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"A extrema direita no Brasil não é só o bolsonarismo"

Guilherme Henrique | DW Brasil

A presença de grupos de extrema direita em frente a quartéis espalhados pelo Brasil e em estradas país afora é parte de uma dinâmica social que está cada vez mais independente da figura de Jair Bolsonaro (PL), derrotado por Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nas eleições presidenciais deste ano.

A avaliação é de Letícia Cesarino, antropóloga, professora e pesquisadora na Universidade Federal de Santa Catarina e autora de O Mundo do Avesso: Verdade e Política na Era Digital (Ubu Editora), publicado no fim de outubro. O livro analisa o ecossistema das redes que desde as eleições de 2018 e o surgimento de uma nova forma de organização política a partir da internet.

Em entrevista à DW Brasil, Cesarino ressaltou que o discurso que impulsionou Jair Bolsonaro ao poder se complexificou e se solidificou ao longo dos últimos quatro anos, "tornando-se cada vez mais autônomo" em relação à figura do atual presidente. "Há uma camada de influenciadores inseridos nesse ecossistema impulsionados pelos algoritmos. A extrema direita não é só o bolsonarismo."

Ela também ressalta que integrantes de grupos radicais de extrema direita, imersos em uma espiral de mentiras e informações falsas sobre a política do país, precisam ser submetidos a uma 'dieta de mídia'. "Quem está no nível seita, o mais radicalizado, só com desprogramação. É muito difícil você reverter esse quadro. Um pressuposto é que você precisa tirar a pessoa desse ambiente das redes e o acesso a esse conteúdo", ponderou.

DW Brasil: A rede de informações do bolsonarismo mudou ao longo dos últimos quatro anos ou ele se alimenta dos mesmos expedientes?

Letícia Cesarino: Ela é mais complexa e multiplataforma. Talvez o termo correto nem seja rede, mas ecossistema, a partir do volume e das várias camadas na internet. Existe a superfície, que são as redes sociais, os canais de YouTube abertos, até as camadas mais subterrâneas, dentro de aplicativos de mensagens como Whatsapp, Telegram e Kwai, e outros mais alternativos, como o Gettr. Então, se em 2018 nós tivemos algo como uma explosão de informação e de discurso político antissistema e extremista, hoje o que nós temos é uma rotinização e uma perenização desse tipo de discurso. Ele é auto-sustentável, tem seus influenciadores, canais próprios e formas de monetização. As pessoas que atuam nesse tipo de mídia não precisam mais acessar o público convencional.

Permanente no sentido de ter mais durabilidade e fortalecido?

São grupos de Whatsapp que abrem e fecham, influenciadores que crescem e depois diminuem o seu alcance. O Allan do Santos, por exemplo. Foi muito importante em um momento, mas foi investigado, o [site do blogueiro] Terça Livre acabou e outros atores assumiram esse espaço. Há uma dinâmica sistêmica e estável. Os seguidores do Jair Bolsonaro e os eleitores de extrema direita têm para onde ir. Uma dieta de mídia que é só deles e está separada do público convencional.

Como você define o termo populismo digital e como ele se insere na realidade brasileira a partir do que temos visto nesse período pós eleição?

Essa categoria do populismo é mais próxima do que aconteceu em 2018, quando se tinha esse modelo mais clássico de liderança populista que irrompe na esfera pública e galvaniza aquele sentimento de insatisfação e esperança. Nós ainda temos elementos de populismo no discurso de "nós contra eles", de uma suposta elite cultural, econômica, midiática e antissistema. Mas isso se tornou mais difuso e com uma fusão dessa dinâmica alternativa da realidade misturada às teorias da conspiração. Houve uma mudança desse populismo.

É uma parcela da população que está separada do público convencional e que recebe uma uma dieta de narrativas distintas da nossa, mas que ao mesmo tempo depende também dessa relação de oposição. É uma dependência contraditória, onde se produz uma realidade invertida. Nesses segmentos mais extremos, eles olham para o nosso público e identificam uma visão golpista contra o Bolsonaro e a implementação de um Estado autoritário. E nós olhamos essas manifestações com a lente do golpismo democrático.

Esse 'espelho invertido' está baseado no subterrâneo da internet, especialmente nos grupos Telegram. Na medida em que esse ecossistema vai se aproximando do público de superfície, o discurso mais extremista se atenua. Você não vai encontrar um posicionamento tão explícito sobre intervenção militar na Jovem Pan. O que há é uma dúvida sobre o processo eleitoral, que acaba funcionando como algo complementar e que ajuda a conturbar a situação.

A figura do Jair Bolsonaro deixou de ser fundamental para o bolsonarismo nas redes?

Acredito que menos do que antes, porque em 2018 ele teve esse papel central de agregar em um nível virtual mais amplo uma diversidade de insatisfações que estavam fragmentadas, como o lavajatismo e o movimento pró-impeachment. As pessoas não se reconheciam com conservadoras ou pertencentes a uma extrema direita nacionalista. Mas, à medida que esse discurso bolsonarista foi se rotinizadno, a identidade foi se consolidando e o ecossistema se complexificou, acredito que ele esteja se tornando cada vez mais autônomo em relação ao Bolsonaro. Há uma camada de influenciadores inseridos nesse ecossistema impulsionados pelos algoritmos. A extrema direita no Brasil não é só o bolsonarismo.

Agora, o Bolsonaro deixar o poder significa que eles perdem essa figura que faz a mediação entre o público convencional e a extrema direita mais radical. Ele conseguia pautar a imprensa, a grande mídia, e o seu público fiel ao mesmo tempo. A chegada de uma outra força ao governo muda essa dinâmica, ainda que seja difícil prever o resultado disso neste momento.

Como se explica o nível de imersão visto por alguns bolsonaristas em uma realidade totalmente paralela à que temos visto atualmente?

Acredito que o que está havendo agora, e que não acontecia antes, é que essas multidões que iam às ruas apoiar as manifestações pró-governo, como no 7 de setembro, mostravam a diversidade do público bolsonarista. A passagem da multidão online para o offline refletia o espectro mais amplo desse grupo político, com aqueles que pediam a intervenção militar e também quem defendia pautas mais moderadas. Ele teve 58 milhões de votos e nem todos são fanáticos.

O que nós temos agora são só os radicais. São sectários e conspiratórios, presos à ideia de um complô. Eles não conseguem aceitar outra definição de povo que não seja a deles. E esse ambiente foi sendo criado ao longo dos últimos anos em mídias diversas, baseados sempre nas mensagens de viés de confirmação. A ideia é sempre reforçada. São vários níveis de ficção transformados em realidade orquestradas por influenciadores que segmentam as redes e as mensagens.

"As pessoas nas manifestações ou na esfera bolsonarista não são iguais. Ele [Bolsonaro] teve 58 milhões de votos e nem todos são fanáticos", aponta a antropóloga Letícia Cesarino. Foto: reprodução| DW Brasil
"As pessoas nas manifestações ou na esfera bolsonarista não são iguais. Ele [Bolsonaro] teve 58 milhões de votos e nem todos são fanáticos", aponta a antropóloga Letícia Cesarino. Foto: reprodução| DW Brasil

Como esses influenciadores atuam e qual o tipo de segmentação?

As pessoas nas manifestações ou na esfera bolsonarista não são iguais. Há uma grande massa de usuários que recebem, recirculam e mimetizam o conteúdo. E existem os influenciadores, uma parcela menor de usuários, que propõem narrativas, fazem vídeos e distribuem nas redes. Alguns são influenciadores de plataformas abertas, em canais no Youtube e grupos do Telegram. Mas há, sobretudo no Telegram, aqueles que estão camuflados. Eles se colocam como pessoas comuns e fazem um trabalho de distribuição de conteúdo e direcionamento da narrativa. Por exemplo: depois do primeiro pronunciamento do Jair Bolsonaro após a derrota para o Lula ficou uma sensação de dubiedade sobre o que deveria ser feito. É para ir para a rua? Para o quartel? E existem essas figuras que em pouco tempo conseguem direcionar o fluxo e a ação dos usuários. Não é aleatório. São como tradutores dessa realidade paralela.

Há como resgatar pessoas que estão no nível mais submerso de distorção da realidade?

Quem está no nível seita, o mais radicalizado, só com desprogramação. É muito difícil você reverter esse quadro. Um pressuposto é que você precisa tirar a pessoa desse ambiente das redes e o acesso a esse conteúdo, algo como diversificar a dieta de mídia, porque em alguns casos eles recebem notícias da TV Globo, da Folha de S.Paulo, mas sempre com uma leitura oposta à realidade. Entre os radicais, não dá para ser pontual. Não adianta mostrar uma checagem, porque o olhar é de manipulação. Os radicais são sectários e precisam ser empurrados para a franja, com uma diminuição quantitativa dos atores nas redes.

Quais são os padrões de dinâmica nas redes inerentes ao Bolsonarismo que se repetem em outros países?

Há um contexto político. A infraestrutura das redes têm um papel preponderante, porque existem muitas similaridades em países completamente distintos, como Índia e Brasil, que compartilham esse fenômeno que alguns chamam de "tecnopopulista" na internet. É claro que o caso norte-americano acaba sendo mais próximo, porque há uma troca de informações entre a "Alt Right" e a extrema direita brasileira. E acredito que haverá uma perenização desse grupo similar ao que houve nos EUA, que não deixou de existir só porque o Trump perdeu a eleição.

Em todos os países há uma relação muito próxima entre um aplicativo de mensagens, geralmente o Telegram, e o YouTube, que é um repositório de informações. E o Google não faz esforço que deveria para coibir a disseminação de mentiras, também porque é fácil camuflar mentiras em um vídeo de 2h. É diferente do Twitter, onde o espaço é muito curto. Mas mesmo assim o Google precisa fazer mais.

A atuação das plataformas é problemática?

Ainda está muito aquém. Houve um pequeno avanço, que é o reconhecimento do problema. As principais plataformas têm buscado algum diálogo, mas isso só aconteceu porque essa questão ocupou os holofotes no debate público. Às vezes, fico com a sensação de que as empresas fazem o mínimo só para ter o que mostrar. E assim não fazem o que de fato precisa ser feito. Em março, o Alexandre [de Moraes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral] ameaçou com um bloqueio ao Telegram e a plataforma respondeu e depois eliminou alguns grupos. Mas a atuação ainda tem sido com base na ameaça.

Como avalia a atuação do ministro Alexandre de Moraes?

Polêmica. Ele mantém uma ancoragem na institucionalidade e não acho que seja só punitivista. Mas ele tem um braço mais incisivo que os demais juízes. E acredito que os colegas do Supremo e do TSE dão um backup nesse sentido. Importante ressaltar que nós estamos em um estado de exceção, iniciado na pandemia e que se perpetua no período eleitoral. Esse estado não é só pela forma como a direita age, mas pelo ambiente criado nas novas mídias. Existem os termos de uso, mas eles dizem pouco sobre o controle das redes.

Então, esse controle precisa vir de fora, não tem outro jeito. E nós não temos uma legislação ou uma regulação robusta. O Alexandre de Moraes tomou para si essa tentativa de controle indireto. E, às vezes, quando se é ignorado como aconteceu com o Telegram, foi necessário uma ameaça de bloqueio. E aí a plataforma responde. Ele tem combinado as duas coisas: a institucionalidade com as leis que existem e uma forma mais direta para coibir excessos. É um mal necessário, porque ele está sabendo jogar esse jogo muito mais que os outros ministros. Mas, no médio prazo, não é o ideal.

*Matéria publicada originalmente no DW Brasil


Foto: reprodução El País/EFE

“O bolsanarismo é um Frankenstein. Na linguagem antiga de Mao Tse Tung, ‘um gigante com pés de barro’”

Patrícia Fachin | Edição: João Vitor Santos - Instituto Humanos Unisinos

“A eleição significou, antes de tudo, a escolha, pelo povo brasileiro, da continuidade do processo civilizatório.” É assim que o professor e sociólogo Elimar Pinheiro do Nascimento define o desfecho do pleito no Brasil este ano. Porém, como muitos, acredita que essa vitória apertada de Lula nas urnas, a congregação de forças democráticas nesse processo, é apenas o início de um processo árido.

Na análise que faz em entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHUElimar Pinheiro do Nascimento aponta que é fundamental buscarmos compreender essa força do bolsonarismo que, dada a expressiva votação, segue forte na sociedade. “A base eleitoral do Bolsonaro não é formada apenas por neofascistas ou grupos evangélicos fortemente conservadores. Esses são os mais visíveis, que não devem formar sem sequer metade de seu eleitorado”, diz. E acrescenta: “é um Frankenstein. Na linguagem antiga de Mao Tse Tung, ‘um gigante com pés de barro’. Por isso mesmo, a força do bolsonarismo pós-eleição vai depender das atitudes do próximo governo, das medidas que forem tomadas, do sucesso de suas políticas públicas, bem como das novas imagens projetadas no campo da política que serão recepcionadas pelos eleitores”.

Olhando para o processo como um todo, o entrevistado indica que as eleições revelam o esfacelamento da democracia. Basta ver as campanhas paupérrimas de propostas, recheadas de acusações que incitam as massas, as quais se movem mais como torcidas do que como cidadãos. “Não é que não existiram propostas. A verdade é que elas foram esmagadas pelas montanhas de ataques pessoais ao vivo ou em vídeos de ambos os lados. Nos debates, se fôssemos fazer um mapa de palavras, com certeza o maior destaque seria mentira/mentiroso”, exemplifica.

O entrevistado compreende que são sintomas que revelam a necessária reinvenção da democracia no século XXI. Para ele, a velha ideia de democracia que carregamos se exauriu por pelo menos três fatores. O primeiro está relacionado com os processos de globalização. “Esse processo tem afastado segmentos sociais significativos do acesso às benesses da globalização, desalojados dos eixos dinâmicos da economia, remetidos ao desemprego e à pobreza. Com isso, eles mudam de postura política, desconfiando das instituições democráticas e das elites no poder”, explica. O segundo fator resulta do fim da sociedade industrial, que muda a natureza dos partidos políticos. “Os partidos políticos de massa foram substituídos por outros tipos de partidos, que não mais exprimem o interesse de um determinado grupo social, mas servem de acesso de grupos difusos a benesses do estado”, observa. Por fim, “outro fenômeno que explica a atual crise da democracia é a queda do ritmo de crescimento econômico, particularmente no Ocidente”.

Porém, novamente o sociólogo aponta que o caminho é complexo e ter a clareza desses fatores é apenas o primeiro passo. O desafio é reinventar a democracia no século XXI, superando esses fatores que a levam ao esgotamento. Para tanto, tem uma intuição: “Criar mecanismos de participação e controle da sociedade sobre a classe política é um dos caminhos dessa reinvenção”.

Elimar Pinheiro do Nascimento (Foto: Arquivo pessoal)

Elimar Pinheiro do Nascimento é sociólogo, com doutorado pela Universidade de Paris V. Também realizou pós-doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales. Atua como professor dos Programas de Pós-Graduação do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília – UnB e do Programa Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas – UFAM. É pesquisador no Centro de Desenvolvimento Sustentável – CDS/UnB. Recentemente publicou, como coautor, Edgar Morin: um homem de muitos séculos. Um olhar latino-americano (São Paulo: SESC, 2022) e Temas intangibles sobre el medio ambiente en America Latina (Lima: Associacion Latinoamericanca de Sociologia, 2021. Vol. 1).

Confira a entrevista.

IHU – Qual o significado das eleições presidenciais de 2022? Que avaliação faz do resultado?

Elimar Pinheiro do Nascimento – A eleição significou, antes de tudo, a escolha, pelo povo brasileiro, da continuidade do processo civilizatório. Foi, em vista disso, uma vitória da democracia, que confrontou, cara a cara, as ameaças iliberais no decorrer de uma eleição inusitada em vários planos.

Entre essas peculiaridades, vivenciamos a disputa eleitoral com os resultados mais apertados da história recente do Brasil. Lula venceu contra a máquina estatal utilizada ao extremo e resistiu a medidas tomadas ao arrepio da lei. Além disso, o Tribunal Superior Eleitoral – TSE, garantindo eleições limpas e uma apuração rápida, foi, junto com o povo, o grande vencedor dessas eleições. Isso é motivo de orgulho para o país, pois outros países, como os Estados Unidos, não têm um sistema eleitoral confiável e ágil como o nosso.

Pela primeira vez, desde a instituição da reeleição no Brasil, um presidente foi derrotado. Isso não ocorreu com Fernando Henrique CardosoLula ou Dilma. Nenhum deles conseguiu realizar este feito. Bolsonaro perdeu por causa do seu governo desastroso e dos erros de sua assessoria e apoiadores, sobretudo na última semana da campanha.

Bolsonaro perdeu por causa do seu governo desastroso e dos erros de sua assessoria e de apoiadores, sobretudo na última semana da campanha – Elimar Pinheiro do Nascimento Tweet

Reconhecimento envergonhado e manifestações nas estradas

Foi também inusitada a demora do presidente em reconhecer o resultado das urnasBolsonaro demorou quase 48 horas para reconhecer sua derrota e o fez de forma oblíqua, envergonhada, implícita, cedendo à pressão de sua ala política, inclusive governadores e senadores eleitos com seu apoio. Eles pressionaram para que o presidente agradecesse os mais de 58 milhões de votos que obteve. Seu silêncio ensurdecedor contribuiu para que apoiadores mais exaltados e antidemocratas iniciassem um movimento de bloqueio das estradas, atingindo mais de mil pontos no país. Essa iniciativa contou com a complacência vergonhosa da cúpula da Polícia Rodoviária Federal, que desde domingo, 30 de outubro de 2022, assumiu um lado na disputa eleitoral, realizando blitz nas estradas, com o claro intuito de prejudicar os eleitores de Lula.

O objetivo das manifestações nas estradas foi o de iniciar o estopim de uma convulsão social. Os manifestantes conclamam uma intervenção militar, inutilmente. O insólito é que essa manifestação ocorre em um momento de claro isolamento do presidente Bolsonaro. Todas as autoridades públicas do TSESupremo Tribunal Federal – STF, da Câmara dos Deputados e do Senado reconheceram a vitória de Lula. Diversos adeptos do bolsonarismo, como o governador eleito de São Paulo e mesmo o de Santa Catarina, assim como senadores e ministros de seu governo, inclusive o vice-presidente, declararam aceitar o resultado das urnas, reconhecendo a vitória do Estado democrático de direito.

