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Vinicius Torres Freire: Dia de paz dos cemitérios na política

Bolsonaro, parlamentares e governadores fazem acordinho, mas país segue sem planos

Foi um dia de “paz na política”, a paz dos tempos dos cemitérios cada vez mais lotados. Ainda que o acordo durasse, não há perspectiva de que se trate do essencial, a epidemia, e de novidade na política econômica, planos especiais de reconstrução, se e quando tal coisa for possível.

Nesta quinta-feira, os presidentes da Câmara, do Senado e Jair Bolsonaro combinaram de evitar escândalo na reunião em que conversaram com governadores sobre o auxílio federal a estados e municípios. Alguns senadores e governadores também combinaram de baixar o tom, inclusive governantes de esquerda do Nordeste e João Doria, de São Paulo.

No Brasil dos tempos que correm, tais arranjos podem durar horas, até o próximo comício bolsonarista ou até que vaze algum progresso dos inquéritos sobre a família presidencial, por exemplo. Além do mais, não foi possível ainda descobrir o alcance do acordozinho, se foi algo mais do que a tentativa de manter as aparências.

Há alguns motivos de ligeiro esvaziamento de tensões ao menos entre dois prédios da praça dos Três Poderes.

Faz pouco mais de um mês, o governo contra-atacou Rodrigo Maia, presidente da Câmara, com a aquisição de apoios do centrão. Há cargos sendo entregues a gente do bloco, que deve ficar com a liderança do governo na Câmara, provavelmente com o PP. Maia recuou. Davi Alcolumbre, presidente do Senado, procurou ocupar espaço, como apaziguador.

Bolsonaro foi outra vez aconselhado pelos ministros-generais da casa, do Planalto, a baixar a bola, até porque seu prestígio em pesquisas de opinião e nas redes sociais está em baixa contínua, embora não em descalabro rápido. Como se sabe desde o início do governo, tais conselhos podem ser seguidos apenas por horas.

Algumas lideranças empresariais e banqueiros dizem em público e privado que é preciso controlar o caos, mandando mensagens mais diretas ao governo, agora, depois de quase três meses da baderna que Jair Bolsonaro provocou na contenção da epidemia. Por conversas aqui e ali, nota-se que o dinheiro grosso não quer ouvir falar de impeachment.

Um transbordamento depende por ora de investigações da polícia e de um ou outro procurador, sob controle de ministros de tribunais superiores, as mais perigosas sob controle do Supremo.

Supondo que não tenha sido mera manutenção das aparências por um dia, a mera conversa de paz vai ser atropelada pelo pavoroso cortejo funerário da epidemia. No presente ritmo, em 15 dias o Brasil teria mais de 40 mil mortos. O pico fúnebre que jamais chega, mesmo em São Paulo, prorroga a destruição econômica.

Os auxílios emergenciais e o seguro-desemprego expandido atenuam a desgraça material das famílias, mas não a bola de neve de destruição de empresas e empregos. O dinheiro desses auxílios equivale a um terço de toda a soma mensal de rendimentos do trabalho no país (por pelo menos três meses).

Apesar do tamanho do programa, será enxugamento de gelo caso a economia não volte a rodar, o que não deve acontecer enquanto houver isolamentos e medo da morte. Em três meses, de resto, o governo pretende reduzir tais programas a um terço.

Em suma, a “paz” política nos cemitérios lotados não dá conta da desgraça da epidemia, óbvio. No que diz respeito à política econômica, afora auxílios e créditos, não há perspectiva de mudança de programa, a julgar pelas declarações recentes do comando da Economia e do Banco Central.

Por ora, continuamos à deriva na beira da ruína terminal.


Folha de S. Paulo: Entidades médicas vão à Justiça contra o uso da cloroquina

Médicos afirmam que orientação do Ministério da Saúde deixou profissionais em meio a fogo cruzado

Fernando Canzia, da Folha de S. Paulo

Entidades médicas preparam medidas judiciais para obrigar o Ministério da Saúde a retirar de seu site na internet as orientações para que profissionais de saúde administrem precocemente cloroquina, hidroxicloroquina e azitromicina em pacientes com coronavírus.

