direita

Demétrio Magnoli: A esquerda no espelho da epidemia

O vírus tem lado ideológico

A crise ensina. A emergência sanitária do coronavírus evidenciou o negacionismo criminoso de Jair Bolsonaro, desmoralizando seu governo aos olhos de todos que não sucumbiram ao fanatismo ideológico da extrema direita. Contudo, de um modo menos óbvio, ela também lançou um penetrante jato de luz sobre a esquerda, expondo suas vísceras. A imagem resultante não é bonita.

Capítulo um: hipocrisia.

A esquerda ocupou a linha de frente do exército que clamava pela imposição de lockdown. Na Itália, na Espanha e na França, rígidas medidas de lockdown travaram o avanço dos contágios, circunscrevendo regionalmente as epidemias. Lockdown não é, porém, um ato de pura vontade. O congelamento geral da vida econômica e social exige uma ditadura totalitária (China) ou a conjunção de dois fatores inexistentes na paisagem brasileira: consenso político e coesão social.

Não se faz lockdown sob um governo central em campanha permanente contra o distanciamento social. Não se faz lockdown com vastas parcelas das populações metropolitanas carentes de renda e redes de proteção social, que se concentram em cinturões periféricos e favelas desassistidas. A esquerda que ignora essas realidades escolheu dialogar exclusivamente com as classes médias.

Semanas atrás, deputados do PT de São Paulo recorreram, sem sucesso, aos tribunais para impor ao governador Doria a execução de um lockdown. No Rio, um clamor similar emanou de lideranças do PT e do PSOL. Um eventual lockdown nas duas metrópoles demandaria massiva mobilização de forças policiais nas periferias e favelas. As PMs patrulhariam as ruas onde vivem os pobres e ocupariam favelas controladas por milícias e facções. Os partidos de esquerda ofereceriam apoio às inevitáveis implicações repressivas do lockdown?

Capítulo dois: oportunismo.

Quarentenas têm limites temporais, definidos pelo esgotamento da resistência econômica e psicossocial da população. Nenhum país do mundo manteve quarentenas por mais de três meses. As reaberturas conduzidas pelos governos estaduais não são exemplos de planejamento, eficiência ou lógica. A esquerda, porém, escolheu criticar as próprias reaberturas, não suas inúmeras deficiências, aderindo a um iracundo fundamentalismo epidemiológico. A finalidade é disputar as eleições municipais acusando governadores e prefeitos de subordinar vidas a negócios.

Capítulo três: corporativismo.

As escolas estão, em geral, fechadas desde março. Na Europa, com exceção de raros países, a reabertura escolar foi medida prioritária na etapa de relaxamento das quarentenas. Os governos europeus concluíram que crianças são fracos transmissores do vírus — e a experiência comprovou que isso é verdade. Na França, de 40 mil escolas reabertas, surgiram focos de infecção em meras 70. O Brasil, porém, enxerga o ensino público como a mais dispensável das chamadas “atividades não essenciais” — e cogita-se retomar aulas presenciais apenas nas calendas de setembro.

As crianças pobres carregarão para a vida adulta os prejuízos cognitivos e de sociabilização causados pela interrupção escolar de sete meses. Mesmo assim, sindicatos de professores dirigidos por lideranças de esquerda resistem à reabertura em setembro, declarando-a “prematura” e ensaiando movimentos grevistas. Médicos, enfermeiros, comerciários, motoristas, operários e incontáveis outras categorias podem trabalhar presencialmente durante a epidemia. Professores, jamais, na opinião dos sindicatos.

Capítulo quatro: duplicidade moral.

Lá atrás, as manifestações públicas da militância bolsonarista foram qualificadas pela esquerda como atos criminais de difusão de contágios. A esquerda criticou menos o conteúdo antidemocrático delas que a produção de perigosas aglomerações. Há pouco, porém, setores da esquerda voltaram às ruas, em protestos contra Bolsonaro. Nesse caso, as aglomerações não geraram escândalo.

O vírus tem lado ideológico: as manifestações deles provocam infecções, potencializam a epidemia, causam mortes em massa; as nossas são belas, justas e higiênicas. A esquerda que emerge da Covid nada aprendeu.


Renato Janine Ribeiro: Sem acreditar na democracia, instituições serão frágeis contra autoritarismo

É ilusão olhar só as instituições, como fez Yascha Mounk, porque elas não substituem o povo, fonte do poder na democracia

Depois que caiu a ditadura argentina, nos anos 1980, houve algumas tentativas de golpe militar, quando iam a julgamento os criminosos que haviam exercido o poder. A cada vez, multidões tomavam as ruas e repudiavam a ação subversiva e antidemocrática.

De lá para cá, a Argentina viveu graves crises econômicas —como nós—, mas nunca a democracia esteve em risco. Teve e tem apoio popular.

Digo isso a respeito do artigo de Yascha Mounk, “Brasil já é uma democracia sob supervisão militar”.

Concordo com o título e com a tese principal. Mas estranhei sua alusão a “especialistas brasileiros que consultei alguns anos atrás e que sentiam confiança na força das instituições brasileiras”, porque segundo eles “os militares haviam se afastado de vez da política”.

O problema é que instituições somente são fortes se tiverem apoio popular. Esse apoio pode se chamar cultura política, educação política. Não me deterei na diferença entre esses conceitos, mas insisto: se as pessoas não acreditarem na democracia, as instituições serão frágeis contra o autoritarismo.

Infelizmente, o que nos preservou da ditadura, desde 1985, foi a fraqueza dos antidemocratas, mais que a força dos democratas. A ditadura acabou em fiasco, inclusive econômico, mas não sofreu punições.

Uma comissão da verdade demorou décadas para ser criada. A anistia que o regime de exceção deu a si mesmo, embora condenada internacionalmente, foi mantida pelo STF.

A fraqueza de nossa democracia é a fraqueza da convicção democrática dos brasileiros. Não emplacamos a ideia de que a divergência política é legítima. Na verdade, aumentou a crença de que quem diverge de nós é corrupto. Ora, na política democrática sempre há ao menos duas vias legítimas e diferentes.

Mas nossas últimas campanhas eleitorais, bem como o antipetismo, fundaram-se na deslegitimação do adversário, convertido em inimigo porque seria ladrão.

Além disso, a democracia não resolveu nossos problemas sociais. De Itamar Franco a Dilma Rousseff, diferentes governos o tentaram. O IDH-M (Índice de Desenvolvimento Humano de Municípios) melhorou sensivelmente. Os governos petistas foram mais longe neste rumo, mas a trilha foi aberta por Itamar e FHC.

Porém, não se construiu a consciência de que os avanços se deviam a políticas públicas —ou à política.

Em vez disso, multidões atribuíram sua melhora de vida, nos anos prósperos do começo do século, a Deus ou ao esforço pessoal, esquecendo a dimensão coletiva, pública, que é a da política.

Esse é o problema. Foi e é uma ilusão olhar só as instituições. Podemos vibrar com uma ação do presidente da Câmara ou de alguns ministros do STF, mas eles não substituem a fonte do poder, que na democracia é o povo.

Sem uma convicção e práticas democráticas enraizadas, nossa democracia continuará, como diz a revista britânica The Economist, “flawed”, ferida, defeituosa.

O erro não é de Yascha Mounk, mas de seus informantes brasileiros, que não viram esse déficit inquietante de consciência política.

*Renato Janine Ribeiro, professor titular aposentado de ética e filosofia política da USP e professor visitante na Unifesp (Universidade Federal de São Paulo). Foi ministro da Educação em 2015, durante o governo Dilma Rousseff (PT). Autor de 'A Pátria Educadora em Colapso' (ed. Três Estrelas).


Alberto Aggio: 'Bolsonaro é o responsável por essas mortes provocadas pela Covid-19'

Em entrevista para o Papo Com Cabeça, o professor titular de história da UNESP/Franca, Alberto Aggio, responsabiliza o governo Bolsonaro pelo aumento exponencial das mortes, nos últimos dias, por Covid-19, ao minimizar a gravidade do vírus e ao trazer instabilidade política ao país, confrontando governadores e demitindo ministros

Por Germano Martiniano

Permitam-me iniciar a introdução desta entrevista com uma explicação sobre o blog. Este blog tem como objetivo fazer entrevistas com atores diversos de nossa sociedade, como esportistas, políticos, intelectuais e entre outras pessoas que direta ou indiretamente tornam-se notáveis pelas suas ações em nosso meio social. Este blog, notadamente, também possuí um viés mais liberal, e procura compartilhar noticias que se aproximem desta corrente. Entretanto, não é um espaço fechado, pelo contrário, é um lugar que procura trazer o pensamento antagônico para se abrir ainda mais o leque do debate.

Dito isso, na semana passada, entrevistei o professor e doutor de história da UNESP/Franca, Jean Marcel, um intelectual reconhecidamente liberal. Nesta semana, trago uma entrevista que pode ser um contraponto em relação ao que tivemos com o professor Jean. O entrevistado da vez para o Papo Com Cabeça, é o também professor e doutor de história da UNESP/Franca, Alberto Aggio, intelectual de centro-esquerda e grande especialista do pensamento gramsciano.

Aggio se destaca no cenário intelectual por sua incisiva defesa pela democracia. Para o professor, a conquista da democracia no Brasil, após o regime militar, “foi muito custosa e difícil”. Por isso, ao ser indagado se Bolsonaro representava um risco ao campo democrático, Aggio foi enfático: “o governo Bolsonaro fez uma opção estratégica pelo confronto e isso gera uma sensação de ameaça e insegurança permanentes em relação à manutenção da democracia”.

No auge da crise sanitária do Covid-19, não poderíamos deixar de discorrer sobre o assunto e como Aggio analisa as ações do governo Bolsonaro frente ao problema. Para o professor, o presidente brasileiro é o grande responsável pela instabilidade política no país, pela extensão do número de contaminados e pelo aumento do número de mortes, que ultrapassa a casa dos 22 mil mortos. “Bolsonaro minimiza a epidemia, confronta governadores e prefeitos, mantem os ataques à mídia, demite dois ministros da saúde e outro que é símbolo da luta contra a corrupção”, avalia Aggio.

Ainda nesta entrevista falamos sobre Democracia Liberal, Social Democracia, Liberalismo e outros assuntos que envolvem nosso dia a dia social e político. Confiram!

Como você avalia o governo Bolsonaro, antes da crise, e agora na forma como está lidando com o Covid-19?

Alberto Aggio - O governo Bolsonaro é resultado de uma eleição legítima, uma rotina em qualquer democracia. Contudo, desde o início, o presidente se pauta por uma estratégia de “destruição” de tudo o que o país construiu nos últimos 30 anos, ou seja, tudo que vem do processo de democratização assentado na Constituição de 1988. Bolsonaro diz que seu objetivo é acabar com a “esquerda”. Na sua versão, com as instituições sociais, politicas e culturais que deram curso à democratização do País. É um equívoco. A democratização foi compartilhada para além da esquerda. Com essa concepção, Bolsonaro expressa a visão da ala mais reacionária do regime militar (1964-1985), aquela que quer repor um regime autoritário por meio de mecanismos democráticos. A estratégia de Bolsonaro é a do confronto. Ele não governa, é um ativador de tensões que busca construir inimigos, muitas vezes imaginários (como a exumação do comunismo como ameaça). Ele instaura um clima de ameaça, afastando-se da ideia basilar de que numa democracia há adversários e não inimigos que precisam ser eliminados. É uma dinâmica que não pode ser parada só pode ir adiante. É o que chamei em um artigo de “guerra de movimento” (https://blogdoaggio.com.br/isso-e-bolsonaro/). A “obra de destruição” que busca Bolsonaro não pode ser realizada em apenas um mandato. Por isso, seu horizonte é a reeleição. Quando vem a crise sanitária provocada pelo coronavírus, tudo fica mais crispado pois suas consequências, principalmente econômicas, ameaçam sua reeleição. O que faz então Bolsonaro? Minimiza a epidemia, confronta governadores e prefeitos, mantem os ataques à mídia, demite dois ministros da saúde e outro que é símbolo da luta contra a corrupção, apoia e vai a manifestações públicas que pedem o fechamento do STF e do Congresso, ou seja, radicaliza sua “guerra de movimento”. O resultado é a queda de popularidade nas pesquisas. Começa-se a se falar em impeachment. Bolsonaro é obrigado a rever, pelo menos em parte, a estratégia de confronto. Move-se em direção ao Centrão no intuito de constituir uma base parlamentar para evitar o impedimento. É aí que estamos: incerteza, insegurança, preocupação com a continuidade da democracia no Brasil e com a licitude dos recursos públicos uma vez que, como disse Sérgio Abranches, Bolsonaro visa formar com o Centrão não uma “coalizão de governo” mas uma “colusão”, ou seja, um arranjo para enganar (http://www.fundacaoastrojildo.com.br/2015/2020/05/19/sergio-abranches-bolsonaro-em-modo-defesa/). Se o governo se sustenta na “ala ideológica” de extrema-direita mais a dos militares, agora Bolsonaro dá passos em direção a um campo que contradiz o seu discurso de campanha contra a alegada “velha política”, promovendo um claro “estelionato eleitoral”. Mas pode bloquear o impeachment, que é o objetivo da operação.

