folha de s paulo

Hélio Schwartsman: Salve-se quem puder

Se o despreparo de autoridades é resultado da democracia, precisamos rever alguns conceitos

Juro que a última coisa que quero são as hemorroidas do Bolsonaro. O que me impressionou no incrível vídeo da reunião ministerial não foram tanto os palavrões nem as posições antirrepublicanas, que já sabíamos que viriam, mas o completo despreparo das autoridades ali presentes.

A desinteligência começa na própria ideia de gravar o vídeo. Desde Richard Nixon, nenhum político com mais de dois neurônios manda imortalizar situações que revelem a intimidade do poder, a menos que esteja obrigado por lei. No caso de reuniões de gabinete, não existe essa obrigação. Mesmo quando os participantes não confessam nenhum crime, acabam mostrando as entranhas dos processos decisórios, que nunca são bonitas de ver.

No caso específico, porém, há, se não confissões, indícios abundantes de crimes de responsabilidade e até de delitos penais ordinários. Depende só de Rodrigo Maia e de Augusto Aras o início de processos que podem levar à destituição do presidente.

O que realmente preocupa é o alheamento dos hierarcas. O Brasil atravessa uma crise sanitária sem precedentes e que deixará um rastro de destruição econômica raramente vista. As autoridades, porém, não falam nada de aproveitável sobre economia e mal mencionam a saúde. Estão mais preocupadas em adular o chefe e antagonizar adversários políticos. Parecem viver numa realidade paralela na qual só o que importa é a escatologia vascular do presidente.

Se esse é o resultado da democracia, precisamos rever alguns conceitos. Exigir que candidatos a presidente sejam aprovados no Enem e no psicotécnico talvez seja excessivo, mas acho que faz sentido reforçar um desenho institucional no qual certas decisões especialmente sensíveis tenham de passar por órgãos técnicos mais difíceis de aparelhar. Em tese, as agências funcionam um pouco com essa filosofia.

Precisamos dar um jeito de não ficar na mão de gente desse quilate.


Reinaldo Azevedo: Bolsonaro planeja guerra civil, não autogolpe

Presidente usa ainda as Forças Armadas, que se deixam usar, para seus propósitos criminosos

A interferência ilegal de Jair Bolsonaro na Polícia Federal pode estar nos fatos, mas não no vídeo tarja-preta. Ingerência sim, crime não. De gravidade inédita é outra coisa: o presidente não investe num autogolpe, mas numa guerra civil. Confessou ainda ter um sistema particular de informações. E usa as Forças Armadas, que se deixam usar, para seus propósitos criminosos.

Trata-se de confissão, não de interpretação: “Por que eu tou armando o povo? Porque eu não quero uma ditadura! (…) É escancarar a questão do armamento aqui. Eu quero todo mundo armado! Que povo armado jamais será escravizado”. A arma é um fermento político. E o crime tem atos de ofício, como evidencio abaixo.

Na reunião, dá ordem a Sergio Moro e a Fernando Azevedo e Silva (Defesa): “Eu peço ao Fernando e ao Moro que, por favor, assine essa portaria hoje que eu quero dar um puta de um recado pra esses bosta!” No dia seguinte, saiu a portaria, que elevou a munição que pode ser comprada por um civil de 200 unidades por ano para 550 por mês.

No dia 18 de abril, ele já havia baixado a portaria 62/20, pondo fim ao rastreamento de armas e munições. Escreveu no Twitter: “Determinei a revogação das Portarias Colog nº 46, 60 e 61, de março de 2020, que tratam do rastreamento, identificação e marcação de armas, munições e demais produtos controlados por não se adequarem às minhas diretrizes definidas em decretos".

As portarias revogadas tinham sido assinadas pelo general de brigada Eugênio Pacelli, do Comando de Logística do Exército. O presidente mandou exonerá-lo da Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados sem poderes para isso.

Pacelli passou para a reserva no dia 24 de março. Na despedida, desculpou-se com empresários do ramo de armas por não ter atendido a seus interesses: “Nosso maior compromisso será sempre com a tranquilidade da segurança social”. O de Bolsonaro é outro. O PSOL entrou com uma ação no STF contra a portaria 62. O relator é Alexandre de Moraes.

Não menos grave é a outra confissão: “Sistemas de informações: o meu funciona. O meu particular funciona. Os que têm oficialmente, desinforma.” Que sistema é esse? A deputada Joice Hasselmann (PSL-SP), ex-aliada da turma, disse à CPMI das Fake News que Carlos Bolsonaro, o amigão de Alexandre Ramagem, queria criar a “Abin paralela”.

Bolsonaro maratonou os crimes de responsabilidade previstos na lei 1.079. E arregaçou a 7.170, de segurança nacional. Poderia pegar até 19 anos de cadeia. General Augusto Heleno ameaçou o país com um golpe, na sexta-feira (22), assinando, literalmente de próprio punho, uma nota que evoca, sub-reptícia e erradamente, o artigo 142 da Constituição.

O golpe de 1964 foi desferido “contra a subversão e a corrupção”. Os corruptos já estão sendo contratados junto ao fundão do centrão. E o subversivo confesso usa o aparelho de Estado e as Forças Armadas para organizar a guerra civil. Um novo Brasil, certo, senhores oficiais-generais?

A propósito: não fosse a demissão de Maurício Valeixo, Moro teria ficado calado em abril, como ficou em março, assistindo ao planejamento da guerra civil?


Leandro Colon: Em raro lapso de lucidez, Bolsonaro disse uma verdade na reunião ministerial

Presidente afirmou que seu governo está indo em direção ao 'iceberg'

É justo admitir que Jair Bolsonaro falou uma verdade em meio às barbaridades ditas na reunião ministerial do dia 22 de abril.

