Demétrio Magnoli

Demétrio Magnoli: Procuradores pretendem preservar estatuto de intocáveis

Há alguma verdade na alcunha 'PEC da vingança', mas corporação tenta seguir como sentinelas da lei autorizados a agir fora da lei

Demétrio Magnoli / Folha de S. Paulo

 “PEC da vingança” –é assim que a corporação dos procuradores da República apelidou a proposta de Emenda à Constituição de reforma do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).

Há alguma verdade na alcunha pois, desde a desmoralização da Lava Jato, a elite política articula-se para limitar investigações sobre corrupção. Sobretudo, porém, o que os procuradores pretendem é preservar seu estatuto de intocáveis –ou seja, de sentinelas da lei autorizados a agir fora da lei.

A Constituição de 1988 fabricou uma anomalia ao desenhar o atual Ministério Público (MP). Inexiste, no mundo, instituição similar com prerrogativas tão amplas e tão pouca responsabilização como o nosso MP.

Numa ponta, os constituintes atribuíram-lhe poderes excepcionais, encarregando-o da tutela dos “interesses difusos” dos cidadãos. A função permite ao MP lançar acusações judiciais amparadas exclusivamente nas crenças ideológicas dos procuradores.

Na outra, isentaram-no de controles externos, traçando um círculo aristocrático de impunidade em torno de seus integrantes. O CNMP, finalmente criado em 2004, funciona apenas como simulacro de controle externo pois o próprio MP indica metade dos conselheiros.

O ser teratológico evoluiu como estufa ideal para a militância de procuradores engajados na missão da reforma da sociedade. Dentro do MP, nasceram partidos políticos com programas e associados, como o “MP Democrático”, sob influência lulopetista, e o “MP Pró-Sociedade”, de inspiração moro-bolsonarista.

A lei, ora a lei: os procuradores-militantes utilizam o poder de investigar e acusar para fazer política sem risco, no conforto da estabilidade, de gordos salários e aposentadorias integrais.

A degeneração do MP ficou evidenciada na hora da desmoralização da Lava Jato. Como esquecer o acordo de imunidade judicial absoluta firmado pela PGR com Joesley Batista, o corruptor confesso da JBS? Ou a tentativa da força-tarefa de Curitiba de gerir recursos devolvidos à Petrobras por meio de um fundo privado? Ou, ainda, o conluio ilegal entre a mesma força-tarefa e o juiz Sergio Moro na condução dos processos contra Lula?

A corporação que alerta contra a “vingança” precisa olhar-se no espelho do desfecho do “caso Lula”. A decisão do STF que reconheceu a parcialidade de Moro ilumina a necessidade de reforma do MP. O mais notório processo de corrupção na história brasileira permanecerá inconcluso para sempre.

Os inimigos de Lula insistirão na narrativa de que existiam provas condenatórias irrefutáveis. Os lulistas persistirão na versão da inocência de um ex-presidente perseguido. A eternização de narrativas polares capazes de reclamar legitimidade é uma mancha indelével de descrédito aplicada ao sistema nacional de justiça –e, ainda, uma lápide apropriada no túmulo de um poder irresponsável.

A PEC em tramitação não tem nem mesmo a pretensão de reformar o MP. Circunscreve-se a uma reforma do CNMP, fazendo muito e pouco ao mesmo tempo.

Muito: a autorização que concede ao órgão de rever atos de integrantes do MP, uma nítida “vingança” destinada a interromper investigações de corrupção. Pouco: a ampliação de 14 para 15 no número de assentos, com a reserva de quatro cadeiras a indicados pelo Congresso, o que mantém a maioria de integrantes do MP, inviabilizando um efetivo controle externo.

Moro confundiu a lei com suas ambições políticas, mas escapou de punição porque abandonou o Judiciário para servir a Bolsonaro. Os procuradores missionários da força-tarefa, que pintaram e bordaram, acabaram expostos pela Vaza Jato mas nunca foram devidamente sancionados. A redoma constitucional os protege, tornando-os imunes às leis com as quais acusam os demais cidadãos.

O Congresso, porém, não quer acabar com a classe dos intocáveis. Prefere estender o privilégio a seus próprios integrantes.

Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/demetriomagnoli/2021/10/procuradores-pretendem-preservar-estatuto-de-intocaveis.shtml


Triunfo eleitoral, mais distante, sempre foi o plano B de Bolsonaro

O plano A é um golpe de Estado, com a submissão do Judiciário e do Congresso ao 'meu Exército'

Demétrio Magnoli / Folha de S. Paulo

Munique tornou-se, desde setembro de 1938, um nome polissêmico. A capital da Baviera alemã passou a evocar “apaziguamento” e, ainda, “traição”. No Brasil de hoje, Munique é Brasília, desde que o comando do Exército recusou-se a punir Eduardo Pazuello. Dependendo da conclusão do caso do coronel Aleksander Lacerda, logo será São Paulo.

No Rio de Janeiro, em 23 de maio, Bolsonaro pronunciou um discurso subversivo, em ato de rua. Ao seu lado, no palanque, estava Pazuello, que também discursou. Duas semanas depois, uma nota do Exército comunicou o arquivamento do processo administrativo instaurado contra o general da ativa.

Munique: Neville Chamberlain e Édouard Daladier entregaram os Sudetos a Adolf Hitler. Brasília: Paulo Sérgio de Oliveira jogou à lata de lixo o Regulamento Disciplinar do Exército que proíbe manifestações públicas políticas de militares de ativa.

“chavismo de direita” de Bolsonaro, na precisa expressão de Rodrigo Maia, subverte a ordem democrática na tentativa de dissolver a fronteira legal que separa os homens em armas da atividade política. O triunfo eleitoral, horizonte cada vez mais distante, sempre foi o plano B do presidente. Seu plano A é um golpe de Estado: a submissão do Judiciário e do Congresso ao “meu Exército”.