As mortes no Brasil estão crescendo, no entanto, proporcionalmente, por milhões de habitantes, estamos atrás de muitas nações desenvolvidas. Ou seja, mesmo países como Inglaterra, Espanha, Itália etc., não souberam lidar da melhor forma com o vírus. Neste ponto, você não acha que existe uma tentativa da oposição política e parte mídia em responsabilizar o governo Bolsonaro por um problema que tem sido difícil combater até mesmo nas nações mais avançadas?

A.A. Não, não acho. Embora o enfrentamento da pandemia seja complicado porque se trata de algo desconhecido, não creio nem que o Brasil esteja se saindo melhor que países europeus, nem que a mídia atue contra o governo Bolsonaro. O exemplo europeu (e chinês, antes) mostra que a quarentena foi obrigatória, uma imposição, e não uma escolha. Os países europeus, agora, estão saindo dela enquanto o Brasil está entrando na pior fase, com o aumento expressivo do número de mortos. Cabe a pergunta: quem seria o principal responsável no combate à epidemia no Brasil? O governo Bolsonaro, quem mais seria? O Ministério da Saúde deveria fazer a mediação dos entes federativos para enfrentar a epidemia. Mas Bolsonaro atacou de saída os governadores que tinham que dar respostas imediatas à enfermidade. Criticou Mandetta quando o ex-ministro, em meados de março, esteve em São Paulo reunido com o governador João Doria discutindo providências diante da pandemia. Foi Bolsonaro quem politizou o combate a epidemia da Covid-19. Pensou que iria prejudicar sua reeleição, se sentiu ameaçado. Bolsonaro não fez outra coisa senão atrapalhar as ações da saúde, abandonando qualquer relação positiva com os governadores e prefeitos. Jamais convocou o país para juntos – congresso, sociedade civil, mídia, etc. –, enfrentar a epidemia. Ele não acredita nas indicações científicas, não aceita o isolamento social e se fixou obcessivamente nas supostas virtudes da cloroquina para curar os contaminados. Minimizou as mortes com o patético “E daí?”. Estimulou seus apoiadores a irem às ruas defender a volta ao trabalho, adotando a estratégia de opor economia e vida. E mais: na dantesca reunião de 22 de abril (como corretamente a definiu Vera Magalhães (https://gilvanmelo.blogspot.com/2020/05/vera-magalhaes-o-inferno-de-dante.html), Bolsonaro propôs um decreto para armar a população com o suposto intuito de enfrentar decisões de dirigentes eleitos democraticamente a respeito do isolamento social.  E aqui estamos, ultrapassando a casa dos 22 mil mortos e isso vai se acelerar. Bolsonaro é sim o responsável por essas mortes provocadas pela Covid-19. Seria dele que os brasileiros deveriam esperar liderança, apreço e convicção na ciência além de compaixão nesse momento tão difícil. Mas ele só ofereceu deboche, desorientação e morte.

Aggio, a economia brasileira é marcada pela informalidade, milhares de pessoas não possuem nem CPF para receber o auxílio emergencial. Nossa realidade é bem distinta dos países mais avançados que permitem ações mais restritas quanto o isolamento social. Como lidar com essa situação na qual as pessoas necessitam, como diz o jargão popular, de vender o almoço para garantir a janta?

A.A. - Esse país conseguiu criar um “cadastro único” para os mais pobres receberem mensalmente as várias bolsas, desde FHC, e o bolsa família. Não conseguiria fazer algo similar nessa situação de emergência? É uma “desculpa deslavada”, como se diz popularmente. Isolamento social não é coisa de rico, como o discurso bolsonarista quer fazer crer. Inclusive, nenhum prefeito ou governador propôs isolamento total (lockdown). Atividades essenciais continuam a operar e por isso se fala que o ideal seria um isolamento entre 50% e 70%; ninguém falou em 100%. Claro que existem dificuldades, mas onde elas existem, como na favela Paraisópolis, em São Paulo (quer um lugar onde tenha mais pobreza e necessidades?), os moradores se organizaram para se ajudar e garantir algum isolamento. Recentemente se inaugurou um hospital de campanha na área para atender aquela população. E de Bolsonaro veio o quê? A noção de “isolamento vertical”, que é uma falácia: imagina-se que confinando os grupos de risco (idosos e quem tem comorbidades) se diminui o contágio e possíveis complicações. Isso não é verdade. As pessoas que convivem com eles levam o vírus para dentro das casas. Além disso, no Norte do país, no Amazonas, está morrendo gente jovem de coronavírus; perto de 40% ou mais não são de grupo de risco. Os problemas da pandemia podem ser enfrentados com solidariedade, ciência e espirito público. Mas isso o governo Bolsonaro parece que não carrega como uma de suas virtudes, se é que em alguma.

Aggio, embora Bolsonaro fale grandes bobagens e possua algumas ações que flertam com a ditadura brasileira, como ter comparecido em um movimento de rua que pedia a volta do AI-5, vemos que os poderes legislativo e judiciário continuam agindo de forma independente, nossas instituições parecem preservadas e a opinião pública livre e independente para se manifestar. Mediante ao que escrevi acima, para você, o governo Bolsonaro representa uma ameaça à democracia brasileira? Se sim, por que?

A.A. - Como eu disse acima, o governo Bolsonaro fez uma opção estratégica pelo confronto e isso gera uma sensação de ameaça e insegurança permanentes em relação à manutenção da democracia. As instituições da democracia só continuam funcionando em função de atores políticos, sociais e culturais que dão vigor a elas. Bolsonaro não apenas diz bobagens. Ele dirige e orienta ações contra a democracia. Vide suas posições em relação à imprensa (creio que não preciso mencioná-las), ao meio ambiente, à cultura, ao patrimônio histórico, às universidades, etc.. Está claro que é um governo extremista de direita, nada liberal e que atenta contra direitos básicos que estão da Constituição. Pior, ele isola o país internacionalmente, faz com que a sociedade regrida em inúmeras pautas civilizatórias e humanistas que tínhamos avançado em termos sociais e culturais, como as dimensões de gênero, a questão da violência, da solidariedade, da laicidade do Estado, etc. Uma das marcas de Bolsonaro é o seu antiintelectualismo e isso faz com que todo o governo seja impactado por essa visão. Contra a Constituição de 1988, Bolsonaro retira (ou expulsa) do Estado a sociedade organizada, que é um dos elementos de sua desoligarquização, ou seja, da ampliação do próprio Estado, pela via da democracia. Com Bolsonaro, a democracia está bloqueada e regride. E isso gera uma sensação de retrocesso que é sentida no conjunto da sociedade. Não é atoa que ele despenca nas pesquisas e mantem seu apoio apenas no núcleo mais radical, que o apoia cegamente.

Existem elementos suficientes que justifiquem um possível pedido de impeachment? Caso existam, você acredita que ele possa ocorrer?

A.A. - Inúmeros especialistas em direito constitucional já disseram que sobram elementos para o impedimento de Bolsonaro. Em geral, os crimes contra o decoro lideram a lista. Tentar utilizar, por exemplo, a Polícia Federal para defender a família e os amigos é prevaricação, ou seja, é mais do que intervenção, o que já é inconstitucional. Manter um sistema de informações privado (que não se sabe muito bem o que é) está fora das atribuições constitucionais de um presidente da República, é um outro exemplo. Contudo, a questão é política, antes de tudo. Olhando a situação com as lentes de hoje, creio que não existe maioria suficiente na Câmara dos Deputados para avançar um processo de impeachment. Lançá-lo poderia reforçar Bolsonaro ao invés de enfraquece-lo. A operação realizada em direção ao Centrão surtiu efeito. Por outro lado, a crise sanitária e a necessidade de isolamento social impedem que o sentimento de desencanto com o governo transborde para as ruas numa contestação massiva. Penso que a ameaça de existência ou de criação de uma “milícia armada” dentre os apoiadores de Bolsonaro é outra coisa preocupante. Ambos os fatores definem muito da situação complicada para o impeachment, em termos políticos. O processo de crime comum que seria encaminhado pela PGR ao STF, aparentemente mais rápido, tem outros obstáculos. É difícil dizer hoje por onde esse processo irá ser encaminhado ou se será encaminhado.

Aggio, em 2018 você participou do Ato do Polo Democrático Reformista, um movimento de políticos e intelectuais de centro que, naquela ocasião de eleições, visava combater os chamados extremos, Bolsonaro e o PT. Em recente artigo (https://gilvanmelo.blogspot.com/2020/05/mathias-alencastro-vida-e-morte-da.html), Mathias Alencastro, doutor em Ciência Política por Oxford, disse que na Europa partidos políticos, até de diferentes vertentes, têm se unido para combater o extremismo de direita, citando a “Geringonça” de Portugal. Pois bem, em 2018 e trazendo para os dias atuais, se os partidos de centro, e até mesmo o Polo Democrático Reformista, estavam tão preocupados em “salvar” a democracia dos considerados extremos, por que não houve uma união entre os nomes e partidos democráticos de centro, como Ciro, Alckmin e Marina?

A.A. - É difícil responder a isso. É claro que cada opção eleitoral feita deve se responsabilizar por suas consequências. Creio que houve muitos erros de encaminhamento e de opções. Havia um clima muito desfavorável à política. Eu mesmo escrevi sobre a antipolítica como um caldo de cultura antidemocrático naquela conjuntura. E todos nós perdemos. Mas mesmo assim, continuamos preocupados em “salvar” a democracia. A sua conquista no Brasil foi muito custosa e difícil. É justo que nós a defendamos. É verdade que na Europa existiram articulações que impediram, em alguns países, a ascensão da extrema-direita ao poder. Na Itália isso é bastante claro. Matteo Salvini imaginou que poderia conquistar “plenos poderes”, mas fez uma manobra desastrada que abriu a possibilidade de retirá-lo do poder. É um caso especifico. Na Espanha houve uma espécie de renascimento do PSOE e o Podemos, depois de muitas reviravoltas, moveu-se para uma aliança de “governo de esquerdas” e o VOX (extrema-direita) foi anulado. Creio que a Geringonça, em Portugal, pelas informações que tenho, nunca foi uma coalisão eleitoral e sim uma colisão de governo. Hoje ela não existe mais. Mas em Portugal, a extrema-direita é fraquíssima.

Você enxerga a necessidade de uma união dos partidos para vencer Bolsonaro e/ou o PT, assim como colocou Mathias Alencatro?

A.A. - Mais do que união de partidos, creio que será necessário unir todos os democratas, da direita à esquerda, para vencer Bolsonaro. O PT não está no governo. Ele já foi derrotado. O PT representa setores importantes das classes populares, mas não é um sujeito democrático confiável, além de ter um passivo terrível no que se refere à corrupção e ao aparelhamento do Estado. Além de uma liderança ancilosada, que é o Lula. O problema do Brasil hoje é Bolsonaro e não o PT, que está em declínio, enfraquecido, embora tenha alcançado um bom desempenho nas majoritárias de 2018. De qualquer forma, a sociedade reconhece a polarização entre Bolsonaro e o PT. O problema é superar esse reconhecimento, indicar que a situação hoje é outra. Bolsonaro nos leva para o precipício. O vídeo revelando a reunião ministerial de 22 de abril é pavoroso, nos enche de vergonha, demonstra que o Brasil precisa ultrapassar o erro de 2018 e voltar a pensar em novas possibilidades, novas lideranças, que sejam capazes de unir o país e voltar a pensar no seu futuro.

Aggio, quando você vê a ascensão de grupos denominados de extrema direita no mundo, como um todo, você acredita que isso é parte da democracia, dar voz a pluralidade de ideias políticas, ou você analisa como uma ameaça ou crise “DA” democracia liberal?

A.A. - Essa extrema-direita que está aí é iliberal. Foi Viktor Orban, primeiro ministro da Hungria, que criou a expressão “democracia iliberal” para caracterizar esse movimento. D. Trump e J. Bolsonaro a representam à sua maneira e em seus países. Isso é público e insofismável. Essa corrente política é contra o pluralismo que caracteriza a democracia liberal que conhecemos. Contradita também as diversas correntes do liberalismo democrático que vicejou no final do século XX nos países mais avançados e que ainda está aí. Essa extrema-direita é visceralmente contra a democracia como civilização. A ascensão da extrema-direita não é resultado do pluralismo, justamente o contrário, é resultado de uma fragilidade e de equívocos que permitiram que isso ocorresse. A virtude da democracia aponta para a ampliação da emancipação humana e não para um projeto de individualismo exacerbado e de guerra de todos contra todos. Penso que o crescimento dessas forças políticas expressa uma crise da e na democracia ocidental; uma coisa não exclui a outra, como pensam alguns. E se prende a conflitos políticos e econômicos da nossa contemporaneidade e não a batalhas ideológicas simplesmente. É um problema que tem que se abordado pela política e não pela gramática da ideologia.

Admitindo a radicalidade desses extremos, qual autocritica que os democratas liberais poderiam fazer e quais mudanças poderiam realizar para contornar este cenário?