Em lapso raro de lucidez diante das evidências sobre a interferência na Polícia Federal, o presidente afirmou aos ministros que seu governo pode estar "indo em direção a um iceberg". "A gente vai pro fundo, então vamos se ligar, vamos se preocupar [sic]", disse.

Passado o choque da revelação de um episódio da zorra total, a certeza é a de naufrágio após a batida inevitável da gestão Bolsonaro com o iceberg. O vídeo revela um governo não só de insanos e despreparados como também de gestores completamente perdidos.

Muita gente nem deve ter percebido, mas a razão do encontro era o programa Pró-Brasil, coordenado pelo general Braga Netto (Casa Civil).

A proposta é um amontado de ideias de investimentos públicos e de números reciclados. Na prática, nada.

"É um plano Marshall brasileiro, né?", disse Braga Netto na reunião fechada com seus colegas ministros.

Plano Marshall foi o programa dos EUA para ajudar a reconstruir os países aliados devastados economicamente com a Segunda Guerra.

Ao ouvir Braga Netto, Guedes rebateu: "Não chamem de Plano Marshall porque revela um despreparo enorme". "Um desastre", acrescentou. "Vai revelar falta de compreensão das coisas", disse o ministro na frente do chefe da Casa Civil e do presidente Bolsonaro. "Pró-Brasil é um nome espetacular', exagerou Guedes.

À tarde daquele dia 22, Braga Netto convocou a imprensa para anunciar o programa no Palácio do Planalto. Guedes ficou de fora da entrevista. Pouco antes, jornalistas foram informados e publicaram que nos bastidores os militares haviam apelidado o Pró-Brasil de "Marshall".

Questionado pelos repórteres, o chefe da Casa Civil, talvez um tanto esquecido do que dissera no encontro privado com os colegas de governo, respondeu: "Não existe nenhum Plano Marshall, aqui existe o Pró-Brasil. Plano Marshall é outra coisa".


Janio de Freitas: Gana de Bolsonaro armar 'todo mundo' vem da sua propensão para a morte alheia

Vídeo mostrou reunião de loucos, impostores, fanáticos, aproveitadores, militares sectários, e uns poucos estarrecidos

Ninguém, nem o próprio Bolsonaro, sabia que nele se escondia, até agora, uma vontade stalinista de exterminar fisicamente os ricos e os bem remediados. Sabê-lo foi, a meu ver, o mais importante efeito do vídeo —liberado em decisão retilínea do decano Celso de Mello no Supremo— da reunião de gente do governo. Como ato, a reunião está acima e abaixo de qualquer qualificativo.

A exibição justificou a expectativa, mas não pelo pretendido esclarecimento entre as versões de Bolsonaro e Moro sobre manipulações do primeiro na Polícia Federal. Tivemos o privilégio de ver e ouvir um fato, mais do que sem precedente, sem sequer algo assemelhado no que se sabe dos 520 anos brasileiros.

Foi a reunião de loucos, impostores, fanáticos, aproveitadores, militares sectários, e uns poucos estarrecidos como o então ministro Nelson Teich. E alguém que se divertiu, sem dar descanso ao ríctus irônico, às vezes insuficiente para deter o sorriso —o vice Mourão, um general, ora veja, com senso de humor.

A exibição do ambiente de alta cafajestada, enfeitado pelo idioma doméstico de Bolsonaro, seguiu-se a uma sessão preparatória, da lavra do general Augusto Heleno e convalidada pelos generais palacianos. Resumido de corpo e ressentido típico, Augusto Heleno é dos que não falham: onde esteja, sua soma de arrogância e agressividade frutificará em problemas.

Exemplo definitivo: sua única missão propriamente militar levou a ONU ao ato inédito de pedir ao governo brasileiro a sua retirada do Haiti, onde manchou com operações desastradas e numerosas mortes o comando brasileiro de uma força internacional contra a violência local.

A nota de Augusto Heleno contra Celso de Mello e o Supremo é uma dupla consagração da ignorância que nunca deveria estar no generalato. Nesse nível, tomar uma tramitação judicial corriqueira por uma medida “inaceitável e inacreditável”, de “consequências imprevisíveis” sobre a “estabilidade nacional”, é ameaça criminosa. Essas consequências silenciadas por covardia resumem-se a uma, que conhecemos. Por um acaso preciso, apenas horas antes da nota obtusa e ameaçadora a Folha trazia este título: “Militares não vão dar golpe no país”. Nota e declaração do general Augusto Heleno.

O vídeo não nega, nem reforça, a intenção de manipular a PF, já clara em fatos anteriores e posteriores à reunião. Mas o confessado propósito de proteção policial também para amigos, além de familiares, não é bondade ilegal de Bolsonaro. É necessidade e recado.

Com dois balaços, o capitão PM Adriano Nogueira deixou de ser amizade preocupante, mas para o sumido Fabrício Queiroz, e sabe-se lá para quantos outros, continua a preocupação protetora e mútua. Isso vale vidas, em meios peculiares como milícias, gangues e tráficos.

As vidas que nada valem são outras. “Eu quero todo mundo com arma!”, “eu quero todo brasileiro armado!”, “eu quero o povo armado!”, berrou o chefe aos seus generais impassíveis e paisanos desossados.

Bolsonaro sabe que o povão maltratado, humilhado, explorado e roubado em todos os seus direitos, no dia em que também tivesse ou tiver armas, não teria dúvida sobre o alvo do fogo de sua dor secular. Adeus ricos, adeus classe média alta.

