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Reinaldo Azedo: Ramagem era o delegado da operação que originou a Furna da Onça

Costumo dizer que o mundo da política tem um "ICI" muito superior ao de outras áreas da experiência humana. O que é ICI? É o "índice de Coincidências Incríveis".

O que é mesmo a Operação Furna da Onça? Foi deflagrada em 8 de novembro de 2018 — DEPOIS, PORTANTO, DO SEGUNDO TURNO; FLÁVIO TERIA SIDO AVISADO UMA SEMANA DEPOIS DO PRIMEIRO TURNO — para apurar um esquema monitorado pelo ex-governador Sergio Cabral para distribuir propinas na Assembleia Legislativa do Rio. O nome é referência a uma sala que fica ao lado do plenário, aonde deputados costumam ir para reuniões rápidas ou para encontrar visitantes.

Foi no âmbito dessa investigação que se chegou ao extrato bancário de Fabrício Queiroz, evidenciando que ele operava a "rachadinha" no gabinete de Flávio, investigada no âmbito estadual. Ele mesmo o admitiu. Ofereceu uma singularíssima explicação: pegaria de volta parte do salário dos servidores do gabinete de Flávio e contrataria pessoas informalmente para fazer outros serviços no gabinete. E, claro, ele jura que o então deputado estadual não sabia de nada.

AGORA O "FATOR ICI"
A Operação Furna da Orça é um desdobramento da Operação Cadeia Velha, deflagrada em novembro de 2017, também para apurar propinas pagas pelo esquema de Cabral -- nesse caso, na área de transportes.

A gente ainda não sabe quem é o delegado, em tendo acontecido o que diz Paulo Marinho, que cometeu o crime de vazar a operação para Flávio, que avisou Bolsonaro. Mas dá para saber quem é o delegado que chefiou a Operação Cadeia Velha, reunindo informações que levaram, então, à operação Furna da Onça, que chegou a Queiroz. Atende pelo nome de Alexandre Ramagem.

Sim, é o delegado que passou a cuidar da segurança pessoal de Bolsonaro, que foi levado depois para a assessoria da Secretaria de Governo, saltando de lá para o comando da Abin e que o presidente queria pôr no comando da PF, se onde vazara a informação...

Parafraseando Rick em "Casablanca" ao ver a amada Ilse em seu bar, pergunto: "Com tantos delegados na PF, tinha ser justamente Ramagem o responsável pela operação que gerou a Furna da Onça, que, segundo Marinho, foi antecipada a Flávio Bolsonaro? Justo Ramagem, que Bolsonaro tentou colocar no comando do órgão?

É o tal "ICI" da política: o Índice de Coincidências Incríveis.

LEIAM

BOMBA 1: Ex-aliado diz que PF avisou a Flávio que Queiroz seria investigado

BOMBA 2: Se vazou, Bolsonaro e Flávio cometeram crimes; lugar do caso é STF


BOMBA 4: Quem guarda telefone de Bebianno que traz conversas com Bolsonaro


Folha de S. Paulo: PF antecipou a Flávio que Queiroz seria alvo de operação, diz suplente do senador

Empresário afirma que revelação foi feita a ele em 2018 pelo filho do presidente, que demitiu assessor para tentar prevenir desgaste

Mônica Bergamo, da Folha de S. Paulo

empresário Paulo Marinho, 68, foi um dos mais importantes e próximos apoiadores de Jair Bolsonaro na campanha presidencial de 2018. Ele não apenas cedeu sua casa no Rio de Janeiro para a estrutura de campanha do então deputado federal, que ainda hoje chama de “capitão”, como foi candidato a suplente na chapa do filho dele, Flávio Bolsonaro, que concorria ao Senado. Os dois foram eleitos.

Em dezembro daquele ano, com Jair Bolsonaro já vitorioso e prestes a assumir o comando do país, Flávio procurou Paulo Marinho. Estava “absolutamente transtornado”, segundo o empresário. Buscava a indicação de um advogado criminal.

escândalo de Fabrício Queiroz, funcionário de Flávio no seu gabinete de deputado estadual na Assembleia Legislativa do Rio, não saía das manchetes. Havia acusações de “rachadinhas” e de desvio de dinheiro público. O senador recém-eleito temia as consequências para o futuro governo do pai —e precisava se defender.

As revelações que Marinho diz ter ouvido do filho do presidente nesse encontro são bombásticas: segundo ele, Flávio disse que soube com antecedência que a Operação Furna da Onça, que atingiu
Queiroz, seria deflagrada.

Foi avisado da existência dela entre o primeiro e o segundo turnos das eleições, por um delegado da Polícia Federal que era simpatizante da candidatura de Jair Bolsonaro.

Mais: os policiais teriam segurado a operação, então sigilosa, para que ela não ocorresse no meio do segundo turno, prejudicando assim a candidatura de Bolsonaro.

O delegado-informante teria aconselhado ainda Flávio a demitir Fabrício Queiroz e a filha dele, que trabalhava no gabinete de deputado federal de Jair Bolsonaro em Brasília.

Os dois, de fato, foram exonerados naquele período —mais precisamente, no dia 15 de outubro de 2018.

Queiroz estava sumido em dezembro. Mas, segundo Marinho, o senador Flávio Bolsonaro mantinha interlocução indireta com ele por meio de um advogado de seu gabinete.

Nesta entrevista, Marinho, que é pré-candidato a prefeito do Rio de Janeiro pelo PSDB, começa falando da cidade que pretende governar, dos planos para a campanha presidencial de João Doria em 2022 —e por fim detalha os encontros com Flávio Bolsonaro.

Segundo ele, as conversas podem “explicar” o interesse de Bolsonaro em controlar a Superintendência da Polícia Federal no Rio, causa primeira dos atritos que culminaram na saída de Sergio Moro do Ministério da Justiça.

Como está a sua candidatura a prefeito do Rio? Ser candidato nunca esteve nos meus planos. Quando assumi a presidência do PSDB no Rio, há um ano, fui orientado pelo [governador de SP, João] Doria a trazer jovens e mulheres para o partido, que é inexpressivo no estado a ponto de não ter conseguido eleger um único deputado federal em 2018.

Fui buscar a Mariana Ribas, ex-ministra interina da Cultura no governo do Michel Temer, ex-secretária de Cultura do Rio. Ela tem 34 anos de idade, é jovem, bonita, se encaixava no perfil que o governador [Doria] indicava. Ela topou. Mas, por motivos pessoais, desistiu.

O nome que aparecia naturalmente para substituí-la era o do Gustavo Bebianno, ex-ministro de [Jair] Bolsonaro, meu amigo fraterno e pessoa de absoluta confiança.

Bebianno começou a trabalhar como pré-candidato. Uma semana depois da indicação, teve um infarto fulminante e morreu, aos 54 anos. Para mim, foi uma tragédia pessoal. Perdi um irmão. Para o partido, foi irreparável.

Dias depois, o Doria me convidou para ser candidato. Aceitei o desafio.

Vou trabalhar para encontrar um campo político de aliados que deem ao eleitor uma opção que não seja a de votar no menos pior. Os eleitores do Rio têm se acostumado a isso. E é isso o que eu quero combater.