A.A. - Creio que autocrítica devemos fazer todos, pois perdemos eleitoral e politicamente. Mas devemos continuar a defender a democracia. Estamos num momento defensivo e para melhor defendê-la é preciso também avançar. A democracia não é um sistema ou regime político que possa existir sem uma defesa intransigente dos seus princípios e valores: liberdade, emancipação, deveres e direitos, compromisso político, institucionalidade, transparência, justiça social, etc… Dois pontos são importantes. Primeiro, pensar a democracia como complexidade. Ela não se materializa, não se concretiza, não se torna real, a partir da simplificação, uma visão branco e preto, com todas as perversões do pensamento binário. Essa visão da política, no nosso caso, leva rapidamente para as ideias sempre estúpidas de um “salvador da pátria” ou de um “mito” que muitos seguem cegamente. Segundo, que a democracia só se vitaliza, só avança com “mais democracia” ou, em outros termos, democratizando a democracia. Essa é uma formulação presente nos liberais progressistas que se aproxima bastante de formulas progressistas da esquerda democrática, socialdemocrática e reformista.

Aggio, a analista econômica, Renata Barreto, em artigo para o InfoMoney, disse para “não confundirmos o modelo nórdico com socialista”. Durante o artigo, ela discorre que apesar das altas taxas de impostos cobradas pelo governo, a Dinamarca, por exemplo, tem várias características de um país liberal. Pois bem, este debate Liberalismo versus Social Democracia ainda existe? Os países nórdicos são, de fato, sociais democratas?

A.A. - Tem que se olhar o liberalismo do ponto de vista histórico. Lembro que Harold Lask, historiador inglês, dizia, que o socialismo seria uma consequência natural da aplicação do liberalismo. Muito pouca gente sabe que o liberal G. Mazzini, um dos líderes da unificação italiana e o comunista K. Marx, publicavam seus escritos pela mesma editora londrina, por volta de 1846/48, a “Northern Star”, que se notabilizou pelos debates sobre democracia e o movimento operário às vésperas das revoluções de 1848. Os socialdemocratas que, no final do século XIX, começaram a participar das eleições e ascenderam ao governo em países que cada vez mais se tornavam democracias liberais, como E. Beirstein e K. Kautsky, foram criticados como liberais e traidores de classe. Por conta deles e de outros, passou-se a se falar em “socialismo liberal”. Veja, são exemplos históricos que anulam a versão de que há uma contradição antagônica entre liberalismo e socialdemocracia. O liberalismo é uma concepção de mundo enquanto a socialdemocracia foi e é uma política de massas no contexto do Estado Ampliado. Para finalizar, a noção de “regulação” nasce nos países nórdicos com os socialdemocratas entre as duas guerras e era uma alternativa tanto ao fascismo quanto ao comunismo nos anos 30. Não há dúvida que os países nórdicos são socialdemocratas e que o liberalismo não seja algo estranho àquela construção histórica. O que é certo é que eles não permanecerão congelados historicamente.

O nacional desenvolvimentismo petista trouxe grandes prejuízos ao Brasil, sem falar do grande “projeto” de corrupção descortinado pela Lava-Jato. Depois do petismo, do excesso de Estado e funcionalismo público, temos visto muitas pessoas (inclusive eu) defendendo menos Estado e mais mercado. Como você avalia as ideias liberais, hoje até mais representadas pelo Partido Novo e pelo ministro Guedes, na sociedade brasileira como um todo?

A.A. - Veja, o PT não adotou o nacional-desenvolvimentismo durante todo período dos seus governos. O primeiro governo Lula e o último de Dilma são completamente distintos nesse sentido.  A questão da hipertrofia do Estado em nossa história é muito anterior a isso. O nosso estatismo forma parte de uma espécie de tradição que nos acompanha deste a colonização portuguesa, se acentuou no Império e não pode ser excluída de nenhuma fase de nossa história republicana. O regime militar foi ao mesmo tempo estatista e liberal, dando vazão aos apetites empresariais no período do chamado milagre brasileiro (1968-1973), o tal “espirito animal” ou “selvagem” do empresariado a que se referia Delfim Neto, ex-ministro da Fazenda do regime militar. Contudo, nos dias de hoje, pensar de forma apartada e até oposta os conceitos de Estado e mercado talvez não faça mais sentido e nem seja produtivo. O pensamento neoliberal quer mantê-los apartados. Mas não tenho dúvidas que as ideias liberais no Brasil vão muito além das referências ao partido Novo ou a Paulo Guedes. Aconselho a se visitar as páginas de um grande jornal liberal, O Estado de São Paulo, para ver como uma das mais importantes linhagens do nosso liberalismo avalia o país sob Bolsonaro. Por outro lado, há diversos liberais que pensam de forma independente e são muito críticos tanto ao Novo e mais ainda ao Guedes, um neoliberal que, formado em Chicago e inspirado no caso chileno do período pinochetista, distancia-se da tradição das linhagens mais importantes e relevantes do liberalismo aqui no Brasil, que podem ir de Pedro Malan, Bolivar Lamounier até Monica de Bolle e Elena Landau, para citar apenas alguns da boa cepa que esse país já produziu.

Para encerrar, falando em projeto de poder para o Brasil e frente a este debate de mais ou menos Estado, o que você considera ser essencial para o nosso país mediante toda a nossa realidade socioeconômica?

A.A. - Este talvez seja um tema para uma outra entrevista de tão complexo que é elaborar um projeto aqui, em poucas linhas. De qualquer forma, creio que temos que ultrapassar essa situação terrível que estamos vivendo, acossados por uma pandemia e submetidos à deriva que nos é imposta por um governo como o de Bolsonaro. Temos que resgatar a nossa capacidade de diálogo, de nos atualizarmos ao mundo e de olharmos para as nossas particularidades enquanto país que se modernizou carregando inúmeros déficits que expressam a nossa dramática desigualdade bem como nossa miséria cultural e moral, sérios obstáculos à democracia. Não há salto a ser dado nem “fuga para frente” a ser seguida, como se pensou no passado. O nosso destino está dado aqui e agora. Esse é o desafio.


El País: Brasil perde status de democracia liberal perante o mundo

Instituto V-Dem diz que país é mera democracia eleitoral. Ataque orquestrados a jornalistas, enfermeiros e cientistas são a ponta do iceberg. Nenhum regime autoritário foi instalado sem uma manipulação prévia de uma parcela da sociedade

Nesta semana, o secretário-geral da ONU, Antônio Guterres, apresentou um dado revelador: no mundo, 40% das postagens numa grande plataforma social sobre a covid-19 eram realizadas por robôs. Se o dado em si é surpreendente, a pergunta que precisa ser feita é óbvia: a quem serve tal esforço? Por qual motivo um movimento disfarçado de indivíduos anônimos ― e portanto de massa ― buscaria influenciar a opinião pública sobre uma pandemia que matou nos EUA mais que a Guerra do Vietnã?

E por qual motivo líderes de nações supostamente democráticas se lançam, ao mesmo tempo, em ataques explícitos ou camuflados de “espontâneos” contra a imprensa, um eventual antídoto à proliferação de desinformação? No domingo, em pleno dia internacional da liberdade de expressão, jornalistas foram atacados em Brasília. A opção da presidência foi por minimizar os eventos. Dias depois, foi a vez do próprio presidente Jair Bolsonaro revelar sua índole mais íntima ao mandar um repórter “calar a boca” e ofender a imprensa.

Os jornalistas são apenas parte de uma nova rotina do poder. Nesta terça, Bolsonaro gritou duas vezes com jornalistas mandando um “cala a boca”, algo que só a ditadura viu no Brasil. Mas os relatos se espalham pelo país sobre como enfermeiras e médicos estão sendo alvos de ataques de apoiadores do Governo. Não faltam agressões morais contra professores, artistas, intelectuais ou cientistas, todos eles vistos como potenciais ameaças. Enquanto isso, nas redes sociais, milhares de robôs e apoiadores autênticos de um movimento violento transformam plataformas em trincheiras da mentira.

Nos discursos, quase nunca de improviso, Deus e ódio se misturam nas mesmas frases. Judas é evocado para atacar antigos pilares do movimento. A religião passa a legitimar abusos de direitos humanos. Pede-se orações para que um líder cuja promessa era a de exterminar o contraditório. Todos se apresentam como pessoas de bem. Todos se apresentam como patriotas, únicos autorizados a vestir as cores nacionais.

Nas ruas, nas praças, no mundo virtual ou na violência diária, todos esses personagens têm algo em comum: o desprezo pela democracia. O ruído causado por esse grupo, instigado por seus líderes, certamente é maior que seu número real de apoiadores. Mas ainda assim tal massa é relevante no cenário em que vivemos. Uma massa que mistura classes sociais sob uma única ideologia, com um comportamento fanático capaz criar uma surdez crônica.

Instrumentalizada, ela cumpre justamente um objetivo, online e offline: o de dar pinceladas de legitimidade popular a um movimento claramente autoritário. “Foi uma demonstração espontânea da democracia”, afirmou o presidente, numa referência aos recentes atos. Nada disso é novo. Nenhum regime autoritário foi instalado sem uma manipulação prévia de uma parcela da sociedade.

Hannah Arendt aponta como, anos antes da chegada ao poder de tais forças na Europa, sociedades de classes foram dissolvidas em massas. Já os partidos foram destruídos e substituídos apenas por ideologias. Em Brasília neste fim de semana, as caravanas do autoritarismo eram a distopia de um sonho de uma cidade erguida para ser a capital de um novo século, democrático. Nas sombras dos traços do arquiteto estavam os reflexos de uma parcela da sociedade que jamais viu a democracia com entusiasmo, que sempre desconfiou da ideia do pluralismo, que jamais entendeu a noção do público e que, com seu egoísmo insultante, nutre a convicção de que as instituições são uma fraude.

Ameaçado pelo vírus e por uma recessão brutal, o Governo mobiliza suas tropas cegas pela ignorância para se defender, aprofundar seu desprezo pela verdade e levar um país ao limite de sua coesão nacional. Todos os sinais apontam na mesma direção: a democracia brasileira está ameaçada e seu desmonte ocorre em plena luz do dia. Em cada desafio disparado a um dos poderes, em cada gesto de violência, em cada mentira disseminada e em cada caixão enterrado.

O Instituto V-Dem da Universidade de Gotemburgo, um dos maiores bancos de dados sobre democracias no mundo, já deixou de classificar o Brasil desde o começo do ano como uma "democracia liberal”. Agora, o país é uma mera democracia eleitoral.

O instituto produz e coleta informações sobre países entre 1789 a 2019 e conclui que, nos últimos dez anos, a deterioração da democracia no Brasil só não foi maior que a realidade verificada na Hungria, Turquia, Polônia e Sérvia. Segundo Staffan Lindberg, um dos autores do informe e diretor do instituto, tal tendência ganhou uma nova dimensão mais recentemente. “O Brasil foi um dos países no mundo que registrou a maior queda nos índices de democracia nos últimos três anos”, alertou.

Na ONU, gabinetes da alta cúpula da entidade são tomados por preocupações em terno do discurso anti-democrático e o encolhimento real do espaço civil. Pela primeira vez em décadas, o país é denunciado nas instâncias internacionais, inclusive por flertar com o risco de genocídio.

Em outras palavras: o direito inalienável de viver numa democracia plena não está garantido. O Centro para o Futuro das Democracias da Universidade de Cambridge foi categórico num recente informe sobre a situação das democracias no mundo: “Para o Brasil, ao que parece, o futuro foi adiado mais uma vez”.

Enquanto essa eterna promessa é uma vez mais torturada, a fronteira entre massa hipnotizada e dos robôs programados para disseminar desinformação parece se desfazer à medida que a crise institucional e de valores se aprofunda. No mundo virtual ou numa praça ensolarada, ambos tem a missão de disseminar um vírus mortal: a pandemia do ódio, capaz de aleijar uma democracia. Como troféu, seu mito governará sobre esqueletos, mordaças e carcaças. Ainda assim, com a fumaça negra desonrando o horizonte do Planalto Central, irá declarar solenemente: “e daí?”.


Chico Alencar: Desafios do PT aos 40 anos

A direita viralizou a falsa ideia de que a corrupção de 500 anos tinha sido inaugurada pelo petismo

Há 40 anos, o Partido dos Trabalhadores foi importante novidade no cenário político do país. Partidos de caráter nacional, com doutrina e base militante, só surgiram entre nós depois do Estado Novo, com a democratização de 1945 — à exceção do Comunista, fundado em 1922. E de movimentos como a Ação Integralista Brasileira e a Aliança Nacional Libertadora, nos anos 30.

Antes, o que tínhamos eram ajuntamentos de interesses aristocráticos: os de “portugueses” e “brasileiros” na época da Independência quase bicentenária, “liberais” e “conservadores” no Império, partidos republicanos à feição das oligarquias provinciais na República Velha.

O PT nasceu na contramão do padrão costumeiro: veio das praças para os palácios. Novidade também na esquerda, chegou criticando ortodoxias e experiências autoritário- burocráticas do “socialismo real”. Não queria ser mera legenda para disputas eleitorais. Não aceitava substituir a cidadania, e sim representá-la e estimulá-la.

Seus documentos inaugurais afirmavam que o socialismo do programa do PT, radicalmente democrático, só o seria se fosse obra de milhões, combatendo todas as desigualdades. Um partido ético, crítico e criativo. Com essas virtudes, cresceu e ganhou influência. Graças a essa nitidez tornou-se, ainda hoje, a despeito da maré montante da antipolítica, a sigla mais reconhecida no cipoal (recém-“renovado”) de legendas de fantasia.