Os médicos afirmam que o fato de a orientação existir formalmente dará margem à população para exigir o uso dos medicamentos mesmo quando a avaliação clínica não recomendar a prescrição.

A maioria das unidades básicas de saúde no país não tem, por exemplo, eletrocardiógrafos para aferir se os pacientes podem usar a cloroquina, que apresenta a arritmia como um de seus principais efeitos colaterais.

Mais de 90% dessas unidades também não dispõem de profissionais de segurança, e o temor dos médicos é que, como a escalada da epidemia, muitos pacientes acabem exigindo de forma mais enfática o uso dessas drogas.

Segundo Daniel Knupp, presidente da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC), que reúne 47,7 mil equipes de atenção básica no país, o governo federal está colocando os médicos em um “fogo cruzado” com a publicação das orientações pelo Ministério da Saúde.

Haverá pressão da população para o uso desses medicamentos, sendo que o próprio governo está sendo tecnicamente omisso em sua orientação”, diz Knupp.

“Esse foi o subterfúgio usado para que não haja uma disputa técnica sobre o uso da cloroquina”, diz Knupp.

Segundo ele, a cloroquina deve começar a ser largamente distribuída pelo governo nos próximos dias por conta da produção que o Exército vem realizando.

Com a orientação para o seu uso publicada no site do ministério, os médicos que não concordarem com ela podem acabar sendo pressionados a fazê-lo.

Na ação contra a manutenção do documento no site, a SBMFC usará o seu próprio texto como argumento contra o uso dos medicamentos.

Em sua primeira nota técnica, o documento afirma que "ainda não há meta-análises de ensaios clínicos multicêntricos, controlados, cegos e randomizados que comprovem o beneficio inequívoco dessas medicações para o tratamento da Covid-19”.

A Associação de Medicina Intensiva Brasileira (Amib) estuda participar da mesma ação ou tomar medidas jurídicas individualmente.

“Há evidências suficientes para a não utilização da cloroquina e das demais medidas recomendas pelo ministério em pacientes infectados pela Covid-19”, afirma Suzana Margareth Lobo, presidente da Amib.

A Sociedade Brasileira de Infectologia também emitiu nota afirmando que vários estudos mostraram o "potencial malefício” dessas drogas. A entidade recomenda que o uso de cloroquina ou hidroxicloroquina no tratamento da Covid-19 seja feito "prioritariamente em pesquisa clínica".


Bruno Boghossian: Bolsonaro poderia passar o cargo para um ator de Malhação

Sem aptidão para o cargo, presidente já mostrou que não tem interesse em governar

Se um ator de "Malhação" se oferecesse para assumir seu lugar, Jair Bolsonaro seria capaz de aceitar a proposta. O presidente jamais mostrou aptidão para o cargo. Cada vez mais, ele também deixa claro que não tem interesse em governar.

Depois de obrigar o Ministério da Saúde a recomendar um medicamento sem eficácia comprovada contra o coronavírus, Bolsonaro tentou novamente fugir de suas responsabilidades. "O que é a democracia? Você não quer? Você não faz. Você não é obrigado a tomar cloroquina", disse, na última terça (19).

O presidente não estimulou o desenvolvimento de nenhum protocolo sério para o tratamento da doença nem se esforçou em organizar o sistema de saúde para enfrentar momento críticos. Investiu na instabilidade e preferiu fazer piada na data em que o país registrou mais de mil mortos em 24 horas.

Bolsonaro poderia trocar o slogan do governo para "salve-se quem puder". Além de transferir para cidadãos leigos a escolha do tratamento de uma doença ainda desconhecida, ele já declarou que "o brasileiro tem que entender que quem vai salvar a vida dele é ele, pô!".

O presidente também usa um conceito falso de democracia para justificar as barbeiragens de um governo omisso. Nesta quarta (20), uma secretária do Ministério da Saúde disse que a orientação sobre a cloroquina foi fruto de "um clamor da sociedade", como se não houvesse técnicos para chancelar essa decisão.

