direita

João Pereira Coutinho: O trem da história

Para Chantal Mouffe, só o populismo de esquerda pode derrotar o de direita

De vez em quando, alguns leitores interessados em política me pedem conselhos bibliográficos. Eu dou. Eles reclamam. Sobretudo quando recomendo autores de esquerda que esteja a ler no momento (Agamben, David Graeber, o excelente Paulo Arantes etc.).

Nunca entendi o descaso. É mais proveitoso ler autores com os quais discordamos (grosso modo) do que gente que se limita a pregar aos convertidos.

Um dos melhores exemplos é Chantal Mouffe, a filósofa belga que tem pensado como ninguém os dilemas que a esquerda contemporânea enfrenta.

Na década de 1980, e perante a "ofensiva neoliberal" de Thatcher e Reagan, Mouffe criticava a (sua) esquerda pela visão essencialista de só considerar os trabalhadores como sujeitos oprimidos da história. Para a autora, existem vários tipo de dominação que merecem uma resposta progressista.

Sem o saber, Mouffe influenciou aquela parte da esquerda que encontrou na luta das minorias --sexuais, culturais, étnicas etc.-- uma nova bandeira pós-marxista.

O problema, porém, é que Mouffe nunca defendeu que as classes trabalhadoras deveriam ser substituídas pelas minorias. Na estratégia de Mouffe, uma nova "hegemonia progressista" seria plural, feita de várias vozes, e não de uma tribalização selecionada.

Eis o programa que Mouffe relembra no seu mais recente ensaio, que obviamente recomendo: "Por um Populismo de Esquerda" (edição portuguesa pela Gradiva).

O título é um achado. "Populismo" é palavra maldita para muitos progressistas, compreensivelmente assustados pelos populistas de direita que tomaram conta do palco.

Não para Mouffe. Mais: ela defende explicitamente que a única forma de derrotar o populismo de direita passa por uma alternativa populista de esquerda.

O momento histórico que vivemos assim o determina. Durante 30 anos, o que Mouffe entende por "hegemonia neoliberal" teve rédea solta. De tal forma que os tradicionais partidos socialistas se converteram à ortodoxia dos mercados, aceitando a sua trilogia sagrada --desregulação, privatização, austeridade. Bill Clinton ou Tony Blair, os papas da "terceira via", foram os rostos dessa rendição.

Mas a crise financeira de 2008 abriu uma brecha na narrativa de sucesso neoliberal. A direita populista entendeu isso, conquistando o voto dos deserdados da globalização. A esquerda, obcecada com as minilutas das miniminorias, perdeu o trem da história.

É preciso recuperá-lo. Primeiro, replicando a dicotomia do populismo de direita: é mesmo "nós" contra "eles" --ou, melhor dizendo, o "povo" contra a "oligarquia" neoliberal. E que povo é esse?

Para Mouffe, é a reunião de todas as forças democráticas --trabalhadores, imigrantes, minorias etc.-- que não se reveem no modelo neoliberal e na pós-democracia reinante.

Entendo o diagnóstico da autora. Parcialmente, concordo com ele. A globalização, como qualquer processo histórico revolucionário, provocou rupturas tecnológicas que atingiram duramente o "proletariado".

Além disso, a pós-democracia, entendida como redução da soberania nacional e desvalorização dos parlamentos, é uma evidência na Europa. A União Europeia pode ter vários méritos, mas há uma sombra antidemocrática no funcionamento político da Europa que tem alimentado a abstenção e a revolta entre os eleitores. É preciso lembrar o brexit?

Acontece que a proposta de Mouffe tem várias contradições. A primeira delas é mais ou menos óbvia. Como conciliar na sua noção de "povo" interesses tão díspares?

Uma parte dos trabalhadores que hoje votam em Donald Trump ou Marine Le Pen o fazem, precisamente, contra as minorias que Mouffe pretende aglutinar. É um voto contra a imigração irrestrita, entendida também como ameaça econômica global.

Que tem o populismo de esquerda a dizer sobre esse assunto? Abram as fronteiras e tudo será perfeito?

Mas não só. Na narrativa de Mouffe, há duas datas que a autora ignora: o 11 de Setembro e a crise dos refugiados de 2015. Podemos dizer que a primeira data, pela reação militar que despertou a Ocidente, está diretamente relacionada com a segunda.

O populismo de direita é filho dessas duas datas e do sentimento de insegurança coletiva correspondente.

Que tem o populismo de esquerda a dizer sobre isso? O terrorismo é mera "islamofobia"?

Como sempre, Chantal Mouffe toca em temas essenciais, como o abandono do "proletariado" pela nova esquerda ou o momento pós-democrático na Europa.

Mas desconfio que ainda não é dessa vez que o populismo de direita tem um rival à altura.

*João Pereira Coutinho é escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.


Matias Spektor: O futuro

Perigosa, direita populista que hoje dá as cartas tem método e projeto

Esta é minha última coluna neste espaço.

Quando este jornal me convidou para escrever, há sete anos, a ideia era inusitada. Nenhum grande veículo tinha um colunista dedicado à política externa brasileira. Para minha sorte, muitos leitores fizeram da agenda internacional a sua pauta.

Esses anos assistiram à expansão do debate público sobre temas internacionais. Hoje, dezenas de profissionais expressam opiniões sobre o assunto no Twitter e no Facebook.

Isso é muito positivo. A velha redoma que limitava a conversa a um punhado de embaixadores aposentados se estraçalhou, aumentando a diversidade e a densidade do debate.

Acontece que essa transformação também trouxe coisas negativas. Nas redes sociais, a competição por “likes” premiou argumentos de apelo fácil, muitas vezes inverídicos ou incapazes de resistir ao mínimo escrutínio. O debate ficou menos qualificado.

Isso é um problema sério porque ocorre ao mesmo tempo em que colapsa o que havia de consenso na política externa da Nova República. Quem termina ocupando o espaço é a turma que hoje comanda a agenda internacional do governo Bolsonaro.

Eu admito a minha parcela de culpa: como tantos outros acadêmicos, não percebi que um dos efeitos da vitória de Donald Trump seria o nascimento do antiglobalismo messiânico à brasileira.

O resultado é nefasto porque a direita populista que hoje dá as cartas é perigosa. Não se trata de um bando tresloucado: em suas decisões, há método e projeto. A direção do que vem por aí é péssima para o país.

É por isso que chegou a minha hora de parar. A partir de agora, vou trabalhar para promover o pensamento e o debate sobre o futuro da política externa de outras formas.

Trata-se de uma tarefa urgente porque o grupo que se encontra no poder um dia será posto para fora pela força do voto popular. Eles deixarão um rastro de destruição, e cabe à sociedade começar a imaginar a reconstrução.

Seria um erro grotesco acreditar que isso ocorrerá por força da natureza. Afinal, nem direita, nem esquerda têm alternativas decentes para pôr no lugar.

Na esquerda, muita gente acredita ser possível reeditar a diplomacia de Lula. Na direita, vozes influentes ainda defendem a volta à plataforma de política externa elaborada pelo tucanato para as eleições de 1994.

Como sociedade, podemos e devemos fazer melhor. Deixo a coluna para pôr em prática aquilo que defendi durante todo esse tempo: um esforço coletivo para conceber uma política externa nova, capaz de ajudar a sociedade brasileira a sair do buraco em que se encontra.

Obrigado, leitor, por me acompanhar nesta jornada.


Demonização da esquerda já se aproxima de uma escalada muito perigosa, avalia Davi Emerich

Em artigo na Revista Política Democrática Online, jornalista alerta para a escalada contra a esquerda no Brasil de Bolsonaro, que já chega a limites perigosos

O governo Jair Bolsonaro, cuja legitimidade é inquestionável, apresenta-se com três núcleos programáticos bastante distintos, que não necessariamente mantém relações diretas entre si: o da economia e de suas reformas, as questões de segurança e de combate à corrupção e, terceiro, o chamado de valores. A avaliação, feita pelo jornalista Davi Emerich é tema de artigo publica na sexta edição da Revista Política Democrática Online.

» Confira a aqui a Revista Política Democrática – Edição 06

Para Emerich, que também é mestre em Comunicação Social pela Universidade de Brasília (UnB), neses primeiros meses de gestão fica cada vez mais claro que o presidente deixou nas mãos de Paulo de Guedes e Sérgio Mouro a tocata dos dois primeiros, sem interferir em demasia no processo e chegando a trazer alguns problemas ao Ministério da Economia como ocorreu quando problematizou a reforma da Previdência.

"O projeto de valores não, o presidente resolveu assumi-lo diretamente, erigindo-o em coluna dorsal da administração para manter a sua base original mobilizada, na expectativa de que uma certa direita possa hegemonizar no tempo a política, o estado, a inteligência e a cultura nacionais", avalia Emerich.

Dessa forma, "a escalada da demonização da esquerda, parece que feita de forma criteriosa, precisa ser bem entendida por todas as forças democráticas nacionais e, também, pelos militares", acredita Emerich. "Omissão, confronto estéril ou oposicionismo reto não são um bom caminho. É hora da unidade de todo o campo democrático para que não tenhamos desastres políticos e sociais mais à frente", conclui.

Leia mais:
» Raul Jungmann é o entrevistado especial da sexta edição da Revista Política Democrática Online

» Sérgio C. Buarque analisa a crise da Previdência em artigo na Revista Política Democrática

» Política Democrática mostra reforma da Previdência como desafio para destravar governo


Bruno Boghossian: O pastelão da oposição

Participação de políticos em piada de ator global revela oposição ingênua e sem rumo

Como se não bastasse um governo alucinado, a oposição também migrou para o mundo do delírio. Ex-presidentes, líderes parlamentares e dirigentes de partidos de esquerda tentaram fazer uma brincadeira e declararam apoio ao ator José de Abreu como presidente autoproclamado do Brasil.

A piada começou como uma crítica ao venezuelano Juan Guaidó, que fez o mesmo em seu país para tentar derrubar Nicolás Maduro. O ator global gostou do personagem e transformou a esquete em um palanque contra Jair Bolsonaro. Os políticos que entraram na onda talvez não tenham percebido, mas são estrelas de uma comédia pastelão barata.

Abreu começou a convocar figuras da esquerda nas redes sociais para seu governo fictício —e elas responderam. Chamada para o Ministério de Energia Convencional e Alternativa, Dilma Rousseff pediu que ele conduzisse o Brasil “com perseverança e olhando para nossa gente”.

Na partilha de cargos, Lula recebeu o Ministério dos Justos. Da prisão, mandou um bilhete ao ator declarando ser seu cabo eleitoral.

Além dos petistas, Jandira Feghali (PC do B) chegou a publicar uma foto de um evento convocado por Abreu em seu desembarque no aeroporto do Rio, na sexta (8). “O presidente chegou!”, exclamou.