Como é notório, a ampliação da inserção do PT na institucionalidade trouxe contradições. Alcançando evidência parlamentar e conquistando governos, setores de suas direções deixaram de considerá-lo ator entre atores, com diferentes papéis e uma elaboração compartilhada a ser permanentemente revista e encenada na cena pública: a da construção de uma “nova gramática” do poder, inclusive na formulação de uma política econômica alternativa. Ao hegemonismo somou-se uma espécie de “adaptacionismo” — como reconhecem muitos de seus militantes e alguns dirigentes.

Tempus fugit! A base operária que deu “nervo e vida” ao PT não é mais a mesma: novas tecnologias alteraram profundamente o perfil da classe trabalhadora no Brasil, hoje muito segmentada. Diversas funções estão em extinção. A automação e o universo digital geram a chamada “desmaterialização” da produção e o desemprego estrutural. Não se interfere em novas realidades com compreensões obsoletas.

A interação do PT com os movimentos populares se refletiu nas políticas sociais que desenvolveu quando no poder central. Faltaram reformas estruturantes, democratizantes, profundas: a política, a tributária, a agroecoambiental, a do Estado — para este ficar poroso às demandas da sociedade. Justamente quando enfrentou o maior desafio de sua história, sendo governo da República, o PT implementou medidas que não proclamara em campanha e fez alianças — um imperativo na política — desconsiderando fronteiras éticas, mais pragmáticas que programáticas. Em meio a dissensos e desencantos, parte da população passou a percebê-lo como um partido igual aos demais. A direita hoje vitoriosa viralizou a falsa ideia de que a corrupção sistêmica, estrutural e antiga de 500 anos tinha sido inaugurada pelo petismo.

A tendência é que o PT siga sendo uma sigla expressiva eleitoralmente, apesar dos desgastes. O grande desafio, dele e de todas as forças progressistas, inclusive não partidárias, é reconhecer a derrota e os erros, renovar-se (nas pautas e também na linguagem) e vivificar, no imaginário popular, a mística do encantamento político pelos projetos coletivos.

Não se faz autocrítica dos outros. Mas essa boa tradição da esquerda precisa ser revitalizada, com humildade, em todas as suas organizações. Isso é tão importante quanto constituir uma frente democrática, progressista e antifascista, que reencontre os endereços perdidos do nosso povo.

*Chico Alencar é professor e escritor e foi deputado federal pelo PT e pelo PSOL


'Bolsonaro se afirmou no comando de um governo de 'destruição'', diz Alberto Aggio na Política Democrática online

Em publicação da FAP, professor da Unesp diz que Bolsonaro é um político "que quer retroagir a marcha da história"

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

O ano passou com Bolsonaro fazendo questão de se afirmar como o comandante de um governo de “destruição” de tudo que se havia construído nos 30 anos de vigência da Constituição de 1988. A avaliação é do historiador e professor da Unesp (Universidade Estadual Paulista), Alberto Aggio, em artigo publicado na nova edição da revista Política Democrática online, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), vinculada ao Cidadania e sediada em Brasília.

» Acesse aqui a 15ª edição da revista Política Democrática online

Todos os conteúdos da revista mensal podem ser acessados gratuitamente na página do Facebook e no site da FAP (www.fundacaoastrojildo.com.br). No artigo, o historiador diz que Bolsonaro, em seu primeiro ano de governo, fez questão de não evitar e mesmo assegurar suas posições homofóbicas, racistas, antiecológicas, antiparlamentares, anti-institucionais, antidemocratas ou similares.

“Foi mais corporativo, em defesa dos diversos grupos militares e religiosos que o apoiam, do que reformista. Mesmo quanto à Reforma da Previdência, aprovada em 2019, Bolsonaro não pode proclamar como uma vitória sua, uma vez que pouco ou nada fez para que ela passasse na Câmara e no Senado”, avalia Aggio, no artigo produzido exclusivamente para a Política Democrática online.

Ideologicamente, conforme escreve Aggio, “Bolsonaro é, sem dúvida, um político reacionário e regressivo”. De acordo com o historiador, o presidente, para chegar a ser conservador, necessitaria de um programa de governo consonante com o desenvolvimento brasileiro e com os avanços civilizacionais do Ocidente, mas que supusesse um “freada de arrumação”, visando a garantir ou conservar parte do padrão histórico alcançado em ambas dimensões.

“Entretanto, Bolsonaro (e seu entorno, filhos inclusos) não chega a ser um conservador. Quer retroagir a marcha da história. Menos ainda um liberal, em termos políticos”, destaca o professor da Unesp. “Inúmeras vezes vociferou indiretamente contra a Constituição, a ‘Carta das liberdades e dos direitos’, como a ela se referia o liberal Ulisses Guimarães. Bolsonaro rejeita os vetores emancipatórios contidos nas transformações valorativas da modernidade. As metamorfoses atuais do mundo lhes são inadmissíveis. Identifica-se essencialmente com o mundo do pentecostalismo e seu cortejo de falaciosas restrições”, completa.

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Política Democrática || Entrevista Especial - Cristovam Buarque: 'Nós falhamos'

Em entrevista à Revista Política Democrática Online, Cristovam Buarque fala de seu novo livro “Por que falhamos – O Brasil de 1992 a 2018”, dos erros cometidos pela esquerda que resultaram na eleição de Jair Bolsonaro e os novos caminhos que os democratas progressistas precisam traçar para mudar o país

Por Caetano Araújo e Cleomar Almeida

Cristovam Buarque (Cidadania) é o entrevistado especial desta 15ª edição da Revista Política Democrática Online. Ex-ministro da Educação do governo Lula e ex-senador pelo Distrito Federal, ele comenta sobre seu novo livro “Por que falhamos – O Brasil de 1992 a 2018” o que considera os principais erros do bloco progressista. Para Cristovam, foram 24 desacertos que levaram à eleição de Jair Bolsonaro em 2018.

Para Cristovam Buarque, que preside o Conselho Curador da Fundação Astrojildo Pereira (FAP), a esquerda brasileira está nocauteada, correndo o risco de se diluir ainda mais na corrida eleitoral deste ano e o bloco progressista - que reúne PSDB e PT, entre outros partidos — ainda não conseguiu se unir em torno de um projeto de país e cedeu à corrupção. "Se nós pretendemos traçar um caminho novo para o Brasil, temos que descobrir como nos juntarmos nesse bloco. O primeiro erro que eu coloco foi a divisão PSDB e PT. Não tem razão ideológica profunda para essa ruptura", acredita.

Educação e seu papel na construção do país, bem como os rumos da democracia no Brasil, também estão entre os temas tratados por Cristovam Buarque na entrevista que concedeu à Revista Política Democrática Online. Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista:

 

Revista Política Democrática Online (RPD): Seu próximo livro tem como título Por que falhamos? De 1992 até 2018. O texto já está disponível na internet, cuja versão em inglês sairá proximamente, e a em português, provavelmente pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP). Como tudo isso aconteceu.
Cristovam Buarque (CB): Este livro realmente tem uma história. Logo depois das últimas eleições, fui convidado pelos organizadores de um seminário na Universidade de Oxford para participar de uma discussão sobre o Brasil. Queriam que eu explicasse a vitória de Bolsonaro. Respondi que preferiria falar sobre como nós perdemos. Eles aceitaram. Preparei, então, um texto de cerca de 30 páginas, fiz a apresentação, à que se seguiu um debate e, na volta ao Brasil, comecei a trabalhar no livro. Demorou, mas já fiz circular uma versão do texto, que, agora, está consolidada em um pequeno livro, publicado só em e-book, que eu mesmo banquei e distribuí gratuitamente. No dia 7 de fevereiro, estarei de novo em Oxford, para participar do lançamento da versão em inglês do livro, a ser comercializada pela Amazon, e que terá outro título: Como a esquerda elegeu a direita no Brasil. Achei que ficava mais internacional. Quanto à versão impressa, também já estamos cuidando dela. Se puder ser pela FAP, melhor.

 

RPD: Logo no primeiro parágrafo de seu livro, você afirma: “Ao invés de aproveitarmos o colapso do comunismo para criar um novo modelo progressista e democrático..., fracassamos ideológica, política, econômica e moralmente. A ponto de o eleitor nos repudiar e preferir... um presidente nostálgico das maldades e do atraso da ditadura. Mais grave é que insistimos em não reconhecer nossos erros”. O senhor poderia ampliar um pouco essa reflexão?
CB: No curso da campanha em que perdi, agora em 2018, eu estava em Taguatinga, no chamado corpo a corpo. Um senhor, de uns 50 anos olhava tudo ali de longe. Fui apertar a mão dele, quando ele me disse: “Você tem consciência que você é o melhorzinho aqui entre os candidatos?” Eu ri e, cheio de mim, acrescentei: “Pois, então, que me ajude nessa campanha que não está fácil“. Ele esclareceu: “Eu não disse que vou votar em você, disse que era o melhorzinho, mas eu não quero saber se vai ser melhor ou pior, eu quero outro. Você já está aí tempo demais.”

Percebi que nós tínhamos esgotado um ciclo, e que a população se cansara desse ciclo e queria outro. Esse outro foi Bolsonaro. Porque os demais pareciam todos ser do mesmo bloco, que chamo de democratas progressistas, aqueles que lutaram contra o regime militar e que têm nuances progressistas, na economia, na justiça social, nos costumes. Por isso, concentrei-me de Itamar a Temer; não coloquei Sarney e o Collor, porque, acho, estavam mais ligados ao regime militar, até quando romperam com os militares e, portanto, não fizeram parte do bloco democrático, tampouco do bloco progressista. Senti que a população brasileira queria outro. Tanto que o último capítulo do livro é a ideia do outrismo. Nosso fracasso criou uma ideologia que é a ideologia outrista. A população quer outro.

 

RPD: Quem são o “nós” a que você se refere no livro? É uma definição controversa, que muita gente não aceita, não é?
CB: A crítica mais comum ao livro é essa. Claro, toda classificação é arbitrária, inclusive a definição de progressista, de democrata. Escolhi cinco presidentes e seus governos. Coloquei um “nós”. E a classificação foi de democratas e progressistas. Não se trata de uma classificação científica; antes, uma classificação arbitrária. E a maioria recusou. O PT não aceita. Está furioso porque acha que o livro está criticando só ele. Porque para ele só existem eles. E muita gente do PSDB reclama: “Nós não fomos irresponsáveis fiscalmente.” É verdade. O Lula tampouco foi.

Falo de bloco. Por exemplo, o bloco dos autoritários não engloba todos os militares, porque nem todos o são. Os quatro presidentes militares tinham muita diferença entre eles. Mas essa foi a primeira reação contra o livro, por isso eu começo explicando quem somos nós.

A gente precisa trazer a ideia da autocrítica e não da crítica aos outros. Para fazer uma autocrítica, você tem de se incluir. Nunca fui acusado de corrupção, mas nós, o bloco, tivemos tolerância com a corrupção. Não cometemos todos esses erros, mas, como bloco, cometemos.

Se pretendemos traçar um caminho novo para o Brasil, temos de descobrir como nos juntarmos nesse bloco. O primeiro erro que aponto foi a divisão PSDB e PT. Não tem razão ideológica profunda para essa ruptura. Até os programas sociais foram convergentes. Fernando Henrique lançou o Bolsa Escola, Lula não mudou a posição dele. Aliás, o próprio Bolsonaro está mantendo. A oposição entre PSDB e PT, dois partidos paulistas, centrava-se na eleição do prefeito de São Paulo. Em vez de discutirem uma estratégia comum para o Brasil, cuidavam em destruir o outro no pleito paulista. Nós precisamos descobrir o “nós” que nos unirá, quando descobrirmos onde erramos. Esse é o desafio.

RPD: Mas, em alguns casos, o preço a ser pago pelos erros não confunde com a dinâmica natural da política de alternância de poder, como ocorreu, entre outros, com Felipe González na Espanha, ao tentar a reeleição pela terceira vez?
CB: Se o bloco democrático progressista não estivesse errado, a alternância de poder poderia ter sido com um dos candidatos desse bloco. O bloco é composto por forças diversas, mas, ainda assim, integradas em um bloco. Nas últimas eleições, Marina era desse bloco. Alckmin, Haddad, Meireles e Ciro também. Aliás, os petistas quando falam do livro alegam que Itamar era golpista, portanto não pertencia ao bloco. Itamar foi 12 anos vice-presidente do PT, como não era do bloco? Volto a afirmar: se tivéssemos acertado, a alternância teria beneficiado um de nós. E o que aconteceu foi o oposto completo. O Aznar, com todos seus defeitos, não era franquista. Mas Bolsonaro é um nostálgico da ditadura. A ditadura não voltou na Espanha quando a população se esgotou dos socialistas.