O insólito é que essa manifestação ocorre em um momento de claro isolamento do presidente Bolsonaro. Todas as autoridades públicas do TSE, STF, Câmara dos Deputados e Senado reconheceram a vitória de Lula – Elimar Pinheiro do Nascimento Tweet

IHU – E esse reconhecimento da vitória de Lula veio com um apoio internacional impressionante, não?

Elimar Pinheiro do Nascimento – Sem dúvida. Todos os países, que têm alguma importância no mundo, reconheceram rapidamente o resultado do pleito. Até a Rússia e a Ucrânia, países envolvidos numa guerra, cumprimentaram o eleito.

https://www.youtube.com/watch?v=ou6givmGntU

prestígio de Lula no exterior, que um dia foi chamado elogiosamente por Barack Obama de “o cara”, ficou comprovado não apenas pela rapidez com que todos os países reconheceram a sua vitória, mas também pelo fato de ter sido convidado para integrar a equipe de representantes do Brasil para a COP27, que está reunida no Egito, entre 6 e 18 de novembro, e para a reunião do G20, entre 15 e 16 de novembro deste ano. Portanto, antes mesmo de começar seu mandato como chefe de Estado, o candidato eleito à presidência Luiz Inácio Lula da Silva já vai participar de conferências internacionais, visando pôr rapidamente no esquecimento a fama de pária que o Brasil ganhou durante o governo Bolsonaro.

Ademais, a Noruega anunciou que vai retomar os aportes ao Fundo da Amazônia, interrompidos em função do descaso do governo Bolsonaro com o desmatamento da Amazônia. A China declarou que quer um acordo estratégico com o Brasil, e o presidente dos Estados Unidos declarou que deseja visitar o país.

Antes mesmo de começar seu mandato como chefe de Estado, Lula já vai participar de conferências internacionais, visando pôr rapidamente no esquecimento a fama de pária que o Brasil ganhou durante o governo Bolsonaro – Elimar Pinheiro do Nascimento Tweet

IHU – O que mais chamou sua atenção nessas eleições presidenciais?

Elimar Pinheiro do Nascimento – Há coisas insólitas, ou paradoxais, a serem explicadas, como o fato de que o candidato progressista vencer com uma base eleitoral aparentemente adversa: a região mais atrasada econômica e tecnologicamente do país, o Nordeste; as pessoas que, normalmente, têm menos recursos e instrumentos de se informar e interpretar os eventos políticos, os pobres; finalmente, as mulheres, que a psicologia afirma serem menos afeitas a mudanças. Uma hipótese é que, para estes eleitores, Lula representava um retorno a um tempo bem conhecido, até nostálgico.

Sei que o grande tema político sobre o resultado das eleições, no momento, são as conjecturas de como será composto o próximo governo, quais os grandes desafios que enfrentará, que estratégias deverá adotar para ampliar a base parlamentar etc. Mas quero chamar atenção para outro fato que me saltou aos olhos: o estranho o fato de o presidente derrotado ter obtido 49,10% dos votos. Serão necessários muitos esforços de cientistas sociais e sociólogos para explicar como isso aconteceu com um presidente que:

  • geriu de forma estúpida a pandemia, pregando publicamente a aglomeração sem máscaras e o uso de medicamentos mundialmente reconhecidos como inócuos; 
  • flertou com manifestantes que pediam intervenção militar
  • hostilizou seguidamente o Judiciário e os membros da sua mais alta corte, com palavrões inqualificáveis; 
  • agrediu a imprensa, em particular as mulheres; 
  • andava de motocicleta pelo país, sem capacete, ao arrepio da lei, em vez de trabalhar; 
  • atraiu o ridículo internacional de discursar para as calçadas em Londres por ocasião do funeral da rainha da Inglaterra
  • desmontou todo o sistema de fiscalização da Amazônia, o que elevou os índices de desmatamento; 
  • estimulou o garimpo ilegal e a invasão de terras indígenas
  • viu, com indiferença, o país retornar ao mapa da fomecom mais de 30 milhões de pessoas em estado de insegurança alimentar
  • cortou verbas de educação, ciência e tecnologia, ao mesmo tempo que aumentava o valor das emendas parlamentares e aprovava o chamado “orçamento secreto”. 

Apesar de tudo, Bolsonaro obteve 58 milhões de votos. Como explicar? Ele recebeu mais votos do que em 2018, quando poucos conheciam a sua trajetória de deputado federal medíocre e defensor da tortura e dos torturadores.

Apesar de tudo, Bolsonaro obteve 58 milhões de votos. Como explicar isso? – Elimar Pinheiro do Nascimento Tweet

IHU – O senhor tem alguma hipótese nesse sentido?

Elimar Pinheiro do Nascimento – Para ter 49% dos votos, o presidente em exercício usou ao extremo a máquina pública e fake news, em que seus assessores são campeões. Outra explicação encontra-se na imagem complexa que ele criou ao longo da presidência, atraindo segmentos sociais díspares.

Todos sabemos que as pessoas votam em imagens que elas constroem dos candidatos que vão merecer seu voto. Bolsonaro é um mosaico, que reúne imagens distintas e contraditórias acolhidas seletivamente pelos diversos segmentos sociais que votaram nele.

Ele reúne diferentes imagens, tais como:

  • apologista do regime autoritário, da ditadura e da tortura, imagem grata ao segmento social de extrema-direita, minoritário em sua base eleitoral, mas que é muito ativo; 
  • defensor dos valores mais conservadores do ponto de vista dos costumes – a família tradicional, o papel submisso da mulher, a proibição total do aborto, a rejeição do casamento homoafetivo etc., do agrado dos evangélicos em particular; 
  • combatente intransigente da corrupção, aspecto que cativa parte dos segmentos sociais moralistas da classe média brasileira desde a época da União Democrática Nacional – UDN, nos anos 1950; 
  • líder do antipetismo, que mobiliza parte significativa dos eleitores que antes votava no PSDB
  • patrocinador de uma democracia individualista, em que a liberdade de expressão de cada indivíduo deve estar acima de qualquer outra coisa, inclusive da liberdade do amigo, do vizinho, do familiar, do colega. Nessa concepção, todos devem ter a liberdade de produzir e divulgar qualquer fake news, andar armado, dirigir na velocidade que lhe apraz, entre outros; 
  • político liberal na economia (apesar de seu passado de estatizante), que tanto agrada parte do empresariado, grande ou pequeno, agro ou urbano, e que Paulo Guedes pretende representar com sua pregação de privatização das estatais brasileiras, Petrobras e Banco do Brasil incluídos. 

Essas diferentes imagens carecem de respaldo na realidade. Mas isso não importa, o que conta é que elas são “compradas” pelos distintos grupos sociais, que se apropriam de certas imagens sem considerar as outras. E alguns destes grupos são perpassados por uma cultura fundamentalista, de caráter religioso (como determinados grupos evangélicos) ou laico (como adeptos do fascismo).

A base eleitoral de Bolsonaro não é formada apenas por neofascistas ou grupos evangélicos fortemente conservadores. Esses são os mais visíveis, que não devem formar nem sequer metade de seu eleitorado – Elimar Pinheiro do Nascimento Tweet

Elemento em comum

Diante desse quadro, cabe a pergunta: qual o elemento comum a essas imagens? Poderia ser o conservadorismo, marcado por um individualismo nascido da ansiedade e insegurança, que se recusa a ver de frente o futuro em constante mudança. Porém, não é evidente. O fenômeno parece ser mais complexo e merece ser compreendido devidamente, por meio de estudos minuciosos. Algo essencial para nos afastarmos de novos riscos fascistas.

De toda forma, a base eleitoral do Bolsonaro não é formada apenas por neofascistas ou grupos evangélicos fortemente conservadores. Esses são os mais visíveis, que não devem formar nem sequer metade de seu eleitorado. Eles não explicam suficientemente os 58 milhões de votos. Sua base é formada por grupos heterogêneos de fundamento ideológico, uns, ou pragmático, outros. Conservadores e liberaismodernos e tradicionais, ao mesmo tempo. É um Frankenstein. Na linguagem antiga de Mao Tse Tung, “um gigante com pés de barro”. Por isso mesmo, a força do bolsonarismo pós-eleição vai depender das atitudes do próximo governo, das medidas que forem tomadas, do sucesso de suas políticas públicas, bem como das novas imagens projetadas no campo da política que serão recepcionadas pelos eleitores.

O que menos escutamos foram propostas para quaisquer dos problemas nacionais prementes. Não é que não existiram propostas. A verdade é que elas foram esmagadas pelas montanhas de ataques pessoais – Elimar Pinheiro do Nascimento Tweet

IHU – Em sua avaliação, como a pauta socioambiental foi tratada neste pleito?

Elimar Pinheiro do Nascimento – Este pleito, como diz a cientista política Maria Hermínia Tavares, foi absolutamente despolitizado. O que menos escutamos foram propostas para quaisquer dos problemas nacionais prementes. Não é que não existiram propostas, mas foram esmagadas pelas montanhas de ataques pessoais ao vivo ou em vídeos de ambos os lados. Nos debates, se fôssemos fazer um mapa de palavras, com certeza o maior destaque seria mentira/mentiroso. A carta ao Brasil, do Lula, já no final da campanha, amplamente demonstrada, não passou de uma carta de intenção. É um documento superficial, embora importante, pois tentava delimitar, em linguagem simples e de forma genérica, uma visão de sociedade que se opunha à do seu adversário.

Em resumo, a pauta socioambiental não existiu nas eleições. Salvo marginalmente como a carta de Lula ao Brasil, o último debate, quando Bolsonaro se referiu errônea e maliciosamente, ao desmatamento da Amazônia e en passant numa outra entrevista, mas sempre superficialmente.

IHU – O senhor aponta a necessidade de reinvenção da democracia. Em que consiste essa sua proposta?

Elimar Pinheiro do Nascimento – A democracia vive neste século XXI a sua maior crise. Não é a primeira. Conhecemos as suas derrotas nos anos 1920-1940 com o fascismo, o nazismo e o stalinismo. No entanto, ela vinha em ascensão desde o fim da Segunda Guerra, quando se propagou na Europa Ocidental. Nas décadas de 1970 e 1980, feneceram as ditaduras do sul da Europa (Grécia, Espanha e Portugal) e da América Latina (Brasil, Argentina, Uruguai, Chile, Bolívia e Peru). Graças às novas primaveras, a democracia voltou a se expandir com a queda do muro de Berlim e o fim da URSS.

Porém, desde o início do século XXI seu avanço parou e ela começou a declinar. Movimentos populistas de extrema-direita emergiram e se difundiram pela EuropaAmérica e Ásia. Tomaram o poder na PolôniaHungriaTurquiaÍndia e Filipinas, criando regimes autoritários. Esse movimento de extrema-direita chegou a ascender ao poder em outros países europeus, como SuíçaÁustriaNoruegaSuécia, Holanda e, mais recentemente, na Itália, entre outros. Cresceu eleitoralmente em países como InglaterraEspanha e França. Em movimento sanfona, cresce e decresce, como nos Estados Unidos e no Brasil.

As derrotas da democracia devem-se, em grande parte, a três fenômenos distintos, mas que se remetem um ao outro. O primeiro é o processo de globalização, com a constituição de um mercado global, alimentado por um processo acelerado de inovações tecnológicas e mudanças sociais e culturais. Esse processo tem afastado segmentos sociais significativos do acesso às benesses da globalização, desalojados dos eixos dinâmicos da economia, remetidos ao desemprego e à pobreza. Com isso, eles mudam de postura política, desconfiando das instituições democráticas e das elites no poder. Veja o exemplo da classe operária francesa que, nas décadas de 1950-1980, apoiava os partidos comunistas e socialistas e, hoje, constituem uma das bases do partido da extrema-direitaFront National.

segundo fenômeno que explica a presente crise da democracia é a mudança da natureza e do papel dos partidos políticos, resultado do fim da sociedade industrial, que nada tem a ver com o fim das indústrias. Os partidos políticos de massa foram substituídos por outros tipos de partidos, que não mais exprimem o interesse de um determinado grupo social, mas servem de acesso de grupos difusos a benesses do Estado, resultado do declínio da sociedade industrial, sociedade de classes. Esse distanciamento entre representantes e representados é alimentado pelo crescimento extraordinário da desigualdade social e regional, que atinge atualmente patamares absurdos.

Finalmente, outro fenômeno que explica a atual crise da democracia é a queda do ritmo de crescimento econômico, em particular no Ocidente. Isso tem repercussão sobre o principal ator da criação da democracia no século XX, as classes médias. Esses segmentos saíram perdendo com a queda da dinâmica do crescimento e, por isso, tendem a ter uma renda per capita em declínio.

Em toda parte, grupos sociais significativos se sentem ameaçados, inseguros, ansiosos e buscam refúgio em movimentos que lhes prometem o retorno ao passado ou o engessamento das mudanças. Dessa forma, a democracia não tem como sobreviver. O seu fenecimento é uma questão de tempo, salvo se ela for capaz de se reinventar. Esta é a conclusão de meu livro, intitulado Um mundo de riscos e desafios: construir a sustentabilidade, reinventar a democracia e eliminar a nova exclusão social (Brasília: Fundação Astrojildo Pereira, 2020).

Na obra, publicada em 2020, o professor reflete sobre a reinvenção da democracia 

Imagem: divulgação

Novas formação de participação social

Criar mecanismos de participação e controle da sociedade sobre a classe política é um dos caminhos dessa reinvenção. Para isso, precisamos fazer dois movimentos aparentemente antagônicos, um em direção ao passado e o outro, rumo ao futuro:

(I) buscar as fontes da democracia, quando os gregos em Atenas a inventaram no século IV a.C;

(II) utilizar os novos meios digitais e eletrônicos, inclusive a inteligência artificial, para criar mecanismos rápidos e eficientes de controle das ações governamentais por parte da sociedade.

Criar mecanismos de participação e controle da sociedade sobre a classe política é um dos caminhos dessa reinvenção – Elimar Pinheiro do Nascimento Tweet

No primeiro movimento, alguns países como BélgicaHolanda e Suíça estão retornando o princípio democrático maior dos gregos antigos: o sorteio. Quando os atenienses criaram a democracia em rebelião contra os ricos donos de terras, adotaram dois procedimentos para escolher seus representantes. O procedimento democrático era o sorteio, no qual todos os humanos tinham a mesma oportunidade de ser escolhidos, embora no caso grego em questão a comunidade política era formada apenas por homens livres, atenienses, adultos. O procedimento aristocrático era a eleição, na qual se escolhiam os mais habilidosos.

Ora, fundadores da democracia moderna, franceses, mas, sobretudo norte-americanos, abandonaram o princípio do sorteio, que algumas poucas cidades italianas da Idade Média utilizavam para reduzir seus conflitos e assegurar a coesão social. Em grande parte, isso ocorreu porque norte-americanos e franceses não estavam criando democracias, e sim repúblicas. República é o regime que se opõe à monarquia, que eles queriam derrubar.

https://www.youtube.com/watch?v=TeTWXPus50k

democracia, na verdade, nasceu da luta das classes operárias inicialmente e, em seguida, das classes médias, ao longo de mais de dois séculos. O sorteio, que está sendo retomado, tem desempenhado um papel de renovar o debate público e a proposição de políticas públicas mais vinculadas aos interesses majoritários da sociedade. Um papel complementar, mas arejador.

uso de tecnologias digitais tende a criar mecanismos de controle social mais abrangentes do que os que conhecemos e, talvez, venha a revitalizar a aproximação entre representantes e representados. De toda forma, é preciso buscar e ensaiar novas formas de participação e controle social, como um dos caminhos para reinventar a democracia.

O sorteio tem desempenhado um papel de renovar o debate público e a proposição de políticas públicas mais vinculadas aos interesses majoritários da sociedade. Um papel complementar, mas arejador – Elimar Pinheiro do Nascimento Tweet

IHU – Como o senhor tem refletido sobre um desenvolvimento adequado para a Amazônia, considerando os avanços científicos, mas também o conhecimento dos povos tradicionais?

Elimar Pinheiro do Nascimento – A Amazônia, ao contrário do que sugerem muitas pesquisas de opinião, em geral não interessa aos brasileiros de outras regiões. Além disso, a floresta amazônica interessa muito pouco aos habitantes das cidades amazônicas, particularmente Manaus e Belém. Para parte significativa dessa população, a floresta é sinônimo de atraso. Asfalto e cimento são sinais de progresso.

Infelizmente, a Amazônia, como tantos outros temas candentes, não foi, mais uma vez, devidamente focada durante as campanhas eleitorais. Em sua carta ao Brasil e no discurso depois que o resultado das eleições foi proclamado, Lula tocou no tema. Logo após, como efeito imediato, a Noruega declarou que voltará a contribuir para o Fundo Amazônia, congelado no governo Bolsonaro, que nunca teve interesse em desestimular o desmatamento.

A Amazônia, ao contrário do que sugerem muitas pesquisas de opinião, não interessa aos brasileiros de outras regiões – Elimar Pinheiro do Nascimento Tweet

Amazônia é um capital extraordinário que o Brasil detém, e cada vez mais valioso, na medida em que os humanos avançam no processo de destruição da biodiversidade em escala global. Há vários planos de uso das riquezas da Amazônia para os povos locais e o povo brasileiro em geral. O melhor, de forma global, ainda é o plano que Marina Silva propôs quando estava à frente do Ministério do Meio Ambiente, chamado Plano Amazônia Sustentável – PAS, de 2008.

Nas diversas abordagens, como o Plano de Desenvolvimento Sustentável do Amapá – PDSA, ou os estudos de Armando MendesBertha BeckerIgnacy SachsJoão Paulo CapobiancoCarlos Nobre e os pesquisadores e institutos de pesquisa na Amazônia (Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia – INPAMuseu Emílio Goeldi, Núcleo de Altos Estudos Amazônicos – NAEA/UFPA, Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais e Sustentabilidade da Amazônia da Universidade Federal do Amazonas – PPGCASA/UFAM, Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia – IPAM), entre outros, domina a ideia, cada vez mais consensual, de que o melhor para a Amazônia é a economia da “floresta em pé”. Isso implica em:

(i) estimular a agricultura e a criação de gado em regimes intensivos, para que não haja mais desmatamentos;

(ii) adotar um vasto programa de reflorestamento para recuperar as áreas degradadas;

(iii) estímulos ao cultivo híbrido de floresta, agricultura, criação de pequenos animais, inclusive peixes, turismo e artesanato. É preciso dar múltiplas funções à pequena agricultura, adotando o princípio da economia circular, em que o dejeto de uma criação (galinhas) vira o adubo de outra criação (hortas).

