Política Democrática || Entrevista Especial – Cristovam Buarque: ‘Nós falhamos’

Em entrevista à Revista Política Democrática Online, Cristovam Buarque fala de seu novo livro “Por que falhamos – O Brasil de 1992 a 2018”, dos erros cometidos pela esquerda que resultaram na eleição de Jair Bolsonaro e os novos caminhos que os democratas progressistas precisam traçar para mudar o país.
Foto: Agência Senado
Foto: Agência Senado

Em entrevista à Revista Política Democrática Online, Cristovam Buarque fala de seu novo livro “Por que falhamos – O Brasil de 1992 a 2018”, dos erros cometidos pela esquerda que resultaram na eleição de Jair Bolsonaro e os novos caminhos que os democratas progressistas precisam traçar para mudar o país

Por Caetano Araújo e Cleomar Almeida

Cristovam Buarque (Cidadania) é o entrevistado especial desta 15ª edição da Revista Política Democrática Online. Ex-ministro da Educação do governo Lula e ex-senador pelo Distrito Federal, ele comenta sobre seu novo livro “Por que falhamos – O Brasil de 1992 a 2018” o que considera os principais erros do bloco progressista. Para Cristovam, foram 24 desacertos que levaram à eleição de Jair Bolsonaro em 2018.

Para Cristovam Buarque, que preside o Conselho Curador da Fundação Astrojildo Pereira (FAP), a esquerda brasileira está nocauteada, correndo o risco de se diluir ainda mais na corrida eleitoral deste ano e o bloco progressista – que reúne PSDB e PT, entre outros partidos — ainda não conseguiu se unir em torno de um projeto de país e cedeu à corrupção. “Se nós pretendemos traçar um caminho novo para o Brasil, temos que descobrir como nos juntarmos nesse bloco. O primeiro erro que eu coloco foi a divisão PSDB e PT. Não tem razão ideológica profunda para essa ruptura”, acredita.

Educação e seu papel na construção do país, bem como os rumos da democracia no Brasil, também estão entre os temas tratados por Cristovam Buarque na entrevista que concedeu à Revista Política Democrática Online. Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista:

 

Revista Política Democrática Online (RPD): Seu próximo livro tem como título Por que falhamos? De 1992 até 2018. O texto já está disponível na internet, cuja versão em inglês sairá proximamente, e a em português, provavelmente pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP). Como tudo isso aconteceu.
Cristovam Buarque (CB): Este livro realmente tem uma história. Logo depois das últimas eleições, fui convidado pelos organizadores de um seminário na Universidade de Oxford para participar de uma discussão sobre o Brasil. Queriam que eu explicasse a vitória de Bolsonaro. Respondi que preferiria falar sobre como nós perdemos. Eles aceitaram. Preparei, então, um texto de cerca de 30 páginas, fiz a apresentação, à que se seguiu um debate e, na volta ao Brasil, comecei a trabalhar no livro. Demorou, mas já fiz circular uma versão do texto, que, agora, está consolidada em um pequeno livro, publicado só em e-book, que eu mesmo banquei e distribuí gratuitamente. No dia 7 de fevereiro, estarei de novo em Oxford, para participar do lançamento da versão em inglês do livro, a ser comercializada pela Amazon, e que terá outro título: Como a esquerda elegeu a direita no Brasil. Achei que ficava mais internacional. Quanto à versão impressa, também já estamos cuidando dela. Se puder ser pela FAP, melhor.

 

RPD: Logo no primeiro parágrafo de seu livro, você afirma: “Ao invés de aproveitarmos o colapso do comunismo para criar um novo modelo progressista e democrático…, fracassamos ideológica, política, econômica e moralmente. A ponto de o eleitor nos repudiar e preferir… um presidente nostálgico das maldades e do atraso da ditadura. Mais grave é que insistimos em não reconhecer nossos erros”. O senhor poderia ampliar um pouco essa reflexão?
CB: No curso da campanha em que perdi, agora em 2018, eu estava em Taguatinga, no chamado corpo a corpo. Um senhor, de uns 50 anos olhava tudo ali de longe. Fui apertar a mão dele, quando ele me disse: “Você tem consciência que você é o melhorzinho aqui entre os candidatos?” Eu ri e, cheio de mim, acrescentei: “Pois, então, que me ajude nessa campanha que não está fácil“. Ele esclareceu: “Eu não disse que vou votar em você, disse que era o melhorzinho, mas eu não quero saber se vai ser melhor ou pior, eu quero outro. Você já está aí tempo demais.”