RPD: Seu livro trata também da educação, tema que lhe é tão caro. Existiria uma solução nacional para a educação do Brasil, considerando que somos um país continente, com disparidades sociais e culturais gritantes? 
CB: Só vai existir solução para nossa educação se for nacional. É uma estratégia que pode demorar 30 anos, a Coréia demorou até mais. Temos de substituir esse sistema municipal, velho, carcomido e incapaz de ser recuperado, por um sistema federal. O processo será lento e por cidade. Não acredito que a saída seja fechar a escola municipal e abrir escola federal, mas o governo federal deve adotar a educação e todas as crianças de uma cidade. Uma depois a outra. Não há dificuldade em substituir o sistema municipal pelo federal em 100, 150, até 200 cidades pequenas por ano, desde que tenha uma carreira nacional do magistério. Abrir o concurso, começar a formar esses professores com salário bastante elevado, para poder atrair bons quadros, construir novos prédios, porque os que estão aí não têm condições, equipar com o que os alunos hoje gostam, celular, computador, e em horário integral. Isso dá para fazer em uma estratégia de médio e longo prazo, respeitando os limites fiscais do Estado.

RPD: O mesmo programa seria idêntico para o Piauí e São Paulo?
CB: Em qualidade, mas não em conteúdo. Temos de federalizar com descentralização na base. Hoje a gestão é do prefeito. Defendo que a gestão seja da escola. Como é na Finlândia. Cada escola se auto gere. Mas a carreira do professor será uma só em todo o país. O professor que vai dar aula no Piauí passou em um concurso nacional, como ocorre no Banco do Brasil, na Caixa Econômica, no Ministério Público, no Itamaraty, no Exército. Descentralizar. E liberdade pedagógica para o professor. Eles darão a aula que quiserem. O salário inicial seria de 15 mil reais por mês, mas a nova estabilidade não poderá ser plena. Haverá o que chamo de estabilidade responsável. Periodicamente, uma avaliação, cujos termos seriam previamente definidos com os próprios professores, conferirá o atingimento de metas. Em caso de resultado insatisfatório, o professor teria de ser afastado.

A verdade é não soubemos substituir a bandeira do socialismo estatal, do socialismo de até os anos 70, por uma nova utopia, no sentido mais realizável do conceito, uma utopia que incluísse três aspectos fundamentais: a democracia, o meio ambiente e a educação. Claro, com uma economia eficiente. Nós deixamos de pertencer ao bloco de países que em trinta anos seria um dos campeões mundiais da educação, onde o filho do pobre estudaria na mesma escola que o filho do rico, a exemplo dos países desenvolvidos. Toleramos a ideia de que educação boa é uma coisa de gente rica. Nunca houve um discurso claro de que nós teríamos como meta e, sem demagogia, sentar o aluno rico ao lado do aluno pobre. Quem começou a falar isso? Eduardo Campos, na campanha dele. Li que o Huck estaria dizendo algo semelhante. Mas o Lula e o PT nunca disseram coisa alguma a respeito. O PSDB, tampouco.

Um projeto até mais radical seria, em 30 anos, transformar as escolas em concessão pública, como as linhas de ônibus, que são uma concessão pública, mas operada por uma empresa privada.

RPD: Por não se fala no Brasil em ensino profissionalizante, de tão bons frutos na Alemanha e Suíça?
CB: O Brasil é um país aristocrático, e o título de técnico não dá nobreza. Muitos preferem título de doutor sem emprego do que de técnico em computação com emprego. É a mentalidade brasileira: valorizar a universidade. Foi um dos grandes erros de Fernando Henrique, Lula e Dilma. Nunca buscamos priorizar a educação profissional, nem de base nem profissional, porque não dá voto. Agora, como fazer isso? Defendo há muito tempo que o ensino médio tem de ser de quatro anos, e que todos concluam com um ofício: fotógrafo, auxiliar de gravação, cozinheiro, jardineiro etc. Defendo também que deveria haver uma cota nas escolas de engenharia para quem provém da escola técnica. Hoje tem cota para pobre, negro, índio, por que não para quem seguiu uma escola técnica? É um preconceito que está destruindo a educação e a própria a economia brasileira.

RPD: A educação poderá ser tema da campanha eleitoral municipal?
CB: Não será boa bandeira. Saneamento e saúde vão dominar. Educação não atrai o eleitor, que não consegue ainda explicar como a educação é importante na vida das famílias, a não ser a universidade. Um prefeito que oferecer bolsa para os alunos que passarem no vestibular vai ter mais voto do que o candidato que oferecer escola de bom nível.

RPD: Há semelhanças entre a situação interna no Brasil e a de outros países, onde políticos despontam com discursos como os de Bolsonaro, e onde vem ocorrendo cisões no campo democrático progressista? Em caso afirmativo, o que caberia fazer?
CB: Sou pessimista quanto à capacidade da democracia de cuidar dos grandes problemas da atualidade. A democracia é um sistema nacional que tem de dar respostas imediatas ao eleitor. E hoje a gente vive em um mundo planetarizado, os problemas são planetários e de longo prazo. Vejamos alguns exemplos.

Meio ambiente. Não acho que meio ambiente vai eleger um presidente. Macron está sofrendo porque tentou aumentar o preço da gasolina. O eleitor quer baixar o preço da gasolina, esquecendo que estará agravando o aquecimento global. Vi pela televisão um manifestante em Paris com uma bandeira contra o aquecimento global e outra contra o aumento do preço da gasolina. É como se um vegano reclamasse do aumento do preço da carne.

Outro exemplo: o oceano vai subir tantos centímetros em 100 anos. Vai acabar com o Recife. Mas 100 anos, não tem eleitor que vote pensando em cem anos. Nem 50. Nem 30. Então os populistas irresponsáveis, sem compromisso de longo prazo, vão tender a ganhar a eleição, oferecendo soluções para o imediato.

Falando de rótulos político-ideológicos, o que é mais de direita, defender o meio ambiente ou defender o emprego? O que é mais de esquerda, defender o emprego ou defender o meio ambiente? Para mim, seria defender o meio ambiente, porque tenho sentimento de humanidade. Mas o eleitor comum não pensa assim. Os ecologistas estão comprometidos com o ser humano, não com o trabalhador. Nos tempos de Marx, trabalhador e ser humano eram a mesma coisa, com o trabalhador representando a grande maioria do ser humano. Hoje já não é.

Venho até trabalhado com o conceito de desvalia, mais grave, do ponto de vista humanitário, do que o de mais valia. Na mais valia, o patrão explora, mas pelo menos paga um salário. Na desvalia, ignora. É o pobre abandonado, é o marginal. A esquerda não percebeu a desvalia no discurso teórico, percebeu-a em programas assistenciais, como o Bolsa Família. Não estamos sabendo qual é o programa capaz de casar o humanismo com o eleitor. Por isso, nós, esse bloco, enfrentaremos muitas dificuldades eleitorais.

Tanto mais porque surgem com mais força os extremos. No Brasil, a gente vai passar muito tempo ainda com a polarização PT e Bolsonaro. Por quê? Porque uma das grandes invenções do processo eleitoral democrático é a ideia de dois turnos. Hoje joga-se para emplacar vaga no segundo turno. Vota-se no primeiro turno em quem é mais próximo e, no segundo, em quem é menos distante. Daí tanta gente votar em branco. E tanto Bolsonaro como o PT estão trabalhando para garantir 20, 25 porcento. E os outros não estão conseguindo formular um programa que os unifique, para poder aterrissar na faixa do segundo turno, no lugar de um dos extremos. Caminhamos para favorecer a radicalização.

O que fazer, então? Primeiro, ter paciência. Entender que, mais uma vez voltando a Marx, a superestrutura (as ideias) não passa por cima da realidade. Segundo, torcer para que a pedagogia da catástrofe produza resultados imediatos. Em geral, não produz. A pedagogia da catástrofe só ensina depois que o prédio cai. Se houve aquele ruidozinho na parede, você sente que a coisa está tremendo, mas vai levando. É depois que cai que você vê.

Daí a função do debate, da ampliação do círculo de pessoas com quem se deva conversar, ouvir o que elas têm a dizer, para compor um bloco democrático progressista, mesmo que sua composição seja díspar. O importante é que as forças políticas assim reunidas coincidam em refutar os extremos.

 


Revista Política Democrática || Rubens Barbosa: Encontros e desencontros entre Brasil e Argentina

Nova tensão entre Brasília e Buenos Aires ocorre por conta de uma escalada retórica em função de divergências ideológicas entre um governo de direita, liberal na economia e conservador nos costumes, no Brasil, e um governo de centro-esquerda, prestes a assumir o poder na Argentina

Como é normal entre países vizinhos, Brasil e Argentina passaram por muitos desencontros e crises ao longo de suas histórias.

Poderíamos começar ainda no século XIX, quando, em 1826, as Províncias Unidas (hoje Argentina) organizaram complô para sequestrar Dom Pedro II, de modo a pôr fim à guerra com o Brasil pelo controle da Banda Oriental (hoje, Uruguai). No início do século XX, de 1906 a 1910, nova crise por um incidente menor: apreensão de um barco uruguaio no Rio da Prata, em área de demarcação contestada entre Argentina e Uruguai. O governo uruguaio pediu apoio ao governo brasileiro. O conflito aumentou e só foi resolvido por ação do barão do Rio Branco e do presidente argentino, Saenz Peña.

Mais recentemente, tivemos momentos de tensão bilateral por ocasião da construção da Hidrelétrica de Itaipu – com questionamentos públicos pela Argentina nos organismos multilaterais, por conta da questão do compartilhamento das águas –, durante a Guerra das Malvinas e no período de governos militares nos dois países.

Agora, nova tensão entre Brasília e Buenos Aires em decorrência não de uma crise, mas de uma escalada retórica em função de divergências ideológicas entre um governo de direita, liberal na economia e conservador nos costumes, no Brasil, e um governo de centro-esquerda, prestes a assumir o poder na Argentina. Declarações de lado a lado acirraram os ânimos entre os presidentes, ministros e altos funcionários, que, do lado argentino, sequer tomaram posse.

A política econômica e comercial do novo governo argentino passou a ser preocupação do governo brasileiro, pela possibilidade de a abertura da economia e a ampliação da negociação externa do Mercosul serem contestadas por políticas protecionistas. Sinalizações nesse sentido poderiam questionar o comércio bilateral e a aprovação do acordo com a União Europeia.

A retórica confrontacionista põe em risco, de um lado, o relacionamento político e diplomático e a cooperação econômica e comercial entre os dois parceiros. E, de outro lado, o futuro do Mercosul.

O processo de integração sub-regional foi reforçado nas últimas reuniões presidenciais por medidas de modernização, enxugamento da burocracia e negociação de acordos comerciais com parceiros extra-zona. Na reunião presidencial do dia 4 de dezembro, encerrando a presidência brasileira, todos apoiaram o fortalecimento do Mercosul, e a sugestão de redução da Tarifa Externa Comum, sem acordo, ficou para 2020.

A Argentina e o Brasil têm, no âmbito do Mercosul, interesses comerciais importantes a preservar. O mercado brasileiro é fundamental para as exportações argentinas, que ajudarão na recuperação da economia, junto com políticas econômicas voltadas para a estabilização que o novo governo vier a tomar. Quanto ao setor privado brasileiro, o mercado argentino é importante para a indústria automobilística e a linha branca. A Fiesp recentemente emitiu nota a favor do fortalecimento do Mercosul, ressaltando que os problemas de funcionamento do bloco devem ser resolvidos de maneira consensual entre os países membros.

A diplomacia parlamentar do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, quebrou o gelo e propiciou encontro com Alberto Fernández, que deveria assumir a Presidência no dia 10. Vozes moderadas do Itamaraty preferem aguardar as definições das novas autoridades argentinas e, depois de informados sobre a nova realidade, buscar consultas bilaterais em nível técnico. Ao Brasil interessa uma Argentina que volte a crescer, estável política e economicamente. Para tanto, Brasília deveria deixar de lado divisões ideológicas e mesmo provocações políticas, como os gestos em relação ao ex-presidente Lula, e manter a “paciência estratégica”.

O bom senso começa a prevalecer e declarações mais moderadas apontam para uma distensão retórica.

Ao longo da história, em todos os momentos de tensão entre os dois países, as crises foram superadas pela ação pragmática da nossa diplomacia, que sempre levou em conta interesses concretos. Essa lição do passado pode ser útil quando a Argentina e o Brasil atravessam mais um momento delicado na relação bilateral.

O determinismo geográfico da vizinhança é um fator que o governo brasileiro não poderá deixar de levar em conta. Diferenças ideológicas não podem contaminar o relacionamento civilizado entre os dois países.

Como disse Saenz Peña, ao superar a crise no início do século passado, “tudo nos une e nada nos separa”. Que suas palavras nos sirvam agora de exemplo. E que prevaleça o que é do interesse nacional dos dois países.


Revista Política Democrática || Randolfe Rodrigues: Governo Bolsonaro envenena o Brasil

O Brasil ocupa, desde 2008, a posição de maior consumidor de agrotóxicos do mundo em números absolutos. Entre 2000 e 2010, o consumo indiscriminado de pesticidas aumentou 200% no Brasil, enquanto no restante do mundo foi de 100%. Só nos primeiros 11 meses de governo Bolsonaro foram autorizados 467 novos agrotóxicos

A agricultura desempenha papel importante na economia brasileira, garantindo alimento barato e superávit na balança comercial pela sua competitividade internacional. No entanto, o País precisa prestar mais atenção ao controle do uso de agrotóxicos, pois estamos diante de uma permanente exposição crônica a esses produtos. Não só trabalhadores rurais e camponeses estão vulneráveis, mas a população urbana de qualquer idade e classe social.