A Amazônia é um capital extraordinário que o Brasil detém, e cada vez mais valioso, na medida em que os humanos avançam no processo de destruição da biodiversidade em escala global – Elimar Pinheiro do Nascimento Tweet

Bioeconomia

Entre as propostas mais recentes para explorar os recursos naturais da Amazônia com a floresta em pé, destaca-se a bioeconomia, ou seja, investir em tecnologias para aproveitar melhor suas riquezas biológicas (castanhas, óleos, cosméticos, madeiras, produtos fármacos, alimentos vegetais e animais). A isso podemos acrescentar o ingresso no mercado de carbono.

Porém, é preciso que a sociedade brasileira (cientistas, políticos, governantes) tenha melhor conhecimento das riquezas da floresta. Isso exige investir em educação, ciência e tecnologia nos centros educacionais e de pesquisa da Amazônia para gerar políticas e programas robustos, de forma contínua. São políticas e programas que devem nascer do diálogo entre os povos tradicionais, cientistas, empreendedores locais e nacionais e os órgãos públicos e semiestatais, envolvendo também universidades, institutos de pesquisa e institutos federais.

O mais importante, no entanto, é que estes programas e políticas tenham continuidade, articulem iniciativas complementares e estejam conectados a um sistema de avaliação e informação contínuas, com uma governança que fique acima das idiossincrasias da descontinuidade política.

IHU – Uma das questões importantes hoje, em face do agravamento das mudanças climáticas, e que não foi abordada nas eleições é a transição energética. Como o senhor a entende?

Elimar Pinheiro do Nascimento – A transição energética é um problema mais complexo do que normalmente se pensa. As fontes limpas de energia que conhecemos e dominamos, como hídrica, eólica, solar, geotérmica, marítima etc., ainda estão muito longe de poder substituir as fontes fósseis (carvão, petróleo e gás). Por isso mesmo, o prestígio da energia nuclear vem sendo ressuscitado. É possível que ela venha a se expandir de novo, aumentando os riscos de desastres como Chernobyl ou da produção de bombas nucleares por grupos terroristas. Mas o fato é que as fontes limpas que conhecemos, com a tecnologia que temos, não servem para mudar a matriz energética, por mais que cresçam. Elas não têm a capacidade de produzir energia suficiente para substituir plenamente as fontes fósseis.

Isso não significa que não devemos investir nas fontes de energia supracitadas e outras. Elas desempenham o belo papel de reduzir as emissões de gases do efeito estufa provenientes do uso de combustíveis fósseis, embora de forma eficiente. Se quisermos mudar a matriz energética que temos, deveremos tomar pelo menos duas decisões dificílimas: a primeira é a de estimular de forma mais ativa as fontes limpas que conhecemos e que sozinhas não serão capazes de produzir a mudança. Por essa razão, necessitamos da segunda decisão. Entretanto, essa ainda é mais difícil: reduzir o uso de energia de fontes fósseis, redirecionando o crescimento da produção e do consumo (particularmente dos grupos bem aquinhoados) de forma a alcançarmos uma redução radical da emissão de gases de efeito estufa.

É importante compreender que, se continuarmos a nos mover pelo princípio da reprodução ampliada da economia de mercado, não teremos qualquer redução da emissão de gases do efeito estufa, visto que o que ganharmos com fontes limpas perderemos com o consumo ampliado das fontes fósseis.

O fato é que as fontes limpas que conhecemos, com a tecnologia que temos, não servem para mudar a matriz energética, por mais que cresçam – Elimar Pinheiro do Nascimento Tweet

Ações do pós-desenvolvimentismo

Os movimentos pós-desenvolvimentistas como decrescimentobem viverprosperidade sem crescimento, entre muitos outros, propugnam que eliminemos a produção e o consumo de produtos e serviços supérfluos como armas, drogas, propaganda, entre outros; que reduzamos a produção e o consumo de produtos como automóveis, moda, carnes etc.; que tributemos ou proibamos formas de produção nocivas à natureza; que estimulemos a economia criativa e a desmaterialização da economia, entre outros. Ou seja, que trilhemos caminhos que nos levem à sustentabilidade.

No caso do Brasil, estamos na contramão da sustentabilidade. A economia distributiva, em que cada imóvel poderia gerar sua própria energia, com placas fotovoltaicas, por exemplo, foi desestimulada com uma lei que entra em vigor no próximo ano, resultado do lobby de empresas de geração e distribuição de energia hídrica ou fóssil.

*Entrevista publicada originalmente no portal do Instituto Humanos Unisinos. Título editado.


A extrema direita está se tornando mais feminina?

Barbara Wesel,* Made for Minds

"Sou mulher, sou mãe, sou cristã!": esse grito de guerra, que Giorgia Meloni tem repetido em inúmeras aparições em público, contém a essência de seu sucesso político na Itália. Após longos anos em que homens como o conservador Silvio Berlusconi atraíram os eleitores com seu comportamento abertamente machista, dominando a política italiana, o êxito eleitoral de Meloni também se fundamenta na ênfase em sua feminilidade.

Ela será a líder de uma nova coalizão governamental cuja lua-de-mel entre os parceiros já parece estar no fim. Em meio à briga continuada pelos altos postos do governo, o conservador Berlusconi desqualificou a chefe do partido Irmãos da Itália (FdI) como "presunçosa, prepotente, arrogante e ofensiva". Em sua campanha eleitoral, contudo, a extremista de direita conseguiu projetar uma imagem bem diferente.

Por um lado, ela foi escolhida por muitos católicos graças a sua visão de uma família tradicional e cristã – embora Meloni, que não é casada no papel com o pai de sua filha, associe esse ideal ao rechaço do aborto e dos direitos LGBTQ+. Aliás, tais ideais conservadores da boa mãe e boa esposa remontam à Itália dos anos 1930, sob o regime fascista de Benito Mussolini.

Além disso, Meloni deve sua vitória aos votos de muitos trabalhadores autônomos. Eles a apreciam como emergente das classes baixas combativa, que conhece os problemas dos pequenos comerciantes e empresários. No entanto, seu êxito junto aos Irmãos da Itália tem caráter excepcional, pois ela é uma dos confundadores e ocupa a presidência do partido há dez anos, tendo-o levado de nanico a governista.

Direita aposta no eleitorado feminino

Descontado o sucesso singular de Giorgia Meloni, contudo, esta eleição foi um revés para as mulheres da política italiana: entre os deputados do Parlamento, sua participação caiu de 35% para 31%. Então será que a estratégia das legendas radicais ou extremistas de direita é fazer uma mensagem, em essência, agressiva, parecer mais "suave" através de uma líder mulher?

A socióloga Katrine Fangen, da Universidade de Oslo, crê que haja um quê de verdade nesse estereótipo: "Há muito tempo, diversos partidos populistas de direita têm líderes políticas, isso não é novo. Mas pode perfeitamente ser uma decisão estratégica apostar mais nas mulheres que podem se identificar mais com uma figura de liderança feminina."

"As siglas populistas de direita seguem sendo eleitas principalmente por homens, mas a diferença não é mais tão grande como no passado: em âmbito internacional, cerca de 40% do eleitorado extremista de direita são mulheres", comentou Fangen em entrevista à revista norueguesa Framtide. Isso, apesar de os partidos ultradireitistas da Europa serem muito diversos: na França e Holanda, por exemplo, eles defendem a igualdade de gênero e, em parte, até mesmo os direitos LGBTQ+.

O modelo Marine Le Pen

A socióloga Dorit Geva, da Central European University, em Viena, considera o exemplo da francesa Marine Le Penparte da nova estratégia populista de direita: "É uma tendência que Le Pen iniciou há cerca de dez anos. Gradativamente, ela tornou mais branda a imagem do partido [então Frente Nacional], cujos aspectos repugnantes incluíam o jeito machista." A política herdou de seu pai, Jean-Marie Le Pen, a sigla que era um ponto de convergência para ex-militares e ex-combatentes da guerra na Argélia.

A italiana Meloni, por sua vez, configurou nos últimos anos a imagem e a orientação do FdI, em grande medida por conta própria, até chegar aos atuais 20% de vantagem na preferência do eleitorado. "Ela compreendeu sua própria força de atração e seu poder", frisa Geva.

Na França, por outro lado, o fato de Le Pen ser mulher tornou-se um aspecto central da mensagem política nas últimas duas campanhas eleitorais. "Trata-se de cuidado e proteção, de uma imagem materna acoplada à política do Estado de bem-estar social." Desse modo, abrandou-se a imagem de uma legenda "lei e ordem".

"O que vemos é uma nova variante da extrema direita, que se apresenta como protetora dos cidadãos, o que não ocorria antes." Meloni enfatiza, por exemplo, que as mães necessitam mais apoio social pelo fato de sua própria mãe ser solteira; enquanto Le Pen promete mais Estado social, subsídios para os aluguéis e salários mais altos, afirmando que até agora os imigrantes têm sido favorecidos.

"É uma estratégia para ampliar a base do eleitorado, em que se dança de ambos os lados, falando de Deus, da família e dos valores conservadores, sem excluir totalmente o outro lado", analisa Dorit Geva. Esses partidos são agora incluídos no bloco de centro-direita, sem que esteja claro quais de seus slogans resultará em medidas da prática política.

Há uma cisão Leste-Oeste?

Nos países do Leste Europeu, seja o governista PiS da Polônia ou o Fidesz da Hungria, por enquanto os homens seguem dominando. No entanto Pawel Zerka, do think tank político Council on Foreign Relations, acredita tratar-se menos de uma cisão geográfica do que da origem diversa das legendas populistas de direita.

"Na Europa Ocidental, em geral eles se apresentavam como formações antielitistas, antimigração, eurocéticas ou pós-fascistas. No Leste da Europa não havia partidos estabelecidos devido ao processo de democratização. Por isso, os maiores entre os considerados populistas ou nacionalistas eram antigos partidos conservadores que resvalaram ainda mais para a direita."

Para Zerka, também eles terão que cada vez mais apelar ao eleitorado feminino, "senão poderão facilmente – e, em geral, corretamente – ser vistos como misóginos". As mulheres votavam menos neles, no que se denominava a "lacuna dos gêneros" do comportamento eleitoral. "Foi assim com Donald Trump nos Estados Unidos, Eric Zemmour na França, Konfederacja na Polônia e Vox na Espanha. É interessante que não haja lacuna dos gêneros para Marine Le Pen ou para os Irmãos da Itália."

A rigor, essa lacuna tampouco existe para o PiS, já que a chefe de governo interina Beata Szydlo concentrou o partido em temas socioeconômicos, como segurança empregatícia, adicionais para quem tem filhos e outros. "Isso ajudou Marine Le Pen na 'desintoxicação' do seu partido e parece ter ajudado o PiS no pleito de 2015." O chefe partidário linha-dura e clandestino Jarosław Kaczyński não teria conseguido isso, supõe Zerka.

O caso do sucesso eleitoral de Giorgia Meloni, contudo, é diverso, pois ela pôde se apresentar como alternativa para as demais siglas do governo de Mario Draghi, e a Liga de Matteo Salvini perdera sua atratividade. Agora é preciso aguardar para ver como será a política da provável primeira-ministra da Itália.

"Seu partido atrai tanto mulheres quanto homens. O gênero não importa, ao contrário da idade e do grau de instrução, apesar de suas metas tradicionais e das raízes fascistas." Pawel Zerka resume: Giorgia Meloni pode ter aprendido com Le Pen, mas seu futuro político depende das especificidades da política e da sociedade da Itália.

Texto publicado originalmente no Made for Minds.


Luiz Carlos Azedo: É bom ficar de olho nas eleições chilenas

O Chile oscila entre um governo parecido com o de Allende ou saudosista de Pinochet

Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense

Os paradigmas da esquerda latino-americana são a Comuna de Paris (1871), a Revolução Russa (1917), a Revolução Chinesa (1949), a Revolução Cubana (1959) e a Guerra do Vietnã (1955 a 1975). A Revolução Inglesa (1640-1688), a Independência dos Estados Unidos (1776) e a Revolução Francesa (1779-1789), revoluções burguesas que deram origem à democracia representativa, não são referências para seus objetivos. A esquerda também não estuda os contragolpes que puseram um ponto final nas revoluções. Isso exigira um mergulho nos próprios erros. É mais fácil denunciar os golpistas, com a narrativa do tipo “não existe derrota quando se vai à luta”.

Na América do Sul, no cenário de guerra fria, o golpe militar que destituiu o presidente João Goulart, em 1964, foi o ponto de viragem da geopolítica continental. Entretanto, o caso mais paradigmático foi o brutal golpe no Chile, do general Augusto Pinochet, em 1973, no qual o presidente socialista Salvador Allende se matou, em meio ao bombardeio do Palácio La Moneda pelos militares golpistas. No rumo de um inédito “socialismo democrático”, Allende atraia as atenções mundiais.

O golpe no Chile levou o líder comunista italiano Enrico Berlinguer a rever toda a estratégia do Partido Comunista Italiano, propondo um “compromisso histórico” com a democracia-cristã, tendo a “democracia como valor universal”. Em 1978, um acordo negociado por Berlinguer com o ex-primeiro-ministro e presidente da Democracia Cristã, Aldo Moro, poria fim à grave crise governamental. Entretanto, enfrentava oposição do Vaticano, da Máfia, dos Estados Unidos, da OTAN, da União Soviética e dos extremistas de direita e de esquerda.

Cinco dias após a conclusão do acordo, no dia 16 de março, quando se dirigia à solenidade de posse do novo governo confiado ao democrata-cristão Giulio Andreotti, que se opusera à aliança com os comunistas, Moro foi sequestrado em Roma, numa ação que resultou na morte de cinco homens de sua escolta. O grupo terrorista Brigadas Vermelhas assumiu o sequestro e executou Moro, no dia 7 de maio.

Radicalização

A chamada Concertación (Coalizão de Partidos pela Democracia), que governou o Chile por quatro governos, aprendeu com a queda de Allende e se inspirou no “compromisso histórico”. Foi uma aliança entre o “humanismo cristão” e o “humanismo laico”, que possibilitou programas de governo exequíveis em termos econômicos e sociais, embora a chamada “agenda identitária” fosse o pomo da discórdia entre o Partido Socialista de Chile (PS), o Partido Democrata Cristiano de Chile (DC), o Partido por la Democracia (PPD), o Partido Radical Social-Democrata (PRSD) e agremiações menores.

Os democratas cristãos Patrício Aylwin (1990-1994) e Eduardo Frei (1994-2000), o liberal Ricardo Lagos (2000-2006) e a socialista Michele Bachelet (2006-2010) se revezaram na Presidência. Depois de 2010, se formou uma nova coalizão, a Nueva Mayoria, que incluiu partidos da esquerda, como o Partido Comunista de Chile, a Izquierda Ciudadana e o Movimiento Amplio Social, além dos partidos de centro-esquerda que foram parte da Concertación. Os liberais foram excluídos. A coalizão governou o Chile entre os anos 2014 e 2018.

Derrotada por Sebástian Piñera, pela segunda vez (a outra foi em 2010), essa aliança foi considerada esgotada. Entretanto, o programa liberal do novo governo não deu as respostas que a sociedade aguardava. Um processo de impeachment e o forte movimento de oposição obrigaram Piñera a convocar uma Constituinte, na qual a esquerda vem tendo protagonismo. No domingo, esse protagonismo se consolidou, sob a liderança do ex-dirigente estudantil e deputado Gabriel Boric, candidato da Frente Ampla de Esquerda e do Partido Comunista, em confronto com o ultradireitista José Antônio Kast, do Partido Republicano (pinochetista).

Houve um colapso do centro político. Um terceiro candidato, Franco Parisi, fez campanha do Alabama, nos Estados Unidos. Sem pôr os pés em Santiago, deslocou do segundo lugar Sebástian Sichel, o candidato do presidente Piñera, e Yasna Provoste, da ex-Concertación. Os ex-presidentes Ricardo Lagos, Eduardo Frei e Michelle Bachelet também foram derrotados. No segundo turno, o Chile oscila entre um projeto parecido com o de Allende e um presidente saudosista do general Pinochet, alinhado com o presidente Jair Bolsonaro.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-e-bom-ficar-de-olho-nas-eleicoes-chilenas

No Chile, caldo de polarização vai ferver ainda mais em 2022

Se Kast vencer, terá de lidar com a esquerda na Constituinte; se Boric ganhar, vai ter de fazer alianças no novo Congresso chileno

Fernanda Simas / O Estado de S.Paulo

Pela primeira vez desde o retorno da democracia no Chile, os dois principais partidos do país, que ocuparam a presidência ao longo do período, não chegaram ao segundo turno desta eleição. Segundo analistas, é a comprovação de que a disputa de extremos chegou ao cenário chileno. 

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Com isso, a composição para 2022 deve ferver ainda mais o caldo polarizado chileno. Esta eleição presidencial é a primeira após os protestos de 2019, que deixaram uma marca na história política de Sebastián Piñera e resultaram na decisão de se elaborar uma nova Constituição, o que vai ocorrer em 2022. A cor política da nova presidência e do novo Congresso pode ter papel importante na rapidez ou lentidão desse processo. 

“Tempos difíceis estão chegando para o Chile. 2022 será um ano muito tenso: um novo presidente e novo Congresso a partir de março, e eventualmente uma nova Constituição, se for aprovada no referendo do 2º semestre de 2022”, diz Daniel Zovatto, diretor para América Latina e Caribe do Instituto para Democracia e Assistência Eleitoral Internacional (Idea). 

No segundo turno vão estar um candidato de extrema direita, que admira o general Augusto Pinochet, e um esquerdista que remonta a Salvador Allende, que o ditador derrubou em 1973. Com moderados caindo no esquecimento, esse resultado oferece aos eleitores duas visões radicalmente diferentes do futuro, em um país ainda se curando das feridas dos atos de 2019 e de uma pandemia. 

Neste pleito, surgirá também um Congresso renovado, com eleitores escolhendo parlamentares, o que será decisivo decidindo quanta margem de manobra dar ao novo líder. 

