo exercício do poder civil nos vários casos de manifestações ou indisciplina recentes de alguns generais, cuja fragilidade alimenta a associação dos militares ao governo Bolsonaro e suas muitas tentativas de envolver partidariamente as Forças Armadas. E não foram poucas. Medíocre como político e mau militar, mas inegavelmente sua eleição foi favorecida pela crise política. Bolsonaro soube capitalizar em um cenário de polarização. Facada e esgotamento de um modelo eivado de denúncias no campo democrático levaram à sua vitória nas eleições de 2018. 

Retrocesso na história e por osmose, passou-se a ideia de que havia em curso um governo militar e a militarização do estado. Há, de fato, uma presença significativa no atual governo, embora a maioria da reserva. Bolsonaro teve apoio da maioria da categoria na sua eleição, porém, a identificação enquanto expressão mais organizada é de um grupo que intitulo de “Ala Militar”, cuja umbilicidade é anterior nas Forças Armadas, formada por generais críticos ao marxismo cultural e as ideias de Olavo de Carvalho, abrigados em sua maioria no clube Militar.

Contudo, estão longe de serem identificados com as instituições castrenses. Aliás, seus expoentes mais categorizados não demoraram a pular fora do barco no início de 2019, todos com críticas ferrenhas ao ocupante e seu entorno familiar, bem como ministros corruptos. A despeito da enorme maioria dos militares serem conservadores, conservadorismo não é sinônimo de reacionarismo. Bolsonaro até teve uma receptividade inicial maior na caserna. Conseguiu esse apoio se esvaindo aos poucos, tendo muitos militares dando claros sinais de afastamento, haja vista a demissão dos comandantes e do Ministro da Defesa. 

Confira, abaixo, galeria de imagens:

Bolsonaro e militares forcas armadas | Foto: Shutterstock
Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil
Foto: Isac Nobrega/PR
Juramento de defesa da Constituição por militares não significa obediência irrestrita ao presidente da República, explica Paulo Ribeiro da Cunha | Foto: Marcos Corrêa/PR
Foto: Marcos Correa/PR
Foto: Michael Melo/Metrópoles
Foto: Reprodução/Jornal Opção
Foto: Thales Antonio/Shutterstock
Bolsonaro e militares forcas armadas | Foto: Shutterstock
Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil
Foto: Isac Nobrega/PR
Juramento de defesa da Constituição por militares não significa obediência irrestrita ao presidente da República, explica Paulo Ribeiro da Cunha | Foto: Marcos Corrêa/PR
Foto: Marcos Correa/PR
Foto: Michael Melo/Metrópoles
Foto: Reprodução/Jornal Opção
Foto: Thales Antonio/Shutterstock
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Bolsonaro e militares forcas armadas | Foto: Shutterstock
Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil
Foto: Isac Nobrega/PR
Juramento de defesa da Constituição por militares não significa obediência irrestrita ao presidente da República, explica Paulo Ribeiro da Cunha | Foto: Marcos Corrêa/PR
Foto: Marcos Correa/PR
Foto: Michael Melo/Metrópoles
Foto: Reprodução/Jornal Opção
Foto: Thales Antonio/Shutterstock
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Apesar de as tensões advindas da caserna ainda estarem em curso e presentes até o término das eleições, é também válida a reação da classe política ou mesmo da sociedade civil a favor da democracia contra golpes. Além de lições dolorosamente pedagógicas, ao que tudo indica, essas também refletem junto aos militares que aos poucos sinalizam pistas claras de operarem uma rotação ao campo da institucionalidade e da democracia. Prevalece, para a maioria deles, a gradual percepção de que o juramento em defesa da Constituição não significa por osmose obediência irrestrita ao presidente, quiçá a um superior imediato ao preço de suas objeções de consciência.  

Não é pouco, mas é importante reconhecermos sua presença política no tempo e na história, além de reconstruirmos pontes de diálogo na perspectiva de os militares somarem com sua presença a um projeto de nação. Afinal, eles estão subsumidos enquanto cidadãos plenos de direitos ao poder civil e ao Estado Democrático e de Direito.

Sobre o autor

*Paulo Ribeiro da Cunha é livre docente em Ciência Política pela  Universidade Estadual Paulista (Unesp), autor de Militares e Militância: uma relação dialeticamente conflituosa (São Paulo: Ed. Unesp, 2012; 2020; 2022) e consultor da Comissão Nacional da Verdade.

** O artigo foi produzido para publicação na revista Política Democrática online de maio de 2022 (47ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da publicação.

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