Quem ganhar a eleição no fim do ano pegará uma cidade arrasada, pela crise econômica e pela pandemia. O que poderia ser feito? O Rio já enfrentava um quadro de dificuldades imensas, que a pandemia agravou. Já havia aumento de trabalhos informais, desemprego, falta de projeto político e econômico. A cidade está à beira do abismo.

Quem disser que pode planejar algo para 2021 cometerá uma leviandade com o eleitor.

A prefeitura tem duas receitas sólidas: o ISS, ligado à atividade econômica, que parou, e o IPTU. Haverá uma inadimplência enorme em janeiro [mês de cobrança do tributo]. Que governo terá coragem de executar a dívida e tomar o imóvel de uma pessoa que não pagou IPTU em uma situação de pandemia? Essa inadimplência terá que ser tolerada.

O momento não é para ginasiano. É para pessoas que tenham experiência empresarial, como eu tenho, no mercado financeiro, de comunicação. Eu trabalho desde os 14 anos. Tenho contatos com todo o mundo e capacidade de articular todas as pessoas de bem para se juntarem em torno de um projeto de salvação da cidade.

O PSDB do Rio vai ser uma plataforma para a candidatura presidencial de Doria em 2022. Ela é viável? O governo Bolsonaro está com os dias contados? A minha motivação ao aceitar assumir a presidência do PSDB no Rio foi a minha convicção de que o Brasil precisa eleger um próximo presidente com as qualidades do Doria.

E o governo Bolsonaro? Eu não sei fazer essa futurologia em relação ao governo Bolsonaro. Mas estamos praticamente no meio do mandato e até aqui não aconteceu absolutamente nada. Foram dois anos perdidos. Toda sorte que ele teve na campanha eleitoral, foi o contrário no governo. Um governante pegar uma pandemia no meio de um mandato, que vai retrair a economia em 6%, 8%, é inimaginável.

O capitão não tem capacidade pessoal de gerir um país em condições normais. E muito menos no meio de uma loucura como essa que nós estamos vivendo. Então, são duas as alternativas: ou vamos viver crise atrás de crise ou alguma coisa vai acontecer contra ele, [consequência] de algum crime de responsabilidade que possa praticar ao longo desta crise. E o resto vai ser essa loucura.

E na campanha já não dava para perceber isso? A primeira coisa que percebi é que não se tratava de um mito. Outras pessoas do núcleo duro achavam isso. O Gustavo [Bebianno] mesmo tinha pelo capitão uma admiração. Achava que ele era um estadista, um líder, o homem que iria colocar o Brasil em outro patamar.

Eu olhava o capitão, com aquele jeito tosco dele, e algumas coisas me chamavam a atenção. Por exemplo: ele era incapaz de agradecer às pessoas. Chegava uma empregada minha, servia a ele um café, um assistente entregava um papel, e ele nunca dizia um obrigado. Eu nunca ouvi, durante o ano e meio em que convivi, ele expressar a palavra obrigado a alguém.

Um gesto mínimo. Pode não parecer nada, mas demonstra uma faceta da personalidade dele. Será que é uma pessoa apenas de maus hábitos, que não tem educação?

As piadas eram sempre homofóbicas. Os asseclas riam, mas elas não tinham nenhuma graça. E, no final, ele realmente despreza o ser feminino. Tratava as mulheres como um ser inferior.

Não tinha uma mulher na campanha dele. Nunca houve. A única, a distância, foi a Joice [Hasselmann, deputada federal], que ficava em São Paulo. Não tinha mulher na campanha dele, só homem.

Ele gostava mesmo era de conversar com os seguranças dele. Policiais militares, batedores. Ele se sentia em casa, ficava horas conversando, contando piada.

Gustavo Bebianno era visto como uma espécie de homem-bomba que morreu guardando muitos segredos. Ele tinha de fato um dossiê sobre Bolsonaro? O Gustavo tinha um telefone celular por meio do qual interagiu durante toda a campanha [presidencial de 2018] e a transição de governo com o capitão. Eles se falavam muito por WhatsApp. O capitão adorava mandar mensagens gravadas para ele.

O Gustavo tinha esse conteúdo imenso [de mensagens], na mais alta intimidade que você pode imaginar. Eram conversas íntimas que provavelmente deviam ter revelações interessantes.

Um dia, num ato de raiva pela demissão injusta que sofreu, tratado como se tivesse sido um traidor quando foi o que mais fez pelo capitão, ele deletou grande parte desse conteúdo. E deixou esse telefone com uma pessoa nos Estados Unidos.

Depois parece que ele resgatou de novo o conteúdo. Ele ficou muito marcado pela demissão, com muito desgosto, melancolia. Ele morreu de decepção, de tristeza mesmo. Mas ele não era homem-bomba. Não tinha nada que pudesse tirar o capitão do governo por algo do passado.

Onde está o telefone? Eu não sei onde está, para te dizer a verdade. Está com alguém. Eu não sei com quem.

O senhor já disse que ele tinha preocupação com os rumos do governo Bolsonaro. Imensa. Ele dizia: ‘O capitão vai se enfraquecer de tal maneira que só vai ter a saída do golpe para se manter no poder. E ele é louco para fazer o golpe’. Ele tinha certeza que isso ia acontecer.

Por que o senhor acha que há tanto interesse de Bolsonaro na Superintendência da Policia Federal do Rio de Janeiro? Eu não sei responder exatamente. Mas eu me recordo de um episódio que aconteceu antes de ele [Bolsonaro] assumir o governo que talvez ilustre um pouco melhor essa questão.

Eu vou te contar uma história que nunca revelei antes porque não tinha razão para falar disso. Eu tenho até datas anotadas e vou ser bem preciso no relato que vou fazer, porque talvez ele explique a sua pergunta.

Quando terminou o segundo turno da eleição [em 28 de outubro], o capitão Bolsonaro fez a primeira reunião de seu futuro ministério em minha casa [no Rio]. Estavam o vice-presidente Hamilton Mourão, o Onyx Lorenzoni [futuro ministro da Casa Civil], o Paulo Guedes [Economia], o Bebianno e o coronel [Miguel Angelo] Braga [Grillo], para discutir o desenho dos ministérios do futuro governo. Ela começou às 9h e terminou às 17h. Foi o último dia que vi o capitão Bolsonaro.

Nunca mais estive com ele.

No dia 12 de dezembro, uma quarta-feira, me liga o senador Flávio Bolsonaro [filho do presidente] me dizendo que queria falar comigo, por sugestão do pai.

Operação Furna da Onça [que investigava desvio de recursos públicos da Assembleia Legislativa do Rio] já tinha sido detonada e trazido à tona o episódio do [Fabrício] Queiroz [que tinha trabalhado no gabinete de Flávio na Assembleia e é acusado de integrar o esquema].

Flávio estava sendo bombardeado pela mídia. O Queiroz estava sumido.

Ele me disse: ‘Gostaria que você me indicasse um advogado criminalista’. E combinamos de ele vir à minha casa às 8h do dia seguinte, uma quinta-feira, 13 de dezembro.

Passei a mão no telefone e liguei para o advogado Antônio Pitombo, de São Paulo, indicado por mim para defender o capitão no processo da [deputada] Maria do Rosário no STF [Supremo Tribunal Federal].

E ele me indicou um advogado de confiança, Christiano Fragoso, aqui do Rio.