A mesma lógica levou o ministro da Educação a prometer uma enquete entre os estudantes inscritos no Enem para definir se a prova seria adiada por causa da pandemia. A ideia era seguir a opinião da maioria, mesmo que uma parcela significativa de alunos fosse prejudicada.

O governo optou pelo adiamento da prova, mas não para proteger jovens de baixa renda que não teriam condições de estudar pela internet. Bolsonaro só recuou ao perceber que sofreria uma derrota humilhante nas votações do Congresso sobre o tema. A democracia funcionou."


Alessandro Molon: Por um novo normal

Não cabe mais um Brasil da desigualdade, perpetuador da involução

Em nossas casas, isolados; nos hospitais, na linha de frente; nos comércios, adaptando-se para sobreviver; nos cemitérios, chorando a dor dos que enterram seus mortos sozinhos. Onde quer que estejamos, todos queremos que esse vírus invisível —e, ao mesmo tempo, impossível de ser ignorado— seja vencido. Que se descubra uma vacina ou um tratamento que nos permita voltar ao normal.

Há algumas semanas, no entanto, uma frase grafitada numa parede de metrô em Hong Kong viralizou: “Não podemos voltar ao normal, porque o normal que tínhamos era justamente o problema”.

Há tempos temos insistido na direção errada, ignorando avisos, fingindo não haver outra saída. Seguimos estimulando economias pesadas, com altas emissões de carbono, e que alimentam o crescimento de sociedades desiguais e doentes. Aqui no Brasil, devemos acrescentar ainda o alto desemprego, a fome, a reprimarização da nossa economia e a devastação das nossas florestas.

O sinal de alerta, desta vez, veio em forma de uma perigosa pandemia que nos obriga a parar e pensar. Queremos retornar aonde estávamos? Ou será que, diante do abalo às estruturas desta casa em que vivemos por tanto tempo, devemos construir uma morada mais sólida, mais resistente, mais acolhedora?

Não há mais espaço para um mundo em que os 22 homens mais ricos da Terra têm mais riqueza do que todas as 325 milhões de mulheres da África somadas. Um mundo em que 7 milhões de pessoas morrem todo ano por conta da poluição do ar, e em que 1 em cada 4 habitantes do planeta vive sem saneamento básico.

Não cabe mais um Brasil vice-campeão de desigualdade, destruidor da Amazônia, perpetuador da involução. Está na hora de construirmos um “novo normal”, com investimento robusto em ciência, tecnologia e inovação, e sustentado num tripé composto por qualidade de vida, equilíbrio ambiental e justiça social.

É hora de um Green New Deal brasileiro, um novo pacto para substituir os incentivos a grandes atividades extrativistas por eficiência energética, estímulos a biocombustíveis e desmatamento zero. Um projeto de desenvolvimento para o país que o retire da recessão global que se avizinha e o impulsione rumo a um futuro mais próspero, com empregos, distribuição de renda, serviços públicos de qualidade e uso sustentável das riquezas florestais, nas áreas de alimentação, farmácia e cosméticos —com as árvores de pé, é claro.

Uma reforma verde que contemple infraestrutura, cidades, indústrias, serviços e também a administração pública, por um Estado mais eficiente em favor das pessoas. Por um Brasil em que todos caibam.

No último ano tenho me dedicado com afinco, junto com economistas, pesquisadores e especialistas, a formular essa visão para o Brasil, tendo me reunido com a deputada Alexandria Ocasio-Cortez, voz que lidera o debate nos Estados Unidos. Países da Europa e da Ásia caminham na mesma direção.

Quem teima em tapar os ouvidos não escapa às imagens da natureza se regenerando. Enquanto o coronavírus nos tira das ruas, cisnes nadam nos antes imundos canais de Veneza, o pico do Himalaia é avistado da Índia pela primeira vez em 30 anos, e mais de 70 mil vidas são salvas na China apenas devido à diminuição da poluição do ar, em estimativa da Universidade Stanford.

Em contraposição, estudos já dão conta de que o desmatamento da Amazônia, que reserva a maior quantidade de microorganismos do mundo, pode, com o consequente desequilíbrio climático, deflagrar novas pandemias.