“meu Exército” bolsonarista não é o Exército brasileiro, mas uma milícia nucleada por militares amotinados. A agitação subversiva no interior das Forças Armadas ainda não ganhou tração, apesar do espaço aberto pelo apaziguamento do comandante do Exército. Nas polícias militares, porém, ergue-se um Partido Bolsonarista cujos contornos delineiam-se com nitidez às vésperas dos atos golpistas de 7 de Setembro.

Nas quase 400 mensagens que publicou em agosto, o militante bolsonarista Aleksander Lacerda, que veste uniforme de coronel da PM, insultou reiteradamente o governador paulista e o presidente do Senado. Mas, sobretudo, convocou seus “amigos” —ou seja, os 5.000 policiais de sete batalhões que comandava— aos atos subversivos.

Não são gestos de um solitário desvairado, mas lances de uma estudada provocação. Lacerda testava os limites, investigava a firmeza da coluna vertebral de João Doria. Sua conclusão provisória é que São Paulo pode ser Munique.

“Ele tem de ser severamente punido sob o ponto de vista administrativo e sob o ponto de vista penal-militar. Se não, vamos instalar a balbúrdia na instituição”, alertou o coronel Glauco Carvalho, ex-comandante de policiamento da capital do estado.

Doria, porém, preferiu classificar o comportamento de Lacerda como “inadequado” e afastá-lo de seu comando, entregando-o à Corregedoria da PM. A “balbúrdia” está a apenas um tiro de distância.

O STJ (Superior Tribunal de Justiça) já firmou entendimento de que governadores têm a prerrogativa de expulsar oficiais da PM, via processo administrativo, sem prejuízo de julgamento pela Justiça Militar. Contudo, em São Paulo, o apaziguamento começa a fazer seu curso. Simulando cegueira, Doria descreveu a conclamação de Lacerda ao motim como um “fato pontual”.

Enquanto o governador praticamente encerrava o assunto, a facção bolsonarista da PM paulista organizava caravanas de ônibus de policiais que, à paisana, pretendem participar das manifestações do 7 de Setembro.

“A solução do problema da Tchecoslováquia é o prelúdio de um acordo mais amplo pelo qual toda a Europa pode encontrar a paz”, declarou Chamberlain ao retornar de Munique. Segundo a teoria do apaziguamento, a paz vale a traição. Trump e Biden aplicaram a tese ao Talibã, assinando um acordo pelo qual o governo afegão libertou 5.000 combatentes inimigos, que retornaram de imediato ao campo de batalha.

“Vocês tiveram a escolha entre guerra e desonra. Escolheram a desonra, e terão a guerra”, fulminou o sucessor de Chamberlain. Cabul caiu 16 meses após o acordo. Hitler atacou um ano após Munique.

Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/demetriomagnoli/2021/08/triunfo-eleitoral-cada-vez-mais-distante-sempre-foi-o-plano-b-de-bolsonaro.shtml


5.570 Brasis

Demétrio Magnoli / O Globo

Bolsonaro prometeu colocar “o Brasil acima de tudo”. Sob a emergência de saúde gerada pela pandemia, fragmentou a nação em 5.570 entidades municipais separadas. A implosão começou com as restrições sanitárias e concluiu-se com a campanha de vacinação. Hoje, no país estilhaçado, os direitos dos cidadãos são essencialmente regulados pela vontade soberana dos prefeitos.

A bomba foi detonada pelo presidente, no início da pandemia, quando ele classificou a Covid-19 como “uma gripezinha” e recusou-se a coordenar o combate à difusão de contágios. Reagindo em defesa da saúde pública, o STF decidiu por unanimidade reconhecer as prerrogativas estaduais e municipais na aplicação de medidas de restrição sanitária.

O gesto inevitável dos juízes cristalizou o movimento centrífugo. Na ausência de um centro nacional, governadores e prefeitos passaram a adotar as mais disparatadas regras sanitárias. Legislaram à larga, determinando fechamentos e reaberturas das mais diversas atividades ao sabor de critérios arbitrários. Aqui e ali, prefeitos interromperam o tráfego em rodovias ou, atropelando direitos fundamentais, decretaram datas específicas para o deslocamento de residentes nas vias públicas.

Sob o manto da vaga decisão do tribunal superior, praticamente cessou o controle judicial das competências legais dos governantes. O Brasil de Bolsonaro — e do seu triste cortejo de militares militantes — converteu-se em terra sem lei.

O melhor retrato da nação em estilhaços encontra-se nas ruínas do Programa Nacional de Imunizações (PNI). Institucionalizado em 1975, no rastro do sucesso das campanhas de vacinação contra a varíola dos anos 1960, o PNI inaugurou a primeira Campanha Nacional de Vacinação contra a Poliomielite em 1980 com a meta de imunizar todas as crianças menores de 5 anos num único dia. Menos de uma década depois, em março de 1989, identificou-se o caso derradeiro de pólio, na Paraíba. O programa, fonte de orgulho nacional, não resistiu à anarquia bolsonarista.

Eduardo Pazuello, o indisciplinado general da ativa que faz dublagem de agitador de comícios, plantou as cargas explosivas no PNI. À frente do Ministério da Saúde, retardou ao máximo a aquisição de vacinas e rabiscou simulacros ilusórios de planos de imunização, abandonando o SUS na frente de batalha. O caos resultante estende-se até hoje.

A renúncia do Ministério da Saúde a comandar um plano nacional de imunização reflete-se, antes de tudo, na inexistência de campanhas de publicidade nos meios de comunicação de massa. Nesse ponto, Marcelo Queiroga, o substituto de Pazuello, revela-se tão fiel a Bolsonaro quanto seu fracassado antecessor. Para não desagradar ao presidente antivacina, seu ministério foge à responsabilidade de levar à população as informações básicas sobre os imunizantes, as regras de prioridade e os cronogramas de vacinação.

