RPD || Reportagem Especial: Novas variantes do coronavírus aumentam horror físico e mental entre profissionais da saúde

Reportagem especial da Edição 32 da Revista Política Democrática Online (Junho/2021) mostra que a pandemia continua a impor medo no país, que tem menos de 30% da população vacinada com a segunda dose e mais de 480 mil pessoas mortas por complicações da Covid-19
Foto: Breno Esaki/Agência Saúde
Foto: Breno Esaki/Agência Saúde

Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP

Um médico viu dez pacientes morrerem em uma unidade de terapia intensiva (UTI) para Covid-19 em apenas um plantão, em Goiás. Ele se deparou com a mesma cena em um dos maiores hospitais no Distrito Federal, onde também trabalha. Em São Paulo, uma colega de profissão ficou três semanas afastada do trabalho, por conta de uma exaustão física e emocional extrema. Outros trabalhadores da saúde já pediram afastamento ou demissão pelo mesmo motivo.

“Nunca dei tanta notícia de óbito na minha vida nem vi tantos colegas sofrerem junto de pacientes e familiares. Parece filme de terror, e a qualquer momento a gente também pode ser acometido”, diz o médico goiano Euler Sousa e Silva, 46 anos. Ele também atua em plantões no Hospital Regional de Brasília (HRAN ).

Com menos de 30% (48.734.903) da população vacinada com a primeira dose da vacina contra a Covid-19, no Brasil, profissionais da saúde ainda enfrentam uma árdua rotina em verdadeiros campos de guerra contra o coronavírus. A pandemia já matou mais de 480 mil pessoas, até a primeira quinzena deste mês, no país. O registro de novas variantes aumenta o cenário de horror nos hospitais.

Frios apenas nas estatísticas, os números são o somatório de cada pessoa que perdeu a vida em um país que negligenciou totalmente a campanha de imunização e que, até o início deste mês, completou o esquema vacinal, com a aplicação da segunda dose, em apenas 10% (71.631.011) da população. O governo só reagiu devido a pressão da população e da imprensa.

Entre as vítimas profissionais da saúde, estão 778 enfermeiros e 810 médicos que foram contaminados ao tentar salvar a vida de pacientes com Covid-19 em hospitais, segundo o memorial virtual do Conselho Federal de Medicina (CFM). Não há estimativas sobre morte de técnicos em enfermagem e fisioterapeutas.

Aos que continuam na linha de frente contra o coronavírus, só resta encarar o ápice do esgotamento físico e da corrosão mental que ainda atingem milhares de profissionais da saúde, no segundo ano da Covid-19, no país.
28 plantões por mês

Cirurgião e intensivista, o médico João Manoel Brandão Camilo, de 30 anos , viu sua rotina de trabalho aumentar ainda mais na pandemia. Por mês, faz em média, 28 plantões de 12 horas, cada um, em UTI de pacientes com Covid-19 internados em estado grave, em São Paulo. “Já vi cinco pacientes morrerem em apenas 12 horas, em uma UTI com 20 leitos”, afirma. “É uma sequência de tristeza e horror. A doença é muito terrível”, lamenta. Ele voltou recentemente ao trabalho, depois de três semanas afastado por síndrome de Burnout, com ansiedade generalizada, esgotamento físico e mental profundo e tristeza extrema.

O caos deve aumentar. No país, oito em cada 10 profissionais de medicina da linha de frente veem a pandemia, neste ano, tão grave quanto em 2020, ou até mesmo pior. Sete em cada dez apontam tendência de aumento de mortes, de acordo com a primeira pesquisa nacional Os Médicos e a pandemia de Covid-19, feita pela Associação Médica Brasileira (AMB).

Paciente em UTI para tratamento da Covid recebe atendimento. Foto: Breno Esaki/Agência Saúde

A pesquisa, divulgada em fevereiro deste ano, ouviu 3.882 médicos. No total, 92% confirmaram casos de profissionais com ao menos um problema causado pelo enfrentamento à pandemia. Eles citaram, principalmente, ansiedade, estresse, sensação de sobrecarga, exaustão física ou emocional, mudanças bruscas de humor, dificuldade de concentração.