Percebi que nós tínhamos esgotado um ciclo, e que a população se cansara desse ciclo e queria outro. Esse outro foi Bolsonaro. Porque os demais pareciam todos ser do mesmo bloco, que chamo de democratas progressistas, aqueles que lutaram contra o regime militar e que têm nuances progressistas, na economia, na justiça social, nos costumes. Por isso, concentrei-me de Itamar a Temer; não coloquei Sarney e o Collor, porque, acho, estavam mais ligados ao regime militar, até quando romperam com os militares e, portanto, não fizeram parte do bloco democrático, tampouco do bloco progressista. Senti que a população brasileira queria outro. Tanto que o último capítulo do livro é a ideia do outrismo. Nosso fracasso criou uma ideologia que é a ideologia outrista. A população quer outro.

 

RPD: Quem são o “nós” a que você se refere no livro? É uma definição controversa, que muita gente não aceita, não é?
CB: A crítica mais comum ao livro é essa. Claro, toda classificação é arbitrária, inclusive a definição de progressista, de democrata. Escolhi cinco presidentes e seus governos. Coloquei um “nós”. E a classificação foi de democratas e progressistas. Não se trata de uma classificação científica; antes, uma classificação arbitrária. E a maioria recusou. O PT não aceita. Está furioso porque acha que o livro está criticando só ele. Porque para ele só existem eles. E muita gente do PSDB reclama: “Nós não fomos irresponsáveis fiscalmente.” É verdade. O Lula tampouco foi.

Falo de bloco. Por exemplo, o bloco dos autoritários não engloba todos os militares, porque nem todos o são. Os quatro presidentes militares tinham muita diferença entre eles. Mas essa foi a primeira reação contra o livro, por isso eu começo explicando quem somos nós.

A gente precisa trazer a ideia da autocrítica e não da crítica aos outros. Para fazer uma autocrítica, você tem de se incluir. Nunca fui acusado de corrupção, mas nós, o bloco, tivemos tolerância com a corrupção. Não cometemos todos esses erros, mas, como bloco, cometemos.

Se pretendemos traçar um caminho novo para o Brasil, temos de descobrir como nos juntarmos nesse bloco. O primeiro erro que aponto foi a divisão PSDB e PT. Não tem razão ideológica profunda para essa ruptura. Até os programas sociais foram convergentes. Fernando Henrique lançou o Bolsa Escola, Lula não mudou a posição dele. Aliás, o próprio Bolsonaro está mantendo. A oposição entre PSDB e PT, dois partidos paulistas, centrava-se na eleição do prefeito de São Paulo. Em vez de discutirem uma estratégia comum para o Brasil, cuidavam em destruir o outro no pleito paulista. Nós precisamos descobrir o “nós” que nos unirá, quando descobrirmos onde erramos. Esse é o desafio.

RPD: Mas, em alguns casos, o preço a ser pago pelos erros não confunde com a dinâmica natural da política de alternância de poder, como ocorreu, entre outros, com Felipe González na Espanha, ao tentar a reeleição pela terceira vez?
CB: Se o bloco democrático progressista não estivesse errado, a alternância de poder poderia ter sido com um dos candidatos desse bloco. O bloco é composto por forças diversas, mas, ainda assim, integradas em um bloco. Nas últimas eleições, Marina era desse bloco. Alckmin, Haddad, Meireles e Ciro também. Aliás, os petistas quando falam do livro alegam que Itamar era golpista, portanto não pertencia ao bloco. Itamar foi 12 anos vice-presidente do PT, como não era do bloco? Volto a afirmar: se tivéssemos acertado, a alternância teria beneficiado um de nós. E o que aconteceu foi o oposto completo. O Aznar, com todos seus defeitos, não era franquista. Mas Bolsonaro é um nostálgico da ditadura. A ditadura não voltou na Espanha quando a população se esgotou dos socialistas.