A desordem ramifica-se nos níveis estadual e municipal. Governadores e prefeitos acenaram a grupos de pressão e clientelas eleitorais, fabricando grupos prioritários e, nesse passo, reduzindo o ritmo da vacinação. Ao mesmo tempo, alteraram sem cessar os cronogramas, fornecendo informações confusas e incompletas em sites mais ou menos ocultos. Nos 5.570 programas de imunização em curso na nação estilhaçada, registram-se diferenças de até dez anos nos grupos etários autorizados a se vacinar e regras distintas de intervalos entre doses.

De passagem, os gestores municipais cometem crimes em série, confiando na cumplicidade passiva do Ministério Público. Infringindo as regras institucionais do SUS, milhares de cidades fazem de comprovantes de residência condição para vacinar. Por essa via, criam precedentes para, no futuro, negar atendimento de saúde a residentes de outros municípios. Há, ainda, os que, atraídos pelos holofotes das redes sociais, cassam o direito à imunização dos “sommeliers da vacina” — ou seja, indivíduos que, sem cometer ilegalidade alguma, perambulam de posto em posto à procura do imunizante de sua preferência.

5.570 Brasis — eis o fruto maduro do bolsonarismo.

Fonte: O Globo

https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/5570-brasis.html


Demétrio Magnoli: Raiz da desconfiança da vacinação está no poder estatal

Quantos? 100 mil, segundo os jornais da época, ou 20 mil, segundo historiadores, marcharam na cidade inglesa de Leicester em 23 de março de 1885, protestando contra a vacina obrigatória da varíola.

A resistência ativa ou passiva à imunização é tão antiga quanto a moderna história das vacinas, que começa com a invenção de Edward Jenner, em 1796. No seu capítulo atual, ela ameaça impedir a imunidade coletiva à Covid-19 em certos países ou regiões.

A raiz profunda da desconfiança da vacinação encontra-se no temor do poder estatal, especialmente quando se trata do controle sobre o próprio corpo dos indivíduos. No passado, os agentes vacinadores eram os mesmos funcionários encarregados de trancafiar os pobres em estabelecimentos de trabalho ou de remover habitações de locais insalubres.

De Leicester, 1885, a Zomba, no Maláui britânico, em 1960, passando pela Revolta da Vacina, no Rio de Janeiro, em 1904, incontáveis levantes antivacinais refletiram as suspeitas populares sobre as motivações dos governos.

A resistência segue nítidos contornos ideológicos. Na França, uma pesquisa de 2019, anterior à pandemia, revelou que 53% dos eleitores da extrema esquerda e 61% dos eleitores da extrema direita acreditavam num conluio do governo com as farmacêuticas destinado a ocultar os malefícios das vacinas. A polarização política anda de mãos dadas com a resistência à imunização: nos EUA, entre os seguidores de Trump; no Brasil, entre os de Bolsonaro.

Deus me protege, a vacina traz a Marca da Besta —religiosos fundamentalistas, sejam eles cristãos, muçulmanos ou judeus, resistem à imunização. Numa sondagem conduzida nos EUA, 45% dos brancos evangélicos responderam que não tomarão vacina contra Covid, contra 30% da população em geral.

Meu corpo é um santuário intocável —naturalistas radicais também resistem, pois vacinas seriam substâncias artificiais e, portanto, tóxicas. Mas, diante da pandemia, a hesitação deriva, sobretudo, de atitudes políticas.

Campanhas de vacinação associam-se ao centralismo estatal, à ênfase na proteção coletiva e à ideia de um bem público oferecido igualitariamente. Na ponta oposta, a doutrina ultraliberal prega o individualismo, a fragmentação das instituições hospitalares e a adoção de soluções de mercado para a saúde pública. A aversão dos ultraliberais ao contrato social está na base da hesitação de setores da população diante da vacina.

Mas os ultraliberais não estão sós. O discurso conspiratório ritual da esquerda, contrário às multinacionais farmacêuticas, foi adotado pela direita nacionalista, que o coloriu como denúncia do “globalismo”. A vacinação faria parte de um plano maligno de instituições multilaterais (OMS), governos internacionalistas (Biden, Merkel, Xi Jinping) e corporações globais para submeter as nações.

Nas suas versões mais desvairadas, esse discurso assegura que as vacinas são vetores biológicos de controle das mentes. O Bolsonaro da “vachina do Doria” ilustra, em toda a sua estupidez, a campanha antivacinal da extrema direita.

Nos EUA, onde quase 50% tomaram a primeira dose, o ritmo da imunização reduziu-se fortemente, pois a campanha começa a enfrentar a barreira demográfica da resistência vacinal: 64% dos restantes não confirmam que tomarão a dose inicial. Na União Europeia, onde apenas 30% tomaram a primeira dose, o cenário é igualmente preocupante: dependendo do país, entre 61% e 39% dos restantes hesitam em tomá-la.Os governos europeus só contribuíram com a resistência ao questionar a eficácia e segurança das vacinas. A maior hesitação encontra-se na França, o que reflete a amarga polarização política nacional.Boa notícia: no Brasil, parcela pequena, e decrescente, da população resiste à imunização. Eis mais uma derrota de Bolsonaro —e um dos raros sinais positivos na nossa paisagem política.

Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/demetriomagnoli/2021/05/a-raiz-profunda-da-desconfianca-da-vacinacao-encontra-se-no-temor-do-poder-estatal.shtml

 


Demétrio Magnoli: Quem é a polícia do B?