O que deveria ser um protesto bem-humorado revelou uma oposição ingênua e sem rumo.

Convidado pelo global para ser o ministro fictício das Relações Institucionais, o deputado Marcelo Freixo (PSOL) respondeu:

“Kkkkkk”. Criticado por um seguidor, argumentou que o humor “também desestabiliza a tirania”. E completou: “A ação da esquerda no Congresso não tem sido pequena, seja justo”.

Até agora, quem mais incomodou o governo na Câmara e no Senado foi o centrão, que conseguiu emparedar Bolsonaro.

Enquanto isso, a oposição parece não ter ideia de como fazer oposição. Rachada entre siglas que disputam protagonismo, a esquerda mostrou que só consegue se unir no campo da ficção.


O Globo: 'Espertalhões tentam parar a Lava-Jato da Educação', diz Olavo

Guru do bolsonarismo explica, em entrevista ao GLOBO, por que pediu saída de alunos do governo

Natália Portinari e André de Souza, de O Globo

BRASÍLIA – Depois de causar alvoroço aconselhando, nas redes sociais, seus alunos a deixarem seus cargos no governo do presidente Jair Bolsonaro, na madrugada desta sexta-feira, o professor de filosofia Olavo de Carvalho , radicado nos Estados Unidos, disse ao GLOBO que seu conselho se motivou pela informação de que "espertalhões" dentro do governo Bolsonaro estariam atuando para frear a "Lava-Jato da Educação", uma investigação sobre corrupção em contratos do Ministério da Educação (MEC) em gestões passadas.

– Inverteram a cronologia dos fatos. Estão dando a notícia de que, depois das minhas críticas, teriam demitido alunos meus, mas esses fatos já estavam acontecendo antes de eu falar qualquer coisa. O que aconteceu é o seguinte. Fiquei sabendo que alguns espertalhões estariam tentando parar a Lava-Jato da Educação e, com base nisso, pedi que meus alunos saíssem do governo – disse Olavo.

Questionado sobre a quais alunos se dirigia seu conselho, Olavo cita dois: o assessor internacional do presidente, Filipe Martins, e o advogado Tiago Tondinelli, chefe de gabinete do MEC. Segundo a "Folha de S.Paulo", Tondinelli irá deixar o cargo. Olavo diz que não travou contato com nenhum dos dois após o conselho que deu em redes sociais. O GLOBO não conseguiu falar com os dois.

– Eu não mantenho contato com membros de governo, ninguém entrou em contato comigo depois (de fazer as críticas). Não conheço pessoalmente todos os meus alunos e não fico supervisionando o que acontece nos ministérios. Vocês (jornalistas) parece que gostam de teoria da conspiração. Ernesto Araújo e Vélez Rodríguez não são meus alunos. Eu li o Vélez Rodríguez, eu é que fui influenciado por ele.

Segundo pessoas próximas ao ministro, Grimaldo e outros alunos de Olavo receberam a opção de permanecer no ministério em novas funções. Todos aceitaram, à exceção de Grimaldo. Ao GLOBO, o ministério diz que, como se trata de remanejamento interno, não se manifestará sobre o assunto.

A "Lava-Jato da Educação" foi anunciada pelo ministro Ricardo Vélez Rodríguez em meados de fevereiro. Segundo ele, trata-se de uma investigação interna sobre atos das gestões anteriores, aberta após encontrar indícios de corrupção e desvios em programas da pasta. Foi assinado um protocolo de intenções com outros órgãos do governo para apurar as irregularidades, que envolvem também concessão ilegal de bolsas de ensino à distância e irregularidades em universidades federais. Na última semana, Bolsonaro reforçou, no Twitter, o compromisso com a investigação.

Ao menos um dos alunos de Olavo, o assessor especial do MEC Silvio Grimaldo, insatisfeito com a mudança de funções na pasta, anunciou em sua página no Facebook que pediria exoneração. Segundo Grimaldo, somente pessoas ligadas a Carvalho se tornaram indesejadas no MEC e foram transferidas para cargos que, na prática, são apenas um “prêmio de consolação”.

Foram duas postagens. Na primeira, ele disse que “o expurgo de alunos” de Carvalho foi “a maior traição dentro do governo Bolsonaro que se viu até agora”. Disse ainda que nem as “trairagens” do vice-presidente Hamilton Mourão, com quem Carvalho já trocou farpas, ou do ex-ministro da Secretaria-Geral da Presidência Gustavo Bebianno, que deixou o governo após desgaste com Bolsonaro, “chegaram a esse nível".

Numa segunda postagem, ele esclareceu que não foi expulso do MEC. Grimaldo disse que, durante o Carnaval, foi avisado de que seria transferido para a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), “onde deveria enxugar gelo e ‘fazer guerra cultural’.” Assim, “dada a absurdidade da proposta”, e “vendo que o mesmo destino fora dado a outros funcionários ligados ao Olavo (apenas olavetes foram transferidos) e mais alinhados com as mudanças propostas pela eleição de Bolsonaro, não vi outra saída senão comunicar ao ministro meu desligamento pedir minha exoneração, que deve sair nos próximos dias”.

Outro aluno, Murilo Resende, que também tem cargo comissionado no MEC, afirmou ao GLOBO estar surpreso com as postagens de Carvalho. Mas, diferentemente de Grimaldo, disse que, até o momento, pretendia continuar no governo.

– Até o momento sim (pretendo continuar no cargo). Mas vamos ver. Eu também me surpreendi com as postagens hoje, com os fatos que estão sendo relatados. Vamos aguardar como todo mundo para entender melhor o que está acontecendo – disse Resende.

Enquanto a polêmica envolvendo os seguidores de Carvalho ganhava as redes, uma portaria assinada na quinta-feira pelo ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez, mas publicada apenas hoje, trazia a exoneração de quatro assessores. O GLOBO, porém, não conseguiu encontrar conexões entre eles e Carvalho.

Para o escritor guru do bolsonarismo, a presença de "inimigos" deveria ser suficiente para fazer os seguidores dele abandonarem seus postos e pretensões junto à administração pública para focarem apenas na "vida de estudos". "O presente governo está repleto de inimigos do presidente e inimigos do povo, e andar em companhia desses pústulas só é bom para quem seja como eles", disse Carvalho”, disse ele em mensagem tornada pública na madrugada de ontem em sua página no Facebook.

Carvalho, que desde 2009 dá aulas em um curso de filosofia online, disse que não era favorável à entrada no governo de pessoas para quem leciona, mas que não havia se posicionado em relação a isso anteriormente porque achou "cruel destruir essa ilusão" dos próprios próprios alunos sobre a gestão de Bolsonaro.

"Jamais gostei da ideia de meus alunos ocuparem cargos no governo, mas, como eles se entusiasmaram com a ascensão do Bolsonaro e imaginaram que em determinados postos poderiam fazer algo de bom pelo país, achei cruel destruir essa ilusão num primeiro momento. Mas agora já não posso me calar mais. Todos os meus alunos que ocupam cargos no governo — umas poucas dezenas, creio eu — deveriam, no meu entender, abandoná-los o mais cedo possível e voltar à sua vida de estudos", escreveu .

O GLOBO identificou outros alunos de Carvalho no governo, como o secretário de Política Econômica do Ministério da Economia, Adolfo Sachsida; o secretário de Alfabetização do Ministério da Educação (MEC), Carlos Nadalim. Nadalim não quis falar com a reportagem. Sachsida não retornou as ligações feitas e mensagem enviada.


José Antonio Segatto: Incivilidade política

Podemos ter de viver tempos infaustos para os valores democráticos e o exercício da cidadania

Um importante intelectual alemão, Karl Marx, em 1852, no livro O 18 de Brumário, em perspicaz análise do processo político francês dos anos 1848-51, revela como foram criadas as “circunstâncias e condições que possibilitaram a um personagem medíocre e grotesco (Luís Bonaparte) desempenhar um papel de herói”.

Guardadas as singularidades dos acontecimentos na França da época, posteriormente, nos séculos 20/21, fenômenos com alguma similitude com aqueles se sucederam em outros lugares e situações particulares, até mesmo em tempos recentes. Podemos citar como exemplos, circunscrevendo-nos apenas ao continente americano e à contemporaneidade, as eleições presidenciais que elegeram o agrônomo Alberto Fujimori (Peru, 1990), o coronel Hugo Chávez (Venezuela, 1998), o empresário Donald Trump (Estados Unidos, 2016) e o capitão Jair Bolsonaro (Brasil, 2018).

O caso do Brasil, o mais recente, é deveras ilustrativo desses fatos. Político obscuro e sem qualidades, que durante quase três décadas engrossou as fileiras do baixo clero no Congresso Nacional, Bolsonaro fez carreira de deputado federal por partidos fisiológicos e clientelistas ou de aluguel. Representante do corporativismo militar e do nacional-estatismo, arauto do regime ditatorial e apologeta de seus métodos despóticos e cruéis, manteve sempre a coerência de concepções e a constância de práticas em sua trajetória parlamentar: a demonização da política e o ultraje da democracia, a glosa dos direitos de cidadania e a hostilidade aos valores humanistas, o combate às manifestações identitárias e multiculturais.

O desafio, todavia, é explicitar como um sujeito incivil e rústico, sem projeto, sem estrutura partidária e com recursos limitados, pôde angariar tantos adeptos e obter tamanha votação, que permitiu sua eleição para a Presidência da República de um país deveras complexo.

Inúmeras têm sido as respostas dadas por jornalistas e cientistas políticos, por especialistas e leigos, para compreender o sucedido. Dentre elas, algumas podem ser destacadas:

1) A severa crise econômica e suas sequelas teriam criado insatisfação generalizada.

2) A revelação dos muitos e graves escândalos de corrupção nos diversos níveis do aparato estatal, envolvendo partidos governistas – sobretudo o consórcio PT-PMDB –, associados a práticas fisiológicas, clientelistas e patrimonialistas, teria produzido reprovação indignada do establishment político pela opinião pública. Ademais, seria responsável pelo depauperamento do centro político e pela perda de credibilidade do sistema partidário, permitindo a emergência no cenário político de novos atores.

3) A incapacidade de governos na segurança pública teria propiciado as condições para o aumento exponencial da criminalidade, da violência e da disseminação do medo e da apreensão social.

4) A ineficácia da gestão do Estado e da condução das políticas públicas, concatenada aos malfeitos dos donos do poder, teria criado clima de insatisfação e descrédito sem precedentes da política e dos políticos, dos partidos e das instituições.

5) O ativismo de entidades e movimentos identitários, na busca de reconhecimento, teria desencadeado uma reação conservadora afrontosa, em especial de igrejas evangélicas, em defesa de valores tradicionalistas.