A exemplo das revoluções Francesa e Industrial, das guerras do século 20 e dos avanços tecnológicos recentes, esta crise por que passamos marcará a história da humanidade. Isso porque as escolhas que fizermos nos próximos meses e anos serão ordem para as próximas gerações. Os custos da falta de ação, como temos visto, são catastróficos. Insistir nos erros que nos trouxeram até aqui, portanto, seria não apenas estupidez, mas o desperdício de uma valiosa possibilidade de construirmos esse “novo normal” e avançarmos na direção de uma sociedade mais justa e sustentável.

Logo, aos que perguntam se vamos voltar ao normal, respondo: “Tomara que não”.

*Alessandro Molon, deputado federal (PSB-RJ), é líder do partido na Câmara


Bruno Boghossian: Medidas de isolamento mal planejadas atrapalham combate ao coronavírus

Experiência de São Paulo pode reduzir confiança da população em práticas rigorosas

O prefeito Bruno Covas (PSDB) levou seis dias para reconhecer o fiasco do rodízio ampliado de veículos implantado na capital paulista na semana passada. A ideia era reduzir a circulação durante a crise do coronavírus, mas a medida não ampliou o isolamento e ainda concentrou mais passageiros em terminais de ônibus e estações de metrô.

"Não tem sentido a gente exigir esse esforço sobrenatural das pessoas se a única razão pela qual o rodízio foi feito, que é aumentar o isolamento social, não foi cumprida", afirmou, no domingo (17).

O tucano falava como se a prefeitura não tivesse nenhuma responsabilidade pelo fracasso do plano. A medida, ao contrário, foi um exemplo de mau planejamento e falta de coordenação no momento em que São Paulo se aproxima do ponto de colapso em sua rede hospitalar.

Enquanto estados e municípios enfrentam pressões por uma reabertura desordenada do comércio, alguns governantes experimentam medidas mal elaboradas para ampliar o distanciamento. Em pouco tempo, eles descobrem que não basta uma canetada para mudar a realidade.

O feriadão surpresa articulado por Covas e pelo governador João Doria (PSDB) para os próximos dias passará por esse mesmo teste. Ao anunciar a proposta, o prefeito revelou que a capital tem um estoque limitado de caminhos a seguir: "A cidade está chegando ao seu limite de opções".

A decisão parece ter sido um tiro no escuro. Nesta terça (19), véspera do início do megaferiado, o mercado financeiro anunciou que manteria suas atividades normais, e os prefeitos de municípios do litoral ainda discutiam maneiras de evitar que os moradores da capital lotassem suas praias nos dias de folga.

À medida que o país bate recordes de mortos e caminha para o pico da crise, a experiência paulistana pode reduzir a confiança da população em práticas mais rigorosas de isolamento. O preço cobrado pode ser especialmente alto quando a cidade for obrigada a discutir a implantação de um lockdown severo.


Vinicius Torres Freire: Sem auxílio emergencial e seguro-desemprego, buraco de 25% na renda do trabalho

Compensações chegam ao menos 25% do total da renda do trabalho, mas acabam em 3 meses

Os auxílios emergenciais de R$ 600 e o gasto estimado pelo governo com seguro-desemprego extra devem somar uma despesa de R$ 52,3 bilhões por mês, em uma hipótese conservadora. É o equivalente a 25% de toda a massa de rendimentos mensais do trabalho de março de 2020, segundo dados da Pnad, do IBGE.

Estão incluídos aí também os rendimentos de servidores públicos, que devem perder pouca renda, e de empregadores, muitos deles pequenos, muitos dos quais estão vendo seus rendimentos desaparecerem.

Na mera hipótese de que as perdas fossem exatamente de 25% da massa de rendimentos do trabalho, haveria uma compensação de um por um. As perdas se concentrariam, além do mais, nos indivíduos de renda mais alta (desconsidera-se aqui que os rendimentos dos mais ricos são subestimados).
E daí?