Tudo bandido!, decretou Hamilton Mourão horas depois do massacre no Jacarezinho, em 6 de maio, quando indagado sobre 27 das 28 vítimas fatais. O vice-presidente só conhecia a identidade do policial morto. Os supostos criminosos não tinham sido processados, julgados ou condenados. A segunda maior autoridade do país oferecia seu amparo a execuções extrajudiciais.

Mais: classificando como “bandidos” as vítimas ainda não identificadas, dizia implicitamente que são criminosos os que residem ou simplesmente circulam pelo Jacarezinho. A frase, síntese da barbárie nacional, esclarece os protocolos ocultos de ação da polícia no Rio de Janeiro. Desde o fracasso da política das UPPs, restaurou-se o padrão de invasão de favelas em operações letais. O pressuposto é que as favelas são terra estrangeira e seus moradores, combatentes inimigos.

Exige-se a investigação da Operação Exceptis, cujo nome de batismo enviava uma mensagem voluntária de deboche ao STF e uma outra, involuntária, a todo o país: a polícia do Rio não reconhece as leis regulares, mas apenas suas próprias leis, de “exceção”. O que procurar, porém, na investigação?

A resposta depende da hipótese inicial. Se acreditamos que a polícia do Rio é um corpo armado que opera sem planejamento e sem protocolos, a investigação deveria restringir-se aos desvios em relação aos padrões normais de ação policial e terminar com a punição dos agentes culpados. Mas tudo indica que a polícia segue planejamento e protocolos bem definidos, embora ocultos.

Na cidade do Rio, quase 60% da superfície dos territórios controlados por grupos armados irregulares encontram-se sob o comando de milícias, ou seja, da polícia do B. Apenas 15% são controlados por facções do crime, enquanto 25% são áreas de parceria ou disputa. Contudo a imensa maioria das operações policiais incide sobre os territórios de facções. É coisa incomum a ação da polícia oficial nos territórios de milícias — e mais raros ainda, os eventos de choques entre policiais e milicianos. Não estaríamos diante de uma aliança tácita entre a polícia e as milícias para estender o controle territorial das segundas?

O Jacarezinho situa-se nas vizinhanças da Cidade da Polícia, base principal das chefias e unidades operacionais da Polícia Civil. A favela vive sob a maior facção criminosa do Rio, um grupo sanguinário que nunca faz parceria com as milícias. A facção concorrente, pelo contrário, não rejeita parcerias baseadas numa nítida divisão de trabalho: os traficantes cuidam da venda de drogas, enquanto os milicianos dedicam-se à extorsão de comerciantes e moradores. A seleção do Jacarezinho para a Operação Exceptis parece obedecer a uma lógica de negócios. Quem ganha com uma eventual troca de guarda na favela?

A estúpida “guerra às drogas” é o pano de fundo e o álibi, mas não a causa, do massacre mais recente. Polícia é política. Uma investigação verdadeira do banho de sangue teria que ir muito além da operação no Jacarezinho, em busca das conexões subterrâneas entre a polícia oficial e a polícia do B.

O prefeito Eduardo Paes oscilou entre a condenação à violência da polícia e a crítica às restrições impostas pelo STF às ações policiais. “Se a reação for tão radical quanto a operação de ontem, um ‘ah, então libera geral esse território aqui para fazerem o que quiserem’, nós vamos viver esse pêndulo terrível que vitimiza principalmente as pessoas que moram em comunidades.” O “pêndulo terrível”, porém, instalou-se há décadas, e o “libera geral” exprime a postura estatal diante das milícias.

Paes identifica corretamente “as pessoas que moram em comunidades” como as vítimas da crônica guerra suja no Rio. Contudo finge que a solução encontra-se em olhar para outro lado, isto é, voltar à estranha “normalidade” vigente na segunda maior metrópole do país. Se ele se preocupa com as vítimas, deve clamar por uma “reação radical”: a implantação do Estado de Direito no conjunto da cidade que administra. Para isso, antes de tudo, é preciso reconhecer que a polícia oficial já não se distingue da polícia do B.

Fonte:

O Globo

https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/quem-e-policia-do-b.html


Demétrio Magnoli: Lei do Estado democrático deve se circunscrever à ação violenta contra as instituições

Câmara revogou a Lei de Segurança Nacional, com módico atraso de 32 anos. No seu lugar, aprovou uma Lei do Estado Democrático que flerta, aqui e ali, com a criminalização da opinião política. Paira no ar o perigoso conceito de democracia militante.

A LSN já vai tarde. Bolsonaro e seu assecla André Mendonça a invocam, dia sim e outro também, para tentar intimidar críticos do governo. Mas, como o Bombril, a lei da ditadura tem mil e uma utilidades: o STF também achou conveniente brandi-la quando inaugurou o infindável inquérito das fake news. No percurso, diante do arruaceiro deputado Daniel Silveira, enfiou numa sacola única o elogio retórico do AI-5 e os crimes de incitação à violência e ameaça. Ao redigir a Lei do Estado Democrático, a Câmara avaliza a manobra dos supremos juízes.

“A Constituição não permite a propagação de ideias contrárias ao Estado democrático”, escreveu o STF ao tornar réu o parlamentar bolsonarista. Falso! Nada, na Carta de 1988, proíbe defender ideias autoritárias. Silveira tem o direito de elogiar o regime militar e suas leis, assim como comunistas da velha estirpe estão cobertos pelo princípio da liberdade de expressão ao propor a substituição do Congresso pelos sovietes. O que é proibido, para um como para os outros, é cruzar o limite entre a palavra e a ação.

Gilmar Mendes sustentou a criminalização da difusão de ideias autoritárias com base no conceito legal alemão de democracia militante (streitbare Demokratie). A Constituição da República Federal Alemã, de 1949, veta a negação do Holocausto e o uso da suástica. Mas o Brasil, que nunca experimentou algo como o nazismo, não se define como democracia militante. Por aqui, só são puníveis explícitos discursos de ódio contra segmentos da população, além de calúnia, injúria ou difamação.