6) Os influxos da onda conservadora e/ou de direita em ascensão na Europa e nos Estados Unidos teriam fomentado a disseminação de concepções extemporâneas e reacionárias: xenófobas, racistas, populistas, nacionalistas e antiglobalistas – em consonância, propalou-se uma atroz persecução a socialistas e partidos de esquerda em geral, além de movimentos identitários, de defesa de direitos civis e/ou humanos. A ira antipetista propagou-se como uma centelha e atingiu a esquerda indistintamente.

Esse conjunto de fatos e fatores teria produzido uma situação de mal-estar sociopolítico de vulto, um verdadeiro estado de anomia e seria mesmo responsável pelo desencadeamento, em 2013-15, de um agressivo e inusitado movimento antissistema, que conseguiu mobilizar grandes contingentes de manifestantes nas ruas e nas redes sociais. Com palavras de ordem “contra tudo o que está aí” e profissões de fé cruzadistas – em resguardo da pátria e da ordem, da família e dos “bons costumes”, de Deus e da civilização cristã – foram aguçados sentimentos elementares e ordinários que estariam latentes e afloraram de maneira impetuosa.

Nesse clima e/ou conjuntura é que teriam sido criadas as condições para a emergência da candidatura Bolsonaro. Apresentado como outsider, antipolítico, salvador da pátria, com uma retórica insolente e beligerante, preconceituosa e regressista, anti-secularista e anticosmopolita, conquistou ampla massa de adeptos dos mais variados estratos sociais. Explorando ardilosamente a mídia eletrônica, reuniu uma legião de tuiteiros, youtubers, blogueiros, etc. – orientados por ideólogos do submundo da internet – numa incomensurável operação de propaganda e proselitismo político-ideológico.

Se as interpretações ou constatações acima expostas forem verossímeis, elas sinalizam que podemos ter de vivenciar, nos próximos anos ao menos, tempos infaustos para os valores e procedimentos democráticos e para o exercício da cidadania. O cargo de presidente da República não enseja, entretanto, per se, prerrogativas de domínio desmesurável e arbitrário – os mecanismos de poder e os meios de exercê-lo tendem a restringir possíveis investidas antirrepublicanas, de insolência política, de ultraje da democracia e de constrangimento de direitos. As garantias institucionais e constitucionais vão depender, contudo, do ativo e engenhoso protagonismo dos agentes da sociedade civil e política, comprometidos com a manutenção do Estado de Direito Democrático, com a publicização do Estado e com as liberdades em sentido lato.

* José Antonio Segatto é professor titular de sociologia da Unesp


José Eduardo Faria: Democracia e resiliência constitucional

Está a nossa democracia consolidada para resistir a aventuras populistas e bonapartistas?

Acusada desde sua promulgação de conter altíssimo número de artigos, a Constituição brasileira não é extensa por incúria de seus autores. Escrita depois de 20 anos de uma ditadura militar, é compreensível que ela fosse bastante generosa em matéria de direitos individuais e sociais, a ponto de um ministro do STF ter afirmado que a Carta “só não traz a pessoa amada em três dias; fora isso, quase tudo está lá”.

A repulsa à ditadura também explica por que os constituintes recorreram à figura jurídica das cláusulas pétreas, para preservar liberdades públicas contra a aprovação de emendas constitucionais que tentassem limitá-las. Mas com isso impuseram suas concepções de poder às gerações futuras, suprimindo-lhes a prerrogativa de definir os direitos e o regime político que poderiam considerar adequados. Pelo mesmo motivo, os constituintes consagraram, ainda, um modelo de Estado e um padrão de regulação econômica que havia sido adotado em larga escala nas décadas seguintes ao pós-guerra.

Na época da Constituinte, porém, esse modelo e esse padrão já estavam em declínio, por causa da transterritorialização dos mercados, que privou os Estados de parte de suas funções legislativas e levou a um crescente policentrismo decisório no plano mundial. Para se adaptarem a essas mudanças, entre 1989 e 1999 dois terços dos países vinculados à ONU reformaram suas Constituições.

Com isso, o Brasil acabou ficando com um padrão de governabilidade travado, quando comparado com o padrão de outros países emergentes. Quanto mais extensa é uma Constituição, mais reduzidas são as esferas de decisão das maiorias parlamentares e da discricionariedade dos dirigentes do Executivo e maior é a tendência de judicialização das políticas públicas.

Sob a justificativa de deter a judicialização e destravar a governabilidade, a Constituição tem sido objeto de várias propostas de enxugamento, mediante a transferência de matérias por ela regulada para a legislação ordinária. Durante a campanha eleitoral, o vice do candidato eleito chegou a propor uma Carta escrita por “notáveis” e submetida a um plebiscito. Tolices à parte, as críticas suscitam questões importantes.

Uma diz respeito ao número de normas constitucionais que vão além da definição das regras do jogo, tratando, por exemplo, de políticas púbicas. Discutida por Cláudio Couto e Rogério Arantes em instigante artigo, a questão merece destaque porque, como uma proposta de emenda constitucional exige duas votações na Câmara e outras duas no Senado, com a aprovação de três quintos dos parlamentares em cada votação, os constituintes acabaram amarrando as gerações futuras a decisões não propriamente constitucionais, mas de interesse de parlamentares e corporações.

No caso específico da implementação e execução de políticas públicas, esse quórum é elevado e o processo de emendamento é lento ante a velocidade em que hoje se se sucedem os acontecimentos econômicos num mundo em que decisões são tomadas em tempo real. Além do mais, esse processo exige do Executivo capacidade de articulação parlamentar e eleva os custos políticos para a construção de coalizões, o que leva a concessões espúrias e irracionais.

Nas contas de Couto e Arantes, o número de artigos da Constituição que tratam de políticas públicas chega a 30,7% do total de dispositivos – é a maior proporção de todas as Constituições brasileiras. Quando uma Constituição contém muitos dispositivos sobre políticas públicas, ela “atrai para si a política governamental e a política cotidiana, já que seus dispositivos terão grande sobreposição com as questões que são objeto da disputa política entre os partidos, entre o governo e a oposição e entre os diversos grupos de interesse presentes na sociedade e no Estado”, afirmam eles.

Outra questão diz respeito aos efeitos de uma reforma constitucional. Evidentemente, toda Constituição tem, em face das transformações econômicas, sociais e culturais, de estar aberta a revisões. A ideia de que seja modificável não colide com sua vocação para a estabilidade – ao contrário, é condição para que o texto constitucional possa durar, sem perder efetividade.

Quando uma Carta não consegue combinar estabilidade e flexibilidade, ela tende a enrijecer, desconectando-se da realidade, ou a ser excessivamente flexível, gerando insegurança jurídica. Em 30 anos a Carta foi emendada 105 vezes. Desse total, 54,5% das emendas incorporaram novas normas à Constituição e só 2,6% revogaram normas originais. Ou seja, quase dois terços das emendas ampliaram um texto que já nasceu extenso.

Mais importante ainda, esse crescimento se deu basicamente nas matérias que envolvem políticas públicas, e não nas matérias relativas às instituições e funções de garantia do Estado. A dúvida levantada por Couto e Arantes em seu artigo, escrito antes das eleições, era saber se o candidato Jair Bolsonaro, com seu discurso flagrantemente antissistema, tinha noção do que falava sobre reforma constitucional.

Ou seja, a dúvida era saber se seu discurso reformista se circunscrevia apenas às políticas públicas constitucionalizadas, propondo sua revogação para assegurar agilidade à gestão governamental, ou se também envolvia alterações nas regras do jogo político e supressão de direitos. A literatura comparada revela que Constituições extensas e bastante modificadas por emendas tendem a durar. Também mostra que sua extensão tem que ver mais com questões institucionais do que de políticas públicas.

Pelo que disse antes das eleições, classificando certos dispositivos constitucionais como “amarras ideológicas”, o novo presidente parece que não se contentará apenas com reformas nos dispositivos relativos a políticas públicas. Por isso o importante não é somente saber se a Constituição continuará mantendo a resiliência demonstrada em 30 anos de vigência, mas, também, se a democracia brasileira está consolidada para resistir a aventuras populistas e bonapartistas.

*Professor titular da Faculdade de Direito da USP e professor da Fundação Getúlio Vargas


Bruno Boghossian: Rejeição de Bolsonaro a autocratas depende da cor da boina do ditador

Presidente ataca esquerda por crise na Venezuela enquanto festeja ditaduras de direita

No discurso que fez ao lado de Juan Guaidó no Planalto, Jair Bolsonaro não usou a palavra “ditadura” para descrever o regime de Nicolás Maduro. O presidente brasileiro, como se sabe, até tem simpatia por governos autoritários. A razão da crise no país, ele sugeriu, é o fato de a esquerda estar no poder.

Bolsonaro resolveu contaminar o encontro com sua obsessão ideológica. Ignorou um alerta feito dois minutos antes pelo próprio convidado. “Não é certo que exista um dilema entre uma ideologia e outra. O dilema na Venezuela é entre democracia e ditadura”, afirmou Guaidó.

O presidente brasileiro até se comprometeu a trabalhar para restabelecer a democracia no país vizinho, mas também quis culpar as gestões petistas pelo apoio à ditadura chavista e disse que o Brasil quase seguiu o caminho da Venezuela.

Nunca houve dúvidas de que Bolsonaro usaria o governo como palanque para embates políticos com a esquerda. A referência ao regime venezuelano é singular porque, dois dias antes, o presidente se derramou em elogios a ditadores de direita.

Bolsonaro explorou um evento oficial na usina de Itaipu, na terça (26), para celebrar os generais do regime militar brasileiro e fazer uma homenagem ao paraguaio Alfredo Stroessner —corrupto, líder de um regime torturador e acusado de pedofilia.

O presidente gosta de jogar confetes sobre autocratas. Em 2006, quando era deputado, ele tentou usar a Embaixada do Brasil no Chile para enviar uma mensagem ao neto do “saudoso general Pinochet”. Em vez de condenar a perversidade de qualquer governo autoritário, Bolsonaro só enxerga a cor da boina do ditador.

*
A indicação da especialista Ilona Szabó para o conselho de política criminal do Ministério da Justiça indicava que Sergio Moro estava disposto a escutar opiniões divergentes. A revogação dessa escolha “diante da repercussão negativa” mostra que o governo decidiu ouvir só um lado: a gritaria das redes sociais.


Mark Lilla: Dois caminhos para a direita francesa

Marion Maréchal e a vanguarda do conservadorismo europeu

Em fevereiro de 2018, ocorreu em Washington D.C. a convenção anual da Conferência de Ação Política Conservadora (CPAC, na sigla em inglês). É uma espécie de Davos da direita, em que iniciados e interessados se reúnem para inteirar-se das novidades. O orador da abertura, que estava longe de representar algo novo, foi o vice-presidente americano Mike Pence. A segunda pessoa a falar, esta sim, foi uma grande novidade: uma elegante francesa de 28 anos, chamada Marion Maréchal-Le Pen.