Primeiro, é razoável especular que haveria algum aumento relativo de despesas com bens essenciais, comida e remédio. As despesas com bens mais caros, bens duráveis (de eletrodomésticos a carros, por exemplo), sofreriam impacto relativo maior.

Segundo e mais importante, essa compensação de renda deve terminar em três meses. Mas daqui a três meses a crise ainda será pavorosa.

Dadas as mais recentes informações do morticínio da epidemia, na melhor, mais otimista e mais esperançosa das expectativas, apenas em duas semanas haveria uma estabilização do número de mortes diárias. As medidas de isolamento social e o grande medo ainda provocariam danos econômicos, fora o efeito defasado das demissões e falências que já ocorreram.

Terceiro, há a questão social e política. Como cancelar os benefícios, sem mais, daqui a três meses?

Note-se de passagem que não temos a menor ideia de quanto foi a perda de rendimentos nem mesmo em abril passado, que dirá nos três meses em que, por ora, vão valer os benefícios emergenciais e de seguro-desemprego extra. As perdas serão pavorosas, mas não há por enquanto nenhuma medida nem mesmo indireta do tamanho do desastre.

Pode ser que o pagamento de benefícios seja ainda maior. Este primeiro cenário se baseia no número de pessoas que já foi autorizada a receber o auxílio emergencial, cerca de 58,7 milhões.

Nas contas da Instituição Fiscal Independente (IFI), pode ser que quase 79,9 milhões de pessoas recebam o auxílio emergencial, uma despesa mensal média de R$ 51,5 bilhões. É o cenário-base da IFI, órgão independente de acompanhamento e análise das contas públicas, ligado ao Senado.

Somadas à despesa média com seguro-desemprego (na estimativa do governo), seriam R$ 68,5 bilhões. Equivale a mais de 32% da massa mensal de rendimentos de março.

Nesta terça-feira (19), o secretário do Tesouro, Mansueto Almeida, também disse que o auxílio pode chegar a 80 milhões de pessoas. Ele e outros integrantes do Ministério da Economia dizem que não será possível prorrogar o programa, nesses termos e valores, além de três meses.

Ressalte-se que não sabemos qual será a perda de renda, quem perderá mais ou qual o tamanho do seu impacto no consumo (que de resto depende de confiança do consumidor que ainda tenha renda e de crédito). Sabemos que ao fim de três meses podemos ter um buraco de renda equivalente a uns 25% da massa mensal de rendimentos do trabalho e que ainda não temos um plano geral de saída desta crise.

Para começar, não temos nem plano federal de lidar com a epidemia, só ideias lunáticas e perversas que a tornam ainda pior.


Hélio Schwartsman: Solução para o Enem

Sem a redação, a prova poderia ser adiada até março ou mesmo abril

O Enem deve ser adiado devido à pandemia? Acho que sim, dentro de certos limites. O argumento é conhecido: como os alunos mais pobres têm mais dificuldades para seguir estudando neste momento de reclusão, a manutenção do calendário reforçaria ainda mais a desigualdade no acesso ao ensino superior.

Não vejo como discordar. O ponto, me parece, é que há um limite para quanto a prova pode ser adiada e ele é dado pelo ano letivo de 2021. O sistema de ensino é um fluxo. Para cada turma que sai, precisa entrar uma nova. Não faria sentido que as universidades ficassem um período sem alunos. Também não podem condensar demais os conteúdos do primeiro ano.

Num cenário de excepcionalidade, como será 2021, as aulas, que costumam ter início em meados de fevereiro, poderiam, sem prejuízo irrecuperável, começar em abril, talvez maio, se suprimirmos as férias de julho. Isso significa que o Enem poderia ser transferido de novembro para janeiro.

Tenho uma proposta que nos daria uns dois meses adicionais. Basta eliminar a redação do Enem. Sei que é polêmico. Todo mundo adora a ideia de prova dissertativa. Em teoria, não há nada melhor do que uma redação para avaliar o estudante. Ela permite, de uma vez só, averiguar o nível de conhecimentos do candidato, sua capacidade de articular ideias e seu domínio sobre a escrita.