No dia seguinte, quinta-feira, 13, às 8h30, chegam na minha casa Flávio Bolsonaro e o advogado Victor Alves, que trabalha até hoje no gabinete do Flávio, é advogado de confiança dele. Estávamos eu, Christiano Fragoso, Victor e Flávio Bolsonaro. Flávio começa a nos relatar o episódio Queiroz. Ele estava absolutamente transtornado.

E esse advogado, Victor, dizendo ao advogado Christiano que tinha conversado com o Queiroz na véspera e que o Queiroz tinha dado a ele acesso às contas bancárias para ele checar as acusações que pesavam contra o Queiroz.

E o que ele disse que as contas mostravam? O Victor estava absolutamente impressionado com a loucura do Queiroz, que tinha feito uma movimentação bancária de valores absolutamente incompatíveis com tudo o que ele poderia imaginar.

Já o Flávio estava ali lamentando a quebra de confiança do Queiroz em relação a ele. Dizia que tudo aquilo tinha sido uma grande traição, que se sentia muito decepcionado e preocupado com o que esse episódio poderia causar ao governo do pai.

Ele chegou até a ficar emocionado, a lacrimejar.

E Flávio então nos conta a seguinte história: uma semana depois do primeiro turno, o ex-coronel [Miguel] Braga, atual chefe de gabinete dele no Senado, tinha recebido o telefonema de um delegado da Polícia Federal do Rio de Janeiro, dizendo que tinha um assunto do interesse dele, Flávio, e que ele gostaria de falar com o senador.

O Braga disse: ‘Ele está muito ocupado e não costuma atender quem não conhece’.

Estou te contando a narrativa do Flávio e do advogado Victor para nós, Paulo Marinho e Christiano, do outro lado da mesa. O senador contou que disse ao coronel Braga que se encontrasse com essa pessoa [o delegado] para saber do que se tratava. Estava curioso.

E aí marcaram um encontro com esse delegado na porta da Superintendência da Polícia Federal, na praça Mauá, no Rio de Janeiro.

E quem teria ido a esse encontro? O coronel Braga, o advogado Victor e, sempre segundo o que eles me contaram, a Val [Meliga], da confiança do Flávio e irmã de dois milicianos que foram presos [na Operação Quatro Elementos].

Eles foram para a porta da Polícia Federal. O delegado tinha dito [ao coronel Braga]: ‘Você vai ver. Quando chegarem, me liga que eu vou sair de dentro do prédio da Polícia Federal’.

O delegado saiu de dentro da superintendência. Na calçada —eu estou contando o que eles me relataram—, o delegado falou: ‘Vai ser deflagrada a Operação Furna da Onça, que vai atingir em cheio a Assembleia Legislativa do Rio. E essa operação vai alcançar algumas pessoas do gabinete do Flávio [o filho do presidente era deputado estadual na época]. Uma delas é o Queiroz e a outra é a filha do Queiroz [Nathalia], que trabalha no gabinete do Jair Bolsonaro [que ainda era deputado federal] em Brasília’.

O delegado então disse, segundo eles: ‘Eu sugiro que vocês tomem providências. Eu sou eleitor, adepto, simpatizante da campanha [de Jair Bolsonaro], e nós vamos segurar essa operação para não detoná-la agora, durante o segundo turno, porque isso pode atrapalhar o resultado da eleição [presidencial]’.
Foram embora, agradeceram. Estou contando o que [Flávio Bolsonaro] me falou.

E o que aconteceu depois? Ele [Flávio] comunicou ao pai [Jair Bolsonaro] o episódio e o pai pediu que demitisse o Queiroz naquele mesmo dia e a filha do Queiroz também. E assim foi feito.

[Fabrício Queiroz foi exonerado no dia 15 de outubro de 2018 do cargo de assessor parlamentar 3 que exercia no gabinete de Flávio na Assembleia Legislativa. A filha dele, Nathalia Melo de Queiroz, foi exonerada no mesmo dia 15 do cargo em comissão de secretário parlamentar no gabinete do então deputado federal Jair Bolsonaro].

Vida que segue. O capitão ganha a eleição [no dia 28 de outubro]. Maravilhoso. No dia 8 de novembro é detonada a Operação Furna da Onça, com toda a pompa e circunstância. Começa o episódio Queiroz.

Flávio contou essa história no dia 13 de dezembro de 2018. Como o senhor e o advogado Christiano Fragoso reagiram? Eu falei [para Flávio]: ‘Está aqui o advogado Christiano Fragoso, recomendado pelo Pitombo, que vai te orientar. Até porque você está com a sua consciência tranquila e não tem o que temer. O que houve foi quebra de confiança do Queiroz em relação a você’.

O Christiano virou-se para o Flávio e disse: ‘Quem precisa de um advogado é o Queiroz’.

E Flávio tinha contato com o Queiroz? O Flávio disse: ‘Eu não estou mais falando com o Queiroz. Não o atendo mais até para que amanhã ninguém me acuse de que estou orientando o Queiroz nos depoimentos. Quem está falando com o Queiroz é o Victor [advogado amigo da família e que estava na reunião com Paulo Marinho]’. [Na época, a família Bolsonaro dizia não ter contato com Queiroz.]

O Christiano disse: ‘Precisamos arrumar um advogado que sirva ao Queiroz. Não posso ser esse advogado. Até porque sou de uma banca, nós somos top, o Queiroz não teria condições [de contratá-lo], né?’. E ele indicou o advogado Ralph Hage Vianna, que até então eu não conhecia, para representar o Queiroz.

Na mesma quinta-feira, o Queiroz vai ao encontro desse advogado indicado pelo Christiano. E vai acompanhado pelo Victor [o advogado do gabinete de Flávio]. E eu viajei para São Paulo.

O presidente foi informado dessa reunião? Quando ela terminou, eu liguei para o Gustavo Bebianno e relatei tudo o que ouvi. Ele estava em Brasília, no escritório da transição de governo. Eu disse que era melhor ele contar tudo o que estava acontecendo para o presidente. E assim foi feito.

E o que aconteceu depois? Eu vou para São Paulo. Como o Antônio Pitombo estava em SP, eu disse: ‘Pitombo, é importante a gente ter uma outra reunião para tratar desse assunto, entender o que está acontecendo e não deixar o negócio desandar’.

Chamei para São Paulo o Victor, advogado do Flávio, que estava tendo contato com o Queiroz, o Ralph Hage Vianna, que se reuniu com o Queiroz, e o Gustavo Bebianno.

Eu estava hospedado no hotel Emiliano e reservei uma sala de reunião. Às 14h30 do dia 14, uma sexta-feira, estavam lá o Victor, o Ralph, o Pitombo, eu e o Gustavo Bebianno.

Os advogados conversaram o tempo todo sobre como foi a conversa do advogado Ralph com o Queiroz, as estratégias, as preocupações.

Na terça-feira seguinte, 18, ocorreu a cerimônia da nossa diplomação —Flávio como senador, e eu suplente dele. Sentamos lado a lado. E ele me disse que precisava conversar.

Eu ia almoçar no restaurante Esplanada Grill, em Ipanema. Combinamos de ele passar lá. Às 13h30, ele apareceu no restaurante e disse: ‘Paulo, eu conversei com o meu pai e ele decidiu que nós vamos montar um outro esquema jurídico, que será comandado por um outro advogado”.

Eu respondi: ‘Flávio, não tem problema, eu desarticulo tudo o que estava articulado. Desejo boa sorte. Se precisar de mim, estou à disposição, como sempre estive’. Um abraço e vida que segue.