Marion, como é amplamente conhecida na França, vem a ser neta de Jean-Marie Le Pen, o fundador do partido de extrema direita Front National (Frente Nacional), e sobrinha de Marine Le Pen, atual presidente da agremiação. Os franceses conheceram Marion ainda criança, sorrindo no colo do avô nos cartazes da campanha presidencial deste, e ela nunca mais sumiu das vistas do público. Em 2012, aos 22 anos, tornou-se a pessoa mais jovem a se eleger para a Assembleia Nacional [equivalente à Câmara dos Deputados no Brasil] desde a Revolução Francesa. Decidiu, porém, não concorrer à reeleição em 2017, a pretexto de dedicar mais tempo à família. Na verdade, vem cuidando de projetos bem ambiciosos.[1]

Seu desempenho na CPAC foi fora do comum – imagina-se qual terá sido o impacto na plateia daquela manhã. À diferença de seu avô e de sua tia, conhecidos pelo temperamento exaltado, Marion se mostra sempre calma e contida, transmite sinceridade e demonstra inclinações intelectuais. Com um leve e encantador sotaque francês, começou o discurso em inglês contrastando a independência dos Estados Unidos com a “sujeição” da França à União Europeia. Na qualidade de país-membro da UE, afirmou ela, a França não pode escolher as próprias políticas econômica e externa nem defender suas fronteiras contra a imigração ilegal e a presença de uma “contrassociedade” islâmica em seu território.

A partir daí, porém, seu discurso tomou um rumo inesperado. Falando para uma plateia republicana de absolutistas da propriedade privada e fanáticos do porte de armas, atacou o princípio do individualismo, proclamando que o “primado do egoísmo” estava na base de todos os males da nossa sociedade. Exemplo disso, apontou, é a economia global que escraviza estrangeiros, roubando empregos de trabalhadores locais. Encerrou louvando as virtudes da tradição e invocando uma frase geralmente atribuída a Gustav Mahler: “A tradição não é o culto das cinzas, mas a transmissão do fogo.” Nem é preciso dizer que essa foi a primeira vez que um orador da CPAC fez alusão a um compositor austríaco da passagem do século XIX ao XX.

Há algo de novo na direita europeia e envolve mais que rompantes de populistas xenófobos. Ideias vêm tomando corpo, com a criação de redes transnacionais para a sua disseminação. Os jornalistas tendem a encarar como arroubos exibicionistas de Steve Bannon os esforços que ele vem fazendo no sentido de congregar os partidos e pensadores populistas da Europa no que chama de “O Movimento”. Mas a intuição de Bannon, tanto em relação à política europeia como à americana, está bem sintonizada ao nosso tempo. (E, de fato, um mês depois do pronunciamento de Marion na CPAC, Bannon viria a discursar na convenção anual da Frente Nacional.) Em países tão diferentes quanto França, Polônia, Hungria, Áustria, Alemanha e Itália, registram-se esforços no sentido de desenvolver uma ideologia coerente capaz de mobilizar os europeus contrariados com a imigração, as grandes mudanças econômicas, a União Europeia e a liberação dos costumes, e então recorrer a essa ideologia para governar. É tempo de começarmos a prestar atenção às ideias do que parece ser uma Frente Popular de direita em evolução. E a França é um bom lugar para isso.

A esquerda francesa, aferrada ao secularismo republicano, nunca teve muita sensibilidade para a vida católica e às vezes nem percebe que cruzou uma linha divisória. No início de 1984, o governo do presidente François Mitterrand [do Partido Socialista] propôs um projeto de lei que pretendia aumentar o controle do Estado sobre as escolas católicas privadas, pressionando seus professores a se tornarem funcionários públicos. Em junho daquele ano, quase 1 milhão de católicos marchou nas ruas de Paris em protesto, e muitos outros no resto do país. O primeiro-ministro de Mitterrand, Pierre Mauroy, foi forçado a renunciar, e retiraram a proposta. Foi um momento importante para os católicos laicos, que puderam perceber o quanto continuavam a ser, a despeito do secularismo oficial do Estado francês, uma força cultural e às vezes política.

Em 1999, o governo do presidente gaullista Jacques Chirac aprovou uma lei criando uma nova situação jurídica chamada Pacto Civil de Solidariedade (PaCS, na sigla em francês), que beneficiava casais que estavam juntos havia muito e pediam proteção legal ao direito de herança e a outras questões relacionadas ao fim da vida, mas não queriam se casar formalmente. Adotado pouco depois da epidemia de Aids, o PaCS foi concebido sobretudo em apoio à comunidade gay, mas logo se tornou popular entre casais heterossexuais interessados numa relação que poderia ser dissolvida com maior facilidade. Entre os casais heterossexuais, o total de pacsés, ou seja, dos que aderiram ao PaCS, aproxima-se hoje do número dos que se casaram. Para gays e lésbicas, a lei foi uma conquista inquestionável.

Decidido a capitalizar esse sucesso, o socialista François Hollande, durante a sua campanha à Presidência em 2012, prometeu legalizar o casamento entre pessoas do mesmo sexo e facultar o direito de adoção, entre outros, aos casais homossexuais. O slogan que usava era Mariage pour tous – Casamento para todos. Hollande tentou cumprir a promessa de campanha assim que se tornou presidente, mas repetiu o erro de Mitterrand ao não antever a forte reação da direita. Pouco depois de sua posse, começou a se formar na França uma rede de leigos apoiada fortemente em grupos de oração de católicos carismáticos. Essa rede foi chamada La Manif pour tous – A manifestação para todos.

Em janeiro de 2013, pouco antes da aprovação do casamento gay pelo Parlamento francês, La Manif conseguiu atrair mais de 300 mil pessoas a um comício em Paris, deixando atônitos o governo e a imprensa. O que mais surpreendeu foi a atmosfera lúdica do evento, mais parecido com uma parada gay do que com uma peregrinação a Santiago de Compostela. Havia muitos jovens presentes, mas, em vez de arco-íris coloridos, eles exibiam faixas azuis e cor-de-rosa, representando meninos e meninas. As palavras de ordem nos cartazes tinham um tom de Maio de 68: “François, resista! Prove que você existe!” Como se não bastasse, a porta-voz do movimento era uma espalhafatosa atriz e artista performática conhecida como Frigide Barjot, solista de uma banda chamada Les Dead Pompidou’s.[2]

De onde saíam essas pessoas? Afinal, a França, pelo menos ao que se diz, não é mais um país católico. É verdade que cada vez menos franceses batizam seus filhos e comparecem regularmente à missa, mas quase dois terços da população ainda se identificam como católicos, e cerca de 40% destes se declaram “praticantes”, seja lá o que isso signifique. E o mais importante: como constatou um estudo feito em 2017 pelo Pew Research Center,[3] os franceses que se identificam como católicos – em especial os que vão com regularidade à missa – têm opiniões políticas significativamente mais à direita do que os que se identificam de outra maneira.

E esses achados são consistentes com as tendências observadas no Leste Europeu, onde pesquisas do Pew Research constataram que, na verdade, a auto-identificação dos indivíduos como cristãos ortodoxos vem crescendo em paralelo com o nacionalismo, ao contrário do que indicavam as expectativas do pós-1989. Isso pode indicar a reversão, na Europa, da relação entre as identidades religiosa e política: não é mais a filiação religiosa de cada um que ajuda a definir sua posição política, mas a posição política que ajuda a definir se cada indivíduo se autoidentifica como religioso. Podem estar sendo definidos os pré-requisitos para o surgimento de um movimento nacionalista cristão europeu, como prevê há muito tempo o primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán.

Qualquer que tenha sido a motivação dos muitos milhares de católicos que participaram da Manif original, além de outras manifestações semelhantes por toda a França, os primeiros frutos logo começaram a surgir.[4] Alguns de seus líderes formaram em pouco tempo um grupo de ação política chamado Sens Commun [senso comum], que, apesar de pequeno, quase decidiu a eleição presidencial de 2017. O candidato do grupo era o antipático François Fillon, ex-primeiro-ministro conservador e católico praticante que apoiou La Manif e mantinha laços estreitos com o Sens Commun. Fillon declarou abertamente suas opiniões religiosas durante as primárias do seu partido, Les Républicains, no fim de 2016 – opondo-se ao casamento, ao direito de adoção e ao uso de barrigas de aluguel por casais homossexuais – e surpreendeu a todos ao vencer a disputa pela candidatura. Saiu das primárias com boa vantagem nas pesquisas e em razão da profunda impopularidade dos socialistas depois do governo de François Hollande, bem como da incapacidade da Frente Nacional para conquistar o apoio de mais de um terço do eleitorado francês, era visto por muitos como o favorito à Presidência.

Entretanto, assim que Fillon iniciou sua campanha nacional, Le Canard Enchaîné, um semanário que combina a sátira ao jornalismo investigativo, revelou que, ao longo dos anos, sua mulher havia recebido mais de meio milhão de euros de salário por empregos aos quais nem comparecia, e que o próprio candidato havia aceitado uma série de favores de empresários, entre eles – ao estilo de Paul Manafort[5] – o presente de ternos no valor de dezenas de milhares de euros. Para um homem cujo lema era “a coragem da verdade”, a revelação foi um desastre. Fillon foi indiciado em inquéritos e abandonado por seus assessores, mas recusou-se a deixar a disputa, possibilitando o avanço do centrista Emmanuel Macron, que acabaria vencendo as eleições. Ainda assim, devemos ter em mente que, apesar de todo o escândalo, Fillon conquistou 20% dos votos no primeiro turno, enquanto Macron teve 24% e Marine Le Pen, 21%. Não fosse a implosão de sua candidatura, podia ter sido eleito; e a história do que realmente acontece na Europa de hoje seria bem outra.

A campanha da direita católica contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo estava fadada ao fracasso, e afinal fracassou. Uma grande maioria dos franceses apoia o casamento homossexual, embora não mais que 7 mil casais recorram anualmente a ele. Todavia, temos motivos para achar que a experiência de La Manif ainda pode afetar a política francesa nos próximos tempos.

O primeiro motivo é que o movimento revelou a existência de um vácuo ideológico entre os republicanos tradicionais, de um lado, e de outro a Frente Nacional. Muitos jornalistas tendem a descrever com excesso de simplicidade o populismo na política europeia contemporânea. Imaginam que existe uma linha clara separando os partidos conservadores tradicionais, como Les Républicains, conformados com a ordem neoliberal europeia, dos partidos populistas de ideologia xenofóbica, como a Frente Nacional, que propõem o fim da União Europeia, a destruição das instituições liberais e a expulsão do maior número possível de imigrantes, especialmente muçulmanos.

