Day: junho 11, 2021

RPD || Paulo Gontijo: A estrada não percorrida e o chamado da tribo

É impossível analisar a dinâmica política brasileira sem dedicar algum espaço de reflexão para a comunicação por meios digitais. E por uma questão de clareza, vale dizer que excluiremos aqui qualquer meio que surgiu analógico e se digitalizou, como a TV ou o rádio; mas sim os meios descentralizados, cooperativos e principalmente pouco verificáveis como os aplicativos de troca e distribuição de mensagens.

Em primeiro lugar, há que se olhar para a estrutura da produção e disseminação de conteúdo. A relação verticalizada de emissor e receptor, até pouco tempo preponderante, é substituída por uma dinâmica horizontal de recepção, ajuste e redistribuição de conteúdo. Exemplificando: um mesmo vídeo, repassado por diferentes grupos será acrescido de comentários ou recontextualizado, dependendo de cada indivíduo disseminador. Essa dinâmica provoca fenômenos curiosos como a abstração da autoria, a busca pela atenção imediata e a predominância dos conteúdos que confirmam a opinião do emissor. De forma bastante simplificada, a origem do conteúdo e a qualidade da sua elaboração importam exponencialmente menos que a capacidade de reter a atenção de indivíduos e corroborar a narrativa que mais se adequa às minhas próprias crenças.

É necessário que nos aprofundemos um pouco aqui no “viés de confirmação” e seu papel na disseminação de informação nas redes. Já é bastante pacífico na literatura científica que informações que confirmam as crenças de um indivíduo geram uma descarga de dopamina no cérebro. Um fenômeno similar acontece quando executamos tarefas ou entregamos um trabalho. É um fenômeno também que remete à nossa socialização ancestral, uma vez que atrelamos prazer à identificação intelectual com outra pessoa. Tal mecanismo deve ter sido fundamental na construção de tribos e sociedades primitivas como forma de vínculo.

Na sociedade pós-moderna, pode ser a semente do conflito. Isso se deve, claro, ao contexto. Em um período de grandes apelos políticos identitários e de polarização cada vez mais entranhada, as tribos se organizam, reforçam-se e se defendem. Em um mundo onde a política é feita de narrativas em vez de espadas, e de produtores de conteúdo em vez de soldados, a coesão e a animação da tribo vêm da informação. Muita informação. Em quantidade e frequência quase viciante, afinal estímulos prazerosos geram dependência. O fenômeno do “tiozão do zap” é a concretização dessa nova guerra de trincheira. Só que a trincheira não está mais em Amiens ou Ypres, mas no seu bolso, no seu celular, na sua família. Em épocas pandêmicas, aliás, a convivência da família muitas vezes se resume a um grupo de troca de mensagens.

Entender essa dinâmica nos permite olhar para a representação política e a disputa de poder com outros olhos. Essa tribalização digital leva também a outro fenômeno curioso: a morte do protocolo, da hierarquia do método. Em um mundo de disputas tribais, não pode haver alternância de poder, os embates precisam ser resolvidos pela dualidade subjugar ou submeter-se. E é nesse campo que acontece a disputa de narrativas hoje: a construção de um inimigo, a narrativa unificadora da tribo, os estímulos que mobilizam e o enfrentamento. Essa mistura poderosa é anabolizada com doses constantes e cavalares de energético: a dopamina.

Por fim, em um mundo no qual a minha representação se mistura com a minha identificação ancestral, os intermediários são desnecessários: instituições, separações impessoais de poder, regras que distanciam e freiam os anseios do povo são apenas obstáculos ao pleno exercício do tribalismo. Hábitos de uma elite decadente, corrupta e desconectada da realidade. Uma casta de privilegiados que não permite o pleno exercício da liderança do nosso clã pela única autoridade que nos representa. Esse “Chamado da Tribo”, nas palavras de Vargas Llosa, porém não é um caminho raro a ser trilhado na nossa história recente:

“O “espírito tribal”, fonte do nacionalismo, foi o causador, junto com o fanatismo religioso, das maiores matanças na história da humanidade. Nos países civilizados, como a Grã-Bretanha, o chamado da tribo se manifestava principalmente nos grandes espetáculos, jogos de futebol ou concertos ao ar livre dos Beatles e dos Rolling Stones, nos anos 1960, nos quais o indivíduo desaparecia engolido pela massa, uma escapatória momentânea, saudável e catártica das servidões diárias do cidadão.”

Apesar dos meios diferentes, trilhamos hoje um rumo conhecido: fechamento, radicalização, tribalismo e diminuição das instituições. O canto da sereia que nos move tampouco é novidade. A esperança está na coragem de reverter esse caminho rumo à uma grande sociedade aberta. Como disse o poeta Robert Frost:

“…Duas estradas bifurcavam numa árvore. Eu trilhei a menos percorrida, e isto fez toda a diferença.”


Paulo Gontijo é Diretor de Inovação da Invest.Rio; graduado em Letras pela PUC-Rio, é também especialista em Relações Internacionais pela Universidade Cândido Mendes e em Liderança e Competitividade Global pela universidade americana de Georgetown (Washington, D.C.), entre 2018 e 2021 foi diretor-executivo do movimento liberal Livres.

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de junho (32ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

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RPD || Rafael Cortez: Crise política, instituições orçamentárias e desenvolvimento

O descontrole orçamentário e a qualidade das finanças públicas estão associados a um quadro de baixo crescimento e longos períodos de inflação elevada. Economias com alto endividamento têm taxa de juros mais elevadas e menores taxas de investimento.

A conjuntura brasileira mais recente traz exemplos abundantes dessa discussão. O país enfrentou o debate sobre a “pec emergencial”, o atraso na construção da Lei Orçamentária de 2021 e a existência de um “orçamento paralelo”, voltado para a execução de emendas definidas por um conjunto de parlamentares.

Todo esse imbróglio alimentou, ainda mais, o debate constitucional sobre instituições fiscais e orçamentárias. Minha leitura é que existe relação entre mudanças nas relações Executivo-Legislativo e a natureza do debate orçamentário. Essa paralisia decisória em torno da alocação dos gastos públicos tem gerado texto constitucional cada vez mais complexo, dificultando, ainda mais, a construção de uma ordem virtuosa para o desenvolvimento econômico de longo prazo. A radicalização política pouco contribui para que as prioridades orçamentárias sejam estabelecidas no sentido de redução das desigualdades e do aumento do crescimento potencial da economia.

A análise das contas públicas, ao longo dos últimos anos, esteve associada à redução das taxas de crescimento econômico e ao quadro de crise política no país, que resultou em um processo de impeachment presidencial.
A relação da dívida bruta/PIB saiu de um patamar de 5,3% em 2011 para 75,8% em 2019, explicando a crise de confiança na economia brasileira , nos anos mais recentes. Esse endividamento é o retrato da incapacidade de o país produzir resultados superávits primário, o que significa basicamente que o Brasil gasta mais do que arrecada. Um simples olhar para as mudanças constitucionais mais recentes mostra o conflito em torno das regras orçamentárias com duas preocupações principais: (1) estabelecer controle para os gastos públicos e (2) aumentar a participação dos legisladores na alocação orçamentária.

Grosso modo, o enredo dos dilemas orçamentários ganha as seguintes linhas. A emenda do teto de gastos tornou o debate orçamentário um jogo de soma zero, ao estabelecer um limite por regra constitucional da correção dos gastos públicos. Esses gastos, contudo, têm status políticos distintos; uma parte das despesas é determinada pelo texto constitucional; uma parte minoritária fica sujeita à decisão discricionária dos tomadores de decisão. A dinâmica das despesas obrigatórias deixa cada vez menos espaço para os gastos discricionários, que incluem, por exemplo, despesas com investimento, rubrica fundamental para o aumento do produto potencial brasileiro.

A combinação entre regras complexas, cada vez mais rígidas, para evitar nova crise fiscal e a falta de apoio político a uma gestão fiscal mais austera desaguam em iniciativas para driblar essas amarras, sejam aquelas voltadas aos gastos em período de crise, tal como as despesas exigidas pela pandemia, ou por mecanismos pouco transparentes de alocação das emendas parlamentares.

Essa maior demanda por participação nas decisões alocativas ocorreu por conta de um enfraquecimento político da Presidência da República, como resultado da radicalização e da falta de um sistema partidário mais estruturado. O orçamento imperativo avançou como resultado da perda do papel de coordenação do chefe do Executivo. Dito de outro modo: a agenda econômica demanda tratamento mais eficiente dos gastos públicos e a política polarizada aponta para um movimento de enrijecimento das regras e pouco espaço para negociações.

Esses subterfúgios dificultam o acompanhamento da eficiência do gasto público, limitando a qualidade da política pública. A agenda de desenvolvimento nos países mais avançados é de construção de uma rede de organizações para permitir o desenho dos programas de governo com bases em evidências.

Esse quadro é desafiador diante da desigualdade de acesso dos grupos sociais ao debate parlamentar. Minorias com capacidade de organização têm mais influência nos tomadores de decisão. Não por acaso, políticas setoriais têm espaço mais privilegiado do que políticas mais universais com impacto mais positivo para o desenvolvimento socioeconômico.

Esse poder das “minorias organizadas” é contrário ao espírito que Tocqueville, talvez de forma pioneira, identificou na história das sociedades, isto é, a busca por igualdade como motor da história e base para o desenvolvimento das democracias.


Saiba mais sobre o autor

Rafael Cortez é doutor em Ciência Política pela USP. Professor do IDP, é especialista em instituições brasileiras, política comparada e economia política. Na Tendências Consultoria Integrada, responde pela área de Macroeconomia e Análise Setorial.

*Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de junho (32ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

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RPD || Salem Nasser: Algo mudou na Palestina

O Oriente Médio, como espaço geográfico e conjunto temático, é um lugar de grande complexidade, difícil leitura e mudanças constantes. Há ali, no entanto, uma permanência, um problema em torno do qual todos os demais tendem a orbitar. Essa permanência é a Questão Palestina.

Não digo o conflito árabe-israelense e nem digo palestino-israelense. Digo “questão” e “palestina”, porque o problema central é o destino do povo palestino e de sua terra, um destino que se anunciava como tragédia, uma tragédia final, definitiva, que se seguiria àquelas do passado e do presente, já consumadas.

Depois da partição do território, decidida por uma “comunidade internacional” ainda inspirada por um espírito colonial; depois da instalação do Estado de Israel, depois da expulsão e da limpeza étnica; depois das derrotas militares e de mais expulsão; depois da frustrada aposta nas negociações e em seus mediadores, havia chegado o momento do golpe fatal: os Estados Unidos, sob Trump, rasgavam todos os véus de hipocrisia e davam tudo aos israelenses e nada aos palestinos. Isso era o “Acordo do Século” – ou, em tradução possível e talvez mais apropriada, o “Negócio do Século”.

Além de Jerusalém, do Golã – ainda que aqui quem saía perdendo era a Síria –, e de carta branca generalizada, Trump prometia também e começava a entregar a Israel a normalização de relações com alguns países árabes que não podiam dizer não aos Estados Unidos.

Enquanto isso, por conta inclusive de uma tragédia parcialmente auto-infligida , aquela da divisão interna, os palestinos pareciam paralisados e incapazes de oferecer respostas. O mais recente episódio que ilustrava essa divisão foi aquele das eleições gerais, tornadas impossíveis por Israel, que não admitia que ocorressem em Jerusalém, e que acabaram canceladas, para o alívio da Autoridade Palestina, que se via arriscando a exclusão do poder.

E eis que, de repente, nos primeiros dias de maio de 2021, os eventos se atropelam e anunciam um cenário totalmente novo. Primeiro, um fato quase banal, apesar de constituir um passo no caminho da limpeza étnica de Jerusalém: a tentativa de implementar a decisão de expulsão de algumas famílias palestinas de suas casas, seguida de protestos que continuam acontecendo. Em seguida, numa noite importante do mês de Ramadã, a tentativa de proibir os palestinos de chegarem à Mesquita de Al’Aqsa para rezar, seguida de protestos e violência dos ocupantes. As duas coisas talvez estivessem tocadas por uma vontade de Netanyahu de usar a confusão para adiantar sua agenda política.

Foi nesse momento que o chefe militar do Hamas lançou um ultimato: se a violência e, mais importante, os atentados contra a presença palestina em Jerusalém continuassem, a resistência – porque é importante lembrar que quem faz essa resistência são muitos grupos, ainda que o Hamas seja o grupo mais relevante – se mobilizaria e atacaria a cidade com seus foguetes. Como a violência não cessou, a promessa foi cumprida.

Havia coisas novas ali. A primeira delas era que a distância usual entre a bravata de lideranças árabes, inclusive palestinas, e o recurso a ação. A ameaça foi cumprida em seus termos mais precisos e, a partir daí, quando o confronto escalou, a resistência fazia questão de anunciar horários de seus ataques, alvos, número de foguetes. E tudo foi cumprido. Essa primeira novidade era prova de determinação, de credibilidade e, mais importante, de que Israel não poderia evitar que as ameaças fossem levadas a cabo.

A outra novidade que surgiu ao longo dos 12 dias de violência foi que os palestinos se levantaram em todos os lugares em revolta, na Cisjordânia ocupada e também em Israel, o que reafirmou a unidade da identidade palestina e de sua causa.

Também de modo inusual, em vários lugares, pelo mundo inteiro, inclusive no Ocidente, multidões foram às ruas protestar contra a opressão israelense. E agora já não parecia mais haver o medo de chamar as coisas pelos seus nomes: ocupação, apartheid, limpeza étnica, crimes de guerra. Até mesmo o que se pode chamar de mídia tradicional, normalmente alinhada com Israel, permitiu-se a pontual crítica.

A evolução talvez mais importante, no entanto, está no fato de que a faixa de Gaza agiu em defesa de Jerusalém, e não de Gaza ela mesma. A destruição que Gaza sofreu, as crianças que perdeu, as casas, os prédios, foram o sacrifício que a máquina de guerra israelense cobrou e foi pago em defesa de Jerusalém. Ao mesmo tempo que pagava esse preço, a resistência palestina mostrou um grande progresso, no seu treinamento, na sua logística, na sua definição de estratégias, na sua movimentação tática, nas suas armas e no alcance e precisão de seus foguetes.

Essas melhorias, em uma pequena faixa de terra bloqueada por todos os lados, são algo especialmente assustador para Israel. Considerando que elas decorrem em grande medida de mecanismos de cooperação, inclusive durante esse último confronto, com o Irã, com o Hezbollah libanês e com outros elementos do que se chama de Eixo da Resistência, o susto é maior ainda.

Se Israel não foi capaz de vencer esta batalha, o que será da batalha que virá, contra o Hezbollah, contra o Irã ou contra estes dois e mais alguns? É o que se perguntam os israelenses. Enquanto isso, deveriam também se perguntar se ainda não é tempo de reconhecer aos Palestinos o mínimo de direitos.


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Salem Nasser é professor de Direito Internacional na FGV Direito-SP

**Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de junho (32ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

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RPD || Eurico de Lima Figueiredo: O Presidente e o “seu” General

Uma das questões mais importantes na construção das democracias é a subordinação do Estado à vontade dos cidadãos que o mantém e sustenta. Uma das condições para que isso seja alcançado é a estabilidade, a eficiência e a manutenção de um corpo de funcionários, civis e militares, que sirvam ao sistema estatal. O Estado, no sistema democrático, é uma instituição permanente; os governos que o administram, segundo eleições que garantam a rotatividade civil do mando político, são periódicos. Servidores públicos, com ou sem farda, servem a cada governo, mas devem subordinação às leis do Estado que permanece, de acordo com as determinações previstas pelo diploma constitucional que o rege.

Militares, como servidores públicos, distinguem-se dos civis por uma característica ímpar: usam armas. O processo pelo qual as sociedades democráticas conseguiram a lealdade e a obediência das forças armadas perante as instituições da cidadania é um dos capítulos mais complexos na história política de cada sociedade que optou pela democracia como a melhor forma de governo. Gaetano Mosca, ilustre teórico político italiano, dizia que a questão não era saber porque, ao se entregar uma arma a uma instituição ela não a usa contra aqueles que a entregaram. A pergunta seria por qual razão ela não a usa sempre. Cada país que optou pelo caminho democrático precisou contar com conhecimentos precisos sobre a história militar em geral e, em particular sobre sua própria história militar, capítulo essencial de seu trajeto político.

Nas sociedades democraticamente estabelecidas, elites civis mostram-se capazes de cativar as mentes e corações do oficialato. Nelas os militares não usam suas armas à revelia da vontade das instituições por profundas convicções morais. Uma delas: querem ser respeitados pelos cidadãos que tudo pagam pelo que é público, inclusive pistolas e fuzis. Outra: sentem-se honradas e dignificadas por estarem dispostas a dar suas vidas em defesa da soberania nacional. Outra ainda: estão convictas de que a democracia é a pior forma de governo, com a exceção de todas as outras. Identificam-se, sincera e profundamente, com os valores democráticos.

Quando o Presidente Bolsonaro convidou o general Eduardo Pazuello, que está na ativa, para participar recentemente de ato político no Rio de Janeiro, abalou um dos pilares da corporação castrense. O regulamento disciplinar do Exército veda, expressamente, tal possibilidade. O Chefe do Executivo, ao personalizar as “forças armadas”, chamando-as de “suas”, desrespeita a corporação militar, servidora do Estado, e a submete, irresponsavelmente, à reprovação da cidadania. Agride o Estado democrático de direito. Distância os quartéis da sociedade que juraram defender.


Saiba mais sobre o autor

Eurico de Lima Figueiredo é professor Emérito da Universidade Federal Fluminense. Professor Titular de Estudos Estratégicos e Relações Internacionais da mesma instituição (aposentado).

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de junho (32ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

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RPD || Editorial: Esticar a corda

*Editorial da Edição 32 da Revista Política Democrática Online

Dois são os fatores principais a determinar a qualidade da atmosfera política atual. Em primeiro lugar, o trabalho da Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a apurar responsabilidades sobre erros e omissões acontecidos no combate à pandemia.  

Vêm à tona, dia após dia de trabalho, a extensão dos erros cometidos, assim como sua relação direta com o crescimento assustador do número de casos e de óbitos no país. Procedimentos corretos foram ignorados ou ostensivamente desencorajados, ao passo que fórmulas comprovadamente ineficazes, quando não contraproducentes, foram incentivadas por representantes do governo federal. Tudo isso em transmissão direta pela televisão do Senado Federal, que atinge recordes de audiência. 

A continuidade dos trabalhos da Comissão sinaliza tendência de queda nos percentuais de aprovação do governo, cujo primeiro movimento já foi capturado pelas pesquisas. A reação governista a essa tendência constitui o segundo fator relevante que pesa sobre o clima da política hoje.  

Vimos, há pouco tempo, o General Pazzuello responder sem convencer, em longa arguição na Comissão Parlamentar de Inquérito. Poucos dias depois, vimos o mesmo personagem num cortejo político organizado em apoio ao Presidente da República, no Rio de Janeiro, na condição de orador. 