Desde então, só fui rever o Flávio no dia em que depus na CPMI das Fake News [em dezembro]. Fui ao plenário do Senado e ele estava lá. Eu o cumprimentei cordialmente, e ele a mim. Nunca mais estive com ele. E isso é tudo.


Marcos Lisboa: A falência do Estado

Descoordenação e oportunismo empurram o país para o desastre

O país está cansado e doído. Alguns perderam parentes em razão da pandemia. Outros têm alguém próximo contaminado pelo vírus, sendo alguns casos graves e preocupantes.

Todos sabemos de pessoas que sofrem com a falta de renda e de emprego ou que estejam assistindo à destruição do trabalho de uma vida. Está difícil manter a serenidade nestes tempos tão difíceis.

Os governos, federal e locais, tornam-se os maiores advogados involuntários em favor de uma reforma urgente do Estado brasileiro. A sua incompetência em administrar a crise não para de surpreender.

Não sabemos quais os protocolos a serem adotados. Não sabemos que conselhos seguir. A sociedade assiste atônita à ineficiência do poder público, disfuncional e oportunista.

Servidores, com salário garantido e estabilidade no emprego, pedem para não pagar suas dívidas. Esquecem-se de comentar que a crise afeta o país, mas não o seu contracheque.

Tribunais de Justiça concedem novos auxílios para aumentar a remuneração dos juízes. Alguns estados aprovam licença-prêmio indenizável para magistrados, com efeito retroativo para mais de uma década.

O auxílio aos governos locais deveria ter tido como contrapartida a aprovação de reformas da previdência dos servidores para reduzir o descontrole do gasto com pessoal, que inviabiliza as contas públicas.

Alguns acharam que a crise seria curta e que a política pública deveria apenas garantir a travessia. Estavam errados.

Trata-se de desastre. Muitos negócios irão desaparecer; empregos serão perdidos. O Estado deveria cuidar das pessoas, porém se perde ao atender os oportunistas usuais. Medidas de saúde e da economia são tomadas de forma atabalhoada.

Para piorar, parte do Legislativo e do Judiciário sucumbe ao populismo à custa de quem trabalha. Pagamentos são interrompidos por liminares arbitrárias, prejudicando empresas ainda em atividade.

As medidas para o mercado de crédito em discussão no Senado conseguem ser tecnicamente ainda mais desastrosas do que a intervenção no setor elétrico realizada pelo governo Dilma.

Quem mesmo vai investir no Brasil após tanto desatino? Há crescente resistência em emprestar para um país com políticas públicas frequentemente tão incompetentes e erráticas.

Enquanto isso, tenta-se saber a quantidade de disparates gravados em reunião ministerial. Não há dúvida de que as polêmicas do Executivo apenas revelam seu despreparo, mas a imprensa poderia colaborar esclarecendo também os difíceis dilemas que estamos enfrentando e as implicações do que estamos fazendo.

Muitos irão sucumbir em meio à trágica constatação de que haverá mais mortos do que caixões.

*Marcos Lisboa, Presidente do Insper, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005) e doutor em economia.


Bruno Boghossian: Troca de ministro reflete delinquência de Bolsonaro na crise do coronavírus

Presidente não quer uma equipe de auxiliares, quer uma casa dos espelhos

O país contava quase 3.000 mortes pelo novo coronavírus quando Jair Bolsonaro reuniu seus ministros no dia 22 de abril. O governo continuava sem rumo na pandemia, mas o time preferiu reproduzir teorias da conspiração, sugerir a prisão de ministros do Supremo e discutir a exploração de órgãos de inteligência para atender às vontades particulares do presidente.

O vídeo daquele encontro já virou peça do inquérito sobre a interferência escancarada do presidente na Polícia Federal, mas deve se tornar também um registro histórico da delinquência do governo na crise da saúde e em outros temas.

Bolsonaro lidera uma equipe absolutamente submissa a seus desejos pessoais, picuinhas políticas e fixações ideológicas. Mesmo diante da escalada descontrolada de mortes, os auxiliares só repetem a ladainha do presidente e alimentam as obsessões alucinadas do chefe.

O pedido de demissão de Nelson Teich é um dos produtos dessa relação. O oncologista só conseguiu o cargo porque se curvou e prometeu um “alinhamento perfeito” com Bolsonaro. Nem ele, contudo, foi capaz de respaldar cegamente o fim do isolamento e a propaganda da cloroquina, como encomendara o patrão.

A reunião ministerial de abril mostrou que só prosperam no governo os subordinados dispostos a amplificar as barbaridades e endossar os instintos autoritários de Bolsonaro.

Acuado e enfraquecido, o presidente se esforça para reafirmar seu poder e exigir que os ministros entrem na linha. “Vou interferir, ponto final”, disse, após reclamar da PF e de outros órgãos. “Votaram em mim para eu decidir, e essa questão da cloroquina passa por mim. Não pode mudar o protocolo agora? Pode mudar e vai mudar”, ameaçou, na véspera da demissão de Teich.

O presidente não quer um ministério, quer uma casa dos espelhos. Na saúde, a tendência é que a gestão se torne ainda mais direcionada a se adequar a seus caprichos. Não faz diferença trocar o responsável pela área. Bolsonaro continua lá.


Hélio Schwartsman: Safado, ineficiente e burro

Bolsonaro é responsável pela morte de muita gente

Cometo hoje um ato de nepotismo. Dedico esta coluna a um tio, Victor Nussenzweig. Victor, 91, é cientista. Deixou o Brasil nos anos 60, por causa da ditadura. Ele e a mulher, a também pesquisadora Ruth (1928-2018), radicaram-se nos EUA, onde tiveram uma linda carreira científica.

Em 1967, Ruth publicou um trabalho seminal, em que mostrou que era possível induzir em mamíferos imunidade contra o protozoário causador da malária irradiando-o com raios X. A partir daí, Ruth e Victor, cada um no comando de seu laboratório, somaram esforços para desenvolver uma vacina.

Nas décadas seguintes, conseguiram identificar a proteína do Plasmodium envolvida na resposta imune, a CSP, e produzi-la em laboratório.

A CSP está na base da vacina antimalárica GSK RTS,S, que foi aprovada para uso em humanos e, desde o ano passado, vem sendo utilizada num programa-piloto em países africanos. A vacina está longe de ser uma bala de prata. Sua eficácia é de apenas 30% a 50% e exige reforços periódicos. Ainda assim, diante do fardo que a malária representa, matando 580 mil pessoas por ano, ela poderá salvar inúmeras vidas.

Alguns dias atrás chegou-me o recado de que Victor queria dizer algumas palavras sobre Bolsonaro. Pedi que as colocasse no papel.

“Não vejo nenhuma resposta do Bolsonaro frente a essa emergência sanitária. Aqui [nos EUA] vivemos com um presidente safado [Trump], mas que não é burro. Na minha opinião, Bolsonaro é safado, ineficiente e burro! Está sendo responsável pela morte de muita gente! Saí do Brasil na época da ditadura militar. Não chamo militares de militares, eu os chamo de milicos. Os milicos são o oposto dos cientistas.

Querem obediência cega. Os cientistas, ao contrário, duvidam dos dogmas e trabalham para derrubar os dogmas, estabelecer a verdade e ajudar a população.”