Entre 2000 e 2010, a utilização de pesticidas no mundo aumentou em 100%. No Brasil, o crescimento foi o dobro: 200%. Hoje, 20% dos agrotóxicos comercializados no mundo são vendidos no Brasil. O país ocupa, desde 2008, a preocupante posição de maior consumidor de agrotóxicos do mundo em números absolutos. Em 2017, cerca de 540 mil toneladas de substâncias tóxicas foram usadas nas lavouras do país, segundo o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama).

Se considerarmos o volume de agrotóxicos usados por hectare, o Brasil ficaria na sétima posição em 2017. No entanto, esse indicador não é muito confiável, pois existe forte suspeita de que, nessa conta, estão incluídas as extensas áreas de pastagens degradadas, onde não se aplicam agrotóxicos. Esse artifício matemático subestimaria o uso por hectare e não refletiria a realidade do consumo médio das lavouras brasileiras.

Outro grave problema vem do sistema brasileiro de registro, gestão e controle de agrotóxicos, que é extremamente precário. Há grande permissividade no registro de defensivos agrícolas de altíssimo grau de toxicidade para a saúde humana e o meio ambiente. Cerca de 30% das substâncias tóxicas usadas no Brasil foram banidas em outros países, principalmente Estados Unidos e Europa, por causarem gravíssimos problemas de saúde como o câncer, deformações em fetos, mutações genéticas, distúrbios hormonais e danos ao aparelho reprodutor, bem como provocarem severos impactos no meio ambiente, como a contaminação da água e a morte de abelhas e outros polinizadores.

O nível de resíduos permitidos nos alimentos e na água potável é escandalosamente mais alto no Brasil do que na União Europeia, por exemplo. No caso do cancerígeno inseticida Malationa, usado na produção do feijão, componente essencial da nossa dieta, o limite é 400 vezes maior do que na União Europeia. No caso do glifosato, considerado como cancerígeno pela Organização Mundial da Saúde (OMS), o limite aceito na água potável que ingerimos é cinco mil vezes maior, e o nível aceito na soja é 200 vezes maior.

A fiscalização do uso dos agrotóxicos no Brasil é inexpressiva. Diferentemente dos Estados Unidos e União Europeia, que contam com forte estrutura fiscalizatória, aqui no Brasil o trabalho de inspeção do Ministério da Agricultura, Ibama e Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), além de ser insuficiente, está praticamente paralisado no atual governo.

Como resultado de sua defesa ardorosa por uma grande bancada parlamentar e por diversas autoridades de governo, as empresas fabricantes de agrotóxicos pagam poucos impostos. Os Estados reduziram em 60% a base de cálculo do ICMS para agrotóxicos, e o Governo Federal concede isenção total do IPI.

Os critérios usados pela Anvisa para liberação de agrotóxicos, produzidos em uma escala nunca antes vista, são, no mínimo, questionáveis. Essa situação pode ser bem ilustrada com o caso da reavaliação, em fevereiro deste ano, do agrotóxico glifosato, na qual o órgão concluiu que a substância não apresenta perigo para a saúde. No entanto, essa conclusão colide com estudos desenvolvidos em diversas instituições brasileiras e internacionais, como o Instituto Nacional do Câncer e a Agência Internacional para a Pesquisa do Câncer (IARC), ligada à Organização Mundial da Saúde (OMS). A Agência publicou relatório no qual confirma que o agrotóxico RoundUp (glifosato), produto fabricado pela multinacional Monsanto, é um agente potencialmente causador de câncer, mais precisamente do linfoma não-Hodgkin.

Importante salientar que o glifosato é o agrotóxico mais vendido no Brasil. Seu consumo em 2017 alcançou 173 mil toneladas. O volume corresponde a 22% das estimativas de vendas para esse químico em todo o mundo no mesmo ano. Isso dá uma dimensão da pressão exercida sobre a Anvisa e demais órgãos de registro, para mantê-lo no mercado.

Pesquisa da Universidade Federal do Piauí constatou contaminação pela substância em 83,4% das amostras de leite humano obtidas na maternidade do município de Uruçuí. O município é o maior produtor de soja do Estado. Igual contaminação foi encontrada em amostras coletadas entre lactantes do município de Oeiras, 340 km distante, onde a produção agrícola é inexpressiva.

Entre as mães que participaram do estudo cedendo amostras de leite, 23,1% tiveram a gravidez interrompida de uma a quatro vezes e estão sujeitas a outros fatores de risco como a prematuridade, baixo peso do bebê ao nascer, peso reduzido para a idade gestacional e microcefalia.

Pesquisa recente realizada pelo Laboratório de Mutagênese da Universidade Federal de Goiás constatou que trabalhadores rurais que atuam na aplicação de agrotóxicos em lavouras do Sudeste e Sudoeste de Goiás apresentam 4,5 vezes mais lesões no DNA que pessoas que não exercem essa atividade. Esses resultados foram obtidos a partir da análise de sangue e mucosa oral de 200 trabalhadores.

Os números revelam que a contaminação da água está crescendo rapidamente. Em 2014, 75% dos testes realizados pelas empresas de abastecimento de 1.396 municípios detectaram todos os 27 agrotóxicos que são obrigados, por lei, a testar. Destes 27 produtos, 21 estão proibidos na Europa. Esse percentual subiu para 84% em 2015, para 88% em 2016, chegando a 92%, em 2017. Nesse ritmo, em alguns anos pode ficar difícil encontrar água sem agrotóxico nas torneiras do país.

Toda essa grave situação piorou muito com o novo governo. O Ministério da Agricultura está liberando agrotóxicos em uma escala inédita no Brasil. Nos primeiros 11 meses de governo Bolsonaro, foram autorizados 467 novos produtos, o que representa 20% de todos os agrotóxicos liberados no país nesta década. Entre 2010 e 2018, foi liberada uma média de 16 agrotóxicos por mês. Esse número aumentou 261% em 2019, chegando a 42 agrotóxicos. É a prova inconteste de que o governo Bolsonaro está inundando com venenos, não só a mesa dos brasileiros, mas também todo o meio ambiente.

Levantamento do jornal Folha de S. Paulo, publicado em 19/09/2019, informa que grande parte dos 96 ingredientes ativos que compõem os agrotóxicos liberados no Brasil até aquela data não é registrada em outros importantes produtores agrícolas. Na União Europeia, essa proporção chega a 29%; Austrália, 38%; Índia, 31%; e 19%, no Canadá.

Controle de agrotóxicos é assunto de grande complexidade e envolve poderosos interesses. Mas uma coisa é certa: não se pode mais admitir que, sob o pretexto de produzir alimentos baratos, a população brasileira seja obrigada a comer alimentos contaminados com substâncias cancerígenas e ter os recursos hídricos, o solo e o ar poluídos por tantas substâncias perigosas. Existem tecnologias, métodos e práticas agrícolas que permitem reduzir significativamente o uso de agrotóxicos e banir completamente as substâncias extremamente perigosas, que inclusive já são proibidas em outros países.

Não há argumento ético que justifique que esses agrotóxicos continuem sendo usados e estimulados no Brasil. O povo brasileiro não é mais resistente a esses venenos do que os habitantes dos países que os proibiram. Nem são pessoas menos dignas do que as de lá para que sejam obrigadas a consumir esses produtos.

O debate está aberto e deverei apresentar, na volta da COP 25, um Projeto de Lei para estabelecer um sistema mais rigoroso de controle de agrotóxicos, mantendo as condições para que a agricultura possa se desenvolver de forma economicamente próspera, mas sem abrir mão das medidas necessárias para tornar cada vez mais seguros os químicos usados na agricultura, através do melhor controle da contaminação do ambiente e da saúde de homens, mulheres, crianças e idosos e das próximas gerações.

 

 

 


Revista Política Democrática || Martin Cezar Feijó: AOS QUE VÃO NASCER - Uma política cultural para o século XXI

Brasil vive em tempos sombrios, obscuros, avalia Martin Cezar Feijó. Terra plana, bruxas e conspirações são alguns dos temas que permeiam a mente de alguns brasileiros em pleno século XXI, em um país moderno e democrático há mais de trinta anos, escreve o articulista

Vivemos em tempos sombrios, lembrando Brecht. Na verdade, obscuros. Quem poderia imaginar que, em pleno século XXI, em um país moderno e democrático há mais de trinta anos, como o Brasil, com todos seus problemas de desigualdade ainda existentes, se acreditasse em Terra Plana, em bruxas e conspirações satânicas? E não por pessoas comuns, que não tivessem nenhuma educação formal e responsabilidade social, mas por pessoas que ocupam cargos públicos importantes na esfera federal. E, mais ainda, com poder em áreas como a Cultura e a Educação?

Claro que, como dizia o jornalista Paulo Francis, pessoas “que despontam para o anonimato”... Até porque eles passam, todos passarão, e nós, talvez, passarinhos.

E o Brasil é bem maior que qualquer abismo, já dizia o filósofo português Agostinho da Silva, que inspirou o último trabalho poético-musical-filosófico de Jorge Mautner:  Não há abismo que caiba. Mas o quadro é grave, até assustador. Lembra até o período de uma narrativa que marcou os anos 1930-1940: o nazismo. Havia um dirigente alemão nazista que citava um dramaturgo também alemão, também nazista, que dizia o seguinte:

- “Quando ouço a palavra cultura, logo carrego meu revólver”.

Eram tempos sombrios, como definiu uma filósofa alemã judia refugiada, Hannah Arendt. Quando acabou a guerra, um milionário norte-americano, Nelson Rockefeller, tripudiou sobre a fala do nazista:

- “Quando ouço a palavra cultura, logo pego um talão de cheques”.

A cultura é assim, plena de contradições. Principalmente riscos. Mas o maior risco é o de sua instrumentalização. Seja satanizando o rock como causador de aborto e adorador do Diabo, ou questionando a escolha de uma poeta para uma homenagem em um encontro literário em Parati, como o caso de Elisabeth Bishop. Ambos padecem de um mal anunciado, o da confusão entre conhecimento e estética e política no sentido de partidarização e ideologia. Claro que um caso se insere na questão de liberdade de opinião, mas o primeiro se trata de um claro posicionamento, com implicações práticas, como imposição de uma política que abre caminho para cerceamentos e censuras. O pior dos cenários, portanto.

E é disso que se fala aqui, de bases para uma política cultural em um sentido específico. Como pensar uma política cultural para os que vão nascer, ou que nasceram neste século, e vão vivenciar todas as transformações em curso. Uma verdadeira revolução, nunca antes imaginada, ou prevista.

Quem se debruçou sobre este cenário foi o historiador israelense, Yuval Noah Harari, autor dos best-sellers mundiais, Homo Sapiens e Homo Deus, em seu livro 21 Lições para o Século 21, chama a atenção para o fracasso das três narrativas que predominaram no século XX -  fascista, comunista e liberal – e que acabaram por gerar profunda desilusão. E que a revolução em curso, no âmbito da biotecnologia e Big Data, pode comprometer uma das maiores conquistas da narrativa liberal: o regime democrático, sem o qual não há solução possível, independente do lado que se esteja. E nesse aspecto, a cultura tem papel decisivo, seja no âmbito dos empregos, da civilização e do meio-ambiente.

Por isso, a destruição da cultura é o principal aspecto que marca uma emergência do que podemos chamar de neofascista, mesmo que nascida das democráticas urnas. E isto vem ocorrendo em grande parte do mundo, apesar dos alertas de uma imprensa livre, por isso perseguida e atacada pelos fakenews através de milícias digitais; assim como a arte de modo geral, seja no teatro, no cinema, na literatura, nas artes plásticas. Nesse sentido, a cultura passa a ser não apenas um apêndice da política, mas um eixo central na sobrevivência da própria espécie.

E cultura em seu sentido amplo, que envolve não só uma radical liberdade de expressão que garanta uma diversidade plena, mas também um investimento na educação em todos os níveis. Em uma atualização constante, e respeito às nossas crianças, que merecem um mundo melhor, como demonstram os ativismos de jovens como a paquistanesa Malala e a sueca Greta; uma chamada de “pirralha” por um pretenso ditador, e outra levando um tiro no rosto só porque querida estudar. Uma reconhecida com um Nobel, e outra, como Personalidade do Ano pela revista Time. Aí está a promessa de futuro contra as reações que ocorrem!

Uma política cultural para o século XXI deve levar em conta a complexidade do quadro, as ameaças do emprego, as restrições às liberdades e um descrédito do conhecimento científico e filosófico como marca de uma direita agressiva e ativa. Recorrendo mais uma vez aos alertas do historiador israelense:

“O...surgimento da inteligência artificial pode expulsar muitos humanos do mercado de trabalho – inclusive motoristas e guardas de trânsito (quando humanos arruaceiros forem substituídos por algoritmos, guardas de trânsito serão supérfluos). No entanto, poderá haver algumas novas aberturas para os filósofos, haverá subitamente grande demanda por suas qualificações – até agora destituídas de quase todo valor de mercado. Assim, se você for estudar algo que lhe assegure um bom emprego no futuro, talvez a filosofia não se seja uma aposta tão ruim.”

Em outras palavras, seja no âmbito das novas tecnologias, seja no âmbito dos riscos políticos, o conhecimento e a cultura serão decisivos.  E uma política cultural que leve isso em conta será fundamental.