Em quase três décadas no Congresso e ano e meio com o título de presidente, Bolsonaro só teve atos e posições prejudiciais aos assalariados, aos trabalhadores aposentados, aos que sobrevivem do trabalho informal —à larga maioria brasileira, ao povo.

Para isso tem Paulo Guedes na orientação do que pode fazer para destruir os ralos programas sociais, a educação, o arremedo de assistência à saúde. A gana de armar “todo mundo” não vem de insuspeitada e extremada revolta de Bolsonaro com a desumanidade dominante no Brasil. Vem da sua propensão obsessiva para a morte alheia, até mesmo por meio de um vírus.

O desespero de Bolsonaro por certo corresponde à gravidade do que teme, se levadas com decência as investigações que o envolvam e a seus filhos maiores. Daí que a figura de Bolsonaro no vídeo seja a de quem não está longe da implosão.

*Janio de Freitas é jornalista


Bruno Boghossian: Vídeo mostra que Bolsonaro seguirá caminho do golpismo

Presidente e ministros traduzem impulsos autoritários em ataques explícitos, sem nenhum pudor

Seria uma injustiça afirmar que Jair Bolsonaro flerta com o autoritarismo. O vídeo da reunião ministerial do governo em abril mostra que o presidente e seus auxiliares, mais do que isso, traduzem seus impulsos golpistas em ataques explícitos, sem nenhum pudor.

Os assuntos do encontro eram o coronavírus e os planos para a economia, mas Bolsonaro estava mais interessado em atiçar seu conselho de radicais. Defendeu atropelar outros Poderes, falou em intervenção militar e prometeu armar a população contra seus adversários.

Nas quase duas horas de gravação, aparece em estado bruto a aposta do bolsonarismo na escalada de um conflito com as demais instituições democráticas, com o intuito de acumular um poder quase ilimitado.

O presidente disse que não aceitaria ser alvo de processos “baseados em filigranas” e que haveria “uma crise política de verdade” caso o Supremo tomasse “certas medidas”. “Não vou meter o rabo no meio das pernas”, desafiou. Quando Abraham Weintraub falou em mandar para a cadeia os ministros do tribunal, ninguém manifestou incômodo.

Bolsonaro não se conforma com o fato de que não reina soberano. Atacou o “bosta desse governador” e o “prefeitinho do fim do mundo” que decretaram medidas de isolamento social. A ministra Damares Alves afirmou que eles deveriam ser presos, repetindo o que parece ser o método favorito do governo para lidar com críticos e adversários.

Atormentado pela limitação de sua autoridade, o presidente passeia pelo terreno da exceção, sem ser incomodado. Exortou as Forças Armadas a reagirem ao que chamou de “contragolpe dos caras” e disse que era preciso armar a população contra seus opositores. No dia seguinte, o governo ampliou em 18 vezes o acesso de cidadãos comuns a munições.

O golpismo é o recurso único de um grupo que nunca teve interesse em seguir a regra do jogo. O radicalismo está enraizado no gabinete presidencial. Bolsonaro seguirá esse caminho enquanto não for impedido.


Vinicius Torres Freire: Bolsonaro ignora debate econômico para tratar de cocô petrificado, taxímetro e três pinos

Guedes propõe vender BB, legalizar cassinos, 1 milhão de aprendizes militares e detona investimento público

Dois ministros discutiram de modo agressivo um plano de reconstrução econômica em parte baseado em obras públicas na reunião de 22 de abril, tornada pública agora pelo Supremo. Jair Bolsonaro nada disse do debate entre Paulo Guedes (Economia) e Rogério Marinho (Desenvolvimento Regional) acerca do futuro pós-epidemia.

Em matéria econômica, quase se limitou a adiar para 2023 (em uma eventual reeleição) a ideia de privatizar o Banco do Brasil, proposta por Guedes, e a dizer que a crise decorrente do fechamento do comércio era uma “trozoba” que empurrariam “para cima da gente”.

No mais, em assuntos correlatos, tratou de algumas de suas obsessões, como mudanças em taxímetros, em tacógrafos e no “chip na bomba de combustível” (“putaria!”) e na tomada de três pinos.

Mencionou ainda problemas regulatórios, por assim dizer, quando afirmou que “cocô petrificado de índio” (problemas de patrimônio histórico) travava uma obra do empresário Luciano Hang (dono da Havan). Ou quando elogiou medida que facilitou a vida de milhares de pessoas no Vale do Ribeira, região paulista em que passou infância e adolescência.

No debate da política da reconstrução, Marinho criticou “dogmas” (as posições de Guedes) e disse que o aumento da despesa federal com a epidemia seria grande, uns R$ 600 bilhões, a fim de evitar problemas sociais e quebra de empresas. Assim, seria adequado empregar de 5% a 10% desse valor em obras de infraestrutura e promoção do emprego durante uma recuperação que “vai ser muito lenta”.

No encontro, Guedes (Economia) e o ministro Marcelo Antônio (Turismo) defenderam a legalização dos cassinos, como incentivo ao turismo. A fim de convencer a ministra Damares Alves (Direitos Humanos), que se opõe ao jogo, Guedes disse: “O cara entra, deixa grana lá que ele ganhou anteontem…, bebe, sai feliz da vida. Aquilo não atrapalha ninguém. Deixa cada um se f…, ô, Damares”.

Guedes disse ainda que o Brasil poderia se beneficiar de mais investimentos americanos caso assinasse o “General Purchase Agreement”. Talvez se referisse ao “General Procurement Agreement” (Acordo de Compras Governamentais), acordo patrocinado pela OMC, que pode abrir as concorrências públicas a maior participação de empresas estrangeiras.