Apesar do medo, os médicos que trabalham em UTIs em Goiás, Distrito Federal e São Paulo mergulham na dolorosa maratona de horror, todos os dias. Euler Sousa e Silva se divide entre plantões em um hospital particular de Aparecida de Goiânia e no Hospital Regional da Asa Norte, em Brasília, e no transporte de pacientes com Covid-19, em ambulâncias do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU ).

“Já chorei na frente de colegas. Às vezes, a gente sai de perto e vai para um canto para não abalar o resto da equipe, mas teve momento que foi na frente de todo mundo, porque a gente tem fraqueza”, desabafa. Logo em seguida, cai no silêncio e chora. “Estou engasgado, cansado, não aguento mais essa carga.”

“Vacina necessária”
O médico de São Paulo ainda carrega o medo por ter perdido dois amigos e colegas de profissão para a Covid-19, recentemente. Um deles tinha 33 anos e, segundo João Manoel Brandão Camilo, havia tomado as duas doses da vacina contra essa doença.

“A imunização é necessária porque serve para diminuir o risco de a doença evoluir para casos mais graves, em caso de contaminação, como a gente tem visto nos casos de pessoas que já tomaram a vacina e chegam ao hospital com o vírus”, afirma.

De acordo com o médico que trabalha em São Paulo, os casos letais de pessoas vacinadas servem, mais uma vez, de alerta para que a população siga as recomendações de enfrentamento à pandemia, mesmo após imunizadas. Os laboratórios nunca divulgaram que as vacinas iriam proteger as pessoas, totalmente, principalmente por causa do avanço de novas variantes do coronavírus no país.

Presidente de associação que reúne 33 hospitais de alta complexidade na rede privada em Goiás, todos com leitos de Covid-19 lotados, Haikal Helou confirma que os médicos estão no limite. “A pressão é constante. Tem médico tomando remédio para dormir. Amigos psiquiatras dizem que os consultórios nunca estiveram tão cheios, principalmente de colegas”, afirma.

“Ano passado, já tive que escolher quem iria ficar com oxigênio e quem iria ficar com falta de ar. Não tinha ponto de oxigênio”, lembra a presidente do Sindicato dos Médicos de Goiás (Simego), Franscine Leão, de 38 anos . “Este ano isso ainda não aconteceu comigo, mas a gente tem observado que agora estão morrendo muitos pacientes jovens”, conta. “A sensação de impotência é muito grande.”

Diariamente, em todo o país, cada pessoa internada com Covid-19 exige uma intensa operação de profissionais. Cobertos pelos incômodos e imprescindíveis aparatos de proteção, eles atuam em ritmo de máquinas, para pronar (virar de bruços), sedar, intubar e, em casos mais graves, ambuzar (realizar respiração manual), além de fazer muita força para reanimar os pacientes.

“Já fiquei duas horas reanimando paciente. Em muitos, o respirador [mecânico] não entra. O pulmão fica duro igual pedra. Muitas vezes, a gente tem que ficar em pé na maca, jogando o peso do nosso corpo, para conseguir fazer a massagem cardíaca efetiva. Chegou a ponto de eu ter câimbra na mão. Quando parei e declarei o óbito, estava molhada, escorrendo suor”, lembra Franscine Leão.

Segundo Franscine Leão, médicos, enfermeiros e técnicos em enfermagem estão exaustos, em hospitais de todo o país. “A gente está servindo para fazer atestado de óbito”, relata. “Já perdi as contas de quantos colegas estão se afastando e de enfermeiros pedindo demissão, por transtorno de ansiedade ou de estresse pós-traumático”, acrescenta.