Esses jornalistas têm dificuldade para imaginar que possa haver uma terceira força à direita, sem representação nos partidos mais tradicionais nem entre os populistas xenófobos. E essa visão estreita torna difícil, mesmo para os observadores mais experientes, entender os partidários de La Manif, mobilizados em torno das chamadas questões sociais e convencidos de não terem endereço próprio na política atual. Os Republicanos não têm ideologia dominante fora a visão econômica globalista e o culto ao Estado; mantendo a coerência com seu legado secular gaullista, sempre tenderam a tratar as questões morais e religiosas como um assunto estritamente pessoal, pelo menos até a candidatura anômala de François Fillon. A Frente Nacional é quase tão secular quanto eles, e dotada de ainda menos coesão ideológica, servindo mais como refúgio para o refugo da história – os colaboracionistas de Vichy,[6] os ressentidos pieds-noirs[7] expulsos da Argélia, os românticos à la Joana d’Arc, gente que odeia os judeus e/ou os muçulmanos, e os skinheads – do que como um partido com um programa afirmativo para o futuro da França. Um prefeito que já foi próximo a esse grupo hoje prefere defini-lo, com muita propriedade, como “a direita Điên Biên Phu”.[8]

O outro motivo que contribui para que La Manif continue a fazer diferença é ter sido uma experiência formadora para a consciência de um grupo de ativos jovens intelectuais, em sua maioria católicos conservadores, que se enxergam como a vanguarda dessa terceira força. Nos últimos cinco anos, tornaram-se uma presença nos meios de informação, escrevendo em jornais como Le Figaro e em revistas semanais como Le Point e Valeurs Actuelles, criando novas publicações impressas e virtuais (Limite, L’Incorrect), lançando livros e aparecendo regularmente na televisão. Muita gente os observa com atenção, e um livro alentado e imparcial a seu respeito acaba de ser publicado na França.[9]

É difícil saber se alguma consequência política mais significativa irá resultar de toda essa atividade, dado que na França as modas intelectuais costumam ser trocadas com a mesma frequência do plat du jour [prato do dia]. No último verão, passei algum tempo lendo e entrevistando esses jovens escritores em Paris, e o que encontrei pode ser mais bem descrito como um ecossistema do que um movimento coeso e disciplinado. Ainda assim, fiquei impressionado com a seriedade deles e o que os distingue dos conservadores americanos. Todos compartilham duas convicções: que um conservadorismo vigoroso é a única alternativa coerente para o que definem como o cosmopolitismo neoliberal do nosso tempo, e que esse conservadorismo pode contar com recursos provenientes dos dois lados da divisa tradicional entre esquerda e direita. E o mais surpreendente: todos são admiradores de Bernie Sanders.[10]

O ecumenismo intelectual desses escritores é visível em seus artigos, todos repletos de referências a George Orwell, à escritora mística e ativista Simone Weil, a Pierre-Joseph Proudhon, anarquista francês do século XIX, a Martin Heidegger e Hannah Arendt, ao jovem Marx, ao filósofo católico e ex-marxista escocês Alasdair MacIntyre e, especialmente, ao historiador americano Christopher Lasch, politicamente de esquerda, mas culturalmente conservador, cujas boas tiradas – “A perda das raízes nos deixa sem raiz alguma, salvo a necessidade de raízes” – são repetidas como mantras. Previsivelmente, recusam a União Europeia, o casamento entre pessoas do mesmo sexo e a imigração em massa. Mas também rejeitam a desregulamentação dos mercados financeiros globais, a austeridade neoliberal, as modificações genéticas, o consumismo e a AGFAM (Apple-Google-Facebook-Amazon-Microsoft).

Essa mistura pode soar meio estranha aos nossos ouvidos, mas é muito mais consistente que as posições atuais dos conservadores americanos. O conservadorismo da Europa continental data do século XIX e sempre se baseou numa concepção orgânica da sociedade. Vê a Europa como uma única civilização cristã composta de diferentes nações com variados idiomas e costumes. Essas nações compõem-se por sua vez de famílias, que também são organismos em que papéis e deveres diferentes mas complementares cabem às mães, aos pais e aos filhos. Desse ponto de vista, a tarefa fundamental da sociedade é transmitir o conhecimento, a moral e a cultura às gerações vindouras, perpetuando a vida de todo o organismo da civilização, e não se submeter a um aglomerado de indivíduos autônomos dotados cada um dos seus direitos.

Quase todos os argumentos desses jovens conservadores franceses se fundamentam nessa concepção orgânica. Por que consideram a União Europeia um perigo? Porque ela nega a base comum cultural-religiosa da Europa e tenta forjar um pacto continental baseado no interesse econômico pessoal dos indivíduos. Para piorar a situação, eles sugerem, a União Europeia ainda estimulou a imigração de massas oriundas de uma civilização diferente e incompatível (o Islã), esgarçando ainda mais laços já gastos. Além disso, em vez de fomentar a autodeterminação e uma saudável diversidade entre as nações, vem promovendo um lento golpe de Estado em nome da eficiência econômica e da homogeneização dos países-membros, centralizando em Bruxelas todo o poder de decisão. Finalmente, à medida que impõe aos países-membros onerosas políticas fiscais que só favorecem os mais ricos, a União Europeia impede que os Estados se responsabilizem pelos cidadãos mais vulneráveis e pela solidariedade social. Hoje, na opinião desses autores, a família está abandonada à própria sorte num mundo econômico sem fronteiras, num meio cultural que teima em ignorar as necessidades dela. À diferença de seus equivalentes americanos, que enaltecem forças econômicas ainda mais ameaçadoras para a “família”, que eles imaginam sob pressão, os jovens conservadores franceses aplicam sua visão orgânica também à economia, afirmando que esta deveria subordinar-se aos imperativos sociais.

O mais surpreendente para o leitor americano são as fortes convicções ambientalistas desses jovens escritores, para os quais os conservadores, como a palavra indica, deviam justamente preocupar-se com a conservação. O melhor periódico que publicam é a revista trimestral Limite, colorida e bem diagramada, cujo subtítulo é “revista de ecologia integral”. Ela traz críticas tão severas à economia neoliberal e à degradação ambiental quanto as formuladas pela esquerda americana. (Na França, ninguém nega a mudança climática.) Alguns dos autores defendem o crescimento zero; outros leem Proudhon e apoiam uma economia descentralizada de coletivos locais. Há ainda os que abandonaram as grandes cidades e relatam suas experiências no cultivo de lavouras orgânicas, ao mesmo tempo que denunciam o agronegócio, a manipulação genética de sementes e a intensa suburbanização do campo. Todos parecem inspirados pela encíclica Laudato si’ [Louvado sejas, 2015], do papa Francisco, um abrangente apanhado dos ensinamentos sociais católicos em relação ao meio ambiente e à justiça econômica.

Como têm sua origem em La Manif, as opiniões sobre a família e a sexualidade desses jovens conservadores são as mesmas do tradicionalismo católico. Mas os argumentos que enumeram para defendê-las são estritamente seculares. Em sua proposta de um retorno a normas mais antigas, chamam a atenção para problemas reais: um número decrescente de novas famílias, a geração de filhos em idade mais e mais avançada, a proporção cada vez maior de mães e pais solteiros, os adolescentes imersos em pornografia e confusos quanto à própria sexualidade, além de pais e filhos estressados que fazem as refeições em separado, com os olhos grudados no celular. Tudo isso, afirmam eles, deve-se ao individualismo radical que nos torna cegos para a necessidade social de famílias fortes e estáveis. O que esses jovens católicos não conseguem perceber é que os casais homossexuais que planejam casar-se e ter filhos desejam constituir famílias assim, transmitindo seus valores para a próxima geração. Não pode haver instinto mais conservador.

Muitas mulheres mais jovens vêm propondo um “alter feminismo”, como dizem, rejeitando o que chamam de “fetichismo da carreira” do feminismo contemporâneo, que acabaria por reforçar, involuntariamente, a ideologia capitalista segundo a qual a liberdade é mourejar sob as ordens de um patrão. Por outro lado, não acham que as mulheres deviam ficar em casa se não quiserem; na verdade, consideram que elas precisam de uma autoimagem mais realista que a formulada pelo feminismo e o capitalismo contemporâneos. Marianne Durano, em seu livro recente Mon Corps Ne Vous Appartient Pas [Meu Corpo Não lhes Pertence], descreve assim a situação:

Somos vítimas de uma visão de mundo segundo a qual devemos aproveitar a vida até os 25 anos, depois trabalhar loucamente dos 25 aos 40 (a idade em que chegamos ao fim da vida profissional), evitando filhos e relações mais profundas antes dos 30. E isso contraria totalmente o ritmo de vida das mulheres.

Eugénie Bastié, outra alter feminista, responde a Simone de Beauvoir em seu livro Adieu, Mademoiselle. Presta homenagem à primeira onda da luta feminista pela conquista da igualdade de direitos, mas critica Beauvoir e as feministas francesas que vieram depois por afastar as mulheres de seus próprios corpos, ao considerá-las criaturas pensantes e desejantes, mas não seres reprodutores que, no fim das contas, possam almejar um marido e uma família.

Qualquer que seja nossa opinião sobre elas, essas ideias conservadoras a respeito da sociedade e da economia integram uma visão de mundo coerente; o mesmo já não se pode dizer da esquerda e da direita tradicionais na Europa de hoje. A esquerda combate a fluidez descontrolada da economia global, e quer contê-la em nome dos trabalhadores, ao mesmo tempo que enaltece a imigração, o multiculturalismo e uma fluidez maior dos gêneros, coisas que boa parte dos trabalhadores rejeita. A direita tradicional assume as posições opostas, denunciando a livre circulação de pessoas como causa de instabilidade social, enquanto defende a livre circulação do capital que produz justamente esse efeito. Já esses conservadores franceses criticam a fluidez excessiva em suas formas tanto neoliberal quanto cosmopolita.

Mas o que exatamente propõem no lugar disso? Como os marxistas do passado, que só se referiam em tom muito vago às implicações concretas do comunismo, esses autores parecem menos preocupados em definir a ordem por eles imaginada do que em trabalhar para o advento dela. Embora constituam apenas um pequeno grupo sem expressivo apoio popular, já se preocupam em formular grandes questões estratégicas (pequenas revistas existem justamente para publicar grandes ideias). Será possível restaurar as conexões orgânicas entre os indivíduos e as famílias, as famílias e as nações, as nações e a civilização? De que maneira? Por meio da ação política direta? Tentando conquistar logo o poder político? Ou encontrando algum modo de transformar lentamente a cultura ocidental em seu cerne, como prelúdio à instauração de uma nova política? A maioria desses escritores acredita que, antes de tudo, é preciso mudar a mentalidade dos seus leitores. E é por isso que parecem incapazes de terminar um artigo, ou mesmo uma refeição, sem mencionar o nome de Antonio Gramsci.