Sabemos todos que a manifestação política é vedada aos militares da ativa, a bem da democracia e da ordem pública. A violação dessa regra é considerada quebra da disciplina, que deve necessariamente acarretar a aplicação de alguma punição, dentro do rol de penalidades previstas. Não foi o que ocorreu. Inexplicavelmente, no caso do General Pazzuello, o Comando do Exército decidiu aceitar os argumentos apresentados pela defesa e isentar o faltoso da punição devida. 

Desde a eleição, manifestantes e acólitos governistas submetem o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal a críticas desqualificadoras, advogando a subordinação dos demais Poderes da República ao Executivo. A manifestação política impune do general Pazzuello acrescenta um novo alvo na sua batalha permanente contra a ordem constitucional: a disciplina militar, fundamento da democracia e da ordem pública. 

A intenção é cristalina. Semear a anarquia hoje, para amanhã colher os frutos do autoritarismo.  

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RPD || Reportagem Especial: Novas variantes do coronavírus aumentam horror físico e mental entre profissionais da saúde

Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP

Um médico viu dez pacientes morrerem em uma unidade de terapia intensiva (UTI) para Covid-19 em apenas um plantão, em Goiás. Ele se deparou com a mesma cena em um dos maiores hospitais no Distrito Federal, onde também trabalha. Em São Paulo, uma colega de profissão ficou três semanas afastada do trabalho, por conta de uma exaustão física e emocional extrema. Outros trabalhadores da saúde já pediram afastamento ou demissão pelo mesmo motivo.

“Nunca dei tanta notícia de óbito na minha vida nem vi tantos colegas sofrerem junto de pacientes e familiares. Parece filme de terror, e a qualquer momento a gente também pode ser acometido”, diz o médico goiano Euler Sousa e Silva, 46 anos. Ele também atua em plantões no Hospital Regional de Brasília (HRAN ).

Com menos de 30% (48.734.903) da população vacinada com a primeira dose da vacina contra a Covid-19, no Brasil, profissionais da saúde ainda enfrentam uma árdua rotina em verdadeiros campos de guerra contra o coronavírus. A pandemia já matou mais de 480 mil pessoas, até a primeira quinzena deste mês, no país. O registro de novas variantes aumenta o cenário de horror nos hospitais.

Frios apenas nas estatísticas, os números são o somatório de cada pessoa que perdeu a vida em um país que negligenciou totalmente a campanha de imunização e que, até o início deste mês, completou o esquema vacinal, com a aplicação da segunda dose, em apenas 10% (71.631.011) da população. O governo só reagiu devido a pressão da população e da imprensa.

Entre as vítimas profissionais da saúde, estão 778 enfermeiros e 810 médicos que foram contaminados ao tentar salvar a vida de pacientes com Covid-19 em hospitais, segundo o memorial virtual do Conselho Federal de Medicina (CFM). Não há estimativas sobre morte de técnicos em enfermagem e fisioterapeutas.

Aos que continuam na linha de frente contra o coronavírus, só resta encarar o ápice do esgotamento físico e da corrosão mental que ainda atingem milhares de profissionais da saúde, no segundo ano da Covid-19, no país.
28 plantões por mês

Cirurgião e intensivista, o médico João Manoel Brandão Camilo, de 30 anos , viu sua rotina de trabalho aumentar ainda mais na pandemia. Por mês, faz em média, 28 plantões de 12 horas, cada um, em UTI de pacientes com Covid-19 internados em estado grave, em São Paulo. “Já vi cinco pacientes morrerem em apenas 12 horas, em uma UTI com 20 leitos”, afirma. “É uma sequência de tristeza e horror. A doença é muito terrível”, lamenta. Ele voltou recentemente ao trabalho, depois de três semanas afastado por síndrome de Burnout, com ansiedade generalizada, esgotamento físico e mental profundo e tristeza extrema.

O caos deve aumentar. No país, oito em cada 10 profissionais de medicina da linha de frente veem a pandemia, neste ano, tão grave quanto em 2020, ou até mesmo pior. Sete em cada dez apontam tendência de aumento de mortes, de acordo com a primeira pesquisa nacional Os Médicos e a pandemia de Covid-19, feita pela Associação Médica Brasileira (AMB).

Paciente em UTI para tratamento da Covid recebe atendimento. Foto: Breno Esaki/Agência Saúde

A pesquisa, divulgada em fevereiro deste ano, ouviu 3.882 médicos. No total, 92% confirmaram casos de profissionais com ao menos um problema causado pelo enfrentamento à pandemia. Eles citaram, principalmente, ansiedade, estresse, sensação de sobrecarga, exaustão física ou emocional, mudanças bruscas de humor, dificuldade de concentração.

Apesar do medo, os médicos que trabalham em UTIs em Goiás, Distrito Federal e São Paulo mergulham na dolorosa maratona de horror, todos os dias. Euler Sousa e Silva se divide entre plantões em um hospital particular de Aparecida de Goiânia e no Hospital Regional da Asa Norte, em Brasília, e no transporte de pacientes com Covid-19, em ambulâncias do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU ).

“Já chorei na frente de colegas. Às vezes, a gente sai de perto e vai para um canto para não abalar o resto da equipe, mas teve momento que foi na frente de todo mundo, porque a gente tem fraqueza”, desabafa. Logo em seguida, cai no silêncio e chora. “Estou engasgado, cansado, não aguento mais essa carga.”

“Vacina necessária”
O médico de São Paulo ainda carrega o medo por ter perdido dois amigos e colegas de profissão para a Covid-19, recentemente. Um deles tinha 33 anos e, segundo João Manoel Brandão Camilo, havia tomado as duas doses da vacina contra essa doença.

“A imunização é necessária porque serve para diminuir o risco de a doença evoluir para casos mais graves, em caso de contaminação, como a gente tem visto nos casos de pessoas que já tomaram a vacina e chegam ao hospital com o vírus”, afirma.

De acordo com o médico que trabalha em São Paulo, os casos letais de pessoas vacinadas servem, mais uma vez, de alerta para que a população siga as recomendações de enfrentamento à pandemia, mesmo após imunizadas. Os laboratórios nunca divulgaram que as vacinas iriam proteger as pessoas, totalmente, principalmente por causa do avanço de novas variantes do coronavírus no país.

Presidente de associação que reúne 33 hospitais de alta complexidade na rede privada em Goiás, todos com leitos de Covid-19 lotados, Haikal Helou confirma que os médicos estão no limite. “A pressão é constante. Tem médico tomando remédio para dormir. Amigos psiquiatras dizem que os consultórios nunca estiveram tão cheios, principalmente de colegas”, afirma.

“Ano passado, já tive que escolher quem iria ficar com oxigênio e quem iria ficar com falta de ar. Não tinha ponto de oxigênio”, lembra a presidente do Sindicato dos Médicos de Goiás (Simego), Franscine Leão, de 38 anos . “Este ano isso ainda não aconteceu comigo, mas a gente tem observado que agora estão morrendo muitos pacientes jovens”, conta. “A sensação de impotência é muito grande.”

Diariamente, em todo o país, cada pessoa internada com Covid-19 exige uma intensa operação de profissionais. Cobertos pelos incômodos e imprescindíveis aparatos de proteção, eles atuam em ritmo de máquinas, para pronar (virar de bruços), sedar, intubar e, em casos mais graves, ambuzar (realizar respiração manual), além de fazer muita força para reanimar os pacientes.

“Já fiquei duas horas reanimando paciente. Em muitos, o respirador [mecânico] não entra. O pulmão fica duro igual pedra. Muitas vezes, a gente tem que ficar em pé na maca, jogando o peso do nosso corpo, para conseguir fazer a massagem cardíaca efetiva. Chegou a ponto de eu ter câimbra na mão. Quando parei e declarei o óbito, estava molhada, escorrendo suor”, lembra Franscine Leão.

Segundo Franscine Leão, médicos, enfermeiros e técnicos em enfermagem estão exaustos, em hospitais de todo o país. “A gente está servindo para fazer atestado de óbito”, relata. “Já perdi as contas de quantos colegas estão se afastando e de enfermeiros pedindo demissão, por transtorno de ansiedade ou de estresse pós-traumático”, acrescenta.

Governo brasileiro sancionou, no dia 15 de abril do ano passado, a lei que regulamentou a telemedicina ou telessaúde, em caráter emergencial
Foto: Secom/PR

Benilton Carlos Bezerra Júnior: “Pandemia catapultou a telemedicina”

Assim como impõe pressão sobre profissionais da saúde na linha de frente, no socorro a pacientes com Covid-19, a pandemia também reforça a necessidade de superar paradigmas na medicina. Estimuladas pela necessidade de distanciamento social, as consultas a distância devem exigir, cada vez mais, dos médicos maior capacidade de fazer análise visual de sinstomas físicos dos pacientes.

Professor no Instituto de Medicina Social da Universidade do estado do Rio de Janeiro (UERJ ) e um dos autores do livro “O mundo pós-pandemia: reflexões sobre uma nova vida”, o médico Benilton Carlos Bezerra Júnior acredita que “a pandemia catapultou a telemedicina”. “Os médicos tiveram de se adaptar à necessidade de atender as pessoas a distância”.

No Brasil, o governo sancionou, no dia 15 de abril do ano passado, a lei que regulamentou a telemedicina ou telessaúde, em caráter emergencial, durante a crise causada pela pandemia da Covid-19. “A modificação na relação do médico com o paciente vai, naturalmente, aprimorar a capacidade, a distância, de o profissional formular diagnóstico”, afirma Benilton.

É uma perspectiva que deve impulsionar a saúde pública “de maneira extraordinária”, segundo o professor da UERJ . “Por um lado, pode permitir acesso maior e mais qualificado aos serviços de saúde, mas, por outro, isso só vai acontecer na medida em que houver política pública de forte investimento na saúde”, ressalta.