O ministro da Economia pareceu dizer que tenta também organizar com o ministério da Defesa a contratação de “um milhão de aprendizes” pelos “quarteis brasileiros”. Os jovens receberiam cerca de R$ 200 por alguns meses, teriam aulas de “organização social e política do Brasil”, disciplina escolar dos tempos da ditadura, fariam exercícios físicos e talvez trabalhassem em obras públicas.

A reunião ministerial era destinada à apresentação do plano Pró-Brasil, que seria anunciado ao público naquela mesma quarta-feira, 22 de abril, pelo ministro Braga Netto (Casa Civil). Fazia dias, o plano era vazado e motivo de atritos entre Guedes e Rogério Marinho. Braga Netto não apresentou mais detalhes do plano do que na entrevista coletiva. A ideia foi atacada duramente por Guedes.

O ministro da Economia disse, para começar, que chamar a proposta de Plano Marshall revelava “despreparo enorme” (o plano foi um programa de auxílio à Europa patrocinado pelos EUA, após a Segunda Guerra mundial). De passagem disse que a “China deveria financiar um Plano Marshall para ajudar todo mundo que foi atingido”.

Enfatizou sua posição de que a retomada do crescimento deve ser conduzida por “investimentos privados, pelo turismo, pela abertura da economia, pelas reformas”.

Diz que o plano de obras públicas tinha a “digital” de Marinho e insinuou que era eleitoreiro, para este ano, quando o adequado seria pensar na reeleição de Bolsonaro, seguindo o plano de longo prazo de seu ministério. Diz que o “Pró Brasil” foi vazado para “a imprensa” de modo a passar a impressão de que seu ministério “estava fora”.

Marinho defende-se em seguida. Insinua que as acusações de Guedes são “teoria da conspiração”. Diz que “não existem verdades absolutas”, pois em um uma crise inédita seriam necessários “remédios extraordinários, de forma circunstancial”.

Governos liberais, diz, estariam “preparando programas de reconstrução”: “muda o papel do Estado”. Lembra o caso das grandes despesas públicas com “capital humano e infraestrutura” da Alemanha na reunificação, nos anos 1990, a fim de reduzir a desigualdade entre as partes Ocidental e Oriental do país.

Mais tarde, quase no final do encontro, Guedes volta ao ataque por este ponto. Diz que conhece o caso dessa e de outras reconstruções por ter lido oito livros sobre cada assunto; que leu Keynes três vezes no original antes de fazer seu doutorado nos EUA.

Guedes respondeu que não havia dogma. Que o governo seguia na “direção norte”, com “reformas estruturantes” e “de repente”, depois da epidemia, foi “para o sul”, fazendo programas de auxílio antes de alemães e de ingleses, “só atrás um pouquinho” dos EUA.

No mais, era o caso de manter as contas públicas arrumadas, com ajuda por exemplo da reforma da Previdência, da queda dos juros e da contenção do salário dos servidores. “Não tem jeito de fazer um impeachment se a gente tiver com as contas arrumadas, tudo em dia. Acabou! Não tem jeito”.

As exportações iriam bem, mas é preciso ser cuidadoso com a China. “A China é aquele cara que você sabe que tem que aguentar, porque, ‘procês’ terem uma ideia, para cada um dólar que o Brasil exporta ‘pros’ Estados Unidos, exporta três pra China”, disse o ministro.

O ministro Tarcísio de Freitas (Infraestrutura) diz que os investimentos privados virão, mas as obras apenas começariam em 2023 e 2024. De imediato, seria necessário algum dinheiro extra para seu ministério, que teria capacidade operacional de investir no máximo R$ 14 bilhões por ano. Logo, com orçamento atual de R$ 8 bilhões, precisaria apenas de um complemento de até R$ 4 bilhões em obras que poderiam ter efeito imediato para “gerar emprego”. Ao encerrar sua participação, Freitas diz: “Tivemos aí dois caras aí na história recente que pegaram terra arrasada e entraram pra História. Um foi o Roosevelt, o outro foi o Churchill. O terceiro vai ser o Bolsonaro”.

Roberto Campos, presidente do Banco Central, disse que resumiria sua intervenção a notar “três pontos importantes”: 1) O setor privado no mundo inteiro estaria com medo de “tomar risco”: “não vai ter como ter uma saída rápida sem que o governo não entre, de alguma forma, tomando risco”; 2) Análise de despesas extras do governo pelo critério de maior efeito na preservação de emprego e boas empresas; 3) Boa governança de projetos de infraestrutura, colocando “agentes internacionais que fazem governança mundial”.


Julianna Sofia: Weintraub xinga STF, coleciona inimigos e entra em fritura

Ofensas não facilitam a vida de Jair Bolsonaro

No vídeo da reunião ministerial de 22 de abril, o ministro Abraham Weintraub (Educação) exibe minutos lamentáveis de uma verve polemista, boçal e fascistoide. Ataca as instituições democráticas consolidadas em Brasília, afirmando que "botava esses vagabundos todos na cadeia, começando no STF". Nesta sexta-feira (22), com a gravação divulgada, deve ter ido dormir preocupado em ser esse seu próprio destino.

O ataque de Weintraub entrou para a coleção de pavonices sob as quais se esconde, furtando-se de exercer a função de zelar pela educação do país. Para essa tarefa, já demonstrou não ter preparo nem competência.

As ofensas não facilitam a vida de Jair Bolsonaro, que é alvo de acusações de interferência na Polícia Federal, tema sob investigação no Supremo Tribunal Federal. A auxiliares o presidente demonstrou irritação com as críticas do ministro ao Judiciário. A isso soma-se outro elemento: a resistência de Weintraub em adiar a data de realização do Enem trouxe mais desgaste ao Palácio do Planalto, que sofreu uma derrota no Senado e estava prestes a assistir a uma outra na Câmara, quando o ministro cedeu e anunciou a postergação do exame.