Governo brasileiro sancionou, no dia 15 de abril do ano passado, a lei que regulamentou a telemedicina ou telessaúde, em caráter emergencial
Foto: Secom/PR


Benilton Carlos Bezerra Júnior: “Pandemia catapultou a telemedicina”

Assim como impõe pressão sobre profissionais da saúde na linha de frente, no socorro a pacientes com Covid-19, a pandemia também reforça a necessidade de superar paradigmas na medicina. Estimuladas pela necessidade de distanciamento social, as consultas a distância devem exigir, cada vez mais, dos médicos maior capacidade de fazer análise visual de sinstomas físicos dos pacientes.

Professor no Instituto de Medicina Social da Universidade do estado do Rio de Janeiro (UERJ ) e um dos autores do livro “O mundo pós-pandemia: reflexões sobre uma nova vida”, o médico Benilton Carlos Bezerra Júnior acredita que “a pandemia catapultou a telemedicina”. “Os médicos tiveram de se adaptar à necessidade de atender as pessoas a distância”.

No Brasil, o governo sancionou, no dia 15 de abril do ano passado, a lei que regulamentou a telemedicina ou telessaúde, em caráter emergencial, durante a crise causada pela pandemia da Covid-19. “A modificação na relação do médico com o paciente vai, naturalmente, aprimorar a capacidade, a distância, de o profissional formular diagnóstico”, afirma Benilton.

É uma perspectiva que deve impulsionar a saúde pública “de maneira extraordinária”, segundo o professor da UERJ . “Por um lado, pode permitir acesso maior e mais qualificado aos serviços de saúde, mas, por outro, isso só vai acontecer na medida em que houver política pública de forte investimento na saúde”, ressalta.

Nesse aspecto, de acordo com Benilton, a crise sanitária global impôs um ponto crítico. “A pandemia trouxe mais encruzilhada. Os países que investirem na saúde e educação terão mais chance de enfrentar o cenário pós-pandemia, os que não fizerem terão consequências profundas”, destaca.

Benilton: Eixo da medicina deve se tornar mais preventivo e menos para a definição do que é exatamente o evento patológico momentâneo. Foto: Divulgação

Considerando o perfil negacionista do Presidente Jair Bolsonaro (sem partido), diante da pandemia, Benilton acredita que o cenário pós-pandemia, no país, deve ser catastrófico, se não houver mudança profunda na postura do governo. “Com esse desgoverno, a tendência é que o país tenha pós-pandemia agravado pela decadência, decrepitude, do sistema de saúde como um todo”, lamenta.

De acordo com o professor da UERJ , outro reflexo da pandemia é a possibilidade de mudança na maneira de o país organizar a estratégia clínica da medicina, que, até há pouco tempo, organizava-se em torno das categorias fundamentais da medicina: análise da história pregressa do paciente, diagnóstico da situação atual, aprovação de tratamento, cura e prognóstico de tratamento.

“Isso tudo era o que marcava o encontro do médico com o paciente e, agora, está sofrendo impacto”, observa Benilton. Com as possíveis mudanças, ele acredita que o eixo da medicina deve se tornar mais preventivo e menos para a definição do que é exatamente o evento patológico momentâneo. Por isso, a tendência é que a relação entre médico e paciente possa se expandir para monitoramento constante dos desequilíbrios na dinâmica da saúde das pessoas.

Nada disso seria novidade se o Sistema Único de Saúde (SUS) já tivesse sido implementado totalmente. “O modelo do SUS, se eficazmente implementado, já poderia ter avançado no aspecto do monitoramento constante das pessoas, sobretudo por meio do atendimento na atenção primária e saúde da família, ao invés de esperar que as pessoas adoeçam”, diz o médico.



Saiba mais sobre o autor:

Cleomar Almeida é graduado em jornalismo, produziu conteúdo para Folha de S. Paulo, El País, Estadão e Revista Ensino Superior, como colaborador, além de ter sido repórter e colunista do O Popular (Goiânia). Recebeu menção honrosa do 34° Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos e venceu prêmios de jornalismo de instituições como TRT, OAB, Detran e UFG. Atualmente, é coordenador de publicações da FAP.

Privacy Preference Center