RPD: Seu livro trata também da educação, tema que lhe é tão caro. Existiria uma solução nacional para a educação do Brasil, considerando que somos um país continente, com disparidades sociais e culturais gritantes? 
CB: Só vai existir solução para nossa educação se for nacional. É uma estratégia que pode demorar 30 anos, a Coréia demorou até mais. Temos de substituir esse sistema municipal, velho, carcomido e incapaz de ser recuperado, por um sistema federal. O processo será lento e por cidade. Não acredito que a saída seja fechar a escola municipal e abrir escola federal, mas o governo federal deve adotar a educação e todas as crianças de uma cidade. Uma depois a outra. Não há dificuldade em substituir o sistema municipal pelo federal em 100, 150, até 200 cidades pequenas por ano, desde que tenha uma carreira nacional do magistério. Abrir o concurso, começar a formar esses professores com salário bastante elevado, para poder atrair bons quadros, construir novos prédios, porque os que estão aí não têm condições, equipar com o que os alunos hoje gostam, celular, computador, e em horário integral. Isso dá para fazer em uma estratégia de médio e longo prazo, respeitando os limites fiscais do Estado.

RPD: O mesmo programa seria idêntico para o Piauí e São Paulo?
CB: Em qualidade, mas não em conteúdo. Temos de federalizar com descentralização na base. Hoje a gestão é do prefeito. Defendo que a gestão seja da escola. Como é na Finlândia. Cada escola se auto gere. Mas a carreira do professor será uma só em todo o país. O professor que vai dar aula no Piauí passou em um concurso nacional, como ocorre no Banco do Brasil, na Caixa Econômica, no Ministério Público, no Itamaraty, no Exército. Descentralizar. E liberdade pedagógica para o professor. Eles darão a aula que quiserem. O salário inicial seria de 15 mil reais por mês, mas a nova estabilidade não poderá ser plena. Haverá o que chamo de estabilidade responsável. Periodicamente, uma avaliação, cujos termos seriam previamente definidos com os próprios professores, conferirá o atingimento de metas. Em caso de resultado insatisfatório, o professor teria de ser afastado.

A verdade é não soubemos substituir a bandeira do socialismo estatal, do socialismo de até os anos 70, por uma nova utopia, no sentido mais realizável do conceito, uma utopia que incluísse três aspectos fundamentais: a democracia, o meio ambiente e a educação. Claro, com uma economia eficiente. Nós deixamos de pertencer ao bloco de países que em trinta anos seria um dos campeões mundiais da educação, onde o filho do pobre estudaria na mesma escola que o filho do rico, a exemplo dos países desenvolvidos. Toleramos a ideia de que educação boa é uma coisa de gente rica. Nunca houve um discurso claro de que nós teríamos como meta e, sem demagogia, sentar o aluno rico ao lado do aluno pobre. Quem começou a falar isso? Eduardo Campos, na campanha dele. Li que o Huck estaria dizendo algo semelhante. Mas o Lula e o PT nunca disseram coisa alguma a respeito. O PSDB, tampouco.

Um projeto até mais radical seria, em 30 anos, transformar as escolas em concessão pública, como as linhas de ônibus, que são uma concessão pública, mas operada por uma empresa privada.

RPD: Por não se fala no Brasil em ensino profissionalizante, de tão bons frutos na Alemanha e Suíça?
CB: O Brasil é um país aristocrático, e o título de técnico não dá nobreza. Muitos preferem título de doutor sem emprego do que de técnico em computação com emprego. É a mentalidade brasileira: valorizar a universidade. Foi um dos grandes erros de Fernando Henrique, Lula e Dilma. Nunca buscamos priorizar a educação profissional, nem de base nem profissional, porque não dá voto. Agora, como fazer isso? Defendo há muito tempo que o ensino médio tem de ser de quatro anos, e que todos concluam com um ofício: fotógrafo, auxiliar de gravação, cozinheiro, jardineiro etc. Defendo também que deveria haver uma cota nas escolas de engenharia para quem provém da escola técnica. Hoje tem cota para pobre, negro, índio, por que não para quem seguiu uma escola técnica? É um preconceito que está destruindo a educação e a própria a economia brasileira.