A fritura de Weintraub é insuflada pelo núcleo militar do governo, que não nutre simpatia por ele. Tampouco goza do apoio de alas técnicas, como a equipe econômica. Mas é a artilharia certeira do centrão que pode pôr em risco, de fato, sua permanência no posto.

Weintraub tentou barrar a investida por cargos por parte do bloco de agremiações que agora se alia ao governo na política do toma lá, dá cá. A postura contrariou determinação de Bolsonaro de garantir espaço na Esplanada a partidos para evitar um impeachment.

Se for demitido por pressão do fisiológico centrão, cairá por ato acertado —fato raro em sua passagem no ministério. Em nada consequência de sua inépcia, arrogância, xenofobia, do radicalismo obscurantista e da prática contínua de sabotar a educação e o conhecimento.


Igor Gielow: Vídeo explicita face agressiva e paranoica do governo Bolsonaro

Peça única, registro tem de menosprezo ao centrão até sugestão de insurreição armada

É atribuído ao pai da unificação alemã, Otto von Bismarck (1815-1898), o alerta acerca de leis e salsichas: para apreciá-las, é melhor não saber como são feitas.

Jair Bolsonaro e sua equipe ministerial deram um "upgrade" ao conceito, a julgar pelo vídeo da reunião entre eles no dia 22 de abril.

Pois se o objeto do acesso da Justiça à peça, o inquérito sobre a acusação do ex-ministro Sergio Moro (Justiça) de que o presidente quis interferir na Polícia Federal, ganha densidade com as falas reveladas, o panorama que a gravação apresenta é único na história republicana.

O governo paranoico e em ritmo de guerra que se mostra na gravação crua vai desagradar apoiadores, detratores e os neoaliados arregimentados à base de cargos para evitar a progressão de um processo de impeachment na Câmara contra o presidente.

Claro, os palavrões abundantes, a linguagem chula e desencontrada de Bolsonaro e de alguns ministros podem agradar a parcelas mais fiéis do eleitorado do presidente. É coisa de macho, diriam, coerentes ao ideário da turma.

A mães e pais de família Brasil afora, talvez seja um pouco demais. Não é nada que qualquer repórter de política não tenha ouvido com alguma experiência de campo, mas, evocando Bismarck, ver a produção da salsicha pode ser desagradável.

Para começar por Moro, o vídeo confirma o que as transcrições anteriores insinuavam: sim, Bolsonaro queria interferir em órgãos de inteligência e citou a PF, "e ponto final". Haverá discussão acerca da referência à mexida no Rio, mas os atos posteriores à saída de Moro basicamente comprovam a intenção do presidente.

O mandatário máximo surge como uma figura acuada. Fala ora que está tudo bem, ora que o governo ruma a um iceberg. "Se for para cair, que não seja por babaquice", reclama, citando o caso de seus exames ditos negativos de Covid-19.

De forma preocupante, mantém o morde e assopra no sensível tema da intervenção militar. Diz que é contra, mas lembra com insistência do artigo 142 da Constituição, que permite a Poderes convocarem os fardados a retomar a ordem pública. Para Bolsonaro, "todo mundo quer o 142".

A isso se soma a lembrança de 1964, cujo golpe livrou o país "dessa cambada" que faria a todos "plantar cana". Até aí, zero novidade sobre a cabeça presidencial, mas muito a dizer sobre o eloquente silêncio do vice Hamilton Mourão a seu lado.

Mais grave, contudo, é a parte da conversa em que Bolsonaro faz basicamente a defesa da insurreição armada no país contra governadores e prefeitos que impõem a quarentena devido à Covid-19, uma obsessão do presidente.

"Quero que todo mundo se arme contra a ditadura", diz, seguindo a leitura do porte de armas enraizado na fundação dos EUA, seu país-modelo.

Para isso, ele reforça a derrubada das portarias do Exército para controle de armas e munições, objeto de apuração do Ministério Público Federal. Bolsonaro acaba de adicionar mais uma suspeita de crime de responsabilidade à sua coleção na pandemia.

Chama a atenção o silêncio dos ministros militares e de Moro. O monopólio da força, numa democracia, é dos fardados; fora disso é chavismo, para ficar numa comparação continental.

O trato aos governadores, ríspido e já conhecido, ganha cor com o vídeo. Ainda mais um dia depois de o presidente tratar a todos de forma cordata em reunião feita para gerar um ar de normalidade democrática no país.

O ex-superministro em atividade Paulo Guedes (Economia), por sua vez, colabora para a certeza de quão volátil será a lealdade do centrão, recém-cooptado com cargos para buscar um seguro contra o impeachment.

Num dado momento, ele diz: "Nós podemos conversar com todo mundo aqui, porque é o establishment, é porque nós precisamos dele pra aprovar coisas, mas nós sabemos que nós somos diferentes. Nós temos noção que nós somos diferentes deles", diz.

De forma utilitarista, completa: "E quando eles cruzam a linha a gente solta a mão e sai andando sozinho. Enquanto eles tiverem no trilho, conosco, no caminho de fazendo as reformas que nós prometemos, nós tamo junto. Na hora que o cara soltou a mão e passou pro lado de lá, a gente deixa o cara ir sozinho e a gente continua sozinho".

À Folha, um líder de partido em negociação por vagas no governo sublinhou justamente esse ponto a comentar o vídeo. Nada que não soubesse, mas aí vale a citação aos embutidos e à legislação.