O problema é que é impossível corrigir milhões de dissertações de modo objetivo. Sem a redação, o Enem seria menos suscetível às idiossincrasias dos corretores, mais barato e seus resultados sairiam quase instantaneamente, que é o que nos interessa aqui. Poderíamos adiar a prova até março ou mesmo abril.

E o que perdemos abrindo mão da redação? Não muito. Apesar de nossas intuições não concordarem, é alta a correlação entre o desempenho em questões de múltipla escolha e na dissertação. Quem vai bem nos testes costuma ir bem na redação, e vice-versa.


Ruy Castro: Quando ele tiver de se explicar

Um dia, diante do tribunal, Bolsonaro não poderá dizer Caso encerrado!

No dia ainda incerto, mas infalível, em que Jair Bolsonaro se sentar no banco dos réus, veremos se usará a tática a que se habituou no poder para se impor numa discussão —silenciar seus interlocutores cortando-lhes a palavra e repetindo aos gritos seus bordões, como “Chance zero!”, “Ponto final!”, “Caso encerrado!”, “Próxima pergunta!”, “O recado está dado!”, “Cala a boca!” e “E daí?”.

A Justiça não se contentará com uma argumentação tão lacônica. Bolsonaro terá de responder extensivamente sobre os episódios em que violou a Constituição, estuprou as instituições, acusou sem provas, jogou o povo contra o Congresso e o STF, botou órgãos de Estado a seu serviço, encobriu sujeiras dos filhos e dos asseclas, mentiu compulsivamente, agrediu minorias e promoveu o desmoronamento da nação com seu ministério de celerados. O crime de mandar os humildes para a morte, exortando-os a sair de casa em plena pandemia, talvez tenha de ser julgado por um tribunal com sede na Holanda.

Será fascinante seguir Bolsonaro pela TV, defendendo-se no julgamento com seu vocabulário indigente, português estropiado, expressões chulas, sotaque caipira, estoque de palavrões e abuso de taoquêis. E mais ainda porque, apesar de velho político, ele nunca fora contestado para valer —como deputado de quinta, ninguém perdia tempo com ele e, presidente, achava-se poderoso demais para discutir.

Condenado em várias instâncias, mas à espera de que se esgotem os recursos, Bolsonaro, como ex-presidente, deverá ter direito a uma sala de Estado Maior num quartel da Polícia Federal.

Talvez, então, ele já terá sido abandonado por seus seguidores. Aqueles que, nos áureos tempos, exerciam em seus ataques aos opositores um laconismo igual ao do chefe: “Lixo!”, “Chega de mimimi!”, “Simples assim!”, “Entendeu ou quer que desenhe?” e “Aceitem que dói menos!”.

*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.


Ranier Bragon: Augusto Aras vai matar essa no peito?

Escolhido por Bolsonaro após cortejá-lo, procurador-geral chega à sua hora decisiva

Augusto Aras foi alçado à chefia do Ministério Público desprezando o apoio dos colegas e optando por algo que se mostrou bem mais eficaz, um vergonhoso beija-mão. Agora, o procurador-geral da República chega ao seu teste de fogo.

Desenvolve-se em Brasília um teatro. Jair Bolsonaro tenta emplacar a versão de que na reunião ministerial de 22 de abril não manifestou intenção de interferir na Polícia Federal para proteger a ninhada. Contra suas próprias palavras, ações, regras palacianas e a lógica em geral, fala que queria interferir era na sua segurança pessoal. Uma história que faz a Operação Uruguai de Collor, de quase 30 anos atrás, parecer ter sido bolada em Harvard.

O teatro dos parlapatões é completado por generais —oriundos de uma corporação que tanto preza a verdade e a honra— se prestando ao patético papel de sustentar o que sabem ser uma mentira. E em prol de uma família cuja palavra não vale absolutamente nada.

Caberá a Augusto Aras decidir entre a denúncia e o arquivamento.