Gramsci, um dos fundadores do Partido Comunista Italiano, morreu em 1937 depois de um longo período detido nas prisões de Mussolini, e deixou pilhas de cadernos com férteis reflexões sobre a política e a cultura. É mais lembrado nos dias de hoje pelo conceito de “hegemonia cultural” – a ideia de que o capitalismo não é sustentado apenas pelas relações de produção, como queria Marx, mas também por certo consenso cultural que funciona como facilitador, enfraquecendo a disposição à resistência. A experiência com os trabalhadores italianos convenceu Gramsci de que, a menos que estes fossem libertados de suas crenças católicas relacionadas ao pecado, ao destino e à autoridade, jamais poderiam insurgir-se e fazer a revolução. Era necessária uma nova classe de intelectuais engajados que pudesse funcionar como uma força contra-hegemônica atuando no sentido de minar a cultura dominante e dar forma a uma cultura alternativa passível de ser adotada pela classe trabalhadora.

Tenho a impressão de que esses jovens escritores não leram os vários volumes dos Cadernos do Cárcere de Gramsci. Na verdade, ele é invocado como uma espécie de talismã retórico, a garantia de que a pessoa que fala ou escreve é um ativista cultural, e não um mero observador. Do que precisa, então, uma contra-hegemonia? Até aqui, identifiquei entre esses jovens, talvez com um excesso de certeza, a mesma visão geral e um conjunto comum de valores. Acontece, porém, que, assim que surge a velha pergunta de Lênin – Que fazer? –, tornam-se aparentes entre eles divergências importantes e com sérias implicações. O que parece estar em desenvolvimento são dois estilos diversos de engajamento conservador.

A leitura de uma revista como Limite deixa a impressão de que a contra-hegemonia conservadora implicaria trocar a cidade grande por algum povoado ou lugarejo rural, envolver-se nas escolas locais, nas paróquias e nas associações de defesa do meio ambiente, e especialmente criar os filhos segundo os valores conservadores – em outras palavras, tornar-se exemplo de um modo de vida alternativo. Esse conservadorismo ecológico parece aberto, generoso e ancorado na vida cotidiana, bem como nos ensinamentos sociais da tradição católica.

Mas a leitura de publicações como o diário Le Figaro, a revista semanal Valeurs Actuelles ou, especialmente, o mensário L’Incorrect, que tem um tom bem mais belicoso, produz uma impressão muito diversa. Aqui, o conservadorismo é agressivo e rejeita a cultura contemporânea, concentrando-se em travar uma verdadeira Kulturkampf [luta cultural] com a geração de 1968, uma obsessão permanente. Como afirma o editor de L’Incorrect, Jacques de Guillebon, 40 anos, nas páginas da revista: “Os herdeiros legítimos de 68 […] acabarão por afundar nas latrinas do tédio pós-cisgênero, transracial, com os cabelos azuis […]. O fim está próximo.” Para acelerar sua chegada, sugere outro autor, “precisamos de um projeto real de direita que seja revolucionário, identitário e reacionário, capaz de atrair tanto a classe média quanto os trabalhadores”. Esse grupo, embora não professe um racismo declarado, manifesta uma profunda desconfiança em relação ao Islã, jamais mencionado pelos articulistas de Limite. E desconfia não apenas do islamismo radical, do tratamento dado às mulheres pelos muçulmanos, da recusa de alguns estudantes que seguem esse credo de estudar a evolução – todas elas questões procedentes –, mas até mesmo dos muçulmanos moderados e assimilados.[11]

Todas essas conversas sobre uma guerra cultural declarada nem mereceriam ser levadas muito a sério caso a ala mais combativa desse grupo não contasse agora com a atenção de Marion Maréchal.

Era difícil situar Marion em matéria de ideologia. Ela mostrava-se mais conservadora nas questões sociais que a liderança da Frente Nacional, mas bem mais neoliberal no que diz respeito à economia. Só que isso mudou. Em seu discurso na CPAC, falou de guerra cultural, apresentando La Manif como um exemplo da disposição dos jovens conservadores franceses para “retomar o país”. E descreveu suas metas usando a linguagem da organicidade social:

Sem a nação, sem a família, sem os limites do bem comum, desaparecem a lei natural e a moral coletiva e mantém-se o primado do egoísmo. Hoje, mesmo as crianças foram transformadas em mercadoria. Ouvimos, em debates públicos, que temos o direito de encomendar uma criança num catálogo, temos o direito de alugar o ventre de uma mulher… Será essa a liberdade que queremos? Não. Não queremos esse mundo pulverizado de indivíduos sem gênero, sem pai, sem mãe e sem nação.

E prosseguiu, numa veia gramsciana:

Nossa luta não pode se limitar ao momento das eleições. Precisamos divulgar nossas ideias na mídia, na cultura e na educação, a fim de conter o domínio dos liberais e dos socialistas. Precisamos formar os líderes de amanhã, que terão a coragem, a determinação e o talento para defender os interesses do seu povo.

Mais adiante, Marion surpreendeu todo mundo na França ao anunciar, para uma plateia americana, que estava fundando uma escola de pós-graduação com essa exata finalidade. Três meses depois, seu Instituto de Ciências Sociais, Econômicas e Políticas (Issep, na sigla em francês) foi inaugurado em Lyon, com o objetivo de, nas palavras de Marion, desalojar a cultura que domina nosso “sistema liberal errante, globalizado e desenraizado”. É basicamente uma escola de negócios, mas que deverá oferecer cursos teóricos de filosofia, literatura, história e retórica, além de cursos práticos de administração e “combate político e cultural”. O responsável pelo currículo é Jacques de Guillebon.

Entre os escritores e jornalistas franceses que conheço, poucos são os que levam muito a sério essas iniciativas intelectuais. Preferem descrever os jovens conservadores e suas revistas como soldados voluntários ou involuntários da campanha de Marine Le Pen para “desdemonizar” a Frente Nacional, e não como uma possível terceira força. A meu ver, enganam-se ao não lhes dedicar a devida atenção, assim como se enganaram ao não levar a sério, na década de 80, a ideologia do livre mercado promovida por Ronald Reagan e Margaret Thatcher. A esquerda tem o velho e mau costume de subestimar seus adversários e explicar as ideias deles como simples camuflagem para atitudes e paixões desprezíveis. Essas atitudes e paixões podem de fato estar presentes, mas as ideias têm um poder próprio de dar-lhes forma e passagem, de moderá-las ou torná-las mais inflamadas.

E essas ideias conservadoras poderiam repercutir além das fronteiras francesas. É possível, por exemplo, que um conservadorismo orgânico renovado e mais clássico acabe atuando como força moderadora nas democracias europeias hoje em crise. Muitas delas sentem-se acossadas pelas forças da economia global, frustradas pela incompetência dos governos em conter o fluxo da imigração ilegal, ressentidas com as regras da União Europeia e desconfortáveis com a rapidez das mudanças nos códigos morais em relação a questões como a sexualidade. Até hoje, essas preocupações só foram tratadas e exploradas por demagogos populistas de extrema direita. Se existe uma parte do eleitorado que simplesmente sonha com um mundo mais estável e menos fluido, tanto econômica quanto culturalmente – pessoas cuja motivação primária não seria um antielitismo xenofóbico –, então um movimento conservador moderado poderia servir como um anteparo contra as fúrias da direita alternativa[12], ao enfatizar a tradição, a solidariedade e o cuidado com a terra.

Outro desdobramento possível é que o conservadorismo agressivo que também vemos na França acabe servindo como um instrumento poderoso para a construção de um nacionalismo cristão reacionário e pan-europeu, ao estilo proposto no início do século XX pelo escritor e líder político francês Charles Maurras, antissemita e propagandista do “nacionalismo integral”, mais adiante principal pensador do regime de Vichy. Uma coisa é convencer os líderes populistas atuais da Europa, tanto Ocidental quanto Oriental, que eles têm interesses práticos comuns e deviam trabalhar juntos, como vem tentando Steve Bannon. Coisa muito diferente, e bem mais ameaçadora, é imaginar esses líderes dispondo de uma ideologia desenvolvida para o recrutamento de jovens quadros e elites culturais, capaz de conectar a todos em nível continental tendo em vista uma ação política conjunta.

Nem todos os franceses têm os olhos fixos em Marion, mas deveriam ter. Marion não é o avô dela, embora na telenovelesca família Le Pen tenha o costume de defendê-lo. E tampouco é a tia dela, uma política grosseira e corrupta cujos esforços para passar um batom novo no partido da família não deram resultado. E nem, acredito eu, sua sorte estará associada à da Reunião Nacional, née Frente Nacional. Emmanuel Macron demonstrou que um “movimento” que desdenhe os partidos consagrados pode vencer as eleições francesas (mas não necessariamente governar ou ser reeleito). Se Marion lançasse um movimento semelhante girando em torno dela própria, a exemplo do que fez Macron, poderia muito bem unificar a direita dando, ao mesmo tempo, a impressão de pessoalmente transcendê-la. Em seguida, estaria em boa posição para cooperar com os partidos de direita no governo em outros países.

A história moderna nos ensina que as ideias defendidas por intelectuais obscuros em pequenos periódicos tendem a ir além dos propósitos muitas vezes bem-intencionados de seus propagandistas. Quando lemos os jovens intelectuais franceses de direita, há duas lições a extrair dessa história. A primeira é que não se pode confiar em conservadores apressados. A segunda, que é melhor tirar a poeira dos livros de Gramsci da sua biblioteca.

Notas
[1] Em meados do último ano, tanto ela quanto o Front National mudaram de nome. Ela deixou de usar o sobrenome Le Pen e agora insiste em ser chamada apenas de Marion Maréchal. Enquanto isso, sua tia trocava oficialmente o nome do partido para Rassemblement National (Reunião Nacional). Rassembler, no jargão político francês, significa reunir e unificar um grupo em prol de uma causa comum. [Nota do autor]

[2] Georges Pompidou foi primeiro-ministro da França de 1962 a 1968 e presidente do país de 1969 até sua morte, em 1974, aos 62 anos.

[3] O Pew Research Center é um instituto norte-americano de pesquisas de opinião e estatísticas.

[4] Também inspirou o espetacular suicídio à la Mishima [escritor japonês que cometeu haraquiri] de um de seus mais conhecidos partidários, o historiador nacionalista Dominique Venner, que poucos dias depois da aprovação da lei do casamento gay deixou um bilhete de suicida no altar da Catedral de Notre Dame e em seguida estourou os miolos diante de mais de mil turistas e frequentadores da catedral. [Nota do autor]

[5] Paul Manafort, lobista e ex-assessor da campanha de Donald Trump, foi condenado em 2018 por fraudes bancárias e fiscais. Chamou a atenção da Justiça que tivesse uma vida luxuosa, não condizente com a renda apresentada em seu imposto de renda – descobriu-se que gastou mais de 1 milhão de dólares em roupas. Manafort é também um dos principais envolvidos no processo que investiga a influência dos russos no pleito que elegeu Trump.