Guedes ainda sugere a venda do Banco do Brasil ("Essa p…") e protagoniza a sugestão de transformar o Rio de Janeiro em polo de cassinos, com direito a insinuação sobre exploração sexual, respondendo à ministra Damares Alves (Mulheres).

"Deixa cada um se f… do jeito que quiser. Principalmente se o cara é maior, vacinado e bilionário. Deixa o cara se f…, pô!”, afirmou, garantindo que lá não entraria "nenhum brasileirinho desprotegido, entendeu?".

Para a ciência política, há muito a ser mastigado sobre o bolsonarismo na peça. O presidente se apresenta o tempo todo como um perseguido pela imprensa, sobrando impropérios aos "pulhas", como chama os jornalistas a quem seus ministros não deveriam atender.

Bolsonaro lembra que "querem a nossa hemorroida", e distribui palavrões aos desafetos João Doria (PSDB-SP) e Wilson Witzel (PSC-RJ), governadores contrários à política oficial de menosprezo à Covid-19, assim como ao prefeito de Manaus, Arthur Virgílio (PSDB).

O motivo da teima em evitar a divulgação de todo o vídeo fica clara quando falam os ministros egressos do bolsonarismo-raiz. O sempre exuberante Abraham Weintraub se sobressai, com sua vontade de botar "esses vagabundos na cadeia, começando pelo STF".

É o "éthos" bolsonarista em estado puro. Weintraub se apresenta como o militante zero, que não se contamina pela política, que se queixa do "cancro de Brasília" e de ter de conversar "com quem a gente tinha de lutar".

O fato de que ele teve de ceder ao centrão fatias expressivas de sua pasta poucas semanas depois do vídeo apenas adiciona vazio ao espetáculo.

Continua Weintraub com imprecações contra os termos "povos indígenas" e "povo cigano", também lembrado por Damares Alves (Mulheres, Cidadania e Direitos Humanos), que por sua vez sugeriu prender prefeitos e governadores por medidas restritivas contra a Covid-19.

Saindo da retórica e indo à prática vem outro ideológico, Ricardo Salles (Meio Ambiente), que também esbarra na improbidade administrativa ao sugerir que é preciso "aproveitar a Covid" para dar uma "baciada de simplificação" de regras em sua área. Ele diz ser possível "passar a boiada".

A doença que hoje colocou o Brasil no centro da pandemia só é tratada com seriedade pelo então recém-chegado Nelson Teich, defenestrado semana passada da Saúde. Ele ressalta que só é possível focar a economia após o coronavírus ser controlado. "É fundamental."

Ele o faz só para ser interrompido por Bolsonaro, se queixando de que o chefe da Polícia Rodoviária Federal havia lamentado a morte de um integrante da força por Covid-19, quando ele tinha várias comorbidades —palavra que o presidente não consegue falar de primeira.

Outro que assume a voz do mestre é Pedro Guimarães, presidente da Caixa Econômica Federal, que, depois de chiar sobre a "ladroagem do PT, PMDB e PSDB" no órgão, reclama da ideia de deixar funcionários em casa para protegê-los do vírus.

Para ele, trata-se de "frescurada de home office".

A determinação de Celso de Mello ao liberar a peça, de apenas tarjar as claras referências ao temor de que a China esteja espionando os ministérios e críticas pontuais aos asiáticos, mostra algo que já se aferia em Brasília: o decano do Supremo não quer se aposentar sem um último grande ato.

Mais: a liberação veio no dia em que o general Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional) achou por bem ameaçar as instituições com uma nota em que protestava contra um ato protocolar de Mello, enviar para a Procuradoria-Geral da República um pedido para a apreensão do celular de Bolsonaro.

A PGR iria descartar tal ideia mesmo que não fosse tão alinhada a Bolsonaro. Mas o recado de Heleno, emulando de forma menor a famosa advertência do então comandante do Exército ao Supremo em 2018, para que não concedesse habeas corpus a Luiz Inácio Lula da Silva, caiu muito mal na corte.

Não só nela. Na quarta (20), Heleno havia negado a hipótese de intervenção militar em uma "live" divulgada pela Folha, agradando a oficiais-generais da ativa. A imagem se desfez em dois dias.

O vídeo traz elementos novos, para todos os gostos, à crise política. Mas é como retrato de uma época que ganha o ar de documento histórico.


Demétrio Magnoli: Pátria de Bolsonaro não é Brasil, EUA ou Israel, mas sua própria família

Nação de Bolsonaro não é Brasil, EUA ou Israel, mas sua própria família

Política é um jogo de signos. O PT oscila, taticamente, entre o verde e amarelo e o vermelho. O bolsonaro-olavismo insiste nas cores nacionais, mas empunha três bandeiras simultâneas, desfraldando também as dos EUA e de Israel. Nesse passo, revela um nacionalismo equívoco, uma aversão essencial ao Brasil e a alma de um partido sem pátria.

O cálculo de marketing norteia o PT. Verde e amarelo funciona para ofensivas destinadas a vencer eleições ou conservar a popularidade de seus governantes. Já o vermelho funciona para as conjunturas de recuo, quando se trata de reunificar sua base militante, evitando dissensões.

A postura ofensiva tem raiz autoritária, pois identifica a parte (o partido) ao todo (a nação). A defensiva, ainda que acompanhada ritualmente por discursos sectários, é democrática: "Nós, vermelhos, somos uma corrente política, entre as várias disponíveis no mercado de ideias".

