RPD || Paulo Gontijo: A estrada não percorrida e o chamado da tribo

Em um período de grandes apelos políticos identitários e de polarização cada vez maior no país, as “tribos” se organizam, reforçam-se e se defendem nos aplicativos de troca e distribuição de mensagens, descentralizados, cooperativos e pouco verificáveis
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É impossível analisar a dinâmica política brasileira sem dedicar algum espaço de reflexão para a comunicação por meios digitais. E por uma questão de clareza, vale dizer que excluiremos aqui qualquer meio que surgiu analógico e se digitalizou, como a TV ou o rádio; mas sim os meios descentralizados, cooperativos e principalmente pouco verificáveis como os aplicativos de troca e distribuição de mensagens.

Em primeiro lugar, há que se olhar para a estrutura da produção e disseminação de conteúdo. A relação verticalizada de emissor e receptor, até pouco tempo preponderante, é substituída por uma dinâmica horizontal de recepção, ajuste e redistribuição de conteúdo. Exemplificando: um mesmo vídeo, repassado por diferentes grupos será acrescido de comentários ou recontextualizado, dependendo de cada indivíduo disseminador. Essa dinâmica provoca fenômenos curiosos como a abstração da autoria, a busca pela atenção imediata e a predominância dos conteúdos que confirmam a opinião do emissor. De forma bastante simplificada, a origem do conteúdo e a qualidade da sua elaboração importam exponencialmente menos que a capacidade de reter a atenção de indivíduos e corroborar a narrativa que mais se adequa às minhas próprias crenças.

É necessário que nos aprofundemos um pouco aqui no “viés de confirmação” e seu papel na disseminação de informação nas redes. Já é bastante pacífico na literatura científica que informações que confirmam as crenças de um indivíduo geram uma descarga de dopamina no cérebro. Um fenômeno similar acontece quando executamos tarefas ou entregamos um trabalho. É um fenômeno também que remete à nossa socialização ancestral, uma vez que atrelamos prazer à identificação intelectual com outra pessoa. Tal mecanismo deve ter sido fundamental na construção de tribos e sociedades primitivas como forma de vínculo.

Na sociedade pós-moderna, pode ser a semente do conflito. Isso se deve, claro, ao contexto. Em um período de grandes apelos políticos identitários e de polarização cada vez mais entranhada, as tribos se organizam, reforçam-se e se defendem. Em um mundo onde a política é feita de narrativas em vez de espadas, e de produtores de conteúdo em vez de soldados, a coesão e a animação da tribo vêm da informação. Muita informação. Em quantidade e frequência quase viciante, afinal estímulos prazerosos geram dependência. O fenômeno do “tiozão do zap” é a concretização dessa nova guerra de trincheira. Só que a trincheira não está mais em Amiens ou Ypres, mas no seu bolso, no seu celular, na sua família. Em épocas pandêmicas, aliás, a convivência da família muitas vezes se resume a um grupo de troca de mensagens.

Entender essa dinâmica nos permite olhar para a representação política e a disputa de poder com outros olhos. Essa tribalização digital leva também a outro fenômeno curioso: a morte do protocolo, da hierarquia do método. Em um mundo de disputas tribais, não pode haver alternância de poder, os embates precisam ser resolvidos pela dualidade subjugar ou submeter-se. E é nesse campo que acontece a disputa de narrativas hoje: a construção de um inimigo, a narrativa unificadora da tribo, os estímulos que mobilizam e o enfrentamento. Essa mistura poderosa é anabolizada com doses constantes e cavalares de energético: a dopamina.

Por fim, em um mundo no qual a minha representação se mistura com a minha identificação ancestral, os intermediários são desnecessários: instituições, separações impessoais de poder, regras que distanciam e freiam os anseios do povo são apenas obstáculos ao pleno exercício do tribalismo. Hábitos de uma elite decadente, corrupta e desconectada da realidade. Uma casta de privilegiados que não permite o pleno exercício da liderança do nosso clã pela única autoridade que nos representa. Esse “Chamado da Tribo”, nas palavras de Vargas Llosa, porém não é um caminho raro a ser trilhado na nossa história recente:

“O “espírito tribal”, fonte do nacionalismo, foi o causador, junto com o fanatismo religioso, das maiores matanças na história da humanidade. Nos países civilizados, como a Grã-Bretanha, o chamado da tribo se manifestava principalmente nos grandes espetáculos, jogos de futebol ou concertos ao ar livre dos Beatles e dos Rolling Stones, nos anos 1960, nos quais o indivíduo desaparecia engolido pela massa, uma escapatória momentânea, saudável e catártica das servidões diárias do cidadão.”

Apesar dos meios diferentes, trilhamos hoje um rumo conhecido: fechamento, radicalização, tribalismo e diminuição das instituições. O canto da sereia que nos move tampouco é novidade. A esperança está na coragem de reverter esse caminho rumo à uma grande sociedade aberta. Como disse o poeta Robert Frost:

“…Duas estradas bifurcavam numa árvore. Eu trilhei a menos percorrida, e isto fez toda a diferença.”


Paulo Gontijo é Diretor de Inovação da Invest.Rio; graduado em Letras pela PUC-Rio, é também especialista em Relações Internacionais pela Universidade Cândido Mendes e em Liderança e Competitividade Global pela universidade americana de Georgetown (Washington, D.C.), entre 2018 e 2021 foi diretor-executivo do movimento liberal Livres.

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de junho (32ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

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