Seja quem for o próximo presidente do Chile, terá de negociar com vários partidos para conseguir maioria na Câmara e no Senado. Tanto Jose Antonio Kast quanto Gabriel Boric são apoiados por coligações que não serão as maiores, seja na Câmara, seja no Senado.

Na Câmara, quem vencer terá de costurar muitas alianças para atingir os 93 votos necessários para aprovar as normas constitucionais, o que equivale a 3/5 dos parlamentares.

No Senado, o número de assentos para a direita e esquerda está igual, empatados. A centro-esquerda soma 25 parlamentares, mesmo número da soma do Chile Vamos, da centro -direita, com o pacto do Partido Republicano, de Kast.

Após a eleição, na Câmara dos Deputados, a soma dos partidos de esquerda e centro-esquerda chega a 73 parlamentares, perdendo a maioria (78 dos 155 votos). A direita soma agora um total de 69 deputados. O restante é de partidos e candidatos independentes. 

Caso o ultraconservador Jose Antonio Kast vença, sua promessa de cortar impostos corporativos e gastos fiscais – dobrando as credenciais neoliberais do país – podem levar a um conflito com um parlamento dominado por uma esquerda fragmentada. Planos vagos de trazer capital privado já enfureceram os sindicatos. 

Eleição Chile José Antonio Kast
Eleitor de Kast em comício em Santiago; segundo turno será entre o candidato ultraconservador e o socialista Gabriel Boric  Foto: Ernesto Benavides/AFP

Enquanto isso, o ex-líder estudantil Gabriel Boric, apoiado por uma coalizão que inclui aliados comunistas, quer aumentar o salário mínimo e os impostos corporativos e substituir o atual sistema de previdência privada, um dos maiores pilares dos mercados de capitais do Chile. 

Insatisfação ainda é grande entre os chilenos

Em qualquer dos casos, o eleito terá de lidar com uma insatisfação crescente. O Chile costumava ser uma das histórias de sucesso da América Latina. A renda per capita quase triplicou entre 1990 e 2015; passando a ser atualmente a mais alta da região. O número de estudantes universitários quintuplicou no mesmo período. A desigualdade de renda caiu e agora está abaixo da média da região (apesar de muito maior do que a dos membros da OCDE, o clube dos países mais ricos). 

Ainda assim, desde que enormes manifestações ocorreram há dois anos, nos quais pelo menos 30 pessoas morreram e estações de metrô e igrejas foram depredadas e incendiadas, a violência ficou muito mais comum. Nas semanas recentes, três pessoas morreram durante protestos, e centenas de manifestantes foram presos.

Depois dos atos de 2019, uma Assembleia Constituinte foi eleita para escrever uma Constituição que substituísse a Carta redigida na ditadura de Pinochet. Com participação de apenas 43% do eleitorado, a constituinte eleita é composta pela esquerda e progressistas. Um presidente de esquerda terá mais abertura, mas precisará articular com o novo Congresso, enquanto um presidente ultraconservador pode entrar em conflito com os constituintes. 

Vencedor no Chile vai ter de costurar acordos com o Congresso

Para Pamela Figueroa, professora do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de Santiago do Chile, o esquerdista Gabriel Boric “teria que buscar uma aliança política com a centro-esquerda no Congresso para avançar no programa de transformação de maneira gradual pela via legislativa”, enquanto o candidato da extrema direita Jose Antonio Kast teria uma relação mais tensa com setores da sociedade. “A plataforma do candidato tem sido muito clara em retroceder em alguns direitos da sociedade, como os das mulheres.”

Eleição Chile Kast Boric
O candidato socialista, Gabriel Boric, fala a apoiadores em campanha em Valparaiso Foto: MARTIN BERNETTI / AFP

A disputa presidencial mais dividida da história recente chilena coloca o ex-líder estudantil Boric, de 35 anos, e o defensor do legado econômico da ditadura de Augusto Pinochet numa disputa pelo voto daqueles que um dia apoiaram a centro-direita e a velha Concertación, coalizão cristã-socialista que governou o Chile nos anos em que Piñera não estava no cargo. 

“É uma eleição bastante aberta, então é muito difícil dizer como ficará a polarização. Nas primárias de julho de 2021, por exemplo, não vimos uma polarização tão grande. Os partidos de centro-direita e da ex-Concertación tiveram votação expressiva”, avalia Pamela. No segundo turno, ambos terão de buscar alianças com esses campos políticos para conseguir uma vitória. 

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Fonte: O Estado de S. Paulo
https://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,no-chile-caldo-de-polarizacao-vai-ferver-ainda-mais-em-2022,70003905016


O que alcançaram os movimentos anti-Bolsonaro?

Lideranças consideram que movimentos antigoverno que floresceram em 2020 contribuíram para desgaste de Bolsonaro

Malu Delgado / DW Brasil

George Floyd acabara de ser assassinado nos Estados Unidos, e a primeira onda da pandemia atingia seu pico no Brasil, entre devaneios antidemocráticos do presidente Jair Bolsonaro e a falta de compromisso federal com o combate à covid-19. Ao final do primeiro semestre de 2020 floresceram no país os primeiros movimentos sociais mais organizados contra Bolsonaro.

Mais de um ano depois, alguns deles se desintegraram e não sobreviveram às dificuldades de manter uma coesão durante a pandemia. Ainda assim, lideranças que ajudaram a formar frentes de resistência a Bolsonaro consideram que importantes vozes da sociedade ecoaram mais claramente e se fortaleceram, conseguindo ao menos deter absurdos extremos do atual governo e contribuindo para o desgaste e aumento da rejeição ao presidente.

"Não tenha dúvida de que o índice de rejeição que Bolsonaro tem hoje diz respeito fundamentalmente à ação dos movimentos. Se não fosse toda essa mobilização geral, prevaleceriam só as fake news de Bolsonaro, para quem todas as desgraças brasileiras são responsabilidade de outros", disse à DW Brasil Douglas Belchior, liderança da UNEafro Brasil e membro da Coalizão Negra Por Direitos, criada ao final de 2019. Para Belchior, os movimentos sociais resistiram, cada um a seu modo, e agiram dentro de seus limites.

Ações, unificadas, segundo ele, ajudaram a combater a tese antivacina que prosperava no governo Bolsonaro, intensificando a pressão internacional. Foram também essas vozes da sociedade civil, em especial a da Coalizão Negra, que forçaram a manutenção do auxílio emergencial em 2021, evitando que a miséria e a fome se alastrassem ainda mais pelo país.

"Esses movimentos sociais atuaram e pressionaram a opinião pública e as mídias. Não haveria o desgaste nacional e internacional de Bolsonaro sem isso", sentencia Belchior.


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"Com racismo, não haverá democracia"

Estamos Juntos, Somos 70% e Basta! são exemplos de movimentos que surgiram com uma bandeira comum, a luta em favor da democracia numa reação contra atos do atual governo que esses segmentos consideraram atentados contra contra direitos, civilidade e tolerância. No entanto, para Belchior, a morte de George Floyd acendeu também o alerta no país contra o racismo.

O manifesto da Coalizão Negra Por Direitos, escrito em 2020 em paralelo a esses outros movimentos que se expandiam, adotou a seguinte frase como lema: "Enquanto houver racismo, não haverá democracia".

"Uma das primeiras ações do governo Bolsonaro foi tentar derrubar a lei de cotas raciais. O movimento negro fez uma atuação em conjunto", lembra Belchior.

"Para o maior segmento da sociedade brasileira [a população negra], o risco à democracia não é novo. Onde é que tem democracia com a polícia estourando as quebradas e as favelas como sempre fez? Onde é que tem democracia com 800 mil pessoas presas, 40% delas sem julgamento?", questiona Belchior.

Ele considera que a Coalizão Negra talvez seja o único movimento social hoje no Brasil com atividade orgânica – ou seja, organizado na ponta, pela população diretamente atingida –, algo que talvez só se assemelhe ao Movimento dos Sem Terra (MST) da década de 90.

"A gente surge [após a eleição de Bolsonaro] para fazer uma dinâmica política que os brancos sempre fizeram em nosso nome. Onde o movimento negro era a ausência? Nos espaços de poder, no parlamento e em fóruns internacionais. Eram sempre os brancos falando em nosso nome. Mas a história dá uma pirueta e nos obriga a usar essa força de rede também na ponta."

Fim da espiral do silêncio da maioria

Ex-banqueiro e empresário, Eduardo Moreira é um dos nomes mais conhecidos do movimento Somos 70%. Ele enfatiza, no entanto, que nunca alimentou o próprio ego, evitando se colocar como dono do movimento ou utilizá-lo como instrumento de poder. "Sou apenas um dos 70%", pontua.

O empresário considera que o movimento foi extremamente bem-sucedido e ainda tem ecos. O objetivo do Somos 70% era extremamente simples, e muitas vezes não foi compreendido, diz.

"Vivemos no Brasil a espiral do silêncio durante um tempo. As pessoas ouviam 30% [da população que apoia Bolsonaro] falando e se intimidavam. Não só por serem a única voz que aparecia, mas por ser também uma voz muito ameaçadora, que difamava. A ideia dos Somos 70% foi só lembrar as pessoas de que podem falar, e lembrar que elas eram a maioria. Tentavam me botar numa saia justa e perguntavam: mas o [Sergio] Moro faz parte dos 70%? Se ele não é favorável a Bolsonaro, faz. Isso é simplesmente uma estatística. Não é abaixo-assinado. Ninguém pode escolher ser contra Bolsonaro e não estar nos 70%", afirma.

Para Moreira, as atuais pesquisas de intenção de votos confirmam o desgaste de Bolsonaro e são resultado da expressão da maioria. Influente nas redes sociais, o empresário postou recentemente fotos ao lado do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e de Ciro Gomes, que é pré-candidato à Presidência pelo PDT.

"O Somos 70% tinha esse poder de não estar vinculado a nenhum partido político e não ter um compromisso de uma aliança. Normalmente, quando uma pessoa acaba se envolvendo em um movimento específico, se ela conversa com o Lula não pode falar com o Ciro, porque escolheu um lado. Eu sempre defendi a arena do debate. Luto pelo direito de debater. Luto pelo direito de discutir."

A voz minoritária e agressiva que calou a maioria sucumbiu, e agora a percepção geral no país é outra, diz Eduardo Moreira. O movimento, diz ele, "tomou vida própria" e o conceito de Somos 70% foi incorporado pela sociedade. Algumas estatísticas revelam isso, aponta, como o fato de 70% dos brasileiros rejeitarem a flexibilização do porte de armas; 67% acreditarem que a corrupção vai aumentar, e os mesmos 67% rejeitarem a aproximação de Bolsonaro ao Centrão. Além disso, 75% dos brasileiros acham que a democracia é o regime mais indicado, e 78% afirmam que o regime militar foi uma ditadura – todos esses dados de pesquisas recentes feitas pelo Instituto Datafolha.

O ex-banqueiro acredita que o cenário econômico caótico desmascarou a incompetência do ministro da Economia, Paulo Guedes. No entanto, Moreira não crê que haverá impeachment de Bolsonaro, por falta de interesse de grupos políticos à esquerda e à direita. A despeito da acomodação da classe política, ele vê o "antibolsonarismo consolidado".


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Resposta da classe artística, Estamos Juntos perdeu fôlego

"No mesmo dia eu recebi um telefonema do Douglas Belchior, da UNEafro, e outro do Luciano Huck. Se os dois enxergaram naquele movimento um ponto de encontro, era sinal de que muita gente cabia ali", relata o escritor e roteirista Antonio Prata, um dos que ajudaram a organizar o movimento Estamos Juntos.

A principal ação do movimento em 2020 foi publicar um enorme

manifesto nas páginas dos principais veículos de imprensa do país, fortalecendo princípios democráticos. O Juntos reuniu assinaturas de intelectuais e políticos de diferentes espectros ideológicos em favor da democracia.

Antonio Prata considera que naquele momento, maio do ano passado, reunir assinaturas de economistas à direita e à esquerda num mesmo manifesto foi um feito relevante. Segundo ele, no auge da pandemia era impossível colocar as pessoas nas ruas, mas havia um forte sentimento, sobretudo entre setores culturais, de que era necessário formular uma ação rápida e contundente contra o atual governo, que flertava com a ideia de golpe institucional.

O movimento Estamos Juntos ganhou adesão significativa da classe artística e se espalhou como rastro de pólvora. Foram criados milhares de grupos de WhatsApp por todo o país. No entanto, hoje, os criadores do Juntos já nem fazem mais parte desses grupos, e a discussão se perdeu. Ainda assim, o escritor considera que o movimento teve um significado relevante na conjuntura de 2020.

Prata pondera que há dificuldades quase intransponíveis quando se reúnem pessoas com pensamentos muito divergentes num único movimento, como foi o caso do Juntos. Além disso, a pandemia dificultou uma organização mais efetiva, acrescenta.

"Mas pra mim deu muito mais a ideia de que é possível fazer coisas do que é impossível", sintetiza. "Não tentaria reavivar aquilo. É muita gente diferente, cabeças diferentes. Não é a turma de ninguém. Não tem um grupo com pensamento e origem parecidas. Há outros caminhos [de resistência ao governo], mas foi ótimo, abriu muitas portas, contatos", acrescenta o escritor.


Protesto em São Paulo (SP). Foto: Elineudo Meira/@fotografia.75
Protesto contra Bolsonaro em Maceió (AL). Foto: Gustavo Marinho/Fotos Públicas
Protesto contra Bolsonaro em Maceió (AL). Foto: Gustavo Marinho/Fotos Públicas
Protesto contra Bolsonaro em Maceió (AL). Foto: Gustavo Marinho/Fotos Públicas
Protesto contra Bolsonaro em Maceió (AL). Foto: Gustavo Marinho/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto:Caco Argemi/CPERS/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto:Caco Argemi/CPERS/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto: Maí Yandara/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto: Maí Yandara/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto: Maí Yandara/Fotos Públicas
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Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto: Maí Yandara/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto: Maí Yandara/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto: Maí Yandara/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto: Maí Yandara/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto:Caco Argemi/CPERS/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto:Caco Argemi/CPERS/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto:Caco Argemi/CPERS/Fotos Públicas
Grito dos excluídos/Protesto em São Paulo (SP). Foto: Roberto Parizotti/Fotos Públicas
Grito dos excluídos/Protesto em São Paulo (SP). Foto: Roberto Parizotti/Fotos Públicas
Grito dos excluídos/Protesto em São Paulo (SP). Foto: Roberto Parizotti/Fotos Públicas
Protesto em São Paulo (SP). Foto: Elineudo Meira/@fotografia.75
Protesto em São Paulo (SP). Foto: Elineudo Meira/@fotografia.75
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Protesto em São Paulo (SP). Foto: Elineudo Meira/@fotografia.75
Protesto contra Bolsonaro em Maceió (AL). Foto: Gustavo Marinho/Fotos Públicas
Protesto contra Bolsonaro em Maceió (AL). Foto: Gustavo Marinho/Fotos Públicas
Protesto contra Bolsonaro em Maceió (AL). Foto: Gustavo Marinho/Fotos Públicas
Protesto contra Bolsonaro em Maceió (AL). Foto: Gustavo Marinho/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto:Caco Argemi/CPERS/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto:Caco Argemi/CPERS/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto: Maí Yandara/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto: Maí Yandara/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto: Maí Yandara/Fotos Públicas
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Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto: Maí Yandara/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto: Maí Yandara/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto: Maí Yandara/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto: Maí Yandara/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto:Caco Argemi/CPERS/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto:Caco Argemi/CPERS/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto:Caco Argemi/CPERS/Fotos Públicas
Grito dos excluídos/Protesto em São Paulo (SP). Foto: Roberto Parizotti/Fotos Públicas
Grito dos excluídos/Protesto em São Paulo (SP). Foto: Roberto Parizotti/Fotos Públicas
Grito dos excluídos/Protesto em São Paulo (SP). Foto: Roberto Parizotti/Fotos Públicas
Protesto em São Paulo (SP). Foto: Elineudo Meira/@fotografia.75
Protesto em São Paulo (SP). Foto: Elineudo Meira/@fotografia.75
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"Movimentos sofrem síndrome da paixão", diz filho de Herzog

Filho do jornalista Vladimir Herzog, morto na ditadura militar, o engenheiro Ivo Herzog também aderiu à onda de protestos contra Bolsonaro, mas tem uma visão bastante crítica, e amarga um pessimismo diante da apatia da sociedade brasileira.

"Eu realmente me engajei no Estamos Juntos, em meados de maio. Acho que esses movimentos sofrem da síndrome de paixão. É muito fácil se apaixonar, só que paixão tem data de validade. Não perdura. O que perdura é o amor. A paixão a gente mergulha, para de fazer tudo o que está fazendo, mas passa. Isso explica muitoesses movimentos, de maneira geral", diz.

Segundo ele, esses movimentos ganharam fôlego a partir de uma sequência de eventos negativos para o governo no ano passado, como a saída de Sergio Moro do governo, as trocas sucessivas no Ministério da Saúde, a falta de respostas na pandemia e a "flagrante intenção de Bolsonaro de atentar contra a democracia".

Para ele, o movimento Estamos Juntos cresceu muito rapidamente, o que desestrutura qualquer iniciativa. Além disso, pontua, por envolver muitas "celebridades", houve uma guerra de egos nos bastidores do movimento que prejudicou as articulações. "É isso. Perdeu o foco, se perdeu nas discussões, se queimaram pontes. Foi uma paixão avassaladora. Normalmente paixão dura dois anos. Aquela durou dois meses."

Herzog afirma que os pressupostos do movimento eram interessantes e que ele sempre insistiu na necessidade de manter uma ação suprapartidária. Defender nomes e partidos, sustenta, gera distanciamento, e não aproximação. "Nossa luta é contra esse obscurantismo, todo esse processo em que começamos a andar para trás, desde o governo Temer, na verdade", completa. 

Empobrecimento democrático

Para Herzog, é pouco provável que a sociedade civil consiga se articular de forma efetiva em 2022 contra Bolsonaro.

"Estou muito descrente. O que vai acontecer é que vamos entrar em 2022 gastando 10% do nosso tempo brigando com Bolsonaro e 90% brigando entre a gente, para ver quem vai ser o cara [candidato à Presidência]. E não vai se discutir conteúdo."

Ainda assim, Ivo Herzog acha que Bolsonaro não se reelegerá, mas o Brasil perderá a chance de debater coletivamente uma proposta de país.