Victor dedicou a vida a estudar patógenos e como enfrentá-los. Sabe do que fala.


Elio Gaspari: Weintraub, ministro da educassão, é uma ameassa a ceguranssa nacional

Ministro sugeriu que fossem mandados para a cadeia ministros do Supremo Tribunal Federal

Segundo o ministro Augusto Heleno, a divulgação integral da conversa de botequim ocorrida na reunião do conselho de ministros de 22 de abril pode ser um “ato impatriótico, quase um atentado à segurança nacional”. De fato, é possível que tenham sido tratados assuntos sensíveis e seria razoável mantê-los embargados, assim como foi elegante abreviar o verbo fornicante da fala do presidente. Se de fato o ministro da Educassão, Abraham Weintraub, sugeriu que fossem mandados para a cadeia ministros do Supremo Tribunal Federal, seria um ato patriótico expô-lo, para que responda pela sua proposta na forma da lei.

Pedir a volta do AI-5 e o fechamento do Supremo numa manifestação popular é uma coisa. Sugerir a prisão de ministros do Supremo numa reunião ministerial é bem outra.

Esse tipo de arbitrariedade não tem precedente. O marechal Floriano Peixoto ameaçou, mas não prendeu ministros. Nas ditaduras seguintes, o tribunal foi coagido e três ministros foram aposentados compulsoriamente, mas nenhum foi preso.

É o caso de se perguntar como é que se faz isso. Só há um caminho, o da ditadura, enunciado há dois anos por Eduardo Bolsonaro: “Para fechar o Supremo bastam um cabo e um soldado”. Junto com isso, viriam o fechamento do Congresso e a censura à imprensa. Daí à reabertura dos DOIs, seria um pequeno passo.

A divulgação do que se disse na reunião permitirá o conhecimento das exatas palavras do ministro. Sua colega Damares Alves, a quem se atribuiu a proposta de prisão de governadores e prefeitos, esclareceu que se referia aos larápios que desviavam recursos e equipamentos. Weintraub fechou-se em copas.

A JBS fez, e nós?
Um dia a Covid será passado e o Brasil se lembrará de que quadrilhas de larápios bicavam as compras emergenciais. Felizmente, restará também a lembrança de grandes empresas que olharam para o andar de baixo. O Itaú-Unibanco, com sua doação de R$ 1 bilhão, e a Vale, fretando aviões ou distribuindo equipamentos, fizeram história. A eles juntou-se, pelo tamanho da iniciativa, a JBS. Ela anunciou uma doação de R$ 400 milhões. A maior parte desse dinheiro irá para a construção de hospitais e para a distribuição de leitos e equipamentos. R$ 50 milhões irão para pesquisas da área de saúde, e R$ 20 milhões, para organizações sociais sem fins lucrativos. O ervanário será gerido por três comitês de médicos, professores e administradores. Entre eles, Roberto Kalil Filho (Incor) e Henrique Sutton (Einstein) e Celso Athayde, fundador da Central Única das Favelas.

A JBS ficou famosa pelos seus malfeitos mostrados na Lava-Jato e fechou um acordo de leniência com a Viúva comprometendo-se a desembolsar R$ 2,3 bilhões para projetos sociais. Os irmãos Wesley e Joesley Batista resolveram renunciar ao direito que tinham de usar a doação de R$ 400 milhões para abater o que deviam.

Com 130 mil colaboradores diretos, a JBS passou por todos os seus perrengues sem demitir um só trabalhador.

Profecia
A investigação pedida a partir da denúncia de Sergio Moro tende a virar limonada por dois motivos: primeiro porque espremendo o caso, não há como demonstrar que houve crime. Além disso, pode-se intuir que a vontade do procurador-geral Augusto Aras de apresentar uma denúncia contra Bolsonaro é próxima de zero, com viés de baixa.

A zona de conforto dos Bolsonaro termina quando se mexe com dois fios desencapados: a CPI das Fake News e a investigação conduzida pelo ministro Alexandre de Moraes no Supremo Tribunal Federal, relacionada com as mesmas “alopranças”.

Farra elétrica
As concessionárias de energia elétrica levaram uma pancada com a pandemia. O consumo caiu em cerca de 10%, a inadimplência cresceu em outros 10% e o dólar encostou nos R$ 6, encarecendo o custo da energia de Itaipu.

Com toda razão, as empresas estão pedindo socorro ao governo. A conta acabará nas costas dos consumidores.

Até aí, tudo bem, mas o doutor Paulo Guedes está condicionando as ajudas aos estados à entrega de contrapartidas. Seria razoável que as concessionárias de energia também oferecessem contrapartidas. Por exemplo: limitações na remuneração dos diretores e na distribuição de dividendos aos acionistas. Essa tunga duraria o tempo da outra, que penalizará os consumidores.

A exigência de contrapartidas teria o efeito colateral de inibir a voracidade das empresas.

Dólar a R$ 6
No início de março, quando o dólar estava a R$ 4,65, o ministro Paulo Guedes disse que “se fizer muita besteira”, poderia ir a R$ 5. Foi, bateu nos R$ 5,91 e poderá ir a R$ 6.

O sujeito da frase de Guedes estava oculto e ficou no ar quem precisaria fazer “muita besteira”. Uma coisa deve ser reconhecida: até agora, não foi ele.

Moro na muvuca
O juiz aposentado Vladimir Passos de Freitas, que foi um dos principais colaboradores de Sergio Moro no Ministério da Justiça, disse que ele foi para o governo sem que “tivesse ideia de como seria a vida comum ali”.

O doutor pode achar isso, mas ninguém vai para ministério, em governo algum, sem ter ideia de como será a vida ali. Moro, assim como Nelson Teich, sabia quem era Bolsonaro e Bolsonaro sabia quem eram Moro e Teich.

Com uma diferença: Moro não se ofereceu para a cadeira.

Faz tempo, quando o presidente João Figueiredo expandiu seu temperamento errático e explosivo, dois de seus colaboradores diretos conversavam dentro de um automóvel e deu-se o seguinte diálogo.

— Depois que ele operou o coração, virou outra pessoa.

O outro, que entendia de medicina, respondeu:

— O problema não está no hardware. É coisa do software.

Ajuda aos estudantes
A gloriosa Faculdade Nacional de Direito do Rio tem 244 alunos que precisam de ajuda, quer para o transporte (R$ 250 mensais), quer para continuar estudando (R$ 900). De cada quatro, um mora na Baixada Fluminense.

Os ministros Luiz Fux (STF), Luís Felipe Salomão e Benedito Gonçalves, bem como o desembargador Cezar Rodrigues Costa, organizaram um webinar para ajudar esses jovens que, como eles, se formaram na rede pública. O debate se chama “A Covid e o futuro das Cortes de Direito”.

A inscrição custa R$ 200. Mas quem quiser, pode fazer a doação inscrevendo-se, mesmo que não os ouça.

Bolsonaro fashion
Além das camisetas de clubes de futebol, Jair Bolsonaro tem um lado fashion. Em outubro passado, vestiu uma casaca com gola redonda no Palácio Imperial de Tóquio, sacrilégio para quem usa essa fantasia de pinguim.

Na marcha de lobistas que liderou, sobre o Supremo Tribunal Federal, o capitão usava um paletó com um bolsinho sobressalente do lado direito.