Nesse aspecto, de acordo com Benilton, a crise sanitária global impôs um ponto crítico. “A pandemia trouxe mais encruzilhada. Os países que investirem na saúde e educação terão mais chance de enfrentar o cenário pós-pandemia, os que não fizerem terão consequências profundas”, destaca.

Benilton: Eixo da medicina deve se tornar mais preventivo e menos para a definição do que é exatamente o evento patológico momentâneo. Foto: Divulgação

Considerando o perfil negacionista do Presidente Jair Bolsonaro (sem partido), diante da pandemia, Benilton acredita que o cenário pós-pandemia, no país, deve ser catastrófico, se não houver mudança profunda na postura do governo. “Com esse desgoverno, a tendência é que o país tenha pós-pandemia agravado pela decadência, decrepitude, do sistema de saúde como um todo”, lamenta.

De acordo com o professor da UERJ , outro reflexo da pandemia é a possibilidade de mudança na maneira de o país organizar a estratégia clínica da medicina, que, até há pouco tempo, organizava-se em torno das categorias fundamentais da medicina: análise da história pregressa do paciente, diagnóstico da situação atual, aprovação de tratamento, cura e prognóstico de tratamento.

“Isso tudo era o que marcava o encontro do médico com o paciente e, agora, está sofrendo impacto”, observa Benilton. Com as possíveis mudanças, ele acredita que o eixo da medicina deve se tornar mais preventivo e menos para a definição do que é exatamente o evento patológico momentâneo. Por isso, a tendência é que a relação entre médico e paciente possa se expandir para monitoramento constante dos desequilíbrios na dinâmica da saúde das pessoas.

Nada disso seria novidade se o Sistema Único de Saúde (SUS) já tivesse sido implementado totalmente. “O modelo do SUS, se eficazmente implementado, já poderia ter avançado no aspecto do monitoramento constante das pessoas, sobretudo por meio do atendimento na atenção primária e saúde da família, ao invés de esperar que as pessoas adoeçam”, diz o médico.



Saiba mais sobre o autor:

Cleomar Almeida é graduado em jornalismo, produziu conteúdo para Folha de S. Paulo, El País, Estadão e Revista Ensino Superior, como colaborador, além de ter sido repórter e colunista do O Popular (Goiânia). Recebeu menção honrosa do 34° Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos e venceu prêmios de jornalismo de instituições como TRT, OAB, Detran e UFG. Atualmente, é coordenador de publicações da FAP.


RPD || Charge – JCaesar

Saiba mais sobre o autor

JCaesar, autor da charge da Revista Política Democrática Online, é o pseudônimo do jornalista, sociólogo e cartunista Júlio César Cardoso de Barros. Foi chargista e cronista carnavalesco do Notícias Populares, checador de informação, gerente de produção editorial, secretário de redação e editor sênior da VEJA. É autor da charge publicada pela Revista Política Democrática Online.


RPD || Autores – Edição 32 – Junho/2021

Senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE)o entrevistado especial da Edição 32 da Revista Política Democrática Online, é um gaúcho criado em Sergipe desde 1984, tem 45 anos, é casado e tem 03 filhos. É delegado da Polícia Civil em Sergipe há 19 anos, com atuação em áreas como proteção a minorias, combate à corrupção e à lavagem de dinheiro, e repressão a homicídios. Foi Superintendente da Polícia Civil de Sergipe por 14 meses, implantando uma política dura de enfrentamento à corrupção, com prisões e indiciamentos de políticos e grandes empresários, além da recuperação de ativos. Líder RenovaBR e liderança cívica do Movimento Acredito, é Líder do Cidadania no Senado e foi eleito Senador da República por Sergipe (2019 – 2026) com 474.449 votos totalizados (25,95% dos votos válidos).
Foto: Waldemir Barreto/Agência Senado

Entrevistador do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE)Caetano Araújo é graduado em Sociologia pela Universidade de Brasília (1976), mestre (1980) e doutor (1992) em Sociologia pela mesma instituição de ensino. Atualmente, é diretor-geral da FAP e consultor legislativo do Senado Federal. Tem experiência na área de Sociologia, com ênfase em Teoria Sociológica e Sociologia Política.

Alberto Aggio também é um dos entrevistadores do senador Alessandro Vieira, para a entrevista especial da edição 32 (junho/2021) da Revista Política Democrática Online. Aggio é historiador, professor titular da Unesp (Universidade Estadual Paulista) e responsável pelo Blog Horizontes Democráticos.

Arlindo Fernandes de Oliveira é um dos entrevistadores do senador Alessandro Vieira. Advogado, especialista em Direito Constitucional pelo Instituto de Direito Público, IDP, especialista em Ciência Política pela UnB, bacharel em direito pelo Uniceub. Foi assessor da Câmara dos Deputados e da Assembléia Nacional Constituinte (1984-1992). Professor de Direito Eleitoral no Instituto Legislativo Brasileiro, ILB, desde 2004. Desde 1996, consultor legislativo do Senado Federal, Núcleo de Direito, Área de Direito Constitucional, Eleitoral e Processo Legislativo.

André Amado também é um dos entrevistadores do senador Alessandro Vieira. É escritor, pesquisador, embaixador aposentado e diretor da revista Política Democrática Online. É autor de diversos livros, entre eles, A história de detetives e a ficção de Luiz Alfredo Garcia-Roza.

JCaesarautor da charge da Revista Política Democrática Online, é o pseudônimo do jornalista, sociólogo e cartunista Júlio César Cardoso de Barros. Foi chargista e cronista carnavalesco do Notícias Populares, checador de informação, gerente de produção editorial, secretário de redação e editor sênior da VEJA. É autor da charge publicada pela Revista Política Democrática Online.

Autor do artigo Esquerda lulista e culto à personalidadeLuiz Sérgio Henriques é tradutor e ensaísta. Autor de Reformismo de esquerda e democracia política (FAP & Verbena, 2018).

Rafael Cortez, autor do artigo Crise política, instituições orçamentárias e desenvolvimento é doutor em Ciência Política pela USP. Professor do IDP, é especialista em instituições brasileiras, política comparada e economia política. Na Tendências Consultoria Integrada, responde pela área de Macroeconomia e Análise Setorial.

Eurico de Lima Figueiredo é professor Emérito da Universidade Federal Fluminense. Professor Titular de Estudos Estratégicos e Relações Internacionais da mesma instituição (aposentado). É autor do artigo O presidente e o “seu” general.

Autor do artigo O grito da florestaPaulo Baía é graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mestre em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense (UFF), doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e pós-doutor em História Social pela UFF. É professor do Departamento de Sociologia da UFRJ e coordenador do Núcleo de Sociologia de Poder e Assuntos Políticos.

Autor do artigo A estrada não percorrida e o chamado da triboPaulo Gontijo é Diretor de Inovação da Invest.Rio; graduado em Letras pela PUC-Rio, é também especialista em Relações Internacionais pela Universidade Cândido Mendes e em Liderança e Competitividade Global pela universidade americana de Georgetown (Washington, D.C.), entre 2018 e 2021 foi diretor-executivo do movimento liberal Livres.

Cleomar Almeida é autor da reportagem especial Novas variantes do coronavírus aumentam horror físico e mental entre profissionais da saúde. Graduado em jornalismo, produziu conteúdo para Folha de S. Paulo, El País, Estadão e Revista Ensino Superior, como colaborador, além de ter sido repórter e colunista do O Popular (Goiânia). Recebeu menção honrosa do 34° Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos e venceu prêmios de jornalismo de instituições como TRT, OAB, Detran e UFG. Atualmente, é coordenador de publicações da FAP.

Salem Nasser é autor do artigo Algo mudou na Palestina. Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1990), obteve um DSU – Diploma Superior da Universidade em Direito Internacional Privado e um DEA – Diploma de Estudos Aprofundados em Direito Internacional Público – da Universidade de Paris II – Panthéon Sorbonne (1992 e 1993). É doutor em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo (2004) e desde 2004, é professor da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas – Direito FGV.

Autor do artigo Reparação histórica com a população negraMilton Seligman é engenheiro eletricista, é professor do Insper e Global Fellow do Woodrow Wilson Center’s Brazil Institute. Foi Secretário Executivo e titular do Ministro da Justiça, bem como Presidente do Incra na gestão de FHC. Exerceu a Diretoria de Projetos da Inter Press Service, na Itália, foi VP de Relações Corporativas da Ambev, entidade na qual hoje integra o Conselho de Administração. É também conselheiro das Fundações FAHZ, Lemann e Sonho Grande.

Ciro Marcondes é doutor em Comunicação pela Universidade de Brasília (UnB), crítico de cinema e professor da Universidade Católica de Brasília (UCB). É autor do artigo A aventura modernista do cinema brasileiro.

Henrique Brandão é autor do artigo Limite chega aos 90 anos, atual e surpreendente. É jornalista e escritor.


RPD || Entrevista Especial – Alessandro Vieira: ‘Bolsonaro foi uma decepção completa de A a Z’

Por Caetano Araújo, Arlindo Fernandes de Oliveira e André Amado

Grande crítico do presidente Jair Bolsonaro durante as sessões da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da COVID no Senado, que apura possíveis falhas e omissões do governo federal no combate à pandemia, Alessandro Vieira (Cidadania-SE) tem se destacado pela forma contundente como participa dos interrogatórios conduzidos pela comissão.

Delegado da Polícia Civil e senador em primeiro mandato, Alessandro Vieira avalia que o país vive um momento histórico com a CPI, porque ela poderá oferecer condições para a apresentação de um relatório com provas contundentes de como o Brasil chegou a um quadro de pandemia descontrolada. “Já temos vários indicativos que apontam para uma responsabilidade direta do presidente da República, no rastro de teorias conspiratórias, da negação da vacina, da defesa de remédios sem nenhum tipo de validação científica”, informa.