"Não existe uma casa no Brasil para se debater as ideias. Os partidos políticos não são mais isso. Estão atrás de pessoas que tragam votos. Não interessa se o cara usa suástica ou a estrela de Davi. É uma loucura, e o eleitor com um mínimo de consciência se afasta deste processo", lamenta.

Para ele, o fato de o ex-presidente Lula ser "a mesma solução política há 30 anos" é sinal do empobrecimento democrático do Brasil.

"Claro que o Lula de 1989 não é o Lula de hoje, mas é uma loucura você pensar que é o mesmo cara. É desanimador. E olha as alternativas postas... Não dá para pensar no PSDB que faz Bolsodoria. O braço direito do [Geraldo] Alckmin em São Paulo era o [ex-ministro do Meio Ambiente] Ricardo Salles", critica.

Há décadas, conclui Herzog, "o Brasil normaliza o absurdo". "Não vejo ninguém fazendo uma reflexão bem estruturada para esse país."

Fonte: DW Brasil
https://www.dw.com/pt-br/o-que-alcan%C3%A7aram-os-movimentos-anti-bolsonaro/a-59837165


Eliane Brum: O rompimento do mundo dos humanos

Como a apreensão religiosa da realidade destrói a linguagem e ameaça o enfrentamento de nossa própria extinção

Eliane Brum / El País

No princípio era o verbo. A frase que abre o primeiro capítulo do Evangelho de João e remete à criação do mundo, assim como também faz o Gênesis, é a mais famosa da Bíblia. A ideia de que o mundo é criado pela palavra, porém, é tão estruturante que está presente em outras religiões, para muito além das fundadas no cristianismo. Como humanos, a linguagem é o mundo que habitamos. Basta tentar imaginar um mundo em que não podemos usar palavras para dizer de nós e dos outros para compreender o que isso significa. Ou um mundo em que aquilo que você diz não é entendido pelo outro, e o que o outro diz não é entendido por você, para alcançar o que é ser reduzido a sons porque as palavras perderam seu significado e, portanto, se tornaram fantasmagorias. Quando uso a palavra “dizer” não significa apenas falar, porque a gente se diz com palavras, de várias maneiras para além da fala. Mais ainda do que o mundo que habitamos, a palavra é o que nos tece. Aquilo que chamamos mundo é uma trama de palavras.

O que acontece então quando a palavra é destruída e, com ela, a linguagem?

Essa é a experiência do bolsonarismo, nome dado no Brasil a um fenômeno que se dissemina no planeta, ganhando em outros países nomes de outros déspotas. Os personagens que emprestam nomes locais ao fenômeno são importantes e, em cada país, há particularidades. Mas o fenômeno precede aqueles que o encarnam e, infelizmente, irá além deles. É neste contexto que busco interpretar o Nobel da Paz dado a dois jornalistas que lutam pela busca da verdade contra ditadores eleitos que têm na destruição da palavra seu principal meio para alcançar e se perpetuar no poder.

Eliane Brum: Como funciona o golpe de Bolsonaro

A filipina Maria Ressa está proibida de sair de seu país, já foi presa duas vezes e pagou fiança outras sete por combater com jornalismo o governo de Rodrigo Duterte. Ela é editora do site de reportagem investigativa Rappler. O russo Dmitri Muratov dirige o jornal Novaia Gazeta, que ousa confrontar com fatos o regime de Vladimir Putin. Desde 2001, seis repórteres do jornal foram assassinados. A escolha de dar o Nobel a esses dois jornalistas que são símbolos da resistência contra a opressão em seus países é uma declaração da importância da imprensa para a democracia. O Nobel, prêmio que destaca aqueles que colaboraram para o bem comum, representa o conceito de humanidade consolidado ao longo do século 20. Como bem comum e democracia se tornaram uma espécie de irmãos siameses no mundo do pós-guerra, um prêmio a jornalistas no Nobel da Paz faz todo sentido. Mas em que momento chega esse prêmio à imprensa, na conturbada terceira década do século 21?

A justiça da premiação a esses dois jornalistas é inegável. A escolha de valorizar a imprensa como pilar da democracia e, assim, valorizar a busca das verdades, assim mesmo no plural, e a importância dos fatos, num momento em que um e outro estão corroídos, também. A questão é: quem escuta?

Se jornalistas são atacados e desqualificados, se outros são presos e outros ainda executados é porque a imprensa ainda tem impacto sobre a sociedade. Suspeito, porém, que estamos chegando, pelo menos no Brasil, a um momento ainda mais grave. Para uma parte da população, a imprensa já não importa em nada. Todas as iniciativas de expor a mentira das chamadas fake news, entre elas as agências de checagem, são muito importantes. Mas são muito importantes apenas —ou pelo menos principalmente— para aqueles que respeitam os fatos e já sabem que aquelas notícias são falsas. Para todos os outros, já houve uma decisão prévia de que tudo o que a imprensa publica é falso. Esta é a razão pela qual em golpes como o de Jair Bolsonaro não é necessário censura, como aconteceu em ditaduras passadas, já que para essa parcela da população nada que seja estampado nas manchetes dos jornais vai colar.

Isso não significa que os jornalistas deixarão de correr riscos. Como o governo Bolsonaro mostrou, os ataques são necessários para manter o apartheid político ativo. Se forem contra jornalistas mulheres, melhor ainda, na medida em que a misoginia e o machismo rendem votos para Bolsonaro. É importante que a base de seguidores seja mantida em estado de ódio constante e seja lembrada, também de forma constante, que a imprensa “só diz mentiras”. A estratégia torna mais fácil fabricar “fatos alternativos” como se verdade fossem. “Fatos alternativos” são impossibilidades lógicas. São também mentiras facilmente desmontáveis, como as agências de checagem demonstram toda vez. Mas, se uma parte da população não lê nem vê nem escuta, de que adianta?

O que está em jogo é algo mais profundo: uma mudança na forma de apreensão da realidade, que confronta os pilares que forjaram a imprensa e o funcionamento da sociedade moderna. Por uma série de razões, o verbo que progressivamente passou a mediar uma parcela significativa das pessoas na sua relação com a realidade é “acreditar”. Não mais os verbos iluministas do duvidar, investigar, testar, confrontar, comparar etc. Mas acreditar. É uma mediação religiosa da realidade, determinada pela . A crença se antecipa aos fatos, e assim os fatos já não importam. É como se as pessoas passassem a ler a realidade da mesma forma que leem a Bíblia. Esta é a razão que determina a crise da imprensa, da ciência e de outros fundamentos que constituíram a modernidade, baseados na investigação e no questionamento constante, para os quais a dúvida é que move o processo de apreensão da realidade e de construção do conhecimento sobre o mundo.

É claro que essa mudança tem relação com o crescimento de um determinado tipo de religião, no Brasil marcadamente a expansão do neopentecostalismo de mercado, através de denominações religiosas produzidas por essa fase ainda mais predatória do capitalismo. Na minha interpretação, porém, a mediação da realidade pela fé é (não só, mas) principalmente sintoma da transfiguração do planeta pela crise climática. Ainda que a maioria das pessoas não seja capaz de nomear os impactos dessa monumental mudança em suas vidas, todos estão sentindo que o mundo que conhecem se desfaz debaixo dos pés. Mesmo para aqueles que a vida cotidiana sempre foi muito dura, a dureza desconhecida é ainda mais brutal do que a conhecida. No desamparo, em que também as instituições se desfazem, resta crer. E resta crer mesmo para aqueles não religiosos, no sentido estrito. E resta crer não apenas numa religião, mas em uma realidade que, se não é real no sentido de corresponder aos fatos, se torna real para quem nela acredita. Nesta proposição, a mediação da realidade pela crença seria uma adaptação à emergência climática que, em vez de enfrentá-la, a agrava.

Como já escrevi mais de uma vez, os ditadores eleitos que alcançaram o poder pelo voto a partir da segunda década do século são vendedores de passados que nunca existiram porque não têm futuro para oferecer, já que as forças que representam são as principais responsáveis pela alteração do clima e da morfologia do planeta. No caso de Jair Bolsonaro, principalmente os setores do agronegócio predatório e da mineração. A aliança alcançada no bolsonarismo entre agronegócio, mineração, corporações transnacionais de agrotóxicos e produtos ultraprocessados e grandes pastores do neopentecostalismo de mercado não é um acaso. Em comum, essas forças buscam seguir avançando sobre a natureza e lucrando num momento em que são confrontadas pela corrosão do planeta. No Brasil, especialmente pela destruição da Amazônia, que pode chegar ao ponto de não retorno nos próximos anos. Mas também a destruição persistente de outros biomas e de seus povos, como o Cerrado e o Pantanal.

Só a mediação da realidade pela crença pode garantir a continuidade da exploração e do lucro pelas grandes corporações capitalistas num momento em que o planeta superaquece devido a suas ações. É por isso que parte dos executivos de corporações transnacionais toleram a companhia pouco refinada dos pastores de mercado e principalmente de uma criatura tosca como Jair Messias Bolsonaro, que tem levado a crença como ativo político ao paroxismo. A palavra “seguidores”, tomada emprestada das seitas e religiões pelas redes sociais, tornou-se sinalizadora de um fenômeno na política em que mesmo os ateus se comportam como crentes. Pela tomada da política pela mediação religiosa, ironicamente a mais famosa frase bíblica foi traída. No princípio era o verbo. Mas então o verbo passa a ser sistematicamente destruído como projeto de poder.

Nessa fase, portanto, ainda é necessário bater na imprensa e trabalhar para a desqualificação de jornalistas. Talvez numa segunda fase já não será mais preciso, na medida em que a imprensa poderá seguir importante, mas apenas para uma bolha, e com dificuldades cada vez maiores para penetrar em universos além dela. Este é hoje o grande desafio do jornalismo e do mundo que produziu a imprensa como a conhecemos.

As próximas eleições quase certamente ampliarão o fosso no mundo dos humanos. A ótima reportagem sobre o avanço do Telegram entre a extrema direita global, publicada no jornal O Globo, aponta a estratégia em acelerada execução. Sem representação legal no país nem moderação de conteúdo, o Telegram não respondeu às tentativas de contato da Justiça brasileira. Com grupos para até 200 mil pessoas e canais com capacidade ilimitada de inscritos, o Telegram é o mundo perfeito para a propaganda em massa sem a necessidade de atender à legislação dos países. Subverte, em nome da “liberdade de expressão”, o próprio conceito de liberdade de expressão, em que limites precisam ser respeitados para que o crime não se imponha. No Telegram, por exemplo, circulam livremente vídeos com pornografia infantil, assim como armas são comercializadas sem nenhuma normatização e fiscalização.

A partir das denúncias do uso ilegal do WhatsApp na campanha de Bolsonaro, em 2018, o aplicativo de mensagens de Mark Zuckerberg tomou algumas medidas para impedir ou pelo menos controlar minimamente a disseminação de fake news para uso eleitoral. Como alternativa para a eleição de 2022, Bolsonaro passou a apostar então no Telegram: na semana passada, seu canal no aplicativo bateu a marca de 1 milhão de seguidores. Fundado em 2013 na Rússia pelos irmão Nikolai e Pavel Durov, com sede em Dubai, nos últimos anos o Telegram teria mudado de jurisdição várias vezes para escapar de qualquer regulação. Os auxiliares de Bolsonaro hoje trabalham arduamente para construir na plataforma uma base de crentes políticos capazes de levá-lo à reeleição. Donald Trump, por sua vez, depois da criminosa invasão do Capitólio, foi banido das redes sociais Twitter e Facebook, por meio das quais propagava suas mentiras e insuflava seus seguidores. Seu ex-conselheiro, Jason Miller, lançou então neste ano uma nova rede social, a Gettr. Em setembro, Miller foi recebido por Bolsonaro no Palácio do Alvorada.

É na internet que está sendo forjada uma realidade sem lastro nos fatos. Neste ato em processo, os pilares do mundo que conhecíamos são corroídos. Entre eles, a imprensa, a ciência e a democracia. É importante fazer a ressalva de que obviamente não vivíamos num mundo maravilhoso que foi corrompido por homens do mal. A democracia nunca chegou para todos. É notório que grande parte da população brasileira viveu na arbitrariedade das forças policiais mesmo após a redemocratização do país e também sem acesso a direitos básicos. O mesmo vale para outros países, inclusive para as parcelas pobres de países considerados ricos, como o brutalmente desigual Estados Unidos.

No Brasil, a imprensa —branca, majoritariamente liberal, liderada preferencialmente por homens e com posições ocupadas pelos filhos da classe média que puderam chegar à universidade e, mais recentemente, aos MBAs nos Estados Unidos e na Europa— nunca representou a diversidade da sociedade brasileira, deixando largas camadas fora dela e dando diferentes valores à vida humana. Basta ver o espaço dado à morte dos ricos (e brancos) e à dos pobres (e pretos), à vida dos ricos (e brancos) e à dos pobres (e pretos). Só recentemente, por pressão externa, a imprensa tem aberto espaço aos negros, maioria da população, e começado a se abrir para a diversidade de gênero. Vale dizer ainda que, disposta a defender seus lucros e interesses, no Brasil as principais famílias que dominam a mídia impediram o avanço do debate da regulamentação da imprensa como se fosse um atentado à liberdade de expressão e, assim, uma grande parte das concessões públicas de TV é usada (e abusada) pela mais nefasta doutrinação religiosa disseminadora de teorias conspiratórias e anticientíficas.

A ciência tampouco escapa de um olhar crítico. É responsável direta pela emergência climática, processo de alteração do clima e da morfologia do planeta iniciado na Revolução Industrial e acelerado no século 20. Sem contar que fez muitas promessas que não foi capaz de cumprir —e ainda faz. Em países como o Brasil, em que a educação é uma tragédia jamais enfrentada com o investimento necessário, a maior parte da população não é capaz de compreender a ciência que impacta a sua vida e jamais houve preocupação suficiente de seus agentes para mudar esse estado geral de ignorância por falta de acesso à informação científica inteligível.

Isso não significa, porém, que a democracia, a imprensa e a ciência sejam menos do que essenciais para a criação de um futuro em que possamos viver. Com todas as suas falhas, omissões e exclusões, esses três pilares conectados são parte do melhor que a humanidade produziu. É (também) com muita ciência, obrigatoriamente contando com o conhecimento ancestral de povos-natureza, como os indígenas, que temos alguma chance de enfrentar o superaquecimento global e a monumental perda de biodiversidade. É também dentro da própria imprensa que têm surgido as melhores críticas à imprensa. A melhor forma de enfrentar os problemas da imprensa é com jornalismo da melhor qualidade, feito com rigor e honestidade. Ampliar a democracia é também o melhor caminho disponível para enfrentar sua crise. E, num momento de ecocídios em curso, é preciso ampliá-la também para outras espécies.

Durante séculos, em diferentes sociedades e línguas, é importante lembrar, a linguagem serviu —e ainda serve— para manter privilégios de grupos de poder e deixar todos os outros de fora. Quem entende linguagem de advogados, juízes e promotores, linguagem de médicos, linguagem de burocratas, linguagem de cientistas? A maior parte da população foi submetida à violência de propositalmente ser impedida de compreender a linguagem daqueles que determinam seus destinos. E então surgem criaturas como Jair Bolsonaro e outros que falam na língua que são capazes de entender. E mentem na língua que entendem. E dizem que é ótimo não entender nada sobre quase tudo. Parte da população decide, como reação, dar a pior resposta à sua exclusão fazendo e exercendo a exaltação da ignorância. Criam sua própria bolha de linguagem e passam a excluir todos os outros. É estúpido, mas é uma reação. Afinal, por séculos poucos se importaram que grandes parcelas das populações do planeta ficassem de fora da linguagem em que suas vidas eram decididas.

Ressalvas feitas, o momento é brutal. É na brutalidade do que vivemos que o Nobel da Paz dado a dois jornalistas pode ser interpretado como o grito desesperado de quem assiste a pilares como a imprensa desabarem. Não porque a imprensa deixará de existir, mas porque poderá ter impacto apenas sobre uma parte da população —o que é diferente do passado recente, em que também era feita e controlada por uma minoria, mas tinha impacto sobre o conjunto da sociedade. Trata-se em parte de uma reorganização dos espaços de poder, mas feita da pior maneira possível e, em grande medida, falsa, já que corrói a possibilidade de qualquer transformação real. Ao final, os principais beneficiados são minoritários e os mesmos de sempre, razão pela qual Bolsonaro continua no poder apesar de todos os seus crimes. Em um mundo em transtorno climático, as grandes corporações decidiram sacrificar parte de seus aliados históricos para manter um sistema que colocou a espécie diante da possibilidade de extinção.

Esse é o abismo do qual nos aproximamos. Estamos à beira de algo com a magnitude do rompimento da linguagem que une os humanos, para além das diferenças de língua: uma parcela da população global aderindo a uma realidade falsificada, mas que, pela adesão, passa a se tornar real. Tudo indica que as eleições de 2022, no Brasil, serão o laboratório de ensaio dessa nova fase da crise da palavra, para muito além do que se entende por polarização. Ao romper a linguagem com a qual é possível se encontrar, aquela que compartilha de uma base de significados de consenso baseado em evidências, sejam elas objetivas ou subjetivas, estamos diante de um fenômeno inédito. Num planeta em colapso climático, em que mais do que nunca é necessária uma linguagem comum para determinar o comum pelo qual lutar, a humanidade parece se dividir em duas gigantescas bolhas impermeáveis uma a outra.

Lutar pelo futuro é lutar no presente para que as palavras voltem a encarnar, permitindo uma linguagem comum. Não como antes, mas uma em que realmente caibam todas as gentes e suas diferenças, tornando o debate das ideias possível para a criação de conhecimento e de ação baseada em conhecimento. O que tínhamos não era justo e nos trouxe até esse momento limite. Para seguirmos existindo, teremos que ser melhores do que fomos e criar uma sociedade capaz de viver em paz com todas as forças de vida do planeta. Se o princípio é o verbo, o fim pode ser o silenciamento. Mesmo que ele seja cheio de gritos entre aqueles que já não têm linguagem comum para compreender uns aos outros.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de oito livros, entre eles Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago) e Banzeiro òkòtó, Uma Viagem à Amazônia Centro do Mundo (Companhia das Letras). Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum

Fonte: El País
https://brasil.elpais.com/opiniao/2021-10-14/o-rompimento-do-mundo-dos-humanos.html


Alberto Aggio: Resistência da sociedade é visível e vai continuar

Aggio fala do “mar da História” como instância aberta, como possível “reconstrução do passado” e discute o atual cenário político

Vanessa Maranha / Folha de Franca

A política é motor do funcionamento e palco dos reveses nas sociedades. O Brasil e o mundo têm vivenciado, sobretudo na última década, pela facilitação da comunicação em rede via Internet, o acirramento ideológico, a polarização das posições partidárias e também subjetivas por uma já evidenciada manipulação da percepção da realidade que as mídias possibilitam. Folha de Franca convidou o historiador Alberto Aggio, docente e autor de artigos e livros de relevância com foco na História Política da América Latina, um nome mais do que avalizado para pensar o Brasil e o mundo de hoje na esfera política em perspectiva temporal e factual. 