Esse adereço espalhou-se pelo mundo no século passado, graças a Lord Halifax, o famoso rival de Winston Churchill. Ele era um inglês esguio e vestia-se de forma conservadora, porém amarfanhada.

O bolsinho de Halifax nada tinha a ver com estilo. Ele havia nascido sem a mão esquerda.


Demétrio Magnoli: Réplica a um confinado bacana

Eu, que furo a quarentena, sou pretexto para você desviar tua indignação

Li a tua carta a um não confinado, na Folha (9 de maio). Vesti a carapuça e o jornal abriu espaço para essa minha resposta. Você é um cara bacana, ama o planeta, valoriza a vida, me despreza. Concordo com teus argumentos sobre a necessidade de confinamento.

Só não pratico o que acho certo: furo a quarentena todos os dias. Coerência é coisa de bacana, num outro sentido.

Sou "zé povinho", como você escreveu. E, pior, não estou entre os mais pobres. Tenho um estabelecimento (não direi de que tipo, nem onde fica), que toco com minha mulher e dois funcionários. Fechei por três semanas, cumprindo a ordem do governador. Reabri, clandestinamente, para evitar a falência. Enquanto você vê Netflix e até pinta, passo o dia no Whats, marcando hora com clientes. Levanto a porta, eles entram, abaixo rápido. Um "ser antissocial", na tua síntese bacana.

Você me odeia; eu te invejo. Suspeito que o epidemiologista mencionado na tua carta, aquele da quarentena por "mais de um ano", tem salário garantido na universidade ou em cargo público, com grana do meu imposto. A moda dos bacanas com renda certa é posar de bacana diante dos sem renda certa. O governo declarou-me "não essencial" e proíbe que eu ganhe a vida, mas não me dá um tostão. Diz que devo salvar vidas, mas não salva a minha. Bacana, né?

Ciência! Consciência! Não sou doutor, mas entendi a história do vírus. Nem precisa recomendar pra eu lavar as mãos. Sei que as UTIs funcionam no limite. Um senhor de idade, vizinho, morreu de Covid-19. Tinha problema no coração, mas parecia bem.

Mesmo assim, nada --nenhum gráfico ou imagem chocante-- me convence a transferir minha família para a pobreza. Tudo que tenho é meu negócio, que paga as contas de casa, a faculdade do meu filho, o salário dos auxiliares.

"Economia, consertamos depois", né? Juntos, no mesmo barco, sem individualismo. Ok: você topa dividir tua renda comigo?

Não sou tão desinformado como você imagina. Bolsonaro, já vi, não cuida da saúde de todos nem protege a renda do "zé povinho". Seu companheiro de jornada é o caos --ou seja, eu. O Capitão Morte investe no meu desamparo para desmoralizar a quarentena. Tem a cooperação involuntária de um prefeito que substituiu aglomerações de carros por aglomerações de gente que não possui vários carros.

Sou o caos, mas estou na companhia de muito bacana. Você, a ordem, quer chamar a polícia sanitária para fechar meu negócio. Parabéns: salva vidas, às custas da minha.

Quem lê tanta notícia? Um certo Daniel Balaban, do Programa Mundial de Alimentos da ONU, calcula que 5,4 milhões de brasileiros serão rebaixados à pobreza extrema. Conheço um que já foi, meu primo.

Jardineiro, mora na favela. Dois meses parado: vocês, bacanas, não querem "gente estranha" em casa. A mulher, doméstica, ainda empregada, segura as pontas. Chegaram, finalmente, os tais R$ 600. Dois moleques sem escola: o menor não sai da rua; o maior vai hoje a um baile funk. Meu filho vai com ele. Vetores de contágio, é assim que agora se fala, não é?

"'Lockdown' já!", você exige, com milhares de cadáveres de razão. Pergunto, porém, de que marca? Europeia, chinesa ou brasileira? Não fiz faculdade, como você, mas acho que nada vem sem embalagem.

O "lockdown" europeu precisa da Europa toda: sociedades de classe média com governos funcionais. O chinês, que você elogia, precisa da China inteira: ditadura total, o governo acima de todos. Sobra o brasileiro, me engana que eu gosto, aplicado em São Luís: a cidade dividida entre a quarentena dos bacanas e o fuzuê dessa gentinha sem Netflix.

Sei que eu, não confinado, te atrapalho. Mas, pense bem, também ajudo: minha existência, essa incômoda presença, fornece a você o pretexto perfeito para desviar tua indignação. Não é culpa deles, os governantes. É minha.

Assino: um cidadão transgressor. Volto ao Whats.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Julianna Sofia: Guedes aproveita-se da crise para reciclar Carteira Verde e Amarela e nova CPMF

São ações provisórias com cheiro, cor e gosto de perenes

Ainda eram as trombadas iniciais do presidente Jair Bolsonaro com o Congresso, no primeiro trimestre de 2019, quando Rodrigo Maia (Câmara) afirmou que o governo não tinha uma proposta clara para os problemas do país e que o Brasil era um "deserto de ideias". Poucos avanços desde então. Parcas e obtusas, medidas aventadas ao longo dos 16 meses de gestão bolsonarista agora encontram momento conveniente para prosperar.

A se confirmarem os dados do termômetro de atividade do Banco Central, a economia levou um tombo de 5,9% em março, quando a pandemia começou a produzir seus estragos. O Ministério da Economia projeta para o ano uma retração de 4,7%, considerando que as medidas de isolamento serão suspensas no final deste mês.

Vários dos programas de socorro anunciados pela equipe econômica precisarão ser prorrogados inevitavelmente, apesar da resistência do time do Ministério da Economia, como o auxílio emergencial de R$ 600. Outros começam a ser remodelados por não atingirem o efeito desejado --o financiamento da folha de salários, por exemplo.

É no lodaçal do desemprego, da queda de renda e do aumento da miséria, e sob pressão do setor produtivo e da oligofrenia de seu chefe, que o ministro Paulo Guedes pretende emplacar um modelo liberal de contratações.

Após ver contidos pelo Congresso seus planos de flexibilizar o emprego de jovens, ele pretende convencer o Parlamento a dar um passo ousado: um programa emergencial de desoneração de custos trabalhistas --similar à Carteira Verde e Amarela, sistema com redução de encargos e direitos, que evoluiria para um regime previdenciário de capitalização.

Inicialmente, o governo bancaria o alívio da folha de pagamento para salvar as empresas, mas a intenção seria recriar um imposto como a CPMF para financiar o projeto.

Soluções provisórias e oportunistas —com cheiro, cor e gosto de medida perene.


Igor Gielow: Mourão assusta mundo político com espantalho da intervenção militar

Em artigo crítico aos Poderes e à imprensa, vice estimula teorias conspiratórias, mas que esbarram na realidade

O vice-presidente da República, general Hamilton Mourão, plantou um espantalho no meio do mundo político brasileiro nesta quinta-feira (14).

Em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, o militar da reserva fez uma longa admoestação de todos os envolvidos na crise tríplice na qual o país está imerso, com seus vetores sanitário, político e econômico.

Houve um ensaio de autocrítica sobre a responsabilidade de seu chefe, Jair Bolsonaro, como um dos atores que se tornaram "incapazes do essencial para resolver qualquer problema: sentar à mesa, conversar e debater".

Houve duras críticas aos outros Poderes e à imprensa no artigo, que condensam de forma inteligível as queixas do governo nas últimas semanas, além da preocupação com a economia.