 


El País: 'Todo dia a esquerda cancela alguém, mas não vemos propostas. Virou radicalismo de Twitter', diz Rosana Pinheiro-Machado

Antropóloga lança o livro ‘Amanhã vai ser maior’, no qual apresenta visão esperançosa sobre as gerações mais jovens e as novas agendas do ativismo no Brasil e no mundo

Por Felipe Betim, do El País

Ao longo de vários anos de pesquisa de campo, a antropóloga Rosana Pinheiro-Machado esteve em contato com trabalhadores informais da base da pirâmide brasileira, ouvindo suas demandas e anseios. Ela também vem pesquisando de perto as manifestações e movimentos que explodiram a partir de junho de 2013, passando pela nova geração de feministas, os encontros de jovens da periferia em shoppings que ficaram conhecidos como rolezinhos, as ocupações nas escolas pelos secundaristas, a greve dos caminhoneiros... Professora da Universidade de Bath (Reino Unido) e colunista do site The Interceptela transformou o que acumulou em anos de pesquisa em seu novo livro, Amanhã vai ser maior: O que aconteceu com o Brasil e possíveis rotas de fuga para a crise atual (Editora Planeta).

Na obra, a pesquisadora analisa, a partir de um ponto de vista progressista, como um Brasil que não se sentia mais representado pela classe política e ocupou massivamente as ruas em junho de 2013, pedindo por mais direitos e menos corrupção, chegou em 2019 tendo o ultradireitista Jair Bolsonaro como presidente da República. Apesar de considerar o cenário atual desolador, acredita que aqueles protestos representaram o marco de uma “revolução” na estrutura social do país, com “uma indignação e uma vontade por politização e processo democrático imenso”. É por causa dessa nova geração e dos movimentos que ganharam força com ela, como o feminista, o LGBT e o negro, que é possível ter esperança.Em entrevista ao EL PAÍS, ela ainda faz um alerta ao campo progressista: é preciso deixar de lado certa postura rancorosa, revanchista e vingativa que gerou uma cultura do cancelamento nas redes sociais. O futuro, diz ela, ainda está em disputa. Isso passa por voltar às periferias, incorporar novas demandas e novos atores aos quadros dos partidos, apostar por novas propostas e sair em busca dos eleitores que optaram pela extrema direita. Um trabalho que deve ser online (nas redes) e offline (nas ruas).
Pergunta. Por que amanhã vai ser maior?
Resposta. Não só o Brasil, mas o mundo todo, tem ido constantemente às ruas no século XXI. Com características muito diferenciadas, respondendo a demandas nacionais fundamentalmente, mas colocando as pessoas nas ruas de forma que os movimentos tradicionais não compreendem. Então, por um lado, [vai ser maior] por causa deste Brasil que é insurgente e politizado desde junho de 2013 e com o advento das novas tecnologias. Por outro lado, há esperança por conta da luta de vários movimentos que surgiram após junho de 2013. São movimentos que já existiam, como o feminista e o negro, mas vemos a formação de uma nova geração extremamente politizada. Não víamos antigamente nas periferias, e em vários lugares do país, uma geração de meninas feministas. É algo completamente inédito na sociedade brasileira. Essa juventude está sendo disputada à esquerda e à direita.
P. Como enxerga essa nova geração? Que outras diferenças enxerga entre esses novos movimentos e os antigos?
R. Vejo como um processo. Essa explosão no Brasil eu chamo de revolução, mas no sentido antropológico, de uma quebra de estrutura social, não no sentido da teoria política. Junho de 2013 não proporcionou isso, mas é um marco, fruto de processos democráticos e lutas históricas que foram ocupando o poder, se institucionalizando, criando espaços nas escolas e as cotas, reformando currículo... É todo um Brasil que se preparou para isso. A maturidade da Internet nos anos 2010 também proporciona o surgimento dessa subjetividade insurgente. E, para mim, a grande diferença é que esta geração é muito mais autonomista, muito mais democrática, com muitos coletivos. Você vai numa escola e vê 10 grupos feministas, não apenas um DCE centralizador. É uma geração que se expressa de maneira muito mais horizontal. Não é perfeito, a gente sabe de todos os conflitos e contradições que existem, mas há uma lógica muito mais democrática e horizontal. E também pouco partidária. De alguma maneira esta geração inclusive rejeita os partidos.
P. Como conciliar esse novo Brasil com o aquele de centrais sindicais e partidos fechados?
R. Esse é o grande conflito. Você tem a CUT, mas muitas vezes essa nova geração não quer ir a um protesto com a bandeira da CUT ou mesmo do PT. E há uma esquerda que não consegue ver os frutos e sementes de Marielle Franco. É uma esquerda institucionalizada, que sofreu um golpe, é verdade, mas que não consegue abarcar essas novas lideranças e novos movimentos. Vai para a rua com caminhão de som, mas estamos falando de uma geração totalmente contrária ao caminhão de som.
P. Quais são as implicações políticas?
R. O PSOL se abre um pouco mais para isso, mas quem são os novos quadros do PT? Muito difícil você reivindicar novas juventudes no partido. A gente precisa de um quadro de renovação no próprio PT, ele ainda é o maior partido do Brasil. Há uma carência de novas figuras. É preciso ampliar, renovar mesmo. E há uma insegurança da esquerda com essa geração que ocupa as ruas. Não raro a esquerda culpa junho de 2013 por tudo que aconteceu, já que não controla essas pessoas, não é algo centralizado. É muito mais fácil acusar de golpista e não fazer mais nada do que trabalhar politicamente. Precisa negociar, disputar essas multidões, e não culpá-las. A esquerda até quer a multidão, desde que seja controlada por bandeiras. Se não for, ela se torna um risco. Isso é o oposto de um processo de politização e da camaradagem, o que significa trabalhar dentro de uma lógica universal, de amor.
P. Mas esse é um problema exclusivo da esquerda, ou também do centro e centro-direita mais tradicionais e que implodiram ainda mais nas últimas eleições? A classe política e os partidos como um todo operam na mesma lógica, com pouca transparência e dando pouco acesso a dinheiro e cargos de poder para os novatos...
R. É um problema da classe política de modo geral. Mas, ao mesmo tempo, vemos o MBL [Movimento Brasil Livre], que cresceu absurdamente com um discurso juvenil, com uma estética jovem, subversiva... Mas essa crise institucional partidária ficou escancarada em 2013. Já não havia engajamento partidário há muito tempo. A crise é profunda, há uma indignação e uma vontade por politização e processo democrático imenso. Tenho diferenças ideológicas com correntes como o Renova ou MBL, mas acho extremamente positivo que esses diferentes grupos transversais se apropriem da política. O Muitas e a Bancada Ativista estão conseguindo inovar dentro de uma lógica partidária. São movimentos que mostram o esgotamento generalizado do modelo partidário, mas que conseguem incorporar essas novas demandas, apesar das contradições. A população não se vê naquele modelo, então você tenta fazer algo mais transversal e entra na lógica partidária. Como isso funciona na prática é difícil, como vem sendo esse conflito entre a Tabata do Amaral [do Acredito] com o PDT.
P. A socióloga Angela Alonso, pesquisadora do CEBRAP e professora da USP, vem estudando as manifestações desde 2013. Ela rebate a ideia de que sejam espontâneas e mostra como grupos que já vinham se formando anos antes alavancaram esses atos. Afinal, qual é o papel da Internet para que essas manifestações ocorram?
R. Tenho até dificuldade de compreender essa ideia de manifestação espontânea. Eu também não concordo. A Internet ajuda no contágio, na explosão, mas sempre tem alguém por trás. Os grupos de direita estão organizados desde os anos 2000 e começam a ver oportunidade e a se apropriar de slogans como “vem pra rua”, “hospital padrão Fifa”... A greve dos caminhoneiros foi muito mais um pavio que se acendeu e explodiu, com um papel do WhatsApp muito forte. Os rolezinhos, que começaram em 2013 e ganharam força em 2014, era uma organização de jovens via grupo de Facebook. Mas aquilo refletia um momento da Internet que não existe mais.
P. O que mudou?
R. Não tínhamos filtros bolha nas timelines. Com os algoritmos fica muito mais difícil conseguir essa mistura que tivemos em junho de 2013. A Internet mudou. Por outro lado, você pode ter coletes amarelos, greve dos caminhoneiros... Com pautas específicas e com multiplicidade de vieses ideológicos. Isso vai acontecer mais ainda. Vamos ainda ver a revolta do Uber e vai ficar todo mundo dizendo que eles são fascistas (risos).
P. Você parece enxergar essas manifestações recentes como algo positivo, mas elas também podem ser canalizadas por forças de extrema direita, como vem acontecendo.
R. Eu começo o livro falando sobre esses momentos mais paradigmáticos e que, de alguma maneira, mudaram o mundo. Houve um alerta de que as coisas não estavam boas. E a partir dali houve uma mensagem que a extrema direita acabou se apropriando. Mas depois, quando critico a esquerda, explico que a direIta está se organizando desde os anos 2000, com think tanks e organizações bilionárias por trás. Absolutamente nada é espontâneo. Quem foi atacado por blogueiros de direita como Olavo de Carvalho, Rodrigo Constantino ou Reinaldo de Azevedo já sabia, mesmo antes de 2013, que havia uma horda fascista pronta. O discurso antipetista foi sendo forjado.
P. Quais são as características dessa extrema direita? Ela é diferente da extrema direita de antigamente?
R. São as mesmas ideias, citam os mesmos autores fascistas para dizer que há um colapso da civilização ocidental. Há supremacistas, masculinistas, anarcocapitalistas... E brigam entre eles todos, mas querem destruir um inimigo em comum. Estão usando o YouTube e blogs há muito mais tempo e oferecem respostas com raiva e indignação. O Brasil entrando numa crise profunda, multidimensional, econômica fundamentalmente, e eles chegam para dizer “olha, o problema é que tudo foi dado para a feminista e nada para você, trabalhador”. Isso se alinha muito bem com os evangélicos e a tradição religiosa que aponta para o problema da família e da moral em colapso. Passou desapercebido desse mundo establishment que colapsou e ninguém mais sabe como voltar.
P. Todos esses movimento de extrema direita do mundo tem em comum uma pauta antifeminista e contra os avanços nos costumes muito forte. Significa então que algo de fato se moveu na sociedade? Essa não é a boa notícia?
R. A segunda metade do século XX, principalmente a partir de 1968, trouxe grandes progressos para os direitos civis, das mulheres e da população LGBT, mas essas conquistas históricas tiveram reação. Esse é sempre um processo de ação e reação. Michael Kimmel, um sociólogo de que gosto muito, escreveu sobre o “homem branco raivoso”. Ele termina a introdução dizendo que se há uma curva ascendente na história da humanidade é a conquista das mulheres, e que essa curva continua ascendente. São muitas as conquistas, mas como a gente é soterrado pela vitória da extrema direita, não conseguimos enxergar as conquistas dessa juventude e que também elegemos a maior bancada feminista, a primeira deputada indígena... E nem acho que a extrema direita seja só uma reação a isso, as duas coisas estão coincidindo e está muito em disputa ainda. O capítulo do meu livro que resume isso é “a extrema direita venceu, as feministas também”. Há esse avanço das lutas por modos de vida e é dali que vem alguma esperança de conquistas.
“A direta está se organizando desde os anos 2000, com think tanks e organizações bilionárias por trás. Absolutamente nada é espontâneo”

P. Se é uma disputa, o lado obscurantista pode acabar ganhando. Como o campo progressista deve se organizar?
R. Em primeiro lugar precisa disputar as pessoas, online e offline, e parar com a ideia de que existe uma cisão entre os dois. Você tem que voltar para a periferia para ver que a pessoa está sendo assaltada na parada de ônibus às onze da noite e que quer segurança pública, mas também precisa saber disputar as redes dentro de uma perspectiva de diálogo. Quando as insurgências e contradições vierem, e todos os trabalhadores trazem contradições, é preciso trabalhar para recrutar essas pessoas e trabalhá-las politicamente. Mesmo antes das fake news a direita já fazia isso muito bem. A gente precisa fazer material de qualidade com uma linguagem popular e aberta, que dê respostas à população. Em segundo lugar, temos que fugir do populismo. Significa que não podemos dizer que a solução para a segurança pública é dar armas para as pessoas, mas sim oferecer um projeto para a população. E hoje não enxergo para onde as esquerdas estão indo com relação a projetos. Elas ainda estão na defensiva. É horrível o que aconteceu, mas é preciso trabalhar na construção de alianças democráticas. Primeiro para derrotar o fascismo e, depois, para construir programa de emprego e trabalho no século XXI, na educação, na saúde... A esquerda britânica está aí falando, está sonhando, está sendo radical... No Brasil, a gente só vê radicalismo da esquerda na Internet, nos xingamento e na lacração. Mas em termos de propostas, o que há de radical, de revolucionário, na esquerda brasileira? Que diga para um trabalhador que há um caminho? Quem tem a coragem de ser visionário, de ousar, de ser louco, de pensar algo que ninguém pensou?