Para o senador do Cidadania-SE, episódios como o vivido atualmente no país com a CPI permitem que se abra uma janela de esperança, de oportunidade para as pessoas enxergarem diferenças de conduta em relação às pessoas que elas elegeram. “Ficaria satisfeito se o brasileiro saísse desse processo entendendo a importância do voto, a importância de avaliar melhor o voto, porque, assim, jamais contrataria um cara com o perfil do Bolsonaro para levantar um muro na sua casa, pintar uma parede, porque é claramente ineficiente, despreparado, equivocado”, avalia. Infelizmente, completa Vieira, “a gente o contratou como presidente da República, e as consequências, até por conta da pandemia, ficaram ainda mais visíveis”.

“Já temos vários indicativos que apontam para uma responsabilidade direta do presidente da República, no rastro de teorias conspiratórias, da negação da vacina, da defesa de remédios sem nenhum tipo de validação científica”

Bolsonaro é um “desastre” que poderia ter sido evitado, acredita Alessandro Vieira, que afirmou ter votado no atual chefe do Executivo. “Faço mea culpa, meu voto foi equivocado. No primeiro turno, votei na Marina Silva, mas, no segundo turno, fui levado a abraçar o desconhecido e errei. Estou na cota dos arrependidos”, diz. “Jamais votaria no projeto do PT, um projeto de todo contrário à minha história, na forma de pensar, de aparelhamento do Estado e destruição do aparato de repressão a crimes graves de colarinho branco. Só que Bolsonaro foi uma decepção completa de A a Z”, critica Alessandro Vieira.

“Politização das Forças Armadas e das polícias, negacionismo homicida, boçalidade e mentira como método de governo, pandemia descontrolada e fome. Os problemas do Brasil seguem aumentando, mas vamos manter o foco: SALVAR VIDAS e evitar que o desastre se repita. E ele tem nome: Jair Bolsonaro”, escreveu o parlamentar em seu perfil no Twitter no último dia 3/6.

Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista do senador Alessandro Vieira à Revista Política Democrática On-line.

Revista Política Democrática On-line (RPD): Considerando a tradicional desconfiança da população quanto aos resultados de CPIs, qual sua expectativa de que desta vez nem tudo terminará em pizza?
Alessandro Vieira (AV): 
É importante, de início, modular as expectativas, entender que uma CPI não vai prender ninguém, não vai condenar ninguém, não vai fazer impeachment. Vai oferecer condições para a apresentação de um relatório robusto, com provas contundentes, de como o Brasil chegou a um quadro de pandemia descontrolada. Já temos vários indicativos que apontam para uma responsabilidade direta do presidente da República, no rastro de teorias conspiratórias, da negação da vacina, da defesa de remédios sem nenhum tipo de validação científica, de uma postura política de claro boicote às iniciativas que vinham de São Paulo, do Butantan, do governo de São Paulo, boicote do fornecimento pela China. Tudo desemboca na linha da responsabilidade do presidente da República. Mas é importante que o cidadão entenda, como disse antes, que a CPI não vai gerar automaticamente o impeachment, nem condenar, nem mandar prender ninguém. Eu acredito que nós vamos, sim, conseguir reunir dados suficientes, para que esse relatório final seja consistente e contenha dados concretos. Na remota hipótese de o relatório oficial não apresentar essas características, apresentaremos um relatório paralelo, alternativo.

RPD: No entendimento de que poderia haver um relatório paralelo tanto do grupo chamado G7, como do grupo chamado G4, a circulação concomitante desses relatórios não poderia afetar os efeitos, pelo menos jurídicos, não políticos, desta CPI?
AV: 
É importante entender que operamos no terreno da política, em que prevalecem as narrativas. Estamos presenciando isso com relação tanto às vacinas, quanto à cloroquina. Apesar da documentação, apesar das provas, apesar das mortes, as pessoas persistem na narrativa. Um depoimento, para mim muito simbólico, da Doutora Mayra Pinheiro, confronta que ela revelou conhecer vários estudos, de alta qualidade científica, de rejeição à hidroxicloroquina, e sua persistência em recomendar seu uso. Hoje temos maioria para aprovar um relatório correto, contundente, bastante duro, em que Renan Calheiros vem trabalhando com consciência e afinco.

RPD: Há uma expectativa de que essa CPI contribua para valorizar a política parlamentar, a política vinda das instituições, em contraponto a ações que se possam qualificar de incompetentes e até irresponsáveis de parte do governo. É esse papel que a população brasileira estaria esperando do Senado, no contexto da gestão do governo da pandemia?
AV: 
Acredito que sim. Não sou um político tradicional, nunca fui político, ingressei na política há dois anos e, logo, no Senado. Mas me dei ao trabalho de estudar e tentar entender as ferramentas que estão disponíveis. Parece-me claro que o momento exige do Senado uma responsabilidade no trato dessa questão, e estamos atuando nesse sentido, ainda que de forma claudicante. A iniciativa do auxílio emergencial brota no Congresso e é ajustada no Senado, projeto legislativo do qual fui relator. As iniciativas relativas a orçamento, à garantia de verbas, ao excesso legislativo de garantia, à viabilidade da contratação da Pfizer e de outras vacinas que exigiam seguro internacional puderam caminhar graças à atuação do Senado, que muito ajudou a destravar o processo político.

“A CPI não vai gerar automaticamente o impeachment, nem condenar, nem mandar prender ninguém. Eu acredito que nós vamos, sim, conseguir reunir dados suficientes, para que esse relatório final seja consistente e contenha dados concretos”

É preocupante que alguns de meus colegas não percebam as responsabilidades em jogo. Talvez por falta de preparo intelectual e o impulso irresistível de atuar numa dimensão eminentemente paroquial, não se consiga entender a gravidade da situação e se insista em privilegiar emendas com fins sobretudo eleitoreiros, fisiologismo que compromete a credibilidade do Senado perante a opinião pública. Critica-se Bolsonaro por seus ataques às instituições. Mas a crítica central deveria ocorrer de dentro das instituições, quando seus membros elidem suas responsabilidades. Isso não é demérito específico do Senado ou do Congresso; tenho colegas que respondem a sete, dez, quinze processos. Outro foi preso com dinheiro dentro da cueca. Outro ainda tomou posse de seu mandato de dentro da cadeia. Ocorre também no Judiciário . Na Suprema Corte, um juiz votou em uma delação em que ele era delatado. Tudo isso é lastimável, desmoraliza as instituições e pode estar adubando o terreno para iniciativas autoritárias.

RPD: Esta CPI poderá ajudar a renovação da política no Congresso, em geral e, no Senado, em particular, já nas próximas eleições?
AV: 
Não é possível antecipar. A CPI poderia gerar resultado muito diverso se contássemos com figuras que não respondessem a processos criminais tão graves, como respondem. Se tivéssemos parlamentares com um mínimo de preparo intelectual, que não exibissem, em plena CPI, uma caixinha de cloroquina, mas não temos. É possível, assim, que reeditemos, infelizmente, o vício brasileiro da fulanização, em decorrência do qual alguns personagens saiam valorizados do processo, mas não a instituição, como um todo.

O Senado teve a maior renovação da história recentemente. Eu mesmo entrei nessa corrente. Mas tenho colegas que, com quatro meses de mandato, já tinham desistido. Continuam Senadores, permanecerão por oito anos, talvez até venham a ser governadores, mas desistiram da parte da batalha política. “Nessa selva, tudo é muito complicado, dizem: Não quero ter que negociar com essa turma”, justificam-se.

O eleitor tem razão ao se perguntar onde está a renovação que buscou com seu voto. Nada acontece além do discurso em redes sociais. Dou como exemplo o senador Eduardo Girão, entrou comigo no Senado, identifica-se como independente, é milionário, não depende financeiramente de ninguém, nem de partido algum, mas atua dentro de um esquema previamente armado, negacionista, que desvaloriza a instituição. A gente tem vários colegas, Eduardo Girão, por exemplo, que está se destacando na CPI, como negacionista. Bota mais fermento nesse bolo do autoritarismo, que é o que o Bolsonaro faz todo dia, com a ajuda de pessoas que não têm a menor ideia do que estão fazendo, das consequências de seus atos, mas que colocam o país em uma situação progressiva de risco.

RPD: Não obstante sua curta experiência parlamentar, mas com a autoridade de ter sido eleito para o Senado, que horizontes podemos discernir para o Brasil, tendo em mente as eleições de 2022?
AV:
 O brasileiro é vocacionado para ter esperança, mesmo contra todas as circunstâncias. A cada episódio – e a CPI é um episódio histórico –, abre-se uma janela de esperança, de oportunidade para as pessoas enxergarem diferenças de conduta. Ficaria satisfeito se o brasileiro saísse desse processo entendendo a importância do voto, a importância de avaliar melhor o voto, porque, assim, jamais contrataria um cara com o perfil do Bolsonaro para levantar um muro na sua casa, pintar uma parede, porque é claramente ineficiente, despreparado, equivocado. Só que a gente o contratou como presidente da República, e as consequências, até por conta da pandemia, ficaram ainda mais visíveis. Torço para que uma camada do eleitorado consiga entender isso e se convença que tenha de pensar melhor na próxima vez que for votar , não pode simplesmente votar contra o PT.

Eu mesmo votei em Jair Bolsonaro no segundo turno. Jamais votaria no projeto do PT, um projeto de todo contrário à minha história, na forma de pensar, de aparelhamento do Estado, destruição do aparato de repressão a crimes graves de colarinho branco. Só que Bolsonaro foi uma decepção completa de A a Z. Faço mea culpa, meu voto foi equivocado. No primeiro turno, votei na Marina Silva, mas, no segundo turno, fui levado a abraçar o desconhecido e errei. Estou na cota dos arrependidos.