[6] Após o armistício franco-alemão em 22 de junho de 1940, o território francês foi dividido em duas zonas. Os nazistas ocuparam o norte, incluindo Paris, e o sul foi destinado ao Estado francês, nominalmente soberano. O governo da França instalou-se em Vichy, comandado pelo marechal Philippe Pétain, que manteve estreita colaboração com Hitler. Em 1942, quando os alemães ocuparam todo o país, extinguiu-se a pouca autonomia de que dispunham os franceses. O regime de Vichy, porém, só foi abolido em 1944, com a libertação da França pelas forças aliadas.

[7] A expressão Pied-noir (pé negro) designa as pessoas de origem francesa nascidas nos protetorados e colônias da França no norte da África (Tunísia, Marrocos e Argélia).

[8] Referência à última batalha da Guerra da Indochina, ocorrida na região de Điên Biên Phu, no noroeste do Vietnã. Em 7 de maio de 1954, os franceses (que ocupavam o país desde o final do século XIX) sofreram humilhante derrota para as forças comunistas de Ho Chi Minh.

[9] Le Vieux Monde Est de Retour: Enquête sur les Nouveaux Conservateurs [O Velho Mundo Está de Volta: Estudo sobre os Novos Conservadores], de Pascale Tournier (editora Stock, 2018). [Nota do autor]

[10] Bernie Sanders (1941), que se autodefine como “socialista democrático”, é senador norte-americano. Em 2015, filiou-se ao Partido Democrata com o objetivo de lançar-se candidato à Presidência nas eleições do ano seguinte, mas foi derrotado por Hillary Clinton nas primárias do partido.

[11] Certa noite, eu jantei com alguns jovens escritores num bistrô cujo proprietário, obviamente partidário da Frente Nacional, queixava-se em voz alta de que uma estação pública de tevê tinha programado um especial sobre as festividades do Eid al-Fitr, que assinala o fim do Ramadã. Curioso, assisti ao programa quando voltei para casa. Era totalmente banal, uma celebração que parecia uma festa comum de casamento, com os convidados em suas mesas assistindo a shows de música popular. A apresentadora caminhava em meio aos presentes, perguntando-lhes que significado o Ramadã tinha para eles, e a resposta de uma jovem foi bem típica: “Quero levar minha vida como mulher, e obter o que desejo.” Uma esforçada empresária muçulmana, cujo sucesso nos negócios era evidente, foi entrevistada e falou de sua fé… em si mesma. Era o assimilacionismo dos sonhos. [Nota do autor]

[12] Em inglês, alternative right ou alt-right: grupo não organizado de pessoas de extrema direita nos Estados Unidos, com grande atividade na internet, que milita contra a globalização, a imigração, a sociedade multiétnica, o politicamente correto e o feminismo, entre outras bandeiras. Prega o nacionalismo e a hegemonia da raça branca.

*Mark Lilla, ensaísta e professor na Universidade Columbia, é autor de O Progressista de Ontem e o do Amanhã, da Companhia das Letras


Eliane Cantanhêde: O Brasil em choque

Na guerra entre esquerda e direita, que só piora, quem vence é o descaso e a morte

Este ano de 2019 começou com 339 mortos e desaparecidos em Brumadinho, dez lindos talentos dizimados no Flamengo, sete vítimas da tempestade no Rio, 13 mortos num único tiroteio também no Rio, o presidente da República internado em São Paulo em função de uma facada brutal, o ex-presidente mais popular da história preso e condenado pela segunda vez por corrupção e os senadores dando vexame ao vivo e em cores.

O Brasil está perplexo, irritado, desanimado e a palavra-chave por trás das três catástrofes foi dada pela procuradora-geral da República, Raquel Dodge: “Estamos vendo fatos e desastres evitáveis, preveníveis e precisamos estar atentos a eles”. De todas as tragédias, a maior tragédia é descobrir que todas aquelas perdas seriam perfeitamente “evitáveis” se todos e cada um cumprissem com responsabilidade suas funções.

O que foi Brumadinho? De certa forma, uma repetição espantosa do crime de Mariana, em que setor público, companhias privadas e legisladores se embolaram numa valsa macabra de descaso, negligência, omissão, quem sabe embalada pela velha e arraigada corrupção. Uma represa ultrapassada, fiscalização precária, alertas frágeis e ignorados, refeitório e administração como alvo diretos. Imaginem a mãe, o pai, os avós, filhos, irmãos, namorados, amigos e colegas daqueles que foram soterrados, agonizando na lama.

O que foi o fogo voraz no Ninho do Urubu? De certa forma, uma repetição aterrorizante do que ocorreu na Boate Kiss, em Santa Maria, Rio Grande do Sul. Mete-se um monte de jovens numa arapuca e lá se vão os craques mais promissores e saudáveis universitários cheios de sonhos. Locais precários, fechados, sem alvará, sem fiscalização. E o CT do Flamengo com pedido de interdição ignorado desde 2017.

Imaginem a mãe, o pai, os avós, filhos, irmãos, namorados, amigos e colegas daqueles que seriam a saída para o futuro e arderam em chamas, sem chance de escapar.

O que foi o temporal que matou sete pessoas na cidade maravilhosa? A história anunciada de desabamentos, destruição e mortes que se repete a cada ano, a cada verão, a cada temporal, embalada pela incapacidade dos governos, pela má-educação da população, por erros que se eternizam.

Imaginem a mãe, o pai, os avós, filhos, irmãos, namorados, amigos e colegas daqueles que afundaram na água, asfixiados, impotentes para reagir.

O que foi a morte dos 13 bandidos no bucólico (e perigoso) morro de Santa Tereza? Armados até os dentes e cada vez mais audaciosos, eles montaram um bunker para reagir à polícia. Foram dizimados, na maior chacina de criminosos desde 2007 no Rio. Por trás dessa única cena, uma realidade carioca e nacional: a violência fora de controle. Não se combatem as causas, se passa a eliminar o efeito. Na “nova era”, vão ter de matar milhões de bandidos. Uma carnificina.

Imaginem a mãe, o pai, os avós, filhos, irmãos, namorados, amigos e colegas das vítimas daqueles criminosos, mas também os dos próprios criminosos mortos. Por trás de cada um, provavelmente há a história de uma criança sem futuro.

Nós, a Nação dessas mães, pais, avós, filhos, irmãos, namorados, amigos e colegas de toda essa tragédia coletiva, nos perguntamos: onde foi que erramos? São muitas respostas, uma dor que dói na alma e estremece o corpo, mas uma coisa é certa: os representantes do povo, os funcionários do povo e quem deveria proteger o povo estavam mais preocupados em combater os adversários do que garantir a segurança e o bem-estar das pessoas.

Na guerra entre direita e esquerda - que não acabou, só piora -, os vencedores são o descaso, a incompetência, a corrupção e a impunidade. O Brasil está em choque.


Nelson Paes Leme: A velha ‘esquerda’ e a nova ‘direita’

Como ser contra ou a favor de algo (o comunismo) que a História Universal já enterrou de vez desde o século passado?

Pela primeira vez, em muitos anos, está exposta uma polarização entre conceitos científico-políticos ultrapassados na história mas que no Brasil de hoje têm grande atualidade. Aliás, a mídia e até alguns setores da academia têm insistido nesse falso dilema: o confronto entre “esquerda” e “direita” mundo afora. O capitalismo globalizado de blocos econômicos e as perplexidades ambientais decisivas de sobrevivência da espécie e da biosfera não comportam mais esse tipo de dicotomia jurássica e já tornaram esses conceitos totalmente ultrapassados e sem qualquer sentido científico. Principalmente com o fim da Guerra Fria no apagar das luzes do século passado e a entrada da China no ranking dos players mais agressivos da nova economia globalizada de mercado. Portanto, falar em venezuelização ou cubanização do Brasil é totalmente descabido.

O Brasil esteve dividido intrinsecamente nesse segundo turno eleitoral, mas por motivos completamente diversos: um Estado gigantesco, continental, tributária e federativamente inadministrável, que tem resultado numa péssima distribuição de renda e serviços essenciais à população e na rapinagem que tomou conta desse verdadeiro butim gigante, saqueado permanentemente por uma classe política, constituída, em sua imensa maioria, de vorazes marginais despreparados e despudorados, sem qualquer compromisso ideológico, ainda que com doutrinas e lutas de séculos passados, salvo, naturalmente, as exceções de praxe. Esse é o verdadeiro problema brasileiro.

Nada tem a ver com “esquerda” e “direita”. O que houve foi a saturação com o modelo de democracia que viemos praticando desde a edição da Constituição congressual de 1988. Ledo e perigoso equívoco de quem desavisadamente envereda por essas sendas dúbias de “esquerda” e “direita”. Muitos “progressistas” votaram no candidato soi-disant de “direita”. Basta verificar como seu índice de rejeição despencou na reta final.

Quem venceu estas eleições plebiscitárias, especialmente para o Executivo central do país, não foi a “direita” ou a “esquerda”, mas o voto de protesto de uma população exausta de tanta ignomínia na política. O voto revoltado. O voto indignado a exigir mudanças estruturais profundas. O candidato vencedor representa predominantemente esse voto, em que pese o decisivo apoio dos “anticomunistas”.

Ora, só existe uma visão política mais atrasada do que ser “comunista” a essa altura do desaparecimento da luta de classes e da revolução proletária a nível global: é ser “anticomunista”. Como ser contra ou a favor de algo que a História Universal já enterrou de vez desde o século passado? Com o avanço da Revolução Técnico-Científica e as ferramentas de pesquisa que a internet nos proporciona, qualquer criança hoje pode identificar na Assembleia Francesa dos jacobinos e girondinos a origem dos termos “esquerda” e “direita”, transportados para a Rússia revolucionária de 1917 dos mencheviques e bolcheviques.

Hoje, com a globalização dos mercados e a substituição das ideologias pelas hegemonias de blocos, perderam totalmente o sentido. Até porque a China dita “comunista” já se tornou o maior capitalismo globalizado do planeta, segundo estudo sério do FMI reproduzido na revista “Exame” em 2017. Enquanto isso, o ainda candidato, hoje eleito, fazia uma visita ao Extremo Oriente e ignorava solenemente a existência da China Continental, visitando apenas Taiwan. Um equívoco histórico certamente.