A defesa federativa, com a devida citação à fundação dos EUA, não difere em essência da nota emitida pelo ministro Fernando Azevedo (Defesa) há duas semanas, que refletia a insatisfação da ala militar do governo com o que consideram cerco de Poderes ao Executivo.

Até aí, foi uma típica demonstração do pensamento militar brasileiro acerca da ideia de nação, que rejeita sentimentos autonomistas à la 1932, inclusive com o recibo passado no item Amazônia.

Mourão reclamou do artigo de ex-chanceleres queixando-se de danos à imagem externa do país inclusive pela devastação da floresta, "uma acusação leviana" para ele.

O vice coordena o comitê federal que trata da região, xodó geopolítico dos fardados desde o começo do século 20. Foi talvez o ponto mais unânime entre oficiais-generais da ativa presente no texto, assim como a noção salvacionista que foi despertada do torpor pós-ditadura com o governo Bolsonaro.

Cobrou, como já havia feito, a exposição do contraditório favorável às visões do governo na mídia. Perto dos impropérios usuais de seu chefe, foi cordato e reverenciou o papel da imprensa, um contraponto que gosta de estabelecer.

O debate seria quase acadêmico, não fosse uma advertência inicial, nada casual, de que a pandemia da Covid-19 pode se tornar uma crise de segurança.

O passado de Mourão tornou, aos olhos de muitos, preocupante sua colocação. O corolário dela pode ser aquilo que, enquanto candidato, definiu como a possibilidade de um autogolpe por parte do presidente em cenário de anomia ou anarquia.

Nunca é demais lembrar as assertivas de cunho golpista do vice, hoje visto como uma espécie de contraponto ponderado à balbúrdia representada por Bolsonaro. Em 2015, ele sugeriu o "despertar de uma luta patriótica" ao falar do processo de impeachment de sua comandante suprema, Dilma Rousseff (PT).

Dois meses depois, autorizou, sob seu comando na região Sul, uma homenagem após a morte de Carlos Alberto Brilhante Ustra, ídolo de Bolsonaro e torturador de Dilma na ditadura. Isso lhe custou o cargo, e foi encostado em uma posição burocrática em Brasília.

Em 2017, já no meio da crise política do governo Michel Temer (MDB), Mourão sugeriu em uma palestra que a intervenção militar seria possível caso o Judiciário não desse conta da situação.

Era no fundo, assim como na questão do autogolpe, uma leitura distorcida do artigo 142 da Constituição, que prevê ações fardadas a pedido dos Poderes sob a égide da Carta, nada a ver com a ideia de "intervenção militar constitucional" que frequenta grupos de WhatsApp bolsonaristas.

Imunizado pela quarta estrela sobre o ombro, Mourão deslizou para a reserva em 2018, de onde saltou para o barco bolsonarista.

Pelo grau do temor apresentado na praça, o objetivo político primário do texto foi alcançado.

O supracitado espantalho é o temor de uma intervenção militar. Isso alimenta a teoria de que Bolsonaro estaria tratando a pandemia com desdém para que a crise social se agudizasse tanto a ponto de dar o referido autogolpe.

Uma visão conspiratória alternativa vê no texto de Mourão algo diferente: ele mesmo se coloca como a alternativa à anarquia, com um suposto apoio das Forças Armadas pelo simples fato de ser quem é.

Ambas as visões esbarram na realidade, neste momento ao menos. Não existe coesão fardada para qualquer movimento golpista real. Como a Folha já mostrou, Forças como a Marinha e a Força Aérea não são entusiastas nem da simbiose com o governo, nem do protagonismo do Exército no processo.

O necessário apoio das elites empresariais a qualquer empreitada antidemocrática não parece sair dos nichos mais bolsonaristas.

O próprio presidente tentou dar a receita, tomando carona nos efeitos econômicos da pandemia, falando em live da Fiesp na manhã desta quinta: "É guerra, tem de jogar pesado com governadores", a começar por seu adversário figadal, o governador João Doria (PSDB-SP).

Não se imaginam soluções fora da Carta com a atual geração da cúpula militar. Mas impeachment está na regra, e Mourão é a tal alternativa constitucional sempre lembrada em conversas.

Nesse sentido, seu artigo corre o risco de ser lido como um esboço da versão verde-oliva da Ponte para o Futuro, o programa liberal do MDB que cimentou a viabilidade de Temer entre a elite.

Se ele teve tal intenção, o tempo dirá. Por ora, é conveniente a Bolsonaro que o espantalho permaneça onde está, enquanto ceva o centrão para dizer que impeachment é impossível.

De quebra, visa intimidar um ameaçador Supremo, com inquéritos que ouvem generais e decisões incômodas.


Bruno Boghossian: Com pagamento de auxílio atrasado, Bolsonaro faz propaganda do caos

Por desinteresse ou incompetência, presidente não toma medidas de emergência e fabrica uma guerra

No início do mês, Jair Bolsonaro declarou que o país só não tinha ondas de “saques e violência” graças ao pagamento dos R$ 600 do auxílio emergencial. Sem querer, o presidente denunciou a perversidade do próprio governo. Milhões de brasileiros que perderam renda com a crise esperam há mais de 15 dias pela segunda parcela do benefício.

Enquanto o governo atrasa a transferência do dinheiro, Bolsonaro faz propaganda do caos. Na conversa que teve com empresários nesta quinta (14), ele disse prever “saque a supermercados, desobediência civil”. Ainda completou: “Não adianta querer convocar as Forças Armadas”.

Por desinteresse ou incompetência, o presidente abre mão de comandar a aplicação das medidas emergenciais contra os efeitos da pandemia. Longe disso, prefere explorar a pressão econômica sobre os miseráveis para se proteger politicamente e atacar seus adversários.

Na reunião com os associados da Fiesp, Bolsonaro pediu ajuda dos ricos nessa missão. Como se patrocinasse a formação de uma milícia, disse aos empresários que eles deveriam “jogar pesado” com governadores que implantaram medidas de isolamento. “Jogar pesado, porque a questão é séria, é guerra”, disse, antes de citar a ameaça de desordem.

Em sua cruzada, o presidente se contenta em dizer apenas o óbvio: “As pessoas, não tendo renda, não vão ter o que comer em casa”. Ele ignora o fato de que o governo gerencia, aos trancos, um programa de assistência muitas vezes maior do que o Bolsa Família, justamente para evitar que isso aconteça.

Bolsonaro finge desconhecer que o isolamento não é um fim em si mesmo, mas uma maneira de ganhar tempo até que o país desenvolva uma estratégia para retomar suas atividades com segurança.

O presidente não apresenta nada disso. Limita-se a fazer uma campanha claudicante pelo tal “isolamento vertical” e a fazer campanha da cloroquina como droga milagrosa, só para tumultuar o debate. O único plano de Bolsonaro é a guerra e o caos.


Folha de S. Paulo: Teich pede demissão do Ministério da Saúde

Nelson Teich avisou Bolsonaro que não poderia mudar o protocolo sem comprovação científica

Natália Cancian e Talita Fernandes, da Folha de S. Paulo

A dois dias de completar um mês no cargo, o ministro da Saúde, Nelson Teich, pediu demissão nesta sexta (15), informou o próprio ministério.

Uma coletiva de imprensa será marcada nesta tarde, de acordo com a pasta.