“Ficaria satisfeito se o brasileiro saísse desse processo entendendo a importância do voto, a importância de avaliar melhor o voto, porque, assim, jamais contrataria um cara com o perfil do Bolsonaro para levantar um muro na sua casa, pintar uma parede, porque é claramente ineficiente, despreparado, equivocado”

Esse exercício público de reconhecimento do erro é importante, amadurece o sentido de cidadania. Continuo não querendo votar no PT, mas não posso ter uma pessoa no nível de despreparo do Bolsonaro. Tenho de trabalhar com todas as forças para garantir uma terceira via, um terceiro nome, que represente de verdade o Brasil e assegure uma gestão minimamente eficiente. Dentre os pecados de Bolsonaro, a incompetência talvez seja o mais grave. É um governo profundamente incompetente, em quase todas as áreas, exceção feita à agricultura e à infraestrutura – e ainda assim de maneira qualificada. Olhem a destruição que seu governo está fazendo na educação, vai penalizar toda uma geração.

RPD: Por que é tão difícil se chegar a um nome da terceira via? É cedo demais, não existe um projeto, ou os dois polos são inexoravelmente mais fortes?
AV: 
Acredito que os partidos políticos pecaram e continuam pecando em não ouvir a sociedade, e esse ouvir a sociedade não é mera pesquisa qualitativa, ainda que seja uma boa ferramenta, é ouvir de verdade as demandas. Em 2018, estava muito claro o perfil do candidato que o brasileiro queria votar, algo vinculado à segurança, ao combate à corrupção, à ruptura de sistema, e os partidos não se esforçaram nem um pouco para proporcionar ao eleitor alternativas que tivessem esse perfil, mas com a honestidade, a racionalidade, a razoabilidade, tudo aquilo que o Bolsonaro não tem.

Lembro de uma pesquisa da XP, que circulou um ano antes, aproximadamente. Minha leitura foi a de que o único que finge melhor estar nesse perfil é o Bolsonaro, porque as pessoas que querem votar em um candidato com esse perfil jamais votarão na Marina, jamais votarão em Geraldo Alckmin, não há como fazer o match da vontade da sociedade. Intuí, então, que os partidos precisavam urgentemente se modernizar, entender melhor a sociedade. Entender que, dentro dos vários perfis demandados, nunca se demandou um fascista, nem quem protegesse um filho que faz rachadinha, nem que propusesse corroer a hierarquia no exército, nem que fosse destruir a saúde e a educação. Tampouco buscava-se alguém que fosse buscar coligação com Paulinho da Força, Valdemar da Costa Neto e toda a turma que está por há décadas.

Hoje muita gente consegue enxergar isso e está comprometida em encontrar um nome novo, de alguém que se adeque às demandas da sociedade. Acho que essa é a pergunta que os partidos deveriam estar ouvindo. Posso visualizar o Luciano Huck, o Eduardo Leite, o Mandetta, tenho conversado com todos eles, e me disponho a trabalhar por qualquer um deles, não estamos em condições de fazer grandes exigências.

RPD: O senhor considera a hipótese ser vice de algum deles?
AV:
 Eu sempre me movo por um sentimento de missão. O que for necessário para mover um país, pode contar com meu esforço. Qualquer esforço. Tenho hoje uma demanda gigantesca, no meu estado , de candidatura ao governo, porque literalmente meu estado é governado pelo mesmo grupo há 30 anos, e os resultados são péssimos. Conseguimos o fenômeno de ser o único estado da Federação com crescimento negativo, em 12 anos. É muito complicado, mas estou disponível para qualquer missão de que me encarregarem.

RPD: De que maneira o senhor vê a relação entre a conjuntura política internacional e a política brasileira, no cenário para 2022?
AV:
 O cenário internacional sinaliza algo que é comum para o Brasil, um sentimento de desconforto com o autoritarismo que chegou com essa nova direita. É isso que acho que o Brasil repete. Mas o que não vejo o Brasil repetir, por conta da fragmentação partidária, é a identificação de alternativas efetivas. O cenário de hoje aponta Lula e Bolsonaro com um piso na faixa de 20%, que é um piso muito elevado, de intenção de votos. No centro, haverá três ou quatro candidaturas fragmentadas e dificilmente passando de um teto de dez, doze. Aí vêm Ciro, Mandetta, se é que já podemos excluir o Luciano Huck. Não consigo ver estímulos partidários para romper essa separação, quando precisamos de uma alternativa de direita, ou de pelo menos de centro-direita, que fragmente a base do Bolsonaro. Minha visão é a de que precisamos de um candidato lavajatista, que não seja alucinado, para agitar as bandeiras fora das bases do bolsonarismo. Caso contrário, esses votos terminarão com Bolsonaro, por falta de opção e ou rejeição ao Lula, que é o pior cenário possível.

“Esse exercício público de reconhecimento do erro é importante, amadurece o sentido de cidadania. Continuo não querendo votar no PT, mas não posso ter uma pessoa no nível de despreparo do Bolsonaro”

A dimensão internacional é importante, sinaliza que essa onda autoritária não é necessariamente permanente, mas o Brasil tem essa dificuldade da fragmentação partidária, o fisiologismo violento, os incentivos que são perversos. Muitos partidos vinculam candidaturas ao parlamento, ao fundo partidário. É um ciclo vicioso, negativo. Confesso que não estou extremamente animado com o cenário que se descortina. Será difícil confrontar PT e Bolsonaro, duas máquinas de destruição, que usam as mesmíssimas ferramentas, desinformação, fake news, impulsionamentos, rede suja, contatos com imprensa etc. Os que estão no centro, inibidos, não usam nada disso, nem devem usar, mas ficam encurralados. Janelas, como a da CPI, dão alguma visibilidade para o centro, mas, ainda assim, nos jornais televisivos mais influentes, as vozes reproduzidas todas as noites à família brasileira costumam ser as dos parlamentares do governo e do PT. Mais recentemente, começou-se a ouvir a voz dos parlamentares independentes e, ainda assim, dentro de modelos polarizados de discussão, em geral, mais fáceis de apreender.

RPD: O senhor não incluiu os nomes de Doria, Sergio Moro e Tasso Jereissati em suas análises. Não comentou tampouco o possível impacto que poderá ter a reaproximação entre os ex-presidentes Fernando Henrique e Lula. Talvez ainda coubessem alguns comentários sobre o Kassab e o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco. Essas figuras podem ser excluídas de uma possível candidatura de centro-direita?
AV:
 De forma alguma. A começar pelo João Doria, governador de São Paulo, onde vem fazendo boa gestão, ele não pode ser descartado. O problema dele é a construção política que vem fazendo, associada à máquina de difamação do bolsonarismo e do petismo. Isso tem gerado elevada rejeição, rejeição, a meu ver, artificial e injusta. Doria teve a coragem de propor e defender ousado programa de vacinação, que já beneficiou ampla parcela dos brasileiros, apoiado por equipe de trabalho primorosa. Só que sua confrontação aos dois eixos da política brasileira pode não o ajudar a apresentar-se como uma terceira alternativa, tanto mais porque ele é do mesmo partido do Fernando Henrique, que acaba de fazer um movimento político que me parece precipitado.

Todos estamos ansiosos para tirar o Bolsonaro, um fenômeno inaceitável, um risco para a democracia, concordo, mas talvez ainda não signifique que devesse fazer aceno tão firme na direção do Lula, porque, para muitos, o líder petista não representa coisa muito melhor do que o Bolsonaro. O fato de o autoritarismo do Lula não ser violento não me conforta. O processo de aparelhamento das instituições, a destruição das instituições, não começa com o Bolsonaro, começa com o PT, de maneira feroz.

Penso que essa candidatura de direita ou centro-direita tem de ser de alguém que se amolde ao perfil que a parcela significativa do eleitorado de direita busca no Brasil. Não acredito que o Rodrigo Pacheco se enquadre nesse perfil, é um cara qualificado, jovem, inteligente, bem preparado, vem de um grande estado , dado importante para quem quer nacionalizar seu nome – Minas Gerais constitui, sem dúvida, uma vantagem estratégica. Mas ele me parece mais ligado literalmente à política mineira, muito bastidor, muita calma, e só se movimenta na boa. O Kassab muito menos simboliza aquilo que esse eleitor a que me estou referindo deseja. Seguramente, não. Infelizmente, perdemos o Major Olímpio. Era uma figura da base paulista do Bolsonaro, que obteve 9 milhões de votos. Sempre foi muito correto nas relações com os senadores e, a despeito de inúmeras discordâncias, poderia ser um interlocutor confiável para avançar no xadrez das eleições de 22.

Para mim, o mais importante seria tentar rebaixar o piso do Bolsonaro. Rebaixar o piso do Lula me parece altamente improvável, porque o Lula, por sua história, por seu currículo, está mais bem colocado para ampliar alianças, tecer coligações, com o Boulos, por exemplo, cujos eleitores mais afinados com a esquerda ética haverão, em seu momento, de se compor como o PT. Por outro lado, rebaixar o piso do Bolsonaro pode resultar mais factível. Nada é fácil, ele já está com o receituário do bolo na mão, receituário prescrito pelo Valdemar da Costa Neto e o Ciro Nogueira, que entoam a proposta de auxílio de 600 reais ano que vem, como se assim desse para correr para o abraço no segundo turno.