Formado em História pela USP, onde também fez mestrado e doutorado, é professor de História na Unesp/Franca desde 1987, na qual tornou-se Livre-docente e Titular. Atualmente, colabora como professor de pós-graduação no PROLAM da USP. Foi articulista do jornal O Estado de São Paulo. É colaborador da revista eletrônica Estado da Arte e criador e editor do Blog-Revista Horizontes Democráticos (www.horizontesdemocraticos.com.br).

Nesta conversa, a partir de seu arcabouço teórico e numa articulação lógica e ao mesmo tempo reflexiva, Aggio fala do “mar da História” como instância aberta, como possível “reconstrução do passado” e discute o atual cenário político. Ao longo de todo o texto há indicações de links para aprofundamento nos temas mencionados, discutindo a renovação na crença da democracia e defesa da mesma, retrocessos e sectarismos na atualidade, bem como as perspectivas para 2022, sem poupar críticas ao governo atual.

K. Marx e A. Gramsci

Folha de Franca – De que forma e por que se deu a sua escolha em estudar essa área? Quais são os pensadores que balizam o seu percurso?

Alberto Aggio – Desde minha mudança para São Paulo, em 1970, me interessei pela área de Humanas. Na escola média, o teatro e a escrita me interessaram muito. Com amigos fizemos ambas as coisas, mesmo depois de terminar a escola. A escrita ensaística de opinião foi o que mais me prendeu. Tornar-me professor foi uma questão profissional, de sobrevivência. Na minha formação e como professor universitário os autores que mais me influenciaram foram K. Marx, A. Gramsci, A. Tocqueville, E. Hobsbawm, G. Vacca, Luiz Werneck Vianna, dentre outros.

FF – Seus posicionamentos políticos se modificaram conforme seu percurso teórico e o próprio fluxo dos acontecimentos mundiais/nacionais? Em suma: como você se posicionava politicamente no início de sua carreira …

 AA – Não noto grandes mudanças, não. Reconheço-me desde sempre como um partidário da democracia e da mudança social, por mais igualdade, mais progresso e desenvolvimento. Lutei contra a ditadura, na periferia de São Paulo, ajudando a organizar a população e estimulando a cultura e as artes; na universidade, defendia uma luta intransigente pela democracia, mas sempre com realismo. Fui crítico à esquerda que aderiu a luta armada. Revendo essa trajetória, creio que há mais continuidade do que mudanças súbitas e profundas. É claro que a vida profissional e a dedicação aos estudos, à teoria, geraram mais solidez e ampliaram meus conhecimentos. Politicamente, sempre me mantive na defesa, consolidação e aprofundamento da democracia.

FF -A mídia de países como EUA e Inglaterra declara abertamente sua posição político-partidária. Como você avalia isso sob a ótica brasileira?

AA – São histórias políticas diferentes, culturas políticas distintas. Nesses países o embate entre correntes político-ideológicas foi mais incisivo e direto. Havia jornais que cumpriam a função de partidos, que formaram o seu público por longos anos. No Brasil não foi assim. Manter um jornal em circulação custa muito e somente empresas de comunicação podem suportar esses custos e nem sempre conseguem. Mesmo assim, o jornalismo de opinião faz parte da nossa grande imprensa, mas é uma parte pequena dela. Com a internet tudo se alterou radicalmente. Com ela é possível uma comunicação mais abertamente partidária. Mas também há uma dispersão maior.

FF – Como e por que, na sua avaliação, em nível de mundo e de Brasil chegamos a tal polarização política?

Manifestantes de extrema-direita em cidade européia

AA – Creio que há fatores mundiais e domésticos que se combinam. O fim do comunismo abalou muito as convicções e, por outro lado, aqueles que acreditaram que a História havia chegado ao fim perceberam que sua crença se despedaçava com as crises que se sucederam desde o início do século XXI. A pós-verdade se instalou e junto com ela o relativismo integral. Da crítica ao padrão civilizatório ocidental se evoluiu para a destruição dele, para a defesa de um passado imaginário, de rejeição à globalização, aos direitos humanos etc. Isso gerou um retrocesso cultural e humano imenso. Não há como não resistir a tudo isso. Mas é uma resistência difusa e, muitas vezes, confusa. Às vezes, atua de maneira tão sectária que faz o jogo desses novos “destruidores”, como é o caso dos chamados “identitarismos” de raça, de gênero, etc. Do meu ponto de vista, há um polo de destruição em ação (equivocadamente chamado de populismo) e a principal vítima é a democracia. Os “novos bárbaros” querem o fim dela ou sua mitigação e advogam por uma “democracia iliberal”. Ora, o essencial da democracia não ela ser liberal, é ela ser pluralista e representativa, sustentada por valores e regras consensuais. Como renovar nossa crença na democracia e saber defendê-la me parece que se tornou o nosso maior desafio.

FF – Como você avalia a evolução-involução da política brasileira sob uma perspectiva histórica e cultural?

AA – A política brasileira sentiu o impacto dessas mudanças globais e emergiu entre nós, com muita força, a antipolítica, em suas diversas faces. O PT foi um ator da antipolítica, instalou no país a lógica do “nós contra eles”, foi hegemonista e majoritarista. Essa prática feriu de morte a democracia que estava sendo construída à base de consensos, como foi o conquistado pela Constituição de 1988. E então veio o bumerangue: a reação da ultradireita. Creio que a ruptura da frente democrática na primeira eleição pós-ditadura abriu espaço para essa involução. O país enfrentou vários desafios de lá para cá, venceu alguns, mas estruturalmente permaneceu muito desigual socialmente. E, fundamentalmente, a democracia da Carta de 1988 não está consolidada como cultura política na sociedade. Vide esse movimento da extrema-direita que conseguiu galvanizar massas e ganhar a presidência da República. Com Bolsonaro o grau de destruição e de ameaça à democracia tornou-se dramático. Não haverá possibilidade de retomar o “fio da meada”, como escreveu Luiz Werneck Vianna, sem que se ultrapasse o equívoco que a sociedade cometeu em 2018.

FF – De que forma, a seu ver, pode ser definido o atual cenário político brasileiro? Estamos às voltas com um autocrata que sonha uma teocracia?

Bolsonaro em uma das suas motociatas

AA – Somos governados por um personagem que se coloca fora do campo das forças políticas democráticas, mesmo as de direita. Bolsonaro é um parasita das estruturas do Estado Democrático de Direito, é um homem de facção, vive para seus apoiadores mais diretos, não se configura como o líder de uma Nação, não é um estadista. No início do seu governo, eu cheguei a imaginar que iríamos por esse caminho, de uma teocracia. Escrevi até um artigo em que comparava Bolsonaro com Girolamo Savonarola, um pregador ultracatólico que queria moralizar a Florença da época dos Medici (https://horizontesdemocraticos.com.br/do-fantasma-pinochet-ao-risco-savonarola/) . Chegou ao poder, mas durou pouco; mandou muita gente para a fogueira, mas depois foi lá que ele foi parar. Mas a vinculação de Bolsonaro com as igrejas me parece pragmática, instrumental e utilitária. E hoje, felizmente, ele não galvaniza mais o apoio de antes.

FF – Quais são seus prognósticos para 2022?

AA – Ao que tudo indica caminhamos para um regresso ao passado se a disputa eleitoral se concentrar entre Bolsonaro e Lula. Bolsonaro é em si mesmo o passado, o atraso; enquanto Lula expressa um retorno ilusório a um período que não volta mais (https://horizontesdemocraticos.com.br/quando-o-regresso-se-impoe/) . De qualquer forma, entendo que, para o bem do país, Bolsonaro tem que ser derrotado nas urnas. Penso que a eleição tem que assumir um caráter plebiscitário: deve ser um “não” a Bolsonaro (https://horizontesdemocraticos.com.br/uma-eleicao-plebiscitaria/) . Em segundo lugar, a sociedade deve refletir sobre como quer encontrar o tal “fio da meada”: salvar a democracia, retomar a luta pela equidade, pela sustentabilidade, retomar o crescimento e recuperar a nossa inserção internacional. E isso sem ilusões e sem demagogia, com olhos voltados para a retomada da economia global no pós-pandemia. O processo está em curso e não sabemos se os atores políticos e a própria sociedade estarão conscientes desse quadro e à altura dos seus desafios.

FF – Em artigo que você publicou recentemente sobre Antonio Gramsci, você o coloca como valor representação, numa basilar simbólica das esquerdas. Falo no plural porque, no seu texto você sugere uma pluralidade de esquerdas de vários matizes, inclusive aquela que deturpou o pensamento gramsciano. Por favor, resuma ao nosso público leitor a ideia central dessa discussão.

Imagem da capa da edição brasileira dos Cadernos do Cárcere

AA – Antonio Gramsci foi sempre um autor de referência, um clássico. Ele foi publicado no Brasil em diversas edições desde a década de 1960. É um autor póstumo. Morreu em função da prisão imposta por Mussolini. Sua recepção no Brasil tem uma história político-cultural que precisa ser conhecida e é isso que tentei fazer nesse artigo que você mencionou (https://horizontesdemocraticos.com.br/o-gramsci-que-conhecemos-e-o-que-ele-inspirou/) . Ele influenciou a esquerda brasileira, especialmente no período de luta contra a ditadura. Ajudou a pensar que tipo de formação social era a nossa e como a democracia aqui é difícil, mas imprescindível. Há diversas correntes interpretativas sobre seus escritos. Algumas o tem como um revolucionário comunista, movimento ao qual, de fato, ele esteve vinculado. Outros, já o veem como um pensador que escapa ao comunismo e se vincula aos desafios da contemporaneidade, na qual a democracia é uma forma política que nos auxilia a vencer os traços oligárquicos e excludentes que ainda existem na sociedade atual.

FF – Quando você menciona, ainda nesse texto, uma “revolução passiva à brasileira” a que exatamente se refere?

AA – A expressão é de Luiz Werneck Vianna. Para esse autor, o Brasil nunca teve uma revolução, no sentido convencional do termo. O Brasil é um exemplo paradigmático da “revolução passiva”, um conceito presente nos seus Cadernos do Cárcere de Antonio Gramsci. Nele está a ideia de que a História moderna muda por meio de processos nos quais a conservação controla os ímpetos maiores de transformação da sociedade. E isso assume diversas formas e dinâmicas, conforme a época. Há momentos de negatividade, de autoritarismo; e momentos de positividade, de reformismo e mudança. A “revolução passiva à brasileira” alude ao longo processo que vai da nossa Independência até os dias atuais, embora tenhamos que fazer um reparo: com Bolsonaro nem mesmo esse processo não-revolucionário de andamento da História existe; o que existe é simplesmente destruição e regressão.

FF – O que você diz da trajetória histórica do PT (Partido dos Trabalhadores)? O que você tem a dizer acerca do antipetismo?

AA – O PT é parte da história da redemocratização do Brasil. Ele se forma pela combinação de militantes da luta sindical no ABC paulista, das CEB da Igreja católica mais os egressos da luta armada dos anos 60 e 70. Tudo isso se junta aos novos seres sociais que emergem com a modernização conservadora impulsionada pelo regime militar, o famoso “milagre econômico”. Forjou-se então um grande partido de massas, com uma grande liderança que é o Lula. O problema esteve nas suas convicções democráticas e no reconhecimento de que a política, em especial a política democrática, é diferente da luta sindical, da prática religiosa ou da militância radical dos guerrilheiros. E mais: a compreensão do Brasil necessitava mais do que a vontade de transforma-lo. E então veio a vitória de 2002 e o desafio de governar o país. A política cobrou seu preço. A saída foi desastrosa: Mensalão, Petrolão, etc…; o PT apostou na compra dos outros atores políticos para ter sustentação. Fez uma opção antidemocrática e antirrepublicana. Acabou desmoralizando a esquerda. O impeachment de Dilma é um desdobramento disso. Aí emergiu o monstro que já existia entre nós. Das manifestações de 2013 ao impeachment a ultradireita ganhou espaço e se firmou por meio do antipetismo que se desdobrou em antiesquerda, em antidemocracia. E aí estamos.

Bolsonaro e Trump, duas expressões da extrema-direita

FF – As eleições de Trump nos EUA e de Bolsonaro no Brasil trouxeram a marca da manipulação algorítmica que as redes sociais propiciam. O documentário Privacidade Hackeada (Netflix) denuncia como a extrema direita de lá e de cá, assessorada por Steve Bannon, polarizou a opinião pública a partir de perfilamento psicológico dos usuários das redes e compartilhamento desses dados para manipulação das mentalidades. Podemos falar, nesse sentido, em estelionato eleitoral? O que você tem a dizer sobre isso?

AA – Tudo isso é verdade. Há uma clara influência dessas iniciativas manipuladoras no processo eleitoral de 2018, mimetizando o que ocorreu nos EUA. Mas não vejo aí um “estelionato eleitoral”. Creio que a situação brasileira guarda especificidades. Além de se sustentar no antipetismo, Bolsonaro manifestou uma série de ambiguidades: foi mais corporativo do que um liberal-reformista, como pregava no seu discurso eleitoral. Creio que aqueles que se dizem liberais podem dizer que foram enganados. Da mesma forma, aqueles que votaram em Bolsonaro para continuar a luta contra a corrupção. A ruptura com Sergio Moro e as denúncias de corrupção dos Bolsonaros e mais o que tem revelado a CPI da Covid mostram que o descrédito do presidente tem razão de ser.  

FF – O movimento da História é mesmo pendular? A cadela do fascismo está sempre no cio, como vaticinou Bertolt Brecht?

AA – O fascismo é sempre um perigo e temos que estar atentos. No momento em que os democratas não conseguem sustentar a democracia, o fascismo pode emergir e vencer. A História é aberta em todos os sentidos. Não é repetível, nem como tragédia nem como farsa. Essa foi uma imagem usada por Marx para ilustrar uma situação específica. A História também não é “um carro alegre com um povo contente que atropela indiferente todo aquele que a negue”, como cantou Chico Buarque referindo-se à Cuba revolucionária. A História é simplesmente desafiadora. Em termos acadêmicos e sociais penso que a História não pode ser vista como reprodução do passado. Ela é uma reconstrução do passado e tem seus métodos reconhecidos.

Manifestantes protestam contra Bolsonaro

FF – O que você diria sobre a mentalidade do brasileiro dentro da perspectiva da História das Mentalidades, no que tange à política?

AA – É difícil dizer que o brasileiro tem uma única mentalidade. O brasileiro é multifacetado. Reconhecemos que padece de algumas dificuldades do ponto de vista de valores coletivos. É a expressão de uma História difícil, com traços singulares de adaptação e atualização à dinâmica do mundo.

FF- Como você avalia as últimas manifestações como a de 02 de outubro?

AA – Acho que as manifestações de 02 de outubro ficaram aquém do esperado. Mas elas se generalizaram pelo país e houve participação. As oposições estão muito divididas, com projetos eleitorais particulares que dificultam uma mobilização unificada. A pandemia e o governo Bolsonaro machucaram muito a população. Mas a resistência da sociedade é visível e vai continuar. Acho que a dinâmica eleitoral vai se impondo com os diversos candidatos e a ideia de uma mobilização única contra Bolsonaro vai se diluindo. Fica claro que o impeachment não virá. O que não significa que a oposição a Bolsonaro irá arrefecer.

Fonte: Folha de Franca e Blog Horizontes Democráticos
https://folhadefranca.com.br/secoes/colunas/alberto-aggio-a-resistencia-da-sociedade-e-visivel-e-vai-continuar/

https://horizontesdemocraticos.com.br/a-resistencia-da-sociedade-e-visivel-e-vai-continuar/


Cristovam Buarque: Paulo Freire, hoje

A partir de Freire, educar passou a ser o mesmo que caminhar para a liberdade: dos que se educam e do mundo que eles construíram

Cristovam Buarque / Correio Braziliense

São raros os pensadores cujas obras atravessam o tempo: Paulo Freire é um desses. Por isso, estamos comemorando seu centenário. Eles têm em comum o fato de mostrarem o mundo de uma maneira diferente de como ele aparecia antes. Como Copérnico, que mostrou que a Terra girava ao redor do Sol, o que parecia impossível à época. Com ineditismo, Paulo Freire mostrou que a educação não se faz apenas do professor para o aluno, mas em uma interação entre eles e as coisas que os rodeiam. A partir dessa visão, revolucionou a maneira de alfabetizar os adultos. 

No lugar dos velhos métodos de ensiná-los como se faz com crianças, ele formulou o seu método: substituir o professor que chega com a cartilha pronta, por uma construída depois de pesquisa, identificando palavras que o aluno usa no seu dia a dia. No lugar de u-v-a igual a uva, m-a-n-g-a igual a manga, no lugar de n-e-v-e igual a neve, usar f-o-m-e como fome. Essa mudança simples, que hoje parece óbvia, representou uma mutação epistemológica, característica de um gênio. Paulo Freire deu o toque de mudança para explicar o mundo e dizer como transformá-lo. 

Não ficou apenas nisso. Paulo Freire promoveu outro ponto de mudança ao sugerir que educar é mais do que instruir, é também dar passos para a liberdade das pessoas que se educam. Antes de Paulo Freire, a educação era um instrumento para ensinar crianças a sobreviverem e contribuírem na construção de um mundo melhor, mais rico e mais belo. Mas ele ensinou que educação é o vetor da libertação de cada pessoa ao conhecer, deslumbrar-se e agir. A partir de Freire, educar passou a ser o mesmo que caminhar para a liberdade: dos que se educam e do mundo que eles construíram. 