Não é muito diferente dessa “direita” a mentalidade de certa “esquerda” bolivarianista, representada pelo candidato do PT derrotado. Ainda crê em inserir o Brasil —que o mesmo estudo do FMI coloca em quinto lugar no ranking dos maiores capitalismos até meados deste século, atrás da própria China, da Índia, dos EUA e da Indonésia, nessa ordem —como líder de um suposto movimento “socialista” na América Latina. E falam sério, em calorosos debates no Fórum de São Paulo, uma das maiores asneiras intelectuais da atualidade. Pois o candidato do lulopetismo de cooptação e favores antirrepublicanos crê piamente que o Brasil possa vir a se tornar uma grande Venezuela.

É a nova “direita” versus a velha “esquerda”. E la nave va...

*Nelson Paes Leme é cientista político


Marco Aurélio Nogueira: O bode expiatório

O que está por trás dos ataques dos bolsonaristas ao chamado “marxismo cultural” e como isso pode empobrecer a democracia e prolongar a crise do sistema político

Não é só o governo Bolsonaro, com seus ministros que disparam petardos ideológicos em cada fala.

Há no país uma onda mal-ajambrada que quer criar um bode expiatório no campo da política, da ação governamental e da cultura. Em nome do ataque ao “marxismo cultural”, ela se alimenta de uma enorme ignorância e de um deliberado esforço de provocação.

A obsessão é uma só. Surge límpida no discurso de posse do presidente, convencido de que a partir dele “o povo começou a se libertar do socialismo, da inversão de valores, do gigantismo estatal e do politicamente correto”, falando como se esses problemas tivessem relação de causalidade. Promessas vagas de “combater o marxismo nas escolas” e perseguir os comunistas são feitas a todo momento, sem que se deem muitas explicações a respeito.

A mixórdia temática não é compartilhada pelo núcleo principal do novo governo, integrado pelos generais e por Paulo Guedes e Sergio Moro, ministros mais concentrados na gestão e na obtenção de resultados. Surge imponente nas platitudes reacionárias de Damares Alves contra a identidade de gênero e em Vélez Rodríguez, que parece acreditar que há uma “tresloucada onda globalista tomando carona no pensamento gramsciano e num irresponsável pragmatismo sofístico”, com o claro propósito de “destruir um a um os valores culturais em que se sedimentam nossas instituições mais caras: família, igreja, escola, Estado e pátria”. Não é diferente nas Relações Exteriores, cujo responsável está na linha de frente dessa cruzada.

Ora o discurso é genérico e fala em marxismo sem mais, ora vem embrulhado com a menção a pensadores como Antonio Gramsci, ora ainda surge abraçado a ataques contra a esquerda, o petismo, o socialismo e o globalismo, sempre indeterminados. É um conjunto que se sustenta na superficialidade e na estigmatização, sem preocupação de fomentar algum debate. Não há qualquer intenção de mapear a sério o campo cultural brasileiro ou de avaliar erros, acertos e possibilidades da esquerda, que é posta sumariamente fora da lei, em suas distintas versões. O propósito é ativar uma maquinação ideológica para desqualificar eventuais opositores do novo governo e repor, na política nacional, temas e convicções extemporâneos, centrados no apelo confuso a Deus, religião e Bíblia.

O ataque ao marxismo tem muito de manobra diversionista: busca produzir um ruído que distraia o público e desvie a atenção do fundamental. Espancar o PT e o socialismo que por aqui jamais existiu é parte do roteiro, assim como o compromisso de “desconstruir” Gramsci.

Nessa operação, o nível precisa cair ao rés do chão, já que se trata de atingir o grosso da opinião pública, não a intelectualidade. O tom precisa ser de palanque, para ter chance de mobilizar. Abusa-se da caricatura, do exagero, da ofensa e da grosseria, dispensando qualquer tipo de refinamento. Fala-se de Marx e de Gramsci como se se tratasse de dois perdidos que, numa noite de farras, tivessem caído no Brasil para corromper a juventude e a sociedade com ideias malignas e perversas. O objetivo é promover a circulação de um espectro que assuste, acue e impressione, semelhante ao que Marx anteviu nas primeiras linhas do famoso Manifesto comunista de 1848: um espectro contra o qual deveriam unir-se numa Santa Aliança todas as potências da velha ordem.

A denúncia do “marxismo cultural” é ao mesmo tempo reativa e ofensiva. Ela intui que o marxismo soube se adaptar ao longo da história, saindo do determinismo rígido dos primeiros tempos para a flexibilidade dialética de Gramsci, por exemplo — autor que é a verdadeira pedra no sapato dos antimarxistas. Gramsci incomoda porque atualizou a teoria que veio de Marx, dando a ela melhores condições de dialogar com as épocas mais complexas do capitalismo do século XX. A operação intelectual gramsciana permitiu ao marxismo a recuperação plena dos temas do Estado, da política, da cultura, dos intelectuais. Tornou-o mais “competitivo” para decifrar as armadilhas ideológicas do capitalismo e da dominação política, abrindo os olhos de muitos marxistas ainda aprisionados aos ritmos duros da luta de classes de primeira geração, na qual não existiam tantas mediações e sinuosidades. Recusou as limitações cognitivas do “determinismo econômico” e analisou a sociedade como realidade complexa, conforme o próprio núcleo originário da filosofia de Marx. Estudou a sério o Estado e chamou a atenção para a sociedade civil, destacando sua função como instância de hegemonia.

Quanto mais o capitalismo ganhou complexidade, mais as ideias gramscianas mostraram força.

Depois de Gramsci, o marxismo nunca mais foi o mesmo, ainda que muitos de seus seguidores não tenham se soltado das incrustações mecânicas e do doutrinarismo. Encorpou, tornou-se uma teoria “clássica”, ganhou respeitabilidade plena no mundo intelectual, ingressou nas universidades e se converteu na “filosofia de nosso tempo”, antevista pelo filósofo francês Jean-Paul Sartre.

Tudo isso não se deveu exclusivamente a Gramsci, até mesmo porque sua obra, escrita quase toda nos cárceres fascistas, só chegou ao conhecimento público após a Segunda Guerra Mundial e se converteu lentamente na potência que é hoje. Tanto quanto o pensador italiano, contribuíram para a revitalização e a disseminação do marxismo teóricos como György Lukács, Karl Korsch, Adam Schaff, Henri Lefebvre e Lucien Goldmann, dentre muitos outros, cada um tomando caminhos particulares, fazendo inflexões “heterodoxas” e questionamentos à doutrina original, que, com o tempo, convergiram para um mesmo estuário. O marxismo se tornou muitos, diversificou-se, ganhou musculatura e novas linguagens, compondo aquilo que a dialética chama de unidade na diversidade.

O fato é que não houve pensador importante, nos últimos 100 anos, que não tenha dialogado com as ideias de Marx e as variadas versões do marxismo. Não existiria o Jürgen Habermas da ação comunicativa, o Zygmunt Bauman da modernidade líquida ou o Ulrich Beck da sociedade de risco sem leituras marxistas. Norberto Bobbio sempre o teve como um dos grandes, dedicando um livro inteiro a ele (Nem com Marx, nem contra Marx, Editora Unesp). Antes deles, não foram poucos os que reconheceram, como Max Weber, a relevância das ideias de Marx.

Em seus escritos, muito mais que em sua militância política, Marx foi um portento, que não só descortinou a estrutura do capitalismo, como compreendeu o vigor da economia na modelagem da vida social moderna, na qual o dinheiro e o consumo jogam papel preponderante, como objetivos em si. Dedicou-se, assim como os que souberam se aproveitar de suas ideias, sendo ou não marxistas, a buscar formas de superar ou ao menos regular o irracionalismo dos mercados sem controle e sem limites. Legou ao futuro uma perspectiva racional, generosa, uma homenagem ao progresso. O debate sério sempre criticou a vulgarização das ideias de Marx, sua conversão em catecismo, sua simplificação em fórmulas desconectadas da realidade, sua dificuldade de elaborar uma teoria do Estado e da política. Parte disso se deveu aos partidos comunistas, que, na luta política, viram-se forçados a “massificar” a teoria que os inspirava. Responsabilidade ainda maior coube à força centralizadora do socialismo soviético, que impôs uma leitura oficialista do marxismo que aprisionou os comunistas durante décadas.

Paradoxalmente, a cruzada antimarxista de hoje emprega os mesmos expedientes das vertentes mais pesadas do stalinismo. Mente, deforma, difama, acusa sem critério, procura punir e estigmatizar, valendo-se da simplificação grosseira e da pressão dos aparatos estatais. O stalinismo fazia isso em nome de uma revolução igualitarista, o que atenuava de certo modo o sacrifício que pedia. O antimarxismo atual, ao contrário, apregoa uma guinada conservadora que dê um passo atrás. Mas também ele só se viabiliza se fizer dos canais oferecidos pelo Estado uma plataforma para difundir uma cópia invertida daquilo que acusa em seus adversários. É inócuo nos territórios livres da sociedade civil, onde o debate pode fluir de forma democrática.

É o que faz o antimarxismo atacar sem trégua as diferentes instâncias da sociedade civil, da imprensa às ONGs, das escolas à indústria cultural, dos partidos políticos aos sindicatos. Ele precisa deslegitimar aquilo que foge de seu controle, reforçando ao contrário os “centros dirigentes”, a palavra dos chefes, os manuais repletos de novas verdades. Cria seus mitos e seus arautos, seus filósofos, suas narrativas, suas ideias-força, que espalha pelas redes que manipula. Constrói assim um repertório simbólico e expressivo, com o qual combate a luta cultural. Denuncia toda e qualquer operação ideológica, mas é ele próprio uma ideologia.

O ataque ao “marxismo cultural” dirige-se à mobilização do eleitorado de Bolsonaro, mas também almeja espetar na agenda pública algumas estacas que delimitem um campo ideológico. Deseja demarcar um terreno de luta, separar os bons dos maus, transferir culpas e responsabilidades. Nunca antes, no Brasil, a direita conservadora chegou tão longe.

Não se trata de um ataque inócuo. Ele tem implicações sérias. Uma delas é o risco de “macarthismo”, de discriminação e caça aos “vermelhos”. Não há uma diretriz clara, mas Onyx Lorenzoni já falou em “despetizar” o Estado. Sem freios moderadores, a cruzada poderá incentivar muita gente a denunciar comunistas em cada curva do caminho, como se fossem “inimigos da pátria”.

Afinal, o combate ao “marxismo cultural” vale-se de pessoas que pensam estar na esquerda a razão maior de suas agruras. Sem conseguir ver o conjunto da vida, estão predispostas a ser contagiadas pelo maniqueísmo simplista do “nós contra eles”.

O desdobramento disso será o empobrecimento da democracia e o prolongamento da crise do sistema político. Capturado pela insanidade por ele mesmo criada, o governo poderá cair na tentação de moldar suas políticas por critérios sempre mais ideológicos e sempre menos técnicos.

Na hipótese de essa parábola se completar, perderemos todos.