O impulso autoritário, representado pela invariável apropriação partidária das cores brasileiras, norteia o bolsonaro-olavismo. Mas a presença dos pendões estrangeiros, que provoca tanta curiosidade, indica algo mais: a pátria amada não é a realmente existente. Para esses patriotas de araque, o Brasil não serve: deve ser substituído não por uma, mas por duas pátrias imaginárias.

A primeira tem contornos seculares: EUA. O Brasil precisa tornar-se uma outra coisa, que não existe de fato, mas pertence à mitologia identitária. No universo delirante do cortejo presidencial, o modelo é uma nação de colonos armados organizada como Estado-milícia. Na base dessa ideia-força encontram-se o elogio do individualismo extremado, o desprezo às políticas sociais, a aversão à diferença, a nostalgia de uma "idade de ouro" puramente ficcional. Donald Trump, o líder adorado, sintetiza a pátria terrena imaginária.

A segunda tem contornos sagrados: Israel. Seitas neopentecostais oriundas dos EUA adotaram o "sionismo cristão", doutrina escatológica apoiada na profecia de que a reunião de todos os judeus em Israel é condição para o segundo retorno de Jesus.

No Brasil, os chefes dessas igrejas messiânicas tornaram-se aliados vitais de Bolsonaro, oferecendo-lhe acesso privilegiado a seus estoques de fiéis. Binyamin Netanyahu, um líder sionista secular, aproveita-se da crença apocalíptica que não compartilha para obter respaldo à sua política de anexação dos territórios palestinos ocupados.

A natureza do bolsonaro-olavismo impede que se articule como partido nacional. De um lado, porque recusa a condição de parte, de corrente singular, almejando obsessivamente representar a totalidade da nação: não é casual que o esboço inconcluso de entidade partidária bolsonarista, a Aliança pelo Brasil, carregue na sua certidão de batismo o nome da pátria. De outro, porque rejeita a política nacional, alistando-se em dois movimentos estrangeiros: a "Internacional dos nacionalistas", de Trump e Bannon, e a "Internacional cristã-sionista", do neopentecostalismo.

O caleidoscópio de cores e bandeiras que cerca Bolsonaro é um fruto dos detritos filosóficos espalhados por Olavo de Carvalho. O grau de influência do Bruxo da Virgínia sobre o círculo presidencial não deve ser desprezado, pois é função direta da ignorância desses acólitos. Mas o personagem central da tragédia é Bolsonaro, que não compreende os significados da paisagem simbólica erguida ao seu redor. Ao contrário do mestre místico, ele tem uma única pátria, que não é o Brasil, nem os EUA ou Israel.

A pátria de Bolsonaro é a família. Não a família brasileira ou a família tradicional, essas fabricações de reacionários de churrasco, mas a sua própria família, com o entorno de relações suspeitas e conexões obscuras que um dia virão à luz. O brasão dos Bolsonaro --eis o estandarte oculto no carnaval das manifestações domingueiras.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Hélio Schwartsman: A ciência da cloroquina

Insistir no uso do medicamento deixou de ser racional para se converter em opção ideológica

Idealmente, a ciência informa as decisões dos políticos e não é influenciada por eles. Gestores só adotariam medidas que já tivessem sido testadas em pesquisas e jamais interfeririam no trabalho de cientistas.

No mundo real as coisas são mais confusas. Não é que governantes nunca ouçam especialistas, mas frequentemente preferem fazer aquilo que acreditam que aumentará sua popularidade ou apenas seguem seus caprichos. A política também afeta a ciência por vários canais, dos mais concretos, como a disponibilidade de verbas, aos mais sutis, como a ideologia.

Como essas considerações se aplicam à cloroquina? Em março, quando o presidente Bolsonaro se tornou um entusiasta do medicamento no combate à Covid-19, sua posição não era absurda. Havia uma hipótese teórica para explicar sua possível ação e alguns poucos trabalhos (de má qualidade, é verdade) a sugerir eficácia.

A partir daí, a ciência fez o que tinha de fazer. Deu início a vários programas de teste, cujos resultados estão saindo. Sem surpresa, vai se constatando que a droga não funciona contra a nova moléstia. Um purista poderia argumentar que ainda falta uma boa metanálise para derrubar a última esperança na cloroquina, mas já há elementos de sobra para recomendar que ela não seja distribuída a grandes populações. Os riscos dos efeitos colaterais superam os cada vez mais improváveis benefícios.

Insistir no uso da cloroquina deixou de ser uma posição racional para converter-se numa opção ideológica. Que pessoas façam isso é da vida. Mas, quando governos tentam determinar o que a ciência diz, as consequências podem ser catastróficas. Há quem atribua o fracasso econômico da URSS em parte à figura de Trofim Lysenko, o manda-chuva da área biológica que, por razões ideológicas, militava contra a genética mendeliana. Ela seria antissocialista. Sem genética, a agricultura soviética ficou para trás.


Reinaldo Azevedo: Megapedido de impeachment é útil, educa e civiliza. Mas sem pressa

Nada obriga Rodrigo Maia a decidir em um prazo determinado

Um, por assim dizer, megapedido de impeachment do presidente Jair Bolsonaro acaba de chegar à Câmara. É subscrito por 154 cidadãos, incluindo parlamentares e dirigentes de PT, PC do B, PSOL e PSTU, e cerca de 400 entidades da sociedade civil. É o 36º a cair na mesa do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). É mais do que justo e merecido. Convém, no entanto, apelando à poesia em tempos de pandemia, não perder a vida por delicadeza.

Vamos lá. Por mais que o lírico da tubaína com cloroquina dê, a cada dia, motivos novos para a institucionalidade se assombrar, é preciso pensar nas consequências, que vêm sempre depois (by Marco Maciel), caso a Câmara rejeite a autorização para enviar a denúncia ao Senado, que é a Casa que abre o processo. Quem quer Bolsonaro fora precisa de 342 deputados; quem não quer, de 172 apenas.