Em sua breve passagem pelo cargo, Teich teve poder como ministro minimizado pelo presidente Jair Bolsonaro.

Na segunda (11), foi informado pela imprensa de decisão do presidente de aumentar a lista de atividades essenciais com salões de beleza, academias e barbearias, mostrou-se surpreso e virou alvo de memes. A postura surpresa reforçou a visão de que o ministro estava afastado de decisões que interferem em recomendações da Saúde.

Também foi enquadrado por Bolsonaro a ampliar o uso da cloroquina para pacientes com quadros leves da Covid-19, apesar da falta de evidências científicas do medicamento para o novo coronavírus. Estudos recentes internacionais, publicados em revistas científicas de prestígio, não mostraram benefícios da droga em reduzir internações e mortes e apontaram riscos cardíacos.

As divergências sobre o uso da droga foram consideradas a gota d'água para a saída de Teich.

Teich avisou Bolsonaro nesta sexta (15) que não poderia mudar o protocolo sem comprovação científica sobre a eficácia da cloroquina no início do tratamento.

Em uma teleconferência com grandes empresários organizada na quinta-feira (14) pelo presidente da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), Paulo Skaf, Bolsonaro afirmou que o protocolo sobre o uso da cloroquina "pode e vai mudar".

"Agora votaram em mim para eu decidir e essa questão da cloroquina passa por mim. Está tudo bem com o ministro da Saúde [Nelson Teich], sem problema nenhum, acredito no trabalho dele. Mas essa questão da cloroquina vamos resolver. Não pode o protocolo —de 31 de março agora, quando estava o ministro da saúde anterior [Luiz Henrique Mandetta]— dizendo que só pode usar em caso grave... Não pode mudar o protocolo agora? Pode mudar e vai mudar", declarou Bolsonaro.

"Cloroquina hoje ainda é uma incerteza. Houve estudos iniciais que sugeriram benefícios, mas existem estudos hoje que falam o contrário", afirmou Nelson Teich em 29 de abril. "Os dados preliminares da China é que teve mortalidade alta e que o remédio não vai ser divisor de águas em relação à doença."

Houve também cobrança por parte do governo sobre a demora dele em divulgar um plano mais flexível sobre isolamento.

Nelson Teich foi convidado por Bolsonaro para assumir a pasta com a expectativa de equilibrar as ações da pasta de forma a evitar mortes por coronavírus mas também minimizar o impacto econômico das medidas de restrição.

Inicialmente, chegou a dizer que o país "não sobrevive um ano parado" e defendeu um "plano de saída" do isolamento.

Em seguida, pressionado por parlamentares, passou a dizer que o ministério "nunca mudou" de posição sobre o distanciamento. Ainda assim, vinha defendendo que as medidas sejam avaliadas de acordo com o cenário de cada local.

O ministro chegou a programar o anúncio de um plano que previa diferentes níveis de distanciamento a serem aplicados por estados e municípios, com base na avaliação de diferentes indicadores.

A divulgação, porém, foi cancelada em cima da hora por falta de consenso com representantes de secretários estaduais e municipais de saúde. Essa foi a primeira derrota do ministro no cargo.

Desde que Teich assumiu o cargo, o governo já vinha ampliando o número de militares na gestão da saúde. O ministro também não chegou a definir sua equipe completa, deixando postos-chave na assistência sem definição.

Teich é o segundo ministro a deixar a Saúde em meio à pandemia. Juntamente com o impasse sobre o isolamento social, divergências sobre a aplicação da cloroquina e da hidroxicloroquina em pacientes da Covid-19 foram um dos principais pontos que levaram à demissão de Luiz Henrique Mandetta, em 16 de abril.

Internamente, o governo estuda que a pasta seja assumida pelo secretário-executivo, general Eduardo Pazuello.

Panelaços foram ouvidos em São Paulo e no Rio de Janeiro após o anúncio do ministro.


Vinicius Torres Freire: Vendas no varejo caem menos em SP

Tombo no país foi menor do que o esperado, mas bola de neve mal começou a rolar

As vendas no varejo em São Paulo não caíram em março, caso único entre os estados do país. Sim, março é o passado distante e não foi inteiramente contaminado pelo coronavírus. Além do mais, quando se incluem as vendas de veículos e de material de construção, o colapso foi grande e geral, embora o resultado paulista não tenha sido dos piores, ao contrário, e abaixo da média brasileira.

Não é resultado para animar ninguém. Pode ser mais um indício de desigualdade. Com renda mais alta e mais reservas financeiras, talvez os paulistas tenham podido manter parte do consumo, em especial em mercados e farmácias, talvez até fazendo mais estoques. Pode ser ainda que as pessoas tenham mais meios em geral de fazer compras virtuais, pela internet, tendo mais dinheiro e cartões de crédito ou débito.

Em março, as vendas no varejo paulista foram 0,7% superiores a fevereiro e espantosos 5,4% maiores que em março de 2019. Na média brasileira, quedas de 2,5% e 1,2%, respectivamente.
No varejo dito “ampliado”, que inclui vendas de veículos e material de construção, a baixa paulista foi de 11,1% em relação a fevereiro, oitavo pior resultado nacional, mas acima do resultado do Brasil, que foi de queda de 13,7%.

As vendas dos setores “hipermercados, supermercados, produtos alimentícios, bebidas e fumo” cresceram, no país, 14,6%, de fevereiro para março; de farmácia, perfumaria e produtos médicos e ortopédicos, 1,6%. No varejo restrito, sem veículos e material de construção, as vendas dos supermercados têm peso de metade do resultado final.

O restante dos setores foi do desastre maior ao menor, mas desastre, com queda de mais de 42% nas lojas de roupas, tecidos e calçados, por exemplo.

No geral, o tamanho da catástrofe foi um pouco menor do que a esperada pelas projeções de economistas, no entanto muito mais desorientadas por um choque deste tamanho e inédito. Ainda assim, os números de março no comércio, na indústria e nos serviços acabaram por rebaixar ainda mais várias projeções relevantes para o ritmo do PIB, que estão chegando perto da 5% de queda. É terrível, mas as revisões para baixo ainda não têm data para acabar.

Abril foi um mês inteiro tomado pelas paralisações de atividades, de retração do consumo pelo medo e pela queda abrupta de renda e do nível de emprego. Algum mínimo sinal de despiora? Os indicadores mais recentes de atividade econômica são quase inexistentes; os números, de resto, podem estar todos perturbados, tanto ou mais quanto a vida e a perspectiva de sobrevivência das pessoas.

Um número que tem saído com frequência é o do valor de compras com cartão, débito ou crédito. Na primeira semana da paralisação da epidemia, haviam caído mais de 52% em relação a semana equivalente de fevereiro. Houve uma ligeira despiora nas semanas seguintes. Nas semanas finais de abril, as baixas andavam pela casa de 35% de baixa (sempre em relação a semana equivalente de fevereiro).

Os dados são da Cielo, de compras com cartão no varejo. No total, o valor dessas compras equivale a cerca de 40% do que nas contas nacionais, no PIB, se chama de “consumo das famílias”.

Ainda assim, apesar dessa aparente despiora, não dá para dizer o que foi abril no varejo e menos ainda no restante da economia. O efeito bola de neve mal começou. Demissões e cortes de salários reduzem o consumo e provoca mais medo do futuro, o que coloca os consumidores restantes na retranca.