 

P. O ex-presidente Lula atrasa essa renovação e esses novos projetos?
R. Lula teve um julgamento extremamente injusto. Todo mundo tem direito fundamental a um julgamento neutro. Então o “Lula Livre” é uma questão de justiça histórica, de democracia. Ponto. Mas a gente precisa avançar para além de Lula, e também para além de sua própria figura. Sem negar o papel fundamental que ele tem, mas buscando novas lideranças.

P. Acredita então que a esquerda replica estratégias de violência nas redes que a extrema direita aplica?
R. Vejo isso entre alguns setores petistas, além de outros da esquerda. É um processo de radicalização da agressividade, da violência, do escracho, do cancelamento. É extremamente violento. Neste ponto sou totalmente freiriana. Paulo Freire dizia que corremos o risco de ter uma esquerda magoada, de corte ressentido e vingativo. E de cairmos no mesmo rancor da extrema direita. Essa luta se transformou numa luta revanchista e vingativa, em grande parte. Parece que não fazemos mais nada, que ficamos no Twitter cancelando as pessoas, apontando o dedo para quem não é puro. A gente já tem uma lógica de não recrutar “porque é fascista”. E quem está dentro, você vai cancelando até sobrar muito pouco. Isso é muito danoso, o oposto da esquerda. A esquerda é um princípio humanista e da camaradagem, o oposto do cancelamento. Há varias pessoas da esquerda e do centro que estão com muito medo de se manifestar na Internet. E ninguém acha que está linchando, todo mundo diz que só está “criticando”. Mas é um comportamento de manada, alguém faz um comentário, o outro vai lá responder e em pouco tempo uma nuvem já trucidou a pessoa. Todo dia vemos um cancelamento diferente, mas não vemos programa. Virou radicalismo de Twitter, não de proposta.

“Em termos de propostas, o que há de radical, de revolucionário, na esquerda brasileira? Que diga para um trabalhador que há um caminho?”

P. Existe o risco de crescimento da esquerda autoritária?
R. É um movimento crescente, porque provavelmente ela tenta acreditar que quem derrotou o fascismo foi uma esquerda stalinista. Além de reeditar todos os métodos violentos, isso tem um efeito muito perigoso nos jovens. Sou especialista em China e vejo que há um revisionismo da história chinesa, com influencers neo-maoístas dizendo que não há presos políticos na China. E se alguém fala sobre autoritarismo do Estado chinês, pedem provas de que existem presos políticos, mesmo com todas as evidências científicas e jornalísticas indicando que a ditadura chinesa prende. É terraplanismo, mesmo. Todas essas correntes autoritárias estão crescendo absurdamente nos movimentos estudantis, entre jovens que sequer sabem direito quem foi Mao ou Stalin. Então essa geração com a qual estou muito animada pode ser levada para esse caminho autoritário.

P. Os radicais da Internet representam a maioria ou há demanda por mais moderação no discurso?
R. Assim como vejo essa esquerda do cancelamento, que cresce muito e que tem força, vejo um público cada vez maior sedento e desesperado por pessoas que sejam abertas ao diálogo. Elas não têm referências ainda, mas estão buscando a nuance e a contradição do processo. E estão completamente órfãs. Então precisamos de uma esquerda que ocupe os canais de comunicação e que consiga um projeto de falar para a população, com todas as suas contradições. Significa falar com o caminhoneiro que quer intervenção militar e ao mesmo tempo queria Lula. Estou convencida de que há uma demanda por essas figuras. As pessoas estão sofrendo com essa radicalização, que não leva a nada, não é programática e não melhora a vida de ninguém.

P. Em entrevista ao EL PAÍS, o sociólogo de Pedro Ferreira de Souza, que estuda a desigualdade social, afirmou que o trabalhador industrial do ABC paulista está mais perto do topo da pirâmide, enquanto que a maioria nunca teve direito algum. A ideia de trabalhador também ficou arcaica?
R. Isso é fundamental. Esse trabalhador ideal não existe. Além de ser um extrato muito pequeno da pirâmide brasileira, esse trabalhador inclusive politicamente não existe. E a tendência é de flexibilizar cada vez mais. Se pensarmos no protótipo do trabalhador brasileiro hoje, tem que pensar no motorista de Uber. Ele compra um carro, vai trabalhar 15 horas por dia, está cansado, mas quer continuar tendo um carro e vai colocar alguém para trabalhar para ele. Esses dias conheci um motorista que disse que trabalhava 24 horas por dia e que dormia dentro do carro, para que com 30 anos tenha dois trabalhadores para ele na mesma lógica. Não acho que isso seja 100%, preto no branco, porque esse trabalhador também está indignado e quer transporte público, saúde e benefícios sociais. Durante 10 anos estudei economia informal, e o sonho de todo camelô, com todo aquele discurso empresarial, é ter a carteirinha de trabalho. As pessoas querem ter a dignidade de ter direitos, mesmo que reproduzam esse discurso do empreendedorismo. Existe um processo de flexibilização, mas também temos que trabalhar para prover mais direitos para essas pessoas. Acho que o MEI, com todas as dificuldades, foi uma tentativa de legalizar essas pessoas e de oferecer um sistema de Previdência.

“Vejo um público cada vez maior sedento e desesperado por pessoas que sejam abertas ao diálogo”

P. Como avalia a estratégia da esquerda ao lidar com a reforma da Previdência?
R. Ela ficou na base da negação, com nada de propositivo, apenas no revanchismo. Ela foi inábil e ao mesmo tempo ficou na lógica revanchista, dizendo para o trabalhador “seu pobre, você se ferrou”. Falando para uma população que não necessariamente será afetada pela reforma da Previdência. A população brasileira historicamente está na economia informal, com poucos direitos e que não vai estar lá, nas ruas, lutando por eles. O discurso de retirada de direitos trabalhistas e da aposentadoria não necessariamente pega nessas pessoas. De novo, é mais fácil cancelar. Você pensa a partir de uma linguagem estrita de uma esquerda do século XX, e não consegue responder às pessoas de carne e osso que estão vivendo as contradições do processo. É obvio que temos que lutar pela Previdência e por mais direitos, mas isso não faz sentido nenhum para a base da população.P. Acha que a esquerda precisa dialogar com centristas, liberais e setores da direita?R. No aspecto institucional temos hoje que fazer aliança com todo mundo que quiser derrotar Bolsonaro. E isso é fundamental em todas as frentes, inclusive com setores do PSDB que estiverem dispostos a fazer isso. Se FHC fizer a frente, tem que se aliar inclusive com FHC. Quando penso em uma frente, nela tem que estar inclusive uma direita que se denomina democrática. Não é uma aliança para pensar programa, mas de frente democrática, para barrar todos os retrocessos. E para isso é preciso dialogar com todos.

“A violência estrutural que afeta o pobre favelado também afeta o policial. Temos que falar com ele”

P. Como encara a morte dos dez jovens de Paraisópolis no atual contexto político e como enxerga as reações?
R. Evidentemente se trata de mais um episódio que se soma ao genocídio da população negra no Brasil. Essas populações sempre foram desumanizadas, vulnerabilizadas e mortas. Parte da bolha que apoiou a ação policial argumentava que não eram jovens se divertindo, mas sim vagabundos, pessoas que não tinham o que fazer. Estudei os rolezinhos e vi diferença de percepção de lazer de jovens pretos e periféricos e de jovens de classe media alta. Quando há uma tragédia semelhante num baile de camadas médias brancas, essa mesma bolha consegue ver as vítimas como pessoas dignas de luto. E o outro lado é tratado com frieza e desumanidade. Tudo isso é histórico, mas vemos agora uma legitimação inédita por parte dos governos Federal e estadual, com um discurso oficial de que esses policiais estão autorizados a matar e depois são coroados. Por outro lado, vi uma reação positiva na bolha progressista, o que desperta a possibilidade de que isso seja uma fagulha para que movimentos sociais saiam às ruas. Às vezes um fato pode ser disparador de comoção. O grande desafio é ver se há possibilidade maior de contágio, que não se deixe que a pauta do próximo dia tome conta e faça a gente esquecer do ocorrido. Esse massacre precisa continuar sendo algo que trabalhe nossa indignação contra esse novo Brasil marcado pela bala.

P. Como os movimentos sociais e o campo progressista devem abordar a questão da violência policial? Acredita precisam disputar os policiais com a extrema direita?
R. Enquanto nós estivermos um estado policial, devemos disputar os policiais. Como mostram os trabalhos do pesquisador Rafael Alcadipani, o policial militar está entre as profissões com maior nível de estresse, pelo contexto da violência e precariedade da profissão, atentando contra toda a família do policial. É uma classe extremamente precarizada, que sofre depressão e com altas taxas de suicídio. A mesma violência estrutural que afeta o pobre favelado também afeta esse policial, ele mata por ódio e acaba ferrado psicologicamente. Temos que falar com policiais. Claro que parte da esquerda vai dizer que precisam desaparecer, mas a polícia existe. E existem grupos de esquerda e antifascistas na polícia que fazem um trabalho nesse sentido. Evidentemente tem que alargar o discurso para esses setores e trabalhar a questão da violência estrutural.


Revista Política Democrática || Luiz Paulo Vellozo Lucas: Os caminhos da nova política

Nova política no país navega entre parlamentares de perfil liberal na economia e progressista nas políticas públicas a integrantes de blocos conservadores como o PSL e seguidores do presidente Jair Bolsonaro

A política brasileira bate cabeça em busca da sua restauração moral pela via que se convencionou chamar de “nova política”. Esta bandeira, no entanto, é empunhada por grupos muito diferentes. Os mandatos de Tábata Amaral, Felipe Rigoni e os outros deputados oriundos dos movimentos de renovação que votaram favoravelmente à reforma da Previdência contrariando seus partidos, respectivamente o PDT e o PSB, refletem um dos caminhos da nova política, de perfil liberal na economia e progressista nas políticas públicas. Marina Silva foi uma espécie de precursora desta tendência que já estava parcialmente presente no eleitorado nas eleições de 2010.

O bloco conservador liderado pelo presidente e seus filhos, por enquanto abrigados no PSL, representa claramente outra vertente política, mas não se pode negar que eles chegaram ao poder enfrentando e derrotando o sistema de partidos e a política tradicional no Brasil. Seus seguidores também acreditam estar lutando contra a podridão do sistema e apoiando a nova política.

A luta interna no PSL se dá principalmente em função da disputa pelo controle e distribuição do fundo partidário e da definição de candidaturas e alianças nas eleições. Temas particularmente caros à política tradicional e às velhas raposas que se articulam a todo vapor, visando às eleições municipais do próximo ano. O calendário eleitoral de 2020 já começou. A primeira disputa será pela bandeira da nova política e, por isso, todos querem distância regulamentar das brigas que podem ser vistas como “sujas” pelo eleitorado, isto é, cargos e dinheiro público para a eleição. É claro que, em off, a batalha é violenta!

A força das igrejas evangélicas estará presente, assim como muitas candidaturas de militares e policiais, para disputar eleições em nome da renovação. O interesse do empresariado e da opinião pública mais informada, movida principalmente pelo cansaço com a prolongada crise econômica e pelo pânico com a possibilidade de volta do PT, acaba sendo seduzida por qualquer caricatura de liberalismo econômico que se apropria da indignação nacional com o estatismo e os privilégios cevados ao longo dos séculos no Brasil, sem demostrar, contudo, compromisso e capacidade política para liderar uma agenda liberal reformista.

As máquinas dos governos municipais em fim de mandato estão enferrujadas e desgastadas e tendem a entrar com dificuldade no pleito majoritário, mas serão fortíssimas nas eleições de vereador, quando, pela primeira vez, será proibido fazer coligações proporcionais. O fisiologismo será determinante e o aparelhamento de estruturas de poder local para abrigar candidaturas a vereador para fazer legenda vai ser prática corrente. Até o STE já descobriu que só o voto distrital melhora a qualidade do voto e do pleito. Voto distrital e candidaturas avulsas.

O dinheiro do Fundão vai atrair políticos sem expressão e subcelebridades locais para o pleito, e os partidos em busca de sobrevivência também vão se virar para arranjar candidatos a prefeito e formar chapa de vereador. Políticos experientes derrotados pela onda conservadora em 2018 vão aparecer, alguns fantasiados de nova política, outros com o traje costumeiro. Os profissionais de campanha foram muito desvalorizados com o advento do whatsapp, mas os novos estrategistas digitais já estão oferecendo seus serviços e alguns já estão trabalhando. Ricos, famosos ou não, serão assediados com força pelos partidos para participar e, naturalmente, financiar a campanha de 2020.

Finalmente teremos alguns verdadeiros políticos por vocação que, apesar das circunstancias terríveis da política brasileira hoje, vão aceitar o chamado da vida pública e participar do processo eleitoral como candidatos. Gente como Tábata e Rigoni, que estão de fato se dedicando a melhorar a qualidade da política através do único modo comprovadamente eficaz: o exercício de seus mandatos com espirito público, preparo intelectual e coragem cívica, depois de disputar e vencer eleições usando como únicas armas suas convicções, corações e mentes.

Pode até não parecer, mas sou otimista. A proximidade das eleições municipais me faz sonhar com um debate público e informado sobre a crise urbana brasileira e com candidaturas renovadoras de verdade. O desenvolvimento sustentável e includente do Brasil começa nas cidades, com a liderança e o protagonismo do poder local, restaurando a confiança nas instituições da democracia e formando capital cívico.