A caduca LSN é um código de uma ditadura militante (há outro tipo?). No seu artigo 23, criminaliza “incitar à subversão da ordem política ou social”, expressão que permite encarcerar o comunista ortodoxo por palavras proferidas numa entrevista ou passeata pacífica. A nova Lei do Estado Democrático tipifica vagamente crimes “contra as instituições democráticas” e de disseminação “de fatos inverídicos” em redes sociais no curso de processos eleitorais. Na forma como redigida pela Câmara, oferece caminhos para encarcerar o cachorro que apenas late.

Talíria Petrone, líder do PSOL, identificou os contornos da besta: “Sabemos bem como esses tipos penais abertos podem levar à criminalização de movimentos sociais”. O PSOL ama a ditadura castrista, que persegue movimentos sociais como as Damas de Branco ou o Movimento San Isidro por meio da acusação legal de subversão. Mas a duplicidade moral não impugna a crítica específica: o texto pode, efetivamente, ser interpretado de modo a punir a mera palavra subversiva, tanto de direita quanto de esquerda.

“Não seríamos nós que iríamos escrever uma lei que perseguisse os movimentos sociais”, retrucou Orlando Silva. O deputado do PC do B é um pândego: seu partido ama de paixão o regime totalitário chinês, que editou a Lei de Segurança de Hong Kong, uma LSN com esteroides, para encarcerar os estudantes do Movimento Guarda-Chuva.

Há pouco, um popular youtuber investiu no negócio da moda, que é rotular Bolsonaro como genocida. André Mendonça, então ministro da Intimidação, poderia processá-lo por calúnia, exigindo retratação. Preferiu, porém, erguer a espada afiada da LSN. Quando apreciar o texto proveniente da Câmara, o Senado tem o dever de evitar a promulgação de uma “LSN do Bem” que, inevitavelmente, serviria aos propósitos dos Mendonças vindouros.

Já temos leis suficientes sobre as fronteiras da liberdade de palavra. A Lei do Estado Democrático deve se circunscrever à ação violenta contra as instituições. Nossa democracia não milita.

Fonte:

Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/demetriomagnoli/2021/05/a-democracia-nao-milita.shtml


Demétrio Magnoli: Envelhecer antes de enriquecer

‘Três Anos de Desastres Naturais’ — foi assim que, cinicamente, o Estado maoísta batizou um dos maiores ciclos de fome registrados na história. Na China, entre 1959 e 1962, algo entre 15 e 55 milhões de pessoas morreram de fome. Os “Três Anos de Dificuldade”, na terminologia reinventada em 1981, configuraram o solitário período de declínio populacional desde a fundação da República Popular da China, em 1949. Agora, um tanto ressabiado, o regime chinês prepara-se para anunciar que o declínio populacional tornou-se o novo normal.

O Brasil, sob Bolsonaro, já não consegue realizar censo. A China completou em dezembro seu censo decenal — e descobriu, com alguma surpresa, que sua população não atingiu 1,4 bilhão. Na Grande Fome, a taxa de fertilidade desabou bruscamente de 6,4 filhos por mulher, em 1957, para 3,3, em 1961, antes de se recuperar. Hoje, é de 1,7, pouco menor que a dos EUA (1,8) e aproximando-se da taxa da União Europeia (1,55). A China é o singular exemplo histórico de país que envelheceu antes de enriquecer.

Excluindo eventos extremos, como a Grande Fome, as curvas de taxas de fertilidade comportam-se mais ou menos como imagens invertidas das curvas do PIB per capita. As famílias têm menos filhos à medida que aumentam os custos de criação e caem os incentivos para uniões precoces. Na China, porém, a regra foi rompida pela ação de um regime totalitário. O governo introduziu a política de dois filhos por casal em 1970 e, uma década depois, estabeleceu o objetivo do filho único. O impacto de longo prazo do antinatalismo radical evidencia-se na implosão demográfica em curso.

A taxa de fertilidade recuou de 5,7, em 1970, para, 1,6 em 2000. A curiosa pirâmide etária chinesa exibe uma contração acentuada na faixa de 35 a 44 anos: o vazio deixado pelo forte recuo da natalidade no decênio iniciado em 1975. As sanções destinadas a impor o filho único foram relaxadas desde meados da década de 1980, e, a partir de 2015, o regime passou a estimular as famílias a ter dois filhos. Pouco adiantou: o gênio do controle reprodutivo não voltará à garrafa.

Na Índia, a taxa de fertilidade ainda gira em torno de 2,2. Há pouco, projetava-se que a população indiana se tornaria a maior do mundo em 2026. Tudo indica que a ultrapassagem ocorrerá antes, mas isso é quase irrelevante. Por outro lado, os impactos da implosão demográfica chinesa não devem ser subestimados — e interessam ao mundo inteiro.

A expansão econômica da China baseou-se, desde 1980, na agregação de massas de trabalhadores ao sistema industrial. O envelhecimento demográfico já se tornou um fator limitante, provocando aumento no custo da força de trabalho. O PIB chinês, que crescia a taxas médias superiores a 10% entre 1992 e a crise financeira global de 2010, acomodou-se em torno de 6% às vésperas da pandemia. A China atual só pode seguir crescendo pela via de uma contínua escalada tecnológica. Isso exige conservar a rede de intercâmbios que a prende à economia global, um imperativo com óbvias repercussões geopolíticas.

A taxa de fertilidade da China é quase igual à dos EUA, mas seu PIB per capita situa-se anos-luz atrás (US$ 10,2 mil, contra US$ 65,3 mil). A idade média de chineses e americanos é quase igual (38,4 anos). A política antinatalista maoísta eliminou as antigas famílias numerosas que asseguravam a sobrevivência dos idosos. As reformas de mercado pós-maoístas tiraram dos trabalhadores urbanos as garantias de emprego, moradia e saúde chamadas de “tigela de arroz de ferro”. A Lei de Seguro Social, de 2011, criou o atual sistema previdenciário nacional, uma ficção burocrática ignorada pela maior parte das empresas.