Suas manifestações nos autos, até agora, são uma lástima. Superando até os advogados do presidente, ele é a favor de que a maior parte da reunião do dia 22 fique nas sombras. Defende, inclusive, interesses de ministros que, ao que parece, pediram a volta de Torquemada para dar cabo de STF, governadores e prefeitos. Para Aras, há ameaça de violação da "justa expectativa" dessas doces almas de que proferiam barbaridades só para um petit comité. Como se ali não estivessem reunidos ministros e um presidente, mas apenas inocentes arruaceiros tratando da taberna que iriam quebrar no dia seguinte.

Aras também manifestou preocupação de uso da reunião "como palanque eleitoral precoce das eleições de 2022". O que cargas d'água ele tem a ver com isso, eis aí um mistério. Petistas afirmam que Luiz Fux só foi indicado ao STF porque prometeu matar no peito o mensalão, o que ele nega e o que, na prática, não ocorreu. A bola foi lançada ao procurador.


Hélio Schwartsman: O dever do impeachment

Temos a obrigação moral de deflagrar o processo, mesmo que não tenha êxito

Não sei se um impeachment contra Jair Bolsonaro tem condições de prosperar. Numa avaliação política, eu diria que, hoje, não. Mas acredito que temos a obrigação moral de deflagrar o processo, mesmo que não tenha êxito. Os crimes de responsabilidade cometidos pelo atual mandatário são tantos, tão ostensivos e tão graves que deixar de acusá-lo equivaleria a coonestar suas atitudes.

O impeachment tem dupla natureza. Ele é ao mesmo tempo um instituto político e judicial. Se o bom articulador só deve levar sua proposta a votação quando sabe que vai ganhar, o policial é em tese obrigado a entrar em ação sempre que flagra uma ilegalidade.

No mundo real, sabemos que o guarda muitas vezes precisa fechar os olhos para violações menores, ou as delegacias ficariam atulhadas em picuinhas, mas, quando o meliante passa a agir em plena luz do dia, cometendo delitos cada vez mais graves e de forma cada vez mais conspícua, a opção de virar a cara para o outro lado já não se coloca. A maior flexibilidade proporcionada pela faceta política do impeachment não muda isso. Os desatinos de Bolsonaro atingiram um grau tal que ignorá-los seria compactuar com o perpetrante.

Estamos aqui numa situação análoga à do Partido Democrata diante das transgressões de Donald Trump. Mesmo sabendo que não havia a menor chance de o presidente ser afastado —os republicanos têm folgada maioria no Senado— e que havia o risco de a absolvição fortalecê-lo eleitoralmente, a liderança democrata entendeu que tinha a obrigação moral de tentar o impeachment. Julgou que as violações eram de tal monta que fingir que elas não ocorreram significaria faltar com o compromisso do partido com a democracia.

Em termos práticos, a diferença relevante é que Trump podia contar com a fidelidade dos senadores de um Partido Republicano cada vez mais coeso por causa da polarização; já Bolsonaro está na mão do centrão.


Mathias Alencastro: Vida e morte da frente ampla

Escolha de Jilmar Tatto é fim de uma era

A esquerda brasileira padece de uma ilusão portuguesa. Muitos acreditam que a famosa geringonça, a aliança entre socialistas, bloquistas e comunistas, seria, na sua encarnação tropical, uma parceria entre PT, PC do B e PSOL.

Mas o gênio do premiê português, António Costa, chefe e idealizador do projeto, está na sua capacidade de mobilizar esses partidos da esquerda para ocupar o centro do tabuleiro político.

Com o apoio envergonhado dos seus aliados, ele capturou as bandeiras conservadoras do rigor fiscal e da segurança pública.

Na semana passada, Costa, em mais um gesto de ruptura, aproveitou o desconfinamento para declarar o seu apoio à reeleição de Marcelo Rebelo de Sousa, o presidente de centro-direita.

Moscou, Istambul, Budapeste, capitais políticas e financeiras estão na linha de frente do combate ao populismo de seus respectivos chefes de governo. Em todas essas cidades, os progressistas foram além da experiência portuguesa, juntando partidos de todos os bordos.

Em Budapeste, a esquerda chega ao extremo de advogar a aproximação com fações da extrema direita opostas a Viktor Órban. Vale tudo em nome da luta contra o autoritarismo.