Paulo Freire juntou filosofia libertária com o método de alfabetizar, na realização desse processo libertário. Com o u-v-a igual à uva, o aluno tem mais dificuldade, mas pode mesmo assim se alfabetizar, mas ao descobrir que f-o-m-e é igual à fome ele aprende mais facilmente e adquire consciência de sua situação no mundo, das injustiças que sofre e da necessidade de lutar para ir em direção à liberdade, inclusive das necessidades essenciais à vida. 

Com Freire, o papel da educação passou a ser o de ampliar o horizonte da liberdade da pessoa, de seu povo e da humanidade inteira. Ele mostrou também que o aprendizado é resultado da convivência entre o aluno e o professor, sem submissão de um ao outro, com o mundo onde eles vivem. Com essas duas formulações - educação que liberta e que é feita pelo professor junto com o aluno, em sintonia com o que há ao seu redor - Paulo Freire é o Copérnico da educação. 

Depois de Paulo Freire, a alfabetização passou a ser o passo inicial da libertação. Ter visto o que não era visto antes, faz dele um gênio. A partir dele, cabe a nós avançarmos na definição do conceito de analfabetismo, e ampliarmos o uso das novas ferramentas para promover a “alfabetização contemporânea”. Nos tempos dele, analfabeto era quem não sabia decifrar as letras, no mundo global e tecnificado que surgiu deste então, o “alfabetizado contemporâneo” precisa ler, falar, entender, escrever bem seu idioma, falar pelo menos um idioma estrangeiro, conhecer as bases da matemática, das ciências, das artes, das ideias do mundo; ser capaz de entender os problemas, os desafios e os rumos da civilização em sua globalidade e sua interação com a natureza; dispor das habilidades necessárias para exercer pelo menos um ofício e ser capaz de continuar aprendendo até o final de sua vida. 

Esta “alfabetização contemporânea” exige uma educação com a máxima qualidade para todos: quebrar a injustiça com pessoas, ao negar educação a uma parte da população, e parar a estupidez social de desperdiçar o potencial de conhecimento dos que são deixados para trás. Além de aproveitar as modernas tecnologias da teleinformática, a “alfabetização contemporânea” exige assegurar a chance de escola com a máxima qualidade e qualidade igual para toda criança, do dia em que nasce até o final do ensino médio, independentemente da renda, do endereço, da raça e do gênero. Para tanto, será necessário que o Brasil disponha de um Sistema Público Nacional Único de Educação, sem o qual não será possível a máxima qualidade, ainda assegurar equidade plena. 

Paulo Freire foi o gênio educador, sua obra e o mundo precisam agora de educacionistas ativos para abrir os caminhos da liberdade para todos. 

*Professor Emérito da UnB e membro da Comissão Internacional da Unesco para o futuro da educação. 

Fonte: Correio Braziliense
https://www.correiobraziliense.com.br/opiniao/2021/10/4953439-cristovam-buarque-paulo-freire-hoje.html


Paulo Fábio Dantas: Fusão na direita, campanha na esquerda, hora H no centro

Negar a Bolsonaro a chance de chegar a um segundo turno seria, a meu ver, o argumento mais lógico da esquerda lulista para bombardear a terceira via

A maioria das pesquisas está indicando que se a eleição fosse hoje, Lula ganharia no primeiro turno. Portanto, Bolsonaro estaria fora e ninguém da chamada terceira via decolaria. Esse é o retrato atual da realidade. Em resposta a interpretações fatalistas sobre o sentido dessa informação real, o pré-candidato Ciro Gomes lembrou que pesquisa é retrato, a vida é filme. Esta coluna tem argumentado na mesma linha há algum tempo e cheguei a usar essa mesma imagem a que o pedetista recorreu agora. Porém, as fotografias do momento têm sua relevância e vão se tornando cada vez mais persuasivas, à medida que vai ficando menor o tempo que nos separa da eleição. Daí não poderem ser ignoradas.

Um modo vesgo, no entanto, de considerar as boas notícias que pesquisas têm dado a Lula é ver, ao lado delas, como face reversa de uma mesma moeda, o que seria a “surpreendente” resiliência dos índices de intenção de voto em Bolsonaro. Essa surpresa é desatenta ao fato de tratar-se de presidente no cargo, manejando, sem senso de limites, recursos que o cargo lhe disponibiliza, não poucas vezes avançando em direção à ilicitude.  Comparativamente, sua performance pré-eleitoral tem sido menos atípica do que as derrocadas abissais acontecidas, em contextos bem diversos, nos casos de Fernando Collor e Dilma Rousseff. O argumento de que os crimes de responsabilidade do atual incumbente são incomparavelmente mais graves que os dos seus predecessores é veraz, mas não cancela a lógica do que está diante dos nossos olhos. É o exercício (o normal e o arbitrário) do poder a explicação para que, apesar dos seus crimes, Bolsonaro ainda conserve apoio político no Congresso e nível de aceitação popular para ir ficando no cargo, mesmo que a cada dia adicione, à sua maligna pobreza de espírito, a condição de alma penada. Vistas as coisas sob esse ângulo, boa parte da surpresa se dissolve. Entretanto, esse não é o ângulo político mais habitualmente adotado nas análises e sim o ângulo do espanto indignado.

Resulta, desse ângulo habitual, outra leitura imprecisa da fotografia do momento. A indignação conecta-se à legitima vontade, animada pelo impacto imediato das pesquisas, de que se faça uma espécie de justiça política, expondo o presidente golpista a uma derrota eleitoral acachapante, infligida pelo seu mais conspícuo oponente. Seu golpismo e sua antipolítica serem rejeitados pela opinião pública e pela esmagadora maioria da população não é bastante. Mesmo se essa condenação for capaz de nos livrar de sua presença nefasta na cena, não morre o desejo de execução explícita da sentença, pelo gesto redentor do voto na urna. Trata-se de desejo social que, além de compreensível, é politicamente positivo. Só não se pode dizer que as pesquisas estão a indicar que esse clímax coletivo ocorrerá.

O que aparece em todas as fotografias atuais (e nunca é demais lembrar que a vida é filme) é a vitória de Lula no primeiro turno. Elas mostram, além de uma virtual consagração do petista, duas virtuais inviabilidades: a primeira – de uma candidatura agregadora e competitiva da chamada terceira via - é apregoada aos quatro ventos por inúmeras análises que são música para Lula e o PT e, ao menos, unguento para o bolsonarismo. Mas a segunda – a virtual inviabilidade do próprio Bolsonaro chegar a um segundo turno - costuma ficar obscurecida pela imaginação desse duelo épico, sonhado por alguns, temido por outros. Mas apesar de desejos legítimos e vieses analíticos, as fotos não mentem.

Digo mais: das duas inviabilidades mostradas nas fotografias vejo a de Bolsonaro como maior porque a ele não basta ficar resiliente. Até para simplesmente ir ao segundo turno, precisa reverter o quadro declinante atual e ganhar pontos, o que, dado aquilo que mostram a tragédia social do país, o estágio atual e as perspectivas da economia, o relativo isolamento político do presidente e sua rejeição crescente junto ao eleitorado, parece ser bem mais difícil do que a duvidosa terceira via decolar. A prevalecer a visão dos céticos, de que tendem a ser mantidas as atuais condições de temperatura e pressão, Lula já poderia estar pensando em qual alfaiate contratar. E como o fatalismo anda em alta e o pragmatismo é previdente, forma-se fila para conseguir assento na suposta arca de Noé.

Apesar disso, não se pode ainda descartar que Bolsonaro vá a um segundo turno amparado em seus resilientes adeptos, mesmo que seja só para tomar uma surra eleitoral. Isso poderá ocorrer se a soma de votos dados a candidatos da chamada terceira via crescer um pouco, o suficiente para garantir a realização do segundo turno, mas sem que, por força da fragmentação desse campo, qualquer dos seus nomes ultrapasse Bolsonaro. Uma pesquisa Ibope da última quinta-feira, por exemplo, mostra que quando se admite um cenário com Sergio Moro candidato, Lula segue com intenções de voto suficientes para ganhar no primeiro turno, porém com menos folga, aproximando-se da margem de erro.

Negar a Bolsonaro a chance de chegar a um segundo turno para provocar arruaças no atacado ou a granel seria, a meu ver, o argumento mais forte e lógico da esquerda lulista para bombardear a terceira via com a obstinação que estamos vendo. O único contra-argumento possível, ao mesmo tempo realista e normativo (coisa risível para muitos),  é o de que um candidato de terceira via chegar ao segundo turno - ganhando ou perdendo para Lula - faria muito bem ao país, não só porque deixar de se classificar ao segundo turno seria uma contundente derrota política para Bolsonaro, como porque uma candidatura com postura e programa liberal-democráticos é contraponto à maré populista que tensiona o mundo atualmente, com a pretensão de minar a democracia representativa do constitucionalismo liberal e “refundar” a democracia em bases soberanistas. Esse é o sentido político que teria, neste momento, a agregação máxima possível entre centro-direita e centro, chame-se isso de terceira via, ou não.

Como evidência de que o inusitado é componente sempre possível de dada conjuntura política (sendo mais provável quando são conjunturas críticas) há gente na esquerda insinuando (ao menos em ambientes informais) que a iminente fusão DEM-PSL é biombo de uma conspiração para ressuscitar a jamais nascida candidatura do ex-juiz Sergio Moro. 

Talvez o desejo íntimo que subjaz a essa especulação seja o de que o justiceiro mítico, hoje opaco, cumpra o desiderato de distorcer e desqualificar a ideia de terceira via, sem direito a apelação. Mas conjecturar sobre uma candidatura que, se fosse possível, só interessaria a Bolsonaro (na medida em que facilitaria haver segundo turno) é um diletantismo que não ajuda a esquerda. A Lula, não tendo ele nada de amador, não deve agradar a hipótese dessa torcida crescer na sua cozinha. Se Moro entrasse no jogo – e isso poderia se dar mais por uso solitário de um atalho partidário como o do Podemos - até poderia mesmo jogar um jato de água na terceira via, mas poderia também, e mais provavelmente, jogar outro jato na chance, hoje muito real, de Lula vencer no primeiro turno. E Lula deve ter motivos para querer essa vitória antecipada, não por mera vaidade, ou por receio de efeitos colaterais da jactância morista, mas porque a vitória consumada em primeiro turno dar-lhe-ia tempo de usar disputas de segundo turno nos Estados para fazer alianças conciliatórias. Elas seriam imprescindíveis para dar estabilidade mínima a um governo seu, que não será, nem de longe, o futuro cor de rosa que ele tem prometido em sua performance populista nostálgica, até aqui a escolhida para o vôo sollo no primeiro turno.

Noves fora a insólita suposição de que políticos profissionais, dentre os quais o próprio presidente do Congresso Nacional, possam servir de agentes do projeto pessoal de um ex-juiz, carrasco da “política dos políticos” e com prestigio cadente,  a discussão da fusão dos dois partidos, além de objetivos pragmáticos ligados ao interesse de reeleição de deputados – interesse intrínseco a políticos que atuam numa democracia - sinaliza a disposição da direita brasileira de se reorganizar para fazer valer a sintonia momentânea que seu modo de pensar guarda, em muitos pontos, com o da maioria do eleitorado brasileiro, como foi demonstrado nas três diversas eleições realizadas de 2016 para cá. Tal inclinação conservadora do eleitorado não contradiz a imensa rejeição a Jair Bolsonaro, cuja atitude destruidora de instituições é uma antítese da atitude conservadora. Misturar duas coisas distintas para enxergar na rejeição uma evidente guinada do eleitorado à esquerda, ou mesmo ao centro, seria, no mínimo, uma imprudência analítica.   

Por isso, o pragmatismo que guia a iniciativa da fusão está longe de ser evidência de aproximação dos dois partidos a uma estratégia eleitoral de Bolsonaro ou mesmo do governo, se é que alguma estratégia desse tipo existe como plano A do golpista e da alcateia que o cerca. Parece, ao contrário, ser um modo de ambos os partidos se sentirem material e politicamente fortes para se afastarem de Bolsonaro. Ao mesmo tempo, DEM e PSL freiam o ímpeto de um concorrente de peso – o PSD de Gilberto Kassab – que vinha nadando de braçada, a oferecer boias e botes a náufragos da canoa governista. Nesse mar de águas turvas chega agora um navio de resgate maior. É previsível que o PSD coopere.

A operação, se de fato for consumada, mudará muita coisa (além do que a simples hipótese da fusão já muda) não apenas no palácio ou nas piscinas que o circundam, mas também em todos os campos e quadrantes partidários da política. São muitas - senão todas, exceto as duas nubentes – as forças que torcem ou operam para que a ideia malogre. É previsível que não só o governo, mas interesses distintos joguem firme, oferecendo vantagens, em alianças estaduais, à reeleição de deputados e senadores para atrapalhar a fusão e, se isso não for possível - como parece não ser - para reverter, ou ao menos reduzir, seus efeitos.

O diagnóstico e um dos prognósticos do ex-prefeito do Rio de Janeiro, César Maia, em entrevista a “O Globo”, são precisos: “DEM migrou para a direita e fusão com PSL será confusa”.  Bom de análise, como de hábito, o Maia original não tenta matar o mensageiro da má (para ele) notícia e faz várias observações perspicazes e realistas sobre possíveis percalços da fusão, sem deixar de admitir, porém, chances de êxito e relevância dos efeitos. Apenas deixou de completar seu raciocínio, por compreensíveis razões políticas que não desqualificam em nada a sua análise. É fato, sim, que o DEM desistiu de ter, ao menos nesse momento, o centro como aliança prioritária (até porque o tipo de reação do outro Maia, o Rodrigo, à sua sucessão na Câmara, tornou mais difícil esse caminho, que já era problemático) e resolveu olhar para a direita. A fusão com o PSL expressa essa escolha. Mas para o raciocínio analítico se completar é preciso ver que esse olhar para a direita, por mais confusões que haja a resolver na sequência, está sendo mais eficaz para tirar o DEM da órbita de Bolsonaro. Tudo bem, é pedir demais a Cesar Maia que, além de bom analista ele seja um político desprendido (contradição em termos) e um pai insolidário.

Quem quer realmente uma dita terceira via tem de saber que o relógio está contra ela e que não dá para perder tempo reclamando da fusão de um partido médio da centro-direita com uma direita mais explícita. Se a agregação não ocorrer pelo centro, tende a ocorrer mesmo pela direita. Será um desfecho sub ótimo, do ponto de vista do centro, que não tem sentido demonizar, a não ser que o sentido seja não o de agregar, mas o de concorrer com a centro-direita. Ademais, o DEM não está queimando seus navios ao se distanciar do centro. O aval à circulação do nome de Luiz Mandetta é demonstração disso. Mas as tranças que Rapunzel joga, ainda que como seu plano B, cairão no vazio se o centro democrático não for capaz de provar que agrega mais do que a direita.  Se não for capaz precisará considerar, com realismo, que essa agregação que a fusão e suas implicações conservadoras insinuam é, ainda assim, um desfecho mais interessante para si e para a democracia do que a guerra de fim do mundo do virtual segundo turno revanche de 2018 e melhor mesmo que o cenário, menos regressivo, de Lula vencendo no primeiro turno, tal como aparece nas fotos do momento. Há três coisas mais importantes hoje do que tentar imaginar agora quem, afinal, vencerá ou perderá as eleições. São elas a garantia de que as eleições aconteçam dentro das regras, a possibilidade de que aconteçam de modo civilizado, com o país já livre do espectro da reeleição de Bolsonaro e a inclusão, desde já, na agenda política, do debate da pauta do país, enfim, do que se quererá no pós-Bolsonaro.

Para quem não possui ânimo nem conexão governista e também está fora da órbita petista, assim desejando continuar, não existe outra opção além da de persistir fazendo política em dois planos. Um é o da frente democrática ampla, para defender, ao lado da esquerda, a democracia e o processo eleitoral dos perigos - não mais eleitorais, mas ainda institucionais – de desestabilização que o bolsonarismo, mesmo politicamente batido, pode causar através do fomento a um caos social e/ou à violência política. Outro é o da articulação e mobilização pré-eleitoral com foco na maior agregação possível do centro com a centro-direita, através de uma candidatura e de um programa capazes de dialogar também com forças de direita, de centro-esquerda, com pragmatismos do tipo centrão e, principalmente, com os eleitorados dos respectivos campos onde se situam essas forças.

Como já disse e nem precisava dizer, é um roteiro de duvidoso êxito. Acrescento que de complexa execução também e por esses dois motivos, é legitimo considerá-lo improvável. Mas mesmo que os vaticínios se confirmem, há aquela hipótese de agregação desse campo a partir de uma força de gravidade vinda, não dele mesmo, mas de uma estratégia de uma direita de vocação governista ainda não inteiramente desprendida de Bolsonaro, mas em trânsito a uma posição de centro direita, justamente para se desvencilhar dele. Em torno desse script do conservadorismo democrático circula a hipótese, por exemplo, da candidatura de Rodrigo Pacheco. A seu favor, a maleabilidade requerida em operações políticas delicadas, a postura não doutrinária em economia, além do discurso irretocável, tendo em vista os cânones do constitucionalismo liberal. Contra ele, a escassa penetração do seu nome em áreas populares e a percepção desfavorável da sociedade em relação ao Parlamento e a parlamentares em geral, variáveis cuja incidência só seria neutralizada pelo impacto de seu envolvimento positivo num fato ou processo politicamente decisivo.  Isso dá lugar a afinidades eletivas (embora não a nexos necessários) entre a ideia de sua candidatura e a hipótese de um impeachment com caráter e dimensões de processo cívico. Mas se o Senado seria o lócus decisivo desse eventual processo, é preciso que sua deflagração seja combinada com Artur Lira e “sua” Câmara. Nesse ponto a incerteza reina.

Independentemente do que cada eleitor, ou grupo de interesse, decida a respeito do seu voto ou apoio, uma via como essa (que não seria mais terceira, mas substituta da primeira via) pode ser vista também como boa notícia para o país, ainda que tenda a estar aquém da plataforma reformadora de cunho social-democrático, que a situação crítica da maioria dos brasileiros requer. Mas isso seria questão a debater e decidir na urna, possibilidade que é horizonte benigno em si, depois de tantos sustos tomados e tantos riscos corridos. Quem leu entrevista recente do ex-ministro Tasso Genro constatará que uma reflexão como essa não pode ser cancelada, simploriamente, como anti-lulismo. É uma reflexão orientada, ao mesmo tempo, por fatos e pelo compromisso com a democracia.