A crise saltou ao palco político em 2014, quando os 40 mil operários de uma fábrica em Cantão descobriram que seus direitos previdenciários eram sonegados — e engajaram-se numa inédita greve de duas semanas, que iluminou os contornos do capitalismo selvagem chinês. EUA, Europa e Japão enfrentam o desafio de oferecer previdência a suas vastas populações idosas. A China encara um dilema similar muito antes de enriquecer.

Fonte:

O Globo

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Demétrio Magnoli: O general que obedecia

“Um manda, outro obedece”. Eduardo Pazuello, o general que logo sentará na cadeira de testemunhas da CPI da Covid, carrega um álibi no bolso, mas pensará duas vezes antes de invocá-lo. A alegação permitiria à CPI saltar as etapas intermediárias, girando seus holofotes diretamente para a suposta fonte das ordens, que é Bolsonaro. Além disso, como revela a história argentina, não seria capaz de livrá-lo da responsabilidade por seus próprios atos.

Sob pressão militar, Raúl Alfonsín, o primeiro presidente da redemocratização argentina, anunciou em março de 1987 a edição de uma lei destinada a interromper inúmeros processos por crimes contra a humanidade. A Lei de Obediência Devida foi antecipada pela sublevação dos “carapintadas”, comandada por um tenente-coronel condecorado na Guerra das Malvinas, na Escola de Infantaria do Campo de Mayo, durante a Semana Santa. Promulgada em junho de 1987, tornou inimputáveis cerca de 500 oficiais indiciados por torturas, “desaparecimentos” e assassinatos durante a ditadura militar.

A lei erguia-se sobre o reconhecimento de que as Forças Armadas operam com base na regra da “obediência devida” —ou seja, os subordinados na cadeia de comando cumprem “atos de serviço”. Contudo, mesmo cedendo à chantagem dos quartéis para estabilizar uma jovem democracia acuada, o presidente eleito introduziu uma cláusula limitante: o benefício da impunidade só seria concedido a oficiais com patentes inferiores a coronel. Pazuello teria que responder por suas ações e omissões até na Argentina abalada pelos motins militares.

O conceito de obediência devida sustentou a defesa do nazista Adolf Eichmann no célebre julgamento em Jerusalém, em 1961. Seu advogado, Robert Servatius, declarou que o coronel da SS responsável pela deportação dos judeus aos campos de extermínio era “culpado diante de Deus, não diante da lei”. Na Argentina, a Lei de Obediência Devida foi derrogada pelo Congresso em 1998 e declarada inconstitucional pela Corte Suprema em 2005. Crimes contra a humanidade não são passíveis de anistia, decidiram os juízes.

Pazuello não cometeu crimes contra a humanidade, mas crimes potenciais contra a saúde pública que se estendem da postergação da compra de vacinas à divulgação de falsos tratamentos milagrosos contra a Covid-19, passando pela distribuição de cloroquina a hospitais de Manaus carentes de oxigênio. Nem assim, porém, o álibi dos “atos de serviço” pode ser admitido na CPI.

O general obediente permaneceu na ativa quando assumiu o cargo de ministro da Saúde, borrando um pouco mais a fronteira democrática que separa as Forças Armadas do governo. Sua deliberação pessoal, contudo, em nada altera o fato institucional de que ministros são auxiliares políticos do presidente, não subordinados numa hierarquia militar. Diante dos senadores da CPI, deporá um político fantasiado em uniforme militar, não um oficial sujeito à cadeia de comando castrense.

Eichmann e os oficiais argentinos estavam submetidos a ordens superiores. Entretanto, não agiam automaticamente, à moda de robôs: cotejavam, numa balança invisível, o peso das hipotéticas punições por desobediência contra os imperativos das suas consciências. Como explicou Kant, eles continuavam a dispor de autonomia e decidiram cumprir ordens abomináveis. Seus crimes resultaram de obediência consentida, não de obediência devida.

Pazuello, como eles, mas encarando consequências muito menores, poderia ter dito “não”.

Alfonsín concedeu bastante, até um certo limite. No Processo das Juntas, em 1985, os chefes militares que emitiram as ordens da “guerra suja” foram sentenciados e encarcerados. A CPI tem o dever de analisar as responsabilidades pessoais do general que obedecia, mas não tem o direito de usá-lo como bode expiatório, fingindo que ninguém emitia as ordens desastrosas.

Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/demetriomagnoli/2021/04/o-general-que-obedecia.shtml


Demétrio Magnoli e Elaine Senise Barbosa: ‘Uma morte social mais inquietante’

‘O barulhento Dionísio, convém não esquecer, é ao mesmo tempo o deus do amor e da morte.’ O alerta do sociólogo Michel Maffesoli, em “A sombra de Dionísio”, tornou-se mais atual do que nunca nesta nova Era da Peste. Na madrugada do domingo do carnaval que não houve, 14 de fevereiro, um repórter de São Paulo registrou, caprichando na precisão: “As mais de 237.489 mortes não conseguiram deter realizadores de bailes funk, nos bairros de Itaquera e Guaianases”. Somos os mesmos que nossos ancestrais do século 14.

A Peste chegou à Europa em 1348, junto com embarcações dos comerciantes italianos provenientes do Mar Negro e de Bizâncio. Espalhou-se rapidamente, seguindo as rotas comerciais: cidades do Mediterrâneo, Europa Central e, na sequência, o Norte e as planícies russas. Tudo isso até 1352. As festas da Peste foram documentadas por cronistas da época.