“Dentre os pecados de Bolsonaro, a incompetência talvez seja o mais grave. É um governo profundamente incompetente, em quase todas as áreas. Olhem a destruição que seu governo está fazendo na educação, vai penalizar toda uma geração”

Como disse, é mais importante tentar tirar voto do Bolsonaro, mas não vejo hoje movimentação nesse sentido. Vejo uma movimentação, do centro, que caminha na direção da centro-esquerda, segmento em que se encontram bons nomes se arrastando na faixa de três, quatro pontos percentuais. Só que esses potenciais candidatos não dialogam com um público sensível ao discurso da lava-jato, cuja trajetória, com erros e acertos, ainda constitui bandeira relevante no processo de escolha de candidatos. Mandetta, Huck, Leite nunca foram surpreendidos falando do tema. Entendo que a porta para o Moro esteja fechada. Se não tivesse vocação para a política, não deveria ter entrado em cena.

Considero, em resumo, que os políticos que estão pensando em ocupar um espaço no segundo turno têm de dialogar com esse público, senão vai falar com quem, nessa loteria macabra em que se pode transformar a eleição de 22, entre a turma do Lula e a turma do Bolsonaro?


Alessandro Vieira é senador (Cidadania-SE), gaúcho criado em Sergipe desde 1984, tem 45 anos, é casado e tem 03 filhos. É delegado da Polícia Civil em Sergipe há 19 anos, com atuação em áreas como proteção a minorias, combate à corrupção e à lavagem de dinheiro, e repressão a homicídios. Foi Superintendente da Polícia Civil de Sergipe por 14 meses, implantando uma política dura de enfrentamento à corrupção, com prisões e indiciamentos de políticos e grandes empresários, além da recuperação de ativos. Líder RenovaBR e liderança cívica do Movimento Acredito, é Líder do Cidadania no Senado e foi eleito Senador da República por Sergipe (2019 – 2026) com 474.449 votos totalizados (25,95% dos votos válidos).

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Caetano Araújo é graduado em Sociologia pela Universidade de Brasília (1976), mestre (1980) e doutor (1992) em Sociologia pela mesma instituição de ensino. Atualmente, é diretor-geral da FAP e consultor legislativo do Senado Federal. Tem experiência na área de Sociologia, com ênfase em Teoria Sociológica e Sociologia Política.

Alberto Aggio é historiador, professor titular da Unesp (Universidade Estadual Paulista) e responsável pelo Blog Horizontes Democráticos.

Arlindo Fernandes de Oliveira é advogado, especialista em Direito Constitucional pelo Instituto de Direito Público, IDP, especialista em Ciência Política pela Universidade de Brasília, UnB, bacharel em direito pelo Uniceub. Foi assessor da Câmara dos Deputados e da Assembleia Nacional Constituinte (1984-1992), analista judiciário do Supremo Tribunal Federal (1992-1996) e assessor da Casa Civil da Presidência da República (1995). Professor de Direito Eleitoral no Instituto Legislativo Brasileiro, ILB, desde 2004. Desde 1996, consultor legislativo do Senado Federal, Núcleo de Direito, Área de Direito Constitucional, Eleitoral e Processo Legislativo.

André Amado é escritor, pesquisador, embaixador aposentado e diretor da revista Política Democrática Online. É autor de diversos livros, entre eles, A história de detetives e a ficção de Luiz Alfredo Garcia-Roza.


RPD || Ciro Inácio Marcondes: A aventura modernista do cinema brasileiro

Em fevereiro de 2022, celebraremos redondos 100 anos da Semana de Arte Moderna de 1922, e isso suscita diversas questões quanto ao desempenho e dispersão do nosso modernismo (e da nossa cultura moderna em geral) no contexto brasileiro, um século depois. Uma pergunta emerge, intrigante: por que o cinema, forma de arte então nascente e signo para o trator de linguagem e expressão da modernidade em diversos países, não foi contemplado pelos artistas do hoje mítico evento paulistano? Afinal, ainda em 1924, reformulando seu primeiro manifesto, Oswald de Andrade publicaria, no poema “Falação”, o que parece uma síntese das ambições que visionaria o cinema moderno brasileiro, décadas depois: “O Carnaval, O Sertão e a Favela, Pau-Brasil, Bárbaro e nosso”.

É verdade que nosso cinema, apesar de desprezado pela primeira intelligentsia modernista – ainda que seus recursos de montagem aparecessem na poesia de Oswald, Manuel Bandeira e Menotti Del Picchia – não deixou de absorver influência da própria estética do cinema de vanguarda internacional, como pode ser visto nos filmes mudos São Paulo Sinfonia da Metrópole (Rodolfo Lustig e Adalberto Kemeny, 1929) e Limite (Mário Peixoto, 1931), que dialogaram com o expressionismo, o impressionismo, o construtivismo, o cubismo e o dadaísmo. Essas vanguardas transitavam com forte confluência entre artes na Europa – e o cinema era peça central delas.

Porém, foi nas gerações seguintes de filmes, considerando o caráter errático de nossa produção, que o cinema brasileiro conseguiu “antropofagizar” (para usar um termo modernista) melhor os desdobramentos que nossa cultura literária e visual moderna demonstraria em sucessivas manifestações. Seguindo o verso de Oswald: o “Carnaval” das chanchadas, a “Favela ” no neorrealismo brasileiro de Nelson Pereira dos Santos e Alex Viany, o “Sertão ” no Cinema Novo, o “Bárbaro e nosso” no Cinema Marginal. Como veremos, a influência dos sucessivos modernistas na literatura, na pintura, na música e na arquitetura iria além de mero conteudismo: no Tropicalismo, no Concretismo, na Vanguarda Paulista – os grandes movimentos modernos do século 20 tiveram profunda interface com o cinema.

Alguns casos, porém, foram notórios e mais diretos. Joaquim Pedro de Andrade, por exemplo, era afilhado de Manuel Bandeira, e fez um curta sobre ele (O Poeta do Castelo, 1959); uma contida, mas expressiva adaptação de Drummond (O Padre e a Moça, 1966); e uma livre biografia de Oswald (O Homem do Pau-Brasil, 1981). Seu Macunaíma (1969), porém, anárquico, iconoclástico, alegórico, tudo ao mesmo tempo, não só trouxe o texto de Mário de Andrade aos anos de chumbo, como cimentou a passagem sem rédeas ao Cinema Marginal.

Outros autores de diferentes fases do modernismo brasileiro também foram adaptados à luz do pensar específico do cinema: Walter Lima Jr. trouxe o lirismo regionalista de José Lins do Rego (Menino de Engenho, 1965); Nelson Pereira dos Santos, a aridez editorial de Graciliano Ramos (Vidas Secas, 1963); Roberto Santos, o estupor diabólico de Guimarães Rosa (A Hora e a Vez da Augusto Matraga, 1971). Já nos anos 80, Suzana Amaral adaptou, em linguagem cinematográfica derivada da nouvelle vague, o simbolismo de protesto de Clarice Lispector (A Hora da Estrela, 1985).

E não foi só no campo das adaptações literárias que o modernismo prosperou no cinema brasileiro. Diálogos mais profundos, no ideário dos manifestos, na música, na pintura e na arquitetura modernas (aí já destacadas do pioneiro “ismo” dos anos 20), ocorreram no âmbito do Cinema Novo. Por exemplo, a alegoria das estruturas profundas do Brasil nos filmes de Glauber Rocha (que chegou a filmar e montar, numa mistura de Eisenstein com Paulinho da Viola, o enterro de um dos célebres pintores da Semana de 22, em Di Cavalcanti, 1977), ou nos conflitos da modernização automotiva em São Paulo S.A. (1965), de Luís Sérgio Person. A alegoria se tornaria vocabulário comum também no final dos anos 60, com filmes como Brasil Ano 2000, de Walter Lima Jr. (1969), que radicaliza a mistura de gêneros, e dos anos 70, com Bye Bye Brasil (Cacá Diegues, 1979), que pensa a nação como performance modernista.

Ainda que de maneira não evidente, o Cinema Marginal, com sua implosão dos ideários alegóricos do Cinema Novo, radicalizou o coloquialismo e as propostas de leitura de nação almejadas pelo modernismo, caminhando aí já para uma estética pós-moderna. Dali saíram Júlio Bressane, Rogério Sganzerla, Helena Ignez, Carlos Reichenbach, Andrea Tonacci, Ozualdo Candeias, entre tantos outros, que, cada um à sua maneira, propuseram se descolar do princípio unitário do modernismo e investir num solipsismo gutural. É daí que comparece, como descendentes, uma parte desafiadora da produção contemporânea, finalmente desalinhada das propostas de 22, em filmes como Tatuagem (Hilton Lacerda, 2013), Batguano (Tavinho Teixeira, 2014), Febre (Maya Da-Rin, 2020) e, é claro, o canibalesco Bacurau (Kléber Mendonça Filho, 2019).

Seria, no entanto, injusto não lembrar do trabalho que Júlio Bressane tem feito década após década no sentido de refletir, via linguagem cinematográfica, os destinos dos projetos modernista e moderno brasileiros, em filmes de constante reinvenção, muitos deles de baixo orçamento e produção semi-independente, sempre espiando nossa tradição, mas mirando um futuro para a linguagem de diversas artes, conforme se pensou em 1922. Não à toa, ele adaptou com radicalidade, em 1996, o primeiro romance de Oswald de Andrade, Memórias Sentimentais de João Miramar, no filme Miramar. Parece testemunho daquilo que o sociólogo Paulo Prado escreveu no prefácio do primeiro livro de poesia de Oswald (Poesia Pau-Brasil), em 1925: “O manifesto que Oswald de Andrade publica encontrará nos que leem (essa ínfima minoria) escárnio, indignação e mais que tudo – incompreensão”. Porém, talvez, não tanto da parte do cinema.

Essa e outras discussões estão presentes no ciclo de debates “O modernismo no cinema brasileiro”, realizado de forma on-line , todas as quintas-feiras, quinzenalmente, até o aniversário da Semana de Arte Moderna, pela Fundação Astrojildo Pereira. Participação deste que escreve, do cineasta Vladimir Carvalho e de outros convidados.