Não basta a maioria. É preciso ter uma maioria eficaz, o que não é fácil de conquistar. Não é necessário ser muito bidu para estimar que inexiste hoje esse número, especialmente quando o presidente decidiu ir às compras. O “fundão do centrão”, como já chamei nesta coluna, está à disposição —e não exatamente em liquidação. A cada dia, Bolsonaro torna mais caro o apoio da escória.

Não estou, obviamente, me opondo a que se apresente a denúncia. A questão relevante é o que fazer com ela. Já chego ao ponto depois de algumas considerações.

Vale a pena ler a petição. Tem um caráter didático. O número de agressões à ordem legal é assombroso. Alguns dos atos do presidente lá relacionados também são exemplos flagrantes de crimes tipificados pelo Código Penal, pela Lei de Segurança Nacional (7.170) e pela Lei das Organizações Criminosas (12.850).

Isso significa dizer, a propósito, que já dá para afirmar que Augusto Aras, procurador-geral da República, entrará para a história como exemplo de omissão. O parecer do doutor sobre a divulgação ou não da íntegra da reunião ministerial tarja-preta do dia 22 de abril sai da pena de quem parece engajado num esforço que não tem a Constituição como horizonte último.

Há em seu texto uma nefasta linguagem de quem tem uma agenda política. E o doutor nem toma cuidado com a lógica elementar. Se a publicação da íntegra da reunião se presta à exploração eleitoral, por que seria diferente com a não publicação? No comando do Ministério Público, Aras escolheu um lado, é isso? O rebaixamento intelectual a que estamos submetidos não é o menor dos nossos males.

Sim, é preciso apresentar à mancheia denúncias por crimes de responsabilidade contra Bolsonaro. Mas não vejo nem constitucionalidade nem inteligência em tentar forçar Rodrigo Maia a decidir se arquiva no lixo os pedidos ou os põe em tramitação. Nada obriga o presidente da Câmara a decidir num prazo determinado. Se o STF lhe impusesse tal decisão, tratar-se-ia de óbvia ingerência do Judiciário no Legislativo.

Se obrigado, tanto o arquivamento como a tramitação, neste momento, contribuiriam para fortalecer o combalido Jair Bolsonaro. Se Maia arquiva, isso sugeriria que está num campo ideológico que não é o seu —e seria pouco inteligente relegá-lo a tal nicho. Se põe um pedido para tramitar e não se conseguem os 342 votos necessários, o que se tem é o enfraquecimento do presidente da Câmara em benefício de um Bolsonaro que, por óbvio, não reúne qualidades intelectuais e morais para governar o país.

Ocorre que a ausência desses dois atributos não é sinônimo de falta de condições políticas. Sei que o isolamento deixa a todos aflitos, mas convém que se leia com cuidado o noticiário, que se consultem os especialistas em economia, que nos voltemos todos a algumas lições básicas de política. A crise está apenas no começo. Não se depõe um presidente a partir de sacadas e janelas. Por mais indignados que estejamos. Por mais líricos que sejamos.

Nunca ninguém cometeu, na Presidência, tantos crimes comuns e de responsabilidade em tão pouco tempo como Bolsonaro. O pedido coletivo como estratégia e esforço de mobilização ajuda a iluminar o momento. Se for um instrumento para pressionar Maia, é só um tiro no pé.


Bruno Boghossian: Bolsonaro mira economia, mas não sabe como conter pobreza e desemprego

Visão mesquinha sobre pagamento do auxílio emergencial está entranhada no governo

Quando era deputado, Jair Bolsonaro defendia o fim do Bolsa Família. Em 2011, ele foi à tribuna da Câmara para dizer que o benefício tornava "pobres coitados, ignorantes" em "eleitores de cabresto do PT".

"O Bolsa Família nada mais é do que um projeto para tirar dinheiro de quem produz e dá-lo a quem se acomoda", acrescentou o parlamentar.

Depois que assumiu o poder, ele tentou omitir os antigos discursos. Lançou o pagamento de uma 13ª parcela do programa e disse que aquela era uma conquista de pessoas que "ficaram esquecidas por muito tempo". A visão mesquinha do deputado polemista do baixo clero, no entanto, continua entranhada no governo.

O ministro da Economia mal consegue disfarçar. Numa conversa com empresários, Paulo Guedes disse que poderia estender o pagamento do auxílio emergencial do coronavírus por apenas um ou dois meses, além das três parcelas já previstas. Sem esse limite, "aí ninguém trabalha".

"Ninguém sai de casa e o isolamento vai ser de oito anos, porque a vida está boa, está tudo tranquilo", declarou, na terça-feira (19).

É natural que um ultraliberal convicto como Guedes seja contra a prorrogação de um benefício que custa bilhões aos cofres públicos. Já a percepção de que os mais pobres teriam vida fácil com R$ 600 por mês durante uma pandemia não faz parte de nenhuma doutrina econômica.

As declarações do ministro mostram que o governo não tem ideia de como contornar a devastação de empregos e renda causada pela crise —que deve se estender além dos poucos meses extras que Guedes quer conceder. A busca por soluções para a retomada econômica, na verdade, tende a criar novas divergências entre o ministro e o presidente.

Para fustigar seus adversários políticos, Bolsonaro apostou tudo na economia desde o início da crise do coronavírus. Tentou transferir a governadores e prefeitos a culpa pela recessão, mas pesquisas recentes mostram que cada vez mais brasileiros veem sua marca nessa área. A vida boa do presidente não deve durar.