Day: junho 11, 2021

RPD || Milton Seligman: Reparação histórica com a população negra

Participei de um debate sobre reparação histórica com a população negra, organizado pela Fundação Astrojildo Pereira, juntamente com a professora Jane Monteiro Neves e os professores Ivanir dos Santos e Ivair Augusto.
Em meio a conhecedores profundos do tema e ativistas com larga experiência na militância democrática em defesa de direitos para a população negra, meu papel se resumiria a levantar pontos e sugerir caminhos para uma agenda de discussões com o mundo corporativo. Foi o que fiz.

O Brasil foi o último país ocidental a tornar ilegal a escravatura, isso há apenas 133 anos. Claro que isso teria reflexos profundos e negativos em nossa sociedade, e superar esse trauma não seria, como está se vendo, tarefa simples. A chaga da escravatura em nossa sociedade está no modo como naturalmente excluímos a maioria da população negra da participação em nossas instituições. Não se trata de uma simples ação de pessoas de má índole. É muito pior. Trata-se de um conjunto de práticas, com lastro na história, com raízes na cultura, que impregna relações interpessoais e causam prejuízos profundos e constantes, provocando disparidades e injustiças dentro da sociedade. Isso tem de mudar, há uma dívida a ser paga, uma reparação a ser feita.

O ponto inicial é a educação, a mais importante política pública para garantir igualdade de oportunidades futuras. Essa agenda deve começar por conhecer, reconhecer e divulgar os resultados da política de cotas raciais e lutar por sua permanente melhoria. A Lei nº 12.711/2012 completará 10 anos no próximo ano e precisa de uma avaliação independente, baseada em evidências que nos permitam celebrar os inúmeros ganhos e melhorar o que pode ser aprimorado.

A seguir, o foco deve se dirigir às oportunidades de emprego e renda de qualidade. No Brasil, a maior parte dos empregos e as maiores oportunidades de renda são geradas na iniciativa privada. Na área pública, esse tema é regulado pela legislação. E, na democracia, depende de nós, criarmos maiorias com poder para agendar e aprovar políticas de inclusão.

Na iniciativa privada e nas grandes organizações onde o Estado tem presença forte – o mundo corporativo – é que falta uma agenda para a construção da diversidade racial com justiça.

O ponto inicial é ampliar a representatividade negra nas contratações e promoções. Necessário revisar processos seletivos para reduzir o viés racista inconsciente, dando oportunidades iguais a todos os candidatos. Isso deve começar por programas de estágios e trainees dirigidos à população negra.

O segundo ponto é conscientizar as empresas sobre a pauta da diversidade, da inclusão e do viés inconsciente. Treinar as lideranças é muito importante e totalmente possível. O objetivo é trabalhar para construir empresas cada vez mais diversas, cujo ambiente de trabalho dê as condições para que todos tenham conforto psicológico para expressar suas diferenças.

Bom lembrar que no Brasil as empresas têm muitos negros entre seus empregados, número muito pequeno, entretanto, nas posições de liderança. A maioria é recrutada para ocupar cargos operacionais. Uma boa prática seria estabelecer metas para aumentar a representatividade negra em cargos de liderança, tanto na administração, como nos conselhos diretivos.

O terceiro ponto seria promover a diversidade racial no ecossistema corporativo, influenciando fornecedores, clientes e parceiros a colocar em prática iniciativas em relação ao tema. As empresas, na medida em que se conscientizem, devem ser estimuladas a ampliar a diversidade racial em seu entorno.

A implementação de uma agenda como essa tem inúmeros desafios.

Uma sugestão é estimular a criação de grupos de aconselhamento sobre diversidade racial, formado por profissionais negros referências em suas áreas. Esses profissionais não só ajudariam a desenhar as iniciativas, mas também acompanhariam sua implementação e seu desenvolvimento.

Do mesmo modo, deve ser estimulada a criação de grupos de diversidade racial dentro das empresas, com seus funcionários, para ajudar nessa jornada virtuosa. Esse grupo pode contribuir para conscientizar as pessoas dentro das empresas, promovendo discussões sobre racismo e iniciativas de diversidade. O grupo também pode servir de rede de apoio para as pessoas se sentirem acolhidas, compartilhar experiências, aumentar a segurança psicológica e o senso de pertencimento.

Na medida em que aumenta a consciência social sobre essa dívida coletiva, as empresas começam a reconhecer que para prosperar precisam criar um ambiente de negócios melhor, mais amigável, com menos conflitos e tendem a assumir uma agenda de diversidade e equidade racial.

A jornada de enfrentamento da discriminação, seja pessoal ou corporativa, não é específica, e a questão racial vem muitas vezes matizadas com outras formas igualmente estruturais de discriminação. O direito à equidade e a defesa das mulheres e da população LGBTQ+ passam a ser percebidos e tendem a fazer parte integrante dessas agendas. Convencer as pessoas a abraçar o compromisso de resgatar essa dívida social faz parte da virtuosa luta em favor da vida. O mérito dessa ação faz lembrar do Dr. Martin Luther King Jr. e de uma de suas frases mais incríveis.

“Nossa vida começa a terminar no dia em que ficamos em silêncio sobre coisas que importam.”