Enquanto isso, em São Paulo e no Rio de Janeiro, a intransigência do parisiense Ciro Gomes, a relutância de Lula em reconhecer o colapso da hegemonia petista, e as micro-querelas do PSOL inviabilizaram a frente ampla. Uma fraquejada indigna do momento histórico.

Seguindo o exemplo do resto do mundo, as capitais estaduais deveriam servir de bastião de resistência contra o governo Bolsonaro e de laboratório para uma nova plataforma política.

Em disso, as lideranças proporcionaram um espetáculo de egocentrismo semelhante ao do segundo turno das presidenciais de 2018.

Mas há novidades. No sábado (16) os membros dos diretórios regionais do PT na cidade de São Paulo indicaram para disputar a prefeitura Jilmar Tatto, um candidato sem dimensão nacional e apelo além dos militantes.

Um fiasco anunciado que dará força aos comandantes petistas nordestinos, ansiosos por assumir as rédeas do partido nas negociações nacionais para 2022.

Aí a conversa será outra. Transformado pela pandemia, o Consórcio do Nordeste está criando as condições para a emergência de uma geringonça nos moldes da portuguesa.

Basta olhar para a parceria produtiva entre Rui Costa e ACM Neto e, além do petismo, para as conversas exploratórias entre Flávio Dino e Luciano Huck.

Assombrado pelas suas derrotas recentes, o campo progressista demora a se transformar.

Mas nada de desespero: a formação de uma aliança tranversal que incorpore o melhor do petismo está muito mais avançada do que o marasmo atual deixa transparecer.

*Mathias Alencastro, pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento e doutor em ciência política pela Universidade de Oxford (Inglaterra).


Leandro Colon: As pistas de Marinho

A entrevista do ex-aliado se soma às acusações de Sergio Moro sobre interferência na PF

As gravíssimas informações dadas por Paulo Marinho à jornalista Mônica Bergamo, da Folha, têm potencial explosivo e dependem agora da boa vontade das autoridades em investigá-las.

Marinho era do núcleo duro da campanha de Jair Bolsonaro, e a riqueza de detalhes sobre o vazamento do caso Queiroz, com nomes, datas e locais, dá verossimilhança à sua narrativa. Há pistas de sobra para quem quer de fato apurar seu relato.

Por outro lado, se essa história for verdadeira, Marinho ajudou Flávio naquela época, calou-se por longo período e só decidiu contar o que sabe após virar adversário político da família Bolsonaro. Não tem bobo nem santo aí, até porque Marinho, como suplente do senador, tem interesse direto numa eventual derrocada do mandato do 01 de Bolsonaro.

Além de desgastar obviamente Flávio, as afirmações do ex-aliado jogam luz sobre a vitória de Bolsonaro no segundo turno da eleição de 2018. Segundo Marinho, ao ser informado por um delegado da Polícia da Federal da operação Furna da Onça, em plena campanha, Flávio avisou o pai, então candidato à Presidência da República.

De acordo com sua versão, o postulante ao Planalto não só soube da operação como sugeriu a demissão do alvo principal dela, Fabricio Queiroz, que trabalhava no gabinete do 01 na Assembleia do Rio, e de sua filha.

Em um exercício de suposição, o que poderia ter ocorrido naquela disputa se a PF não adiasse a ofensiva? Bolsonaro venceu ciente de que o gabinete do filho estava sendo investigado? E ajudou a encobrir provas?

A entrevista de Marinho se soma às acusações de Sergio Moro de que Bolsonaro quer interferir na PF para influenciar em sua atuação no Rio.

Outros depoimentos do inquérito aberto pelo STF corroboram essa narrativa.

O obstáculo para as investigações no Supremo tem um nome: Augusto Aras, chefe da PGR.

Ele não esconde nos bastidores que não vê crimes por parte de Bolsonaro. No que depender de Aras, o inquérito vai para o arquivo. Nesses mesmos bastidores de Brasília, ele até já ganhou um apelido: advogado-geral da República.