Mas costuma ser mais efetiva na esquerda uma atitude anti-liberal que vincula, tensa e pragmaticamente, o chamado lulo-petismo ao PSOL e a políticos como Guilherme Boulos, a partidos e quadros de organizações de esquerda sem expressão eleitoral, a ativistas de movimentos identitários e a analistas militantes do esquerdismo acadêmico. Trata-se de um maciço ideológico empenhado em não admitir que o "capitalismo" se saia bem da crise provocada por seus contrastes e potencializada pela emergência da extrema-direita global. Crise que é vista, por esses olhos gauche, em chave chinesa, como risco e oportunidade. Por essa ótica Biden pode ter sido aliado tático, mas já é e sempre será adversário estratégico, contra o qual vale até (para alguns mais ousados) ver algum sentido de libertação na luta do Talibã. Nisso acaba dando o fato da 'esquerda ocidental" - especialmente a dos campi universitários e a do hemisfério sul – ter, aos poucos, trocado o Manifesto Comunista (um texto que não xingava e sim analisava criticamente o capitalismo do seu tempo) pela atemporalidade, ou temporalidade recorrente, em aspiral, do I Ching. Filosoficamente, a escolha é livre e nela nada há de ruim. Politicamente, é apenas péssima.

*Cientista político e professor da UFBa.

Fonte: Democracia e Novo Reformismo
https://gilvanmelo.blogspot.com/2021/09/paulo-fabio-dantas-neto-baile-de.html


Eliane Brum: A ONU e o mundo se ridicularizam diante de Bolsonaro

Ao debochar da democracia em palco global, o presidente do Brasil cumpre sua agenda pessoal com louvor

Eliane Brum / El País

Ao comparecer a Nova York e abrir a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, Jair Bolsonaro foi apresentado no noticiário brasileiro e internacional como um pária do mundo, que comia pizza em pé na calçada porque não estava vacinado. Estou na contramão desta análise. O ultradireitista que governa o Brasil não envergonhou nem a si mesmo nem ao país. Me parece exatamente o oposto. Bolsonaro debochou da democracia em palco global, teve suas mentiras traduzidas em várias línguas e voltou para casa aclamado por seus seguidores pela sua autenticidade e coragem de afrontar a parte do planeta que despreza.

Ao receber um mandatário que ostenta o fato de não ter tomado vacinas como um troféu, e isso quando os Estados Unidos enfrentam uma piora na pandemia devido à variante delta, a vergonha é dos Estados Unidos de Joe Biden e da Nova York de Bill de Blasio. A vergonha é, principalmente, da ONU. Bolsonaro afronta o combate à pandemia com atos e fatos e atravessa a fronteira americana todo serelepe porque a ONU se mostrou incapaz de riscar o chão diante da Rússia de Vladimir Putin, que se contrapôs com veemência à intenção de barrar quem não estivesse vacinado. Bolsonaro também vai rir por muito tempo pela façanha de abrir a assembleia do mais simbólico pilar da ordem mundial após a Segunda Guerra disseminando mentiras explícitas. Aplicou na ONU um deboche em nível planetário.

De nada adianta estampar no noticiário um Bolsonaro patético, objeto de piadas e de charges na imprensa. Bolsonaro entrou nos Estados Unidos sem vacina e este é o fato principal. Também pouco adianta fazer matérias e análises provando que ele mentiu sobre quase tudo. Seus seguidores, assim como uma parcela de não seguidores, considera tudo o que a imprensa afirma como fake news e nem sequer a lê, assiste ou escuta. Parte do planeta, e não só do Brasil, acredita que pode escolher o que é a verdade se a mentira lhe convém. Também não está fácil, é necessário dizer, ouvir, assistir e ler setores da imprensa repetindo coisas como “contrariando a expectativa da ala moderada do governo, Bolsonaro não moderou o tom no discurso na ONU”. Sério que ainda tem gente para afirmar expectativas do gênero como se acreditasse nisso?

É assim que ditadores eleitos como Bolsonaro destroem a democracia desde dentro. Se os instrumentos democráticos e as instituições que os representam são incapazes de impedir alguém como Bolsonaro de discursar sem vacina, presencialmente, na ONU, para que servem? Do mesmo modo, se tudo o que as instituições brasileiras conseguem produzir são (mais) discursos sobre como Bolsonaro envergonha o país, em vez de usar os instrumentos democráticos previstos na Constituição para impedi-lo de seguir governando, para que servem, então?

Gostaria de afirmar que esse pesadelo acontece porque a democracia e suas instituições não previram criaturas como Bolsonaro, mas seria inaceitável ingenuidade sob qualquer ponto de vista, inclusive o histórico. Bolsonaro é produto das deformações de uma democracia que nunca alcançou as camadas mais desamparadas da população e é produto do cinismo do capitalismo liberal. A cena com Boris Johnson é um exemplo disso. Supostamente o primeiro-ministro britânico, um direitista caricato, teria dado um “puxão de orelhas” em Bolsonaro por não tomar vacina, mas é só jogo de cena. O que importa é que um sorridente BoJo apertou a mão de um sorridente Bolsonaro às vésperas da Cúpula do Clima de Glasgow, apesar de o presidente brasileiro estar levando a maior floresta tropical do planeta ao ponto de não retorno.

Bolsonaro está onde está porque as corporações e os governos que as representam ainda faturam e têm vantagens com ele na presidência. Bolsonaro está onde está porque grande parte do empresariado brasileiro, assim como dos especuladores, acredita que ainda pode obter mais lucro com ele no poder do que fora dele. Ao mostrar o dedo médio aos manifestantes contra Bolsonaro, Marcelo Queiroga afirmou a verdade mais profunda da Assembleia Geral da ONU. E agora o ministro da Saúde do país que beira os 600 mil mortos por covid-19 descansa em um hotel de luxo de Nova York enquanto faz quarentena por, claro, ter testado positivo para o vírus.

Assim caminha a democracia e seus pilares globais. E ainda há quem se surpreenda que morram, esquecendo-se que para morrer é necessário primeiro estar vivo.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de oito livros, entre eles ‘Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro’ (Arquipélago). Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum

Fonte: El País
https://brasil.elpais.com/opiniao/2021-09-22/a-onu-e-o-mundo-se-ridicularizam-diante-de-bolsonaro.html


Paulo Freire, 100 anos: como o legado do educador brasileiro é visto no exterior

Esta reportagem foi publicada originalmente no dia 12 de janeiro de 2019 e republicada em 19 de setembro de 2021, data do aniversário de cem anos do nascimento de Paulo Freire.

Tratada pelo governo Bolsonaro como bode expiatório da má qualidade do ensino público brasileiro, a obra do educador Paulo Freire (1921-1997) pode ser controversa. Mas o trabalho do pedagogo e filósofo, nomeado em 2012 patrono da educação brasileira e autor de um método de alfabetização que completou 50 anos em 2013, não deixa de ser bastante relevante nas discussões mundiais sobre pedagogia.

Freire é estudado em universidades americanas, homenageado com escultura na Suécia, nome de centro de estudos na Finlândia e inspiração para cientistas em Kosovo. De acordo com levantamento do pesquisador Elliott Green, professor da Escola de Economia e Ciência Política de Londres, na Inglaterra, o livro fundamental da obra do educador, 'Pedagogia do Oprimido', escrito em 1968, é o terceiro mais citado em trabalhos acadêmicos na área de humanidades em todo o mundo.

Para especialistas em educação ouvidos pela BBC News Brasil, entretanto, a raiz da controvérsia em torno da pedagogia de Paulo Freire não é sua aplicação em si - mas o uso político-partidário que foi feito dela, historicamente e, mais do que nunca, nos dias atuais. "Li a maior parte dos livros dele. Minha tese de doutorado foi amplamente baseada em seus ensinamentos. Tenho aplicado seu método de várias maneiras em minha carreira profissional, na prática e na pesquisa", afirmou a pedagoga Eeva Anttila, professora da Universidade de Artes de Helsinque, na Finlândia.

"A maior vantagem de sua metodologia é a abordagem anti-opressiva e não autoritária, a pedagogia dialógica e respeitosa que ele promoveu. O problema é que suas ideias têm sido usadas para fins políticos - o que, em meu entendimento, nunca foi seu propósito inicial", disse a finlandesa.

Freire tornou-se conhecido a partir do início dos anos 1960. Ele desenvolveu um método de alfabetização de adultos baseado nos contextos e saberes de cada comunidade, respeitando as experiências de vida próprias do indivíduo. Aplicou o modelo pela primeira vez em um grupo de 300 trabalhadores de canaviais em Angicos, no Rio Grande do Norte. De acordo com os registros da época, a alfabetização ocorreu em tempo recorde: 45 dias.

Homenagens pelo mundo

Referência mundial em qualidade do ensino, a Finlândia conta, desde 2007, com um espaço dedicado a discutir a obra do educador brasileiro. O Centro Paulo Freire Finlândia fica na cidade de Tampere. "É um hub para os interessados em Paulo Freire e em seu legado para tornar o mundo mais igualitário e justo", de acordo com a definição da própria instituição. Eles publicaram, online, três livros com artigos - em finlandês - analisando a obra do brasileiro. O material teve 17 mil downloads.

Mural de Paulo Freire na Faculdade de Educação e Humanidades da Universidade do Bío-Bío, no Chile
Um mural retratando o pedagogo pernambucano na Universidade do Bío-Bío, no Chile. Foto: NEFANDISIMO /CC BY-SA 4.0

Há centros de estudos semelhantes, todos batizados com o nome do brasileiro, na África do Sul, na Áustria, na Alemanha, na Holanda, em Portugal, na Inglaterra, nos Estados Unidos e no Canadá. Na Suécia, Freire é lembrado em um monumento público. Localizada no subúrbio de Estocolmo, 'Depois do Banho' é uma obra em pedra-sabão esculpida entre 1971 e 1976 pela artista Pye Engström. Sentadas lado a lado, estão retratadas sete personalidades com apelo político, como o poeta chileno Pablo Neruda (1904-1973), a escritora sueca Sara Lidman (1923-2004) e a sexóloga norueguesa Elise Ottesen-Jensen (1886-1973).

Mas a obra do educador brasileiro está longe de ser unanimidade entre os países que costumam liderar o ranking Pisa (sigla em inglês para Programa Internacional de Avaliação de Estudantes). Em Cingapura, que apareceu na primeira colocação na edição 2016 da avaliação trienal realizada pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) com escolas conhecidas por adotar um método linha-dura, a BBC News Brasil procurou a mais importante instituição de ensino superior do país para saber se algum pesquisador comentaria a obra do brasileiro Paulo Freire.

Professor destacado pela assessoria de comunicação da Universidade Nacional de Cingapura para atender à reportagem, Kelvin Seah disse que "não era a melhor pessoa para comentar sobre Paulo Freire". "Eu não sou familiarizado com seu método", afirmou.

Convidado a comentar sobre qual seria o método mais adequado ao contexto brasileiro, o especialista recomendou que os gestores analisassem caso a caso. "O método mais apropriado para os alunos em uma escola depende do perfil dos alunos da escola, do treinamento prévio recebido pelos professores, bem como dos recursos de instrução e financeiros disponíveis para a escola."

Pedagogia do diálogo nos Estados Unidos

Em artigo acadêmico analisando o legado de Paulo Freire pelo mundo, o professor de filosofia da educação da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, Ronald David Glass aponta que o mérito de Paulo Freire está no método que valoriza a "consciência crítica, transformadora e diferencial, que emerge da educação como uma prática de liberdade".

"Paulo Freire viveu sua vida no espaço desta consciência; é por isso que inspirou e energizou pessoas no mundo inteiro, e é por isso que seu legado se prolongará muito além de qualquer horizonte que possamos enxergar agora", escreveu o professor. "Freire sempre estava buscando se tornar mais humano, tornar possível que outros fossem mais humanos e, se acolhermos esta busca com tanto amor e determinação quanto ele, então uma maior medida de justiça e democracia estará ao alcance."

Professor da Faculdade de Educação da Universidade Cristã do Texas, Douglas J. Simpson causou certa polêmica no meio acadêmico ao publicar, anos atrás, um artigo intitulado 'É Hora de Engavetar Paulo Freire?'. "Na verdade, não acho que suas ideias devam ser arquivadas", esclareceu ele à BBC News Brasil. "Meu texto foi pensado para atrair a atenção daqueles que acham que sempre estamos recorrendo a Freire. Pessoalmente, acho importante descobrir de novo ou pela primeira vez por que precisamos combinar uma forte paixão reflexiva 'freireana', de respeito e amor, a pessoas carentes de justiça pessoal."

Retrato de Paulo Freire
Paulo Freire. Foto: Instituto Paulo Freire

Simpson afirma que a pedagogia baseada no diálogo é fundamental "para que a educação e a democracia prosperem, ou pelo menos sobrevivam". Ele culpa justamente a falta de diálogo pelo fato de as sociedades - e as escolas - estarem fortemente polarizadas politicamente. "Não temos sido efetivamente ensinados a praticar o diálogo nas escolas, muito menos nos governos." Para o professor, Paulo Freire ensinou, acima de tudo, que precisamos aprender "a ouvir, a entender e a respeitar uns aos outros" e a "trabalhar juntos nos problemas".

Considerando o contexto brasileiro, Simpson acredita que não deveria haver uma padronização - ou seja, que as escolas não deveriam seguir todas o mesmo método pedagógico. "As escolas precisam de culturas e responsabilidades que se baseiem em uma ética profissional, políticas e práticas meritórias", disse. Para ele, os métodos são necessários, "mas devem ser vistos como revisáveis, porque as escolas, sociedades, trabalhos e aprendizados são dinâmicos". "A padronização nas escolas muitas vezes leva a uma inércia indevida, de mesmice, de regulamentação estéril", complementou.

Nos anos 1970, o pedagogo John L. Elias, então professor da Universidade de Nova Jersey, escreveu muito a respeito de Paulo Freire. O educador brasileiro foi tema de sua tese de doutorado. Em texto de 1975, Elias apontou "sérios problemas no método" do brasileiro.

"A teoria da aprendizagem de Freire está subordinada a propósitos políticos e sociais. Tal teoria se abre para acusações de doutrinação e manipulação", afirmou ele. "A teoria de Freire da aprendizagem é doutrinária e manipuladora?", provocou.

A escultura "after Bath", em Estocolmo
Paulo Freire é a segunda figura, da esq. para a dir., nesta escultura de 1976 de Nye Engström. A obra fica em Estocolmo, na Suécia. Foto: BERGNT OBERGER/ CC BY-SA 3.0/ PAULO FREIRE FINLAND

Elias apontou que o educador brasileiro via "os sistemas educacionais do Terceiro Mundo como o principal meio que as elites opressoras usam para dominar as massas". "Conhecimento e aprendizado são políticos para Freire, porque eles são o poder para aqueles que os geram, como são para aqueles que os usam", argumentou.

Professora de Educação Internacional e Comparada na Faculdade dos Professores da Universidade Columbia, nos Estados Unidos, Regina Cortina já abordou a metodologia de Paulo Freire em diversos estudos sobre educação na América Latina, mas disse à BBC News Brasil que não se sentia "confortável" em comentar o tema no momento "por causa das mudanças administrativas no Brasil". Cortina afirmou, por meio da assessoria de imprensa da universidade, que não é possível vislumbrar com clareza "como as coisas vão seguir nas escolas brasileiras".

REPRODUÇAO DA CAPA DO LIVRO PEDAGOGIA DO OPRIMIDO, DA EDITORA PAZ E TERRA
Principal obra de Freire, "Pedagogia do Oprimido" foi escrito em 1968, mas só foi publicado no Brasil anos depois, em 1974. Foto: Editora Paz e Terra/Reprodução

Quais as ideias de Freire?

Para Freire, o ensino ocorre a partir do diálogo entre professor e aluno, desenvolvendo assim capacidade crítica e preparando os estudantes para sua emancipação social. No jargão do meio, o método Freire é o oposto ao conceito "bancário" de educação - aquele no qual o professor "deposita" o conhecimento nas mentes dos alunos. Para Freire, a educação é construída em conjunto.

O método Paulo Freire chegou a ser adotado pelo governo de João Goulart (1919-1976) em esforços para alfabetização de adultos. Com a ditadura militar, entretanto, o educador passou a ser perseguido, chegou a ser preso por 70 dias e viveu no exílio na Bolívia e no Chile. Após a publicação da 'Pedagogia do Oprimido', em 1968, Freire foi convidado para ser professor visitante na Universidade Harvard, nos Estados Unidos.

Reconhecido desde 2012 como o Patrono da Educação Brasileira, Paulo Freire é considerado o brasileiro mais vezes laureado com títulos de doutor honoris causa pelo mundo. No total, ele recebeu homenagens em pelo menos 35 universidades, entre brasileiras e estrangeiras, como a Universidade de Genebra, a Universidade de Bolonha, a Universidade de Estocolmo, a Universidade de Massachusetts, a Universidade de Illinois e a Universidade de Lisboa. Em 1986, Freire recebeu o Prêmio Educação para a Paz, concedido pela Unesco, a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciências e Cultura.

Paulo Freire
Paulo Freire em retrato de 1963. Foto: Arquivo Nacional

Há instituições de ensino que seguem o método Paulo Freire em diversos países. É o caso da Revere High School, escola em Massachusetts que em 2014 foi avaliada como a melhor instituição pública de Ensino Médio nos Estados Unidos. Em Kosovo, um grupo de jovens acadêmicos criou um projeto de ciência cidadã inspirado na pedagogia crítica do brasileiro. Os participantes recebem um kit para monitorar as condições ambientais e, assim, juntos, pressionar o governo por melhorias na área.

"Acredito que seria ótimo que a pedagogia em qualquer escola de qualquer país partisse do pensamento de Freire", comentou a pedagoga finlandesa Anttila. "Especialmente no Brasil, dada a atual situação política e a história do país." Ela diz que um método de ensino, para funcionar bem, precisa levar em conta as situações de vida dos alunos. "Não acredito em pedagogia autoritária. As aulas não precisam ser autoritárias. É preciso diálogo, discussão, negociação, exploração. Construir conhecimento para que haja capacidade de expressar ideias e ouvir os outros. Eis a chave para a democracia. E a educação democrática é a única maneira de salvaguardar uma sociedade democrática", declarou.

Fonte: BBC Brasil
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-46830942