RPD: A educação poderá ser tema da campanha eleitoral municipal?
CB: Não será boa bandeira. Saneamento e saúde vão dominar. Educação não atrai o eleitor, que não consegue ainda explicar como a educação é importante na vida das famílias, a não ser a universidade. Um prefeito que oferecer bolsa para os alunos que passarem no vestibular vai ter mais voto do que o candidato que oferecer escola de bom nível.

RPD: Há semelhanças entre a situação interna no Brasil e a de outros países, onde políticos despontam com discursos como os de Bolsonaro, e onde vem ocorrendo cisões no campo democrático progressista? Em caso afirmativo, o que caberia fazer?
CB: Sou pessimista quanto à capacidade da democracia de cuidar dos grandes problemas da atualidade. A democracia é um sistema nacional que tem de dar respostas imediatas ao eleitor. E hoje a gente vive em um mundo planetarizado, os problemas são planetários e de longo prazo. Vejamos alguns exemplos.

Meio ambiente. Não acho que meio ambiente vai eleger um presidente. Macron está sofrendo porque tentou aumentar o preço da gasolina. O eleitor quer baixar o preço da gasolina, esquecendo que estará agravando o aquecimento global. Vi pela televisão um manifestante em Paris com uma bandeira contra o aquecimento global e outra contra o aumento do preço da gasolina. É como se um vegano reclamasse do aumento do preço da carne.

Outro exemplo: o oceano vai subir tantos centímetros em 100 anos. Vai acabar com o Recife. Mas 100 anos, não tem eleitor que vote pensando em cem anos. Nem 50. Nem 30. Então os populistas irresponsáveis, sem compromisso de longo prazo, vão tender a ganhar a eleição, oferecendo soluções para o imediato.

Falando de rótulos político-ideológicos, o que é mais de direita, defender o meio ambiente ou defender o emprego? O que é mais de esquerda, defender o emprego ou defender o meio ambiente? Para mim, seria defender o meio ambiente, porque tenho sentimento de humanidade. Mas o eleitor comum não pensa assim. Os ecologistas estão comprometidos com o ser humano, não com o trabalhador. Nos tempos de Marx, trabalhador e ser humano eram a mesma coisa, com o trabalhador representando a grande maioria do ser humano. Hoje já não é.

Venho até trabalhado com o conceito de desvalia, mais grave, do ponto de vista humanitário, do que o de mais valia. Na mais valia, o patrão explora, mas pelo menos paga um salário. Na desvalia, ignora. É o pobre abandonado, é o marginal. A esquerda não percebeu a desvalia no discurso teórico, percebeu-a em programas assistenciais, como o Bolsa Família. Não estamos sabendo qual é o programa capaz de casar o humanismo com o eleitor. Por isso, nós, esse bloco, enfrentaremos muitas dificuldades eleitorais.

Tanto mais porque surgem com mais força os extremos. No Brasil, a gente vai passar muito tempo ainda com a polarização PT e Bolsonaro. Por quê? Porque uma das grandes invenções do processo eleitoral democrático é a ideia de dois turnos. Hoje joga-se para emplacar vaga no segundo turno. Vota-se no primeiro turno em quem é mais próximo e, no segundo, em quem é menos distante. Daí tanta gente votar em branco. E tanto Bolsonaro como o PT estão trabalhando para garantir 20, 25 porcento. E os outros não estão conseguindo formular um programa que os unifique, para poder aterrissar na faixa do segundo turno, no lugar de um dos extremos. Caminhamos para favorecer a radicalização.

O que fazer, então? Primeiro, ter paciência. Entender que, mais uma vez voltando a Marx, a superestrutura (as ideias) não passa por cima da realidade. Segundo, torcer para que a pedagogia da catástrofe produza resultados imediatos. Em geral, não produz. A pedagogia da catástrofe só ensina depois que o prédio cai. Se houve aquele ruidozinho na parede, você sente que a coisa está tremendo, mas vai levando. É depois que cai que você vê.

Daí a função do debate, da ampliação do círculo de pessoas com quem se deva conversar, ouvir o que elas têm a dizer, para compor um bloco democrático progressista, mesmo que sua composição seja díspar. O importante é que as forças políticas assim reunidas coincidam em refutar os extremos.

 

Privacy Preference Center