Ciro Inácio Marcondes é doutor em Comunicação pela Universidade de Brasília (UnB), crítico de cinema e professor da Universidade Católica de Brasília (UCB).

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de junho (32ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

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RPD || Luiz Sérgio Henriques: Esquerda lulista e culto à personalidade

Que a política brasileira está impregnada de lideranças personalistas, à direita e à esquerda, é fato mais do que sabido. Getulismo, lacerdismo ou janismo, entre outros “ismos”, comprovam a constante busca do homem providencial e a expectativa de salvação depositada num único personagem, que, de resto, tem dificuldade para contribuir na tarefa de construção de grupos dirigentes mais ou menos extensos, dotados de autonomia e capacidade de ação para além do horizonte de uma biografia individual.

À esquerda, o fenômeno tem nome, posto em circulação há décadas nos círculos comunistas: o culto à personalidade. Stalin foi uma espécie de patrono da categoria, que se replicava nos diferentes contextos nacionais, como Prestes e o velho PCB. Naturalmente, aqui havia um atenuante. O partido comunista passou a maior parte do tempo na ilegalidade e era menos arriscado apontar nas ocasiões eleitorais, quando as circunstâncias permitiam, “o candidato de Prestes”. Ou comemorar como uma data partidária, da forma possível, o aniversário do próprio secretário-geral, que parecia eterno e indissoluvelmente ligado à sigla.

Não é certo que o PT tenha rompido essa arraigada tradição, ainda que surgido impetuosamente, “de baixo para cima”, no contexto da segunda redemocratização. A ambição – legítima – era ocupar a área da esquerda, explorando a crise histórica do comunismo e a insuficiência de outras correntes, como a versão brizolista do trabalhismo ou a social-democracia à brasileira, nascida fora dos sindicatos. Tratava-se de uma formação política nova e poderosa, com enraizamento na sociedade civil, envolvendo seus intelectuais, a Igreja progressista, boa parte do movimento sindical. E uma liderança expressiva, a de Lula, que a partir da sua entronização, há mais de quarenta anos, não mais deixaria o papel de protagonista.

O lulismo e o petismo caminharam juntos por décadas, amparando-se mutuamente, mas é certo que há muito, e talvez definitivamente, o primeiro termo passou a se sobrepor ao segundo. Termos polarizadores agregam eleitores fiéis e militantes dedicados, mas também considerável rejeição. Uma hipótese a ser considerada, para explicar tal rejeição, é que o partido nunca se livrou de um mal de nascença: a ideia de que seu surgimento iluminava de maneira única, e por si só, toda a história brasileira, o passado e o presente, como “nunca antes neste país ”. A autorreferência, assim, tornou-se uma marca e um limite.

Para ir além de si mesmo, um partido – qualquer partido – precisa, entre outros requisitos, desenvolver uma vocação nacional, uma visão peculiar da nação, que não exclua outras visões divergentes e até as requeira. Sem abandonar o grupo original de referência – no caso, os “trabalhadores”, uma imagem que naturalmente se refere aos “de baixo” –, o partido, como figura coletiva, deve pensar estrategicamente os problemas nacionais decisivos, motivar aliados, respeitar adversários e agir lealmente nas instituições. Construir um novo modo de ser e de ver as coisas: plural, articulado, aberto a mudanças. E isso na mesma medida em que se propõe ser arauto de mudanças significativas na política e na sociedade.

Na falta desta construção, ou na presença de uma construção defeituosa, o cimento que liga simpatizantes e eleitores é a adesão irrestrita ao líder, uma adesão que atravessa décadas e ressurge intacta, mesmo quando as condições estão inteiramente mudadas. Expulso pela porta, o culto à personalidade retorna pela janela. Alguns justificarão este retorno com o fato de que é inevitável “fulanizar”, isto é, individualizar ideias e concepções abstratas para ganhar eleições. Ou de que a direita faz coisa muitíssimo pior, bastando ver os gritos irracionais de “mito” que cercam uma figura para lá de equívoca, como a do atual Presidente da República.

Nenhuma das duas justificativas está de todo errada, especialmente a segunda. De fato, a mitificação do líder, à direita, evidencia os enormes riscos que qualquer processo deste tipo implica: uma democracia cancelada, uma cidadania reduzida a pó. Num quadro assim, reativa-se a memória da frente democrática que sitiou e deixou sem ação a ditadura de 1964, até nos levar à Constituição de 1988. Agora, além de garantir as próximas eleições e de vencê-las, será preciso reconstruir um país em ruínas. O lulismo e o petismo terão aqui uma prova de fogo, como nunca tiveram. Para participar daquela frente, que não exclui ninguém, terão de se reinventar e até reescrever boa parte da própria biografia. Não haverá outra ocasião.

Luiz Sérgio Henriques é tradutor e ensaísta. Autor de Reformismo de esquerda e democracia política (FAP & Verbena, 2018).

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de junho (32ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

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RPD || Henrique Brandão: Limite chega aos 90 anos, atual e surpreendente

Neste ano será comemorado 90 anos do lançamento do filme Limite, considerado por muitos críticos e pesquisadores o melhor filme brasileiro de todos os tempos. Para além das listas, quase sempre reducionistas, Limite é um filme raro no panorama do cinema brasileiro – tanto por sua forma ousada, que depois desses anos todos continua a surpreender a quem o assiste, como por sua trajetória, cheia de contratempos.

As peculiaridades começam pelo autor, Mário Peixoto (1908-1992). Filho de família abastada (era descendente de Joaquim José de Souza Breves, maior produtor de café do Império, grande traficante de escravos e dono de vastas terras no Sul fluminense), ainda jovem foi estudar na Inglaterra. Na Europa, provavelmente tomou contato com o cinema e as vanguardas europeias. Limite foi seu primeiro e único filme, realizado aos 22 anos.

A inspiração para a fita, segundo depoimento do próprio Mário, veio ao acaso, em uma banca de jornal enquanto caminhava por Paris: “vi em um folheto da revista “Vu” (visto) a fotografia de um rosto de mulher abraçado pelos punhos algemados de um homem. Aquilo me perseguiu. Via [na sequência] um mar de fogo e uma mulher agarrada a um pedaço de barco naufragado”. A valer o relato do autor, ele foi fiel à sua fabulação. O filme começa e termina exatamente com a mesma epifania que teve na banca de jornais da capital francesa.

O cinema, na época da realização de Limite, era arte recente. A chegada do trem à Estação Ciotat, dos irmãos Lumière, foi a primeira exibição pública de um filme, em 28 de dezembro de 1895, em Paris, apenas 36 anos antes do filme de Mário Peixoto ser exibido. Em 1931, quando foi lançado, numa sessão no dia 17 de maio, no cinema Capitólio, na Cinelândia, no Rio de Janeiro, o que fazia sucesso com o público eram as comédias, filmes com muita movimentação ou então românticos. Tudo o que Limite não é. Além disso, desde 1929, o cinema sonoro passou a atrair cada vez mais a atenção do público, ávido por novidades.

A obra foi muito mal-recebida pela crítica e pelo público. Mário Peixoto, magoado, recolheu o filme e jurou nunca mais exibi-lo. Manteve a promessa durante anos. Até que, em 1971, Saulo Pereira de Mello (1933 -2020), fã confesso de Limite, o assistiu ainda jovem, levado pelas mãos do seu professor de Física, na Faculdade Nacional de Filosofia, Plínio Sussekind Rocha, resolveu empreender uma batalha pela recuperação dos negativos do filme, já em estado avançado de deterioração.

Ainda bem que o fez. Graças a seu empenho, hoje é possível assisti-lo em quase sua totalidade. Infelizmente, algumas partes se perderam. Nada que atrapalhe o conjunto da obra.

Limite não é de fácil degustação. Sua narrativa não é linear, sua história não é muito clara. Os personagens sequer têm nome: são intitulados, nos letreiros de abertura, como a mulher número um, o homem número um e a mulher número dois. Os três encontram-se em um barco à deriva. Cada qual conta sua história, em flashback.

Mas isso pouco importa. O foco não é a história de cada um. O que chama a atenção é a linguagem poética: o encadeamento de imagens, as rimas visuais. A montagem (a cargo do próprio Mário Peixoto) faz uso de aliterações para sublinhar a angústia dos personagens; os enquadramentos originais de vários planos, com angulações inusitadas, e a ousadia de alguns travellings (movimentos de câmera), reforçam o clima onírico do filme. Tudo isso faz de Limite um produto raro, um marco do cinema brasileiro e mundial.

Um aspecto que vale destacar é o papel central da fotografia de Edgar Brazil. Sem ela, o filme não iria longe. Quem o vê, hoje, ainda fica impressionado pelos planos-sequência e movimentos de câmera difíceis de serem feitos com a tecnologia existente na época. Mário Peixoto parece reconhecer a participação fundamental de Edgar Brazil: o nome do fotógrafo aparece nos créditos com destaque, logo na abertura.

A trajetória conturbada de Limite e de seu autor (Mário Peixoto passou o resto de sua vida recluso em uma ilha, em Angra dos Reis), acrescenta camadas de curiosidade e uma aura de mistério em torno do filme. O fracasso comercial, seu quase desaparecimento, o posterior – e justo – reconhecimento artístico, tudo isso torna a fita um produto incomum na história do cinema nacional. Para além das intempéries de sua carreira, merece ser visto pela sua contribuição artística extraordinária. Não há nada igual a Limite.

Para quem quiser ver – ou rever – o filme, vai aqui o link: https://www.youtube.com/UeEArblJiMs



Henrique Brandão
 é jornalista e crítico de cinema.

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de junho (32ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

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