Cerca de um terço da população europeia, algo em torno de 8 milhões de almas, pereceu em apenas uma década. Depois, a epidemia repicou várias vezes, em ondas sucessivas que voltaram a afligir cidades já açoitadas. Os habitantes de Florença logo entenderam os perigos da aglomeração humana, como relata Giovanni Boccaccio (1313-75) no “Decamerão”. Bactérias só foram observadas três séculos mais tarde, mas já se sabia, à época, que a água era fonte de infecções. Tal como na Peste do Vírus dos nossos dias, os ricos fugiram rumo às suas villas, no entorno rural, distanciando-se dos “ares pestilentos”.

Os demais — comerciantes, artesãos e o proletariado original —ficaram, por falta de alternativa. E morreram, às centenas, diariamente. A morte distingue classes, mas, paradoxalmente, opera como grande evento nivelador, que lembra a todos sobre a vanidade da vida. No século da Peste, emergiram, em diferentes pontos da Europa, representações da “Dança Macabra” em que cardeais, príncipes e damas dançam com esqueletos.

Dança e vinho. A festa, celebração da dialética entre vida e morte, acompanhou a pandemia, tanto nas villas do isolamento quanto nas cidades pestilentas. Festejava-se por ainda viver. Rompiam-se as regras para confrontar a morte ou desafiar Deus. Hoje, atribuímos a Covid-19 ao vírus — isto é, às armadilhas da seleção natural. Na peste bubônica, como alguns o fazem ainda agora, creditava-se o horror à vontade de Deus, que castigava os humanos ímpios. Daí, um passo adiante, alguns chegavam à descrença.

Gargalhar na cara do inevitável, do Juízo Final. Dançava-se ao som da música não religiosa, que florescia em formas inovadoras, como o rondó e a balada. Sob o medo da morte, o frenesi da festa resgatava as interações socais que conferem sentido à vida. A música secular difundiu-se justamente no rastro da Peste, rodando as engrenagens do individualismo moderno, com seu “eu lírico”.

Triunfo de Dionísio, o feio e coxo, sobre Apolo, certinho e áureo. Vida e morte: as festas dionisíacas originais, da velha Grécia, terminavam com o sacrifício um tanto violento de um boi, que seria comido por todos num grande ato de restauração e congraçamento. Na festa, “o que importa é a pulsão irreprimível do querer viver que, ao manifestar-se, não mais receia assimilar as ‘pequenas mortes’ sucessivas — ‘sabendo’ que, assim, se protege ritualmente de uma morte social bem mais inquietante” (Maffesoli). Carpe diem.

As autoridades medievais bem que tentaram controlar, mas fracassaram. Os escassos cronistas da época concordam na avaliação de que o comportamento das pessoas ficou pior, não mais piedoso. Dizem, hoje, cenhos carregados, que aglomerar para trabalhar é virtuoso, mas a aglomeração de folguedos atenta, no mínimo, contra um protocolo sanitário e moral. Na Peste, nem todos festejavam. Havia, claro, os que se fechavam nas igrejas, rezando pelo perdão divino — e contribuindo igualmente para os contágios. Os cultos coletivos, antes como agora, não foram proibidos.

Pandemias são continuidade, mais que ruptura. A Grande Peste medieval ajudou a descolar o indivíduo da coletividade, a disseminar a economia monetária e sua riqueza portátil. A festa é parte dessa história, tão antiga e tão próxima.*Sociólogo e conselheiro do Centro Brasileiro de Relações Internacionais;

**Historiadora e editora-executiva do site 1948 – Declaração Universal dos Direitos Humanos


Demétrio Magnoli: Retirada americana do Afeganistão é tão inevitável quanto a do Vietnã

O dia da queda de Cabul marcará um bárbaro retrocesso

No 11 de setembro, exatos 20 anos depois dos atentados jihadistas de 2001, as forças americanas e da Otan deixarão o Afeganistão, encerrando a mais longa guerra da história dos EUA. Quase meio século atrás, em janeiro de 1973, os Acordos de Paris colocaram ponto final no envolvimento militar dos EUA no Vietnã. No 30 de abril de 1975, as forças do Vietnã do Norte capturaram Saigon, capital do Vietnã do Sul. De quanto tempo, depois de setembro, precisará o Taleban para tomar Cabul?

O Afeganistão, cemitério de potências, foi o palco principal do Grande Jogo, a disputa política, diplomática e militar travada entre os impérios britânico e russo, desde 1830 até 1895, pelo controle sobre a Ásia Central. No país montanhoso, dominado pela cordilheira do Hindu Kush, sem saídas marítimas, a URSS travou sua última guerra, de 1979 a 1989, o conflito que empurrou o Império Vermelho ao precipício. O Taleban e a Al Qaeda nasceram das ruínas daquela guerra.

Obama definiu a intervenção americana no Afeganistão como a “guerra inevitável”, por oposição à “guerra estúpida” no Iraque. O 11 de setembro de 2001 não deixava alternativa senão a derrubada do regime do Taleban e a eliminação das forças da Al Qaeda abrigadas no país.

Mas George W. Bush e, especialmente, o cortejo de neoconservadores que comandaram sua política externa, queriam mais. A ambição geopolítica de hegemonia sobre o “coração da Ásia” inspirou a estratégia de “construção da nação” —e, por consequência, uma prolongada ocupação do Afeganistão. A “guerra inevitável” converteu-se numa segunda “guerra estúpida”.

Nos EUA, desde Woodrow Wilson, a realpolitik deve ser coberta pela túnica dos valores e ideais. Prometeu-se aos afegãos democracia, liberdades públicas, a igualdade das mulheres. A Constituição de 2004 garante, ao menos em palavras, os direitos básicos de cidadania. Ironicamente, sob esse ponto de vista, a presença militar americana separa os afegãos do fundamentalismo religioso tirânico. O dia da queda de Cabul marcará um bárbaro retrocesso.