Milton Seligman é engenheiro eletricista , ex-Ministro da Justiça (1995-1997), ex-Presidente do Incra, ex-Secretário Executivo do Programa Comunidade Solidária e ex-Secretário Executivo do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. Desde 2015, é Consultor, Professor do Insper e pesquisador do Woodrow Wilson Center for International Scholars, em Washington, D.C., nos Estados Unidos.


** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de junho (32ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

Fonte:


RPD || Paulo Baía: O grito da floresta

Ouço os tambores tocarem dentro da floresta, sinto-me transportado para dentro de um ritual indígena para que a floresta reassuma seu lugar. A pele parda dourada do índio exala o odor da terra e das matas, carrega em seu corpo a vida que renasce todos os dias. É o veio das águas pulsando e tornando a vida possível. Na última quinta-feira, 19 de maio de 2021, foi deflagrada uma operação denominada de Akuanduba, que, segundo a mitologia dos índios Araras do Pará, representa a força de uma divindade que toca uma flauta para restabelecer a ordem na tribo. As regras precisam ser cumpridas, e a ordem significa a garantia de que a vida existe para ser vivenciada em sua plenitude junto à natureza e aos rituais de fartura e prosperidade, para que a tribo esteja segura. É o desejo da Polícia Federal , quando fez a Operação contra o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e as demais autoridades ligadas ao crime de corrupção, pelo contrabando de madeiras.

O Brasil tornou-se um país carregado por investigações, operações e desmandos em todas as esferas. A ordem não existe, e quem sabe a divindade Akuanduba não deseja, por meio do toque de sua flauta, restabelecer o organismo da natureza, recolocando-a em sua ordem natural, após a Polícia Federal ter sido informada pela Embaixada americana que três cargas de madeira da empresa Tradelink foram apreendidas no Porto de Savannah, no estado da Georgia, por problemas de documentação. O ministro está implicado por ter feito movimentação financeira estranha, por meio do escritório de advocacia do qual é sócio.

A corrupção bateu não só na porta do ministro, mas também do Ibama. É a destruição corroendo a Floresta Amazônica pela exportação ilegal de madeira, pelo desmatamento e a transformação da floresta num deserto de impossibilidades. É a ordem dos índios sendo desfeita pelos desmandos do homem branco, que deseja continuar vivendo da exportação do “pau-brasil” em tempos coloniais para o enriquecimento de poucos por meio de atividades extrativistas de exploração. Os tambores permanecem soando nos meus ouvidos, a floresta pulsa e se ressente dos desmandos de um governo que deseja enriquecer os criminosos de diversas áreas. Akuanduba aumenta o som da flauta pelo tamanho da desordem instituída pelo próprio governo federal ao autorizar a prática ilícita.

De acordo com a investigação, a Tradelink exportou madeira ilegal sem autorização prévia do Ibama, pelo menos em sete ocasiões: cinco contêineres destinados aos EUA, um para a Dinamarca e um para a Bélgica. Em 17 de janeiro, as autoridades norte-americanas foram avisadas sobre a procedência da carga, e o material foi apreendido. A operação foi deflagrada por ordem do ministro Alexandre de Moraes, do STF, que também determinou o afastamento do presidente do Ibama, Eduardo Bim, por suspeita de irregularidades. A operação não foi comunicada à Procuradoria-Geral da República . É importante ressaltar que o atual ministro do Meio Ambiente não é um novato na área. Ele foi secretário de estado do meio ambiente de São Paulo nos governos de Geraldo Alckmin.

Ricardo Salles trabalha na lógica de desfazer todas as regulamentações ambientais implantadas desde 1972 com a primeira Conferência de MA da ONU, em Estocolmo, revogar a constituição de outubro de 1988. Ele é o porta-voz e o CEO do empresariado paulista em suas ramificaçõe s nas regiões Centro-Oeste e Norte . É um lobista com apoio e expertise de destruição lastreada em uma sólida carreira de gestor público. É do Partido Novo, foi candidato a deputado federal, tendo como pauta o assassinato do Estado em todas as áreas, matas e florestas derrubadas, vendidas ou queimadas como emblema de sucesso na visão escatológica dos laranjas do Novo, dos “Joãos Amoedos”. Agora, no dia 31 de maio, a Procuradoria-Geral da República faz um pedido formal para que o Supremo Tribunal Federal faça o que já está fazendo, investigar criminalmente Ricardo Salles e sua turma de “motosserradores” e contrabandistas.

A floresta respira e busca, por meio dos índios, permanecer viva para continuar se reproduzindo, apesar do homem branco e do seu desejo não de progresso e desenvolvimento, mas de matar o chão do qual vivem e cuidam. O ritual ressoa na minha cabeça, e os tambores tocam para mostrar o quanto a força de Akuanduba necessita de ajuda para continuar tocando sua flauta e reorganizar uma ordem que vive pelo avesso e derruba não apenas as árvores, mas busca a exportação ilegal de madeiras colocando a floresta dentro de uma política alijada da lei, da Constituição – uma política que flerta o tempo inteiro com o apelo à morte da democracia e com a barbárie.

Paulo Baía é graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mestre em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense (UFF), doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e pós-doutor em História Social pela UFF. É professor do Departamento de Sociologia da UFRJ e coordenador do Núcleo de Sociologia de Poder e Assuntos Políticos.

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de junho (32ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

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