A retirada do Afeganistão é tão inevitável quanto a do Vietnã —e por razões similares. Os americanos cansaram das guerras sem fim e, para eles, sem sentido. Os Acordos de Paris de 1973 foram negociados por todas as partes, inclusive o Vietnã do Sul, e previam um cessar-fogo. Dessa vez, os EUA correram rumo à porta de saída. Trump firmou com o Taleban um acordo de paz bilateral, que excluiu o governo afegão e só previne ataques contra as forças ocidentais. Biden adotou-o quase por inteiro, apenas postergando em quatro meses a retirada.

“Nós ganhamos a guerra e os americanos perderam”, declarou Haji Hekmat, um alto comandante do Taleban, enquanto Biden anunciava a data fatal. O Exército afegão, composto por 175 mil tropas e 150 mil paramilitares, é um tigre de papel. Sem o apoio aéreo fornecido pelos EUA, ninguém acredita que sobreviverá ao choque direto com o Taleban. Vietnã, outra vez.
2021 não é 2001. A Al Qaeda só existe como fiapos, e o Talebã dificilmente voltará a abrigar jihadistas dispostos a atacar os EUA. A retirada justifica-se, à luz da segurança nacional americana. Mas, ao contrário do Vietnã, é um ato de traição.

Na hora da queda de Saigon, em operação frenética, os EUA evacuaram mais de 7.000 pessoas, inclusive milhares de políticos e funcionários sul-vietnamitas. Nos anos seguintes, centenas de milhares embarcaram em frágeis botes para tentar a travessia do golfo da Tailândia e do mar do Sul da China. Mesmo assim, o êxodo abrangeu um setor minoritário associado, direta ou indiretamente, ao antigo regime.

Não haverá helicópteros americanos no dia da queda de Cabul. O povo afegão será deixado para trás, nas mãos dos fanáticos do Taleban e sua polícia religiosa. As mulheres serão trancafiadas em casa e não haverá escola para as meninas.​

*Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Demétrio Magnoli: Biopolítica da pandemia

Narrativa de que o totalitarismo é mais eficiente na contenção do contágio está errada

A eclosão da Covid-19 em Wuhan, em dezembro de 2019, foi muito mais ampla do que se imaginava. Naquele mês, circulavam ao menos 13 variantes da cepa A do novo coronavírus na cidade chinesa, uma indicação de que a doença já se difundia, silenciosamente, havia tempo. A descoberta da missão da OMS na China lança luz sobre a transformação de uma epidemia localizada na mais dramática pandemia desde a gripe espanhola.

O percurso derivou de uma conjugação de fatores políticos e biológicos. Sob o peso de um lockdown aplicado com a força implacável de um Estado totalitário, Wuhan emergiu da onda de contágios com poucos milhares de mortos. As cifras modestas desarmaram os espíritos no resto do mundo, semeando a complacência inicial. Daí, em março de 2020, uma avalanche de óbitos atingiu a Lombardia, deflagrando o lockdown italiano, logo replicado em diversos países europeus.Hoje sabemos que o desastre não seria tão trágico sem a mutação D614G, sofrida pelo vírus na Europa, fonte das variantes dominantes no resto do mundo. O coronavírus da cepa “original” (A) era menos transmissível que o B.1, difundido fora da China. Não é preciso ser um Estado totalitário para impor um lockdown decisivo. A diferença entre a China e a Itália situou-se na esfera da biologia. Mas o fenômeno desvenda a escala das responsabilidades políticas da China.
árvore de mutações virais não tinha sido desenhada em meados de 2019. Naquele ponto, diante do chocante contraste entre a taxa de óbitos em Wuhan e na Lombardia, analistas suspeitaram que a China escondia pilhas de cadáveres. Sabe-se, agora, que isso não ocorreu.

Obcecado pelo segredo, hipnotizado por cálculos de prestígio, o regime chinês suprimiu a notícia dos primeiros casos detectados e ocultou a extensão dos contágios. O tempo perdido propiciou a disseminação subterrânea do vírus fora da China e a eclosão das variantes que vergaram o mundo inteiro.Vírus mudam sem parar, mas só prevalecem as mutações que aumentam suas oportunidades de reprodução. Normalmente, essa regra evolucionária reduz a letalidade, pois matar o hospedeiro contribui negativamente na velocidade de transmissão. A regra, porém, parece não valer para o novo coronavírus porque a fase de contágio intenso se dá nos dias iniciais da doença, quando a carga viral concentra-se na garganta. Assim, do ponto de vista do vírus, uma letalidade maior não traz desvantagens.
Desse modo, explica-se o surgimento recente de variantes não só mais transmissíveis como, também, mais letais no Reino Unido, na África do Sul e no Brasil. As novas ondas pandêmicas resultam, ao menos em parte, da trajetória evolutiva de um vírus que se espalhou por toda a humanidade, expandindo suas oportunidades de mutação.
A história da pandemia, que começa a ser contada, impugna o elogio da China. A narrativa de que o totalitarismo é mais eficiente na contenção do contágio está errada. A verdade é que o regime chinês lidou com um vírus menos eficiente. Inversamente, é falsa a afirmação de que o Ocidente fracassou no combate à pandemia. A verdade é que, por culpa da China, reagiu tardiamente, quando a Covid já se disseminara nas sociedades, e enfrentou variantes mais transmissíveis do vírus.

2021, Ano 2 da pandemia, abre a etapa da imunização. A China, triunfante no Ano 1, vacina em ritmo lento, enquanto EUA, Reino Unido e, logo, União Europeia, protegerão antes suas populações.

A balança geopolítica tende a se inclinar para o lado das sociedades imunizadas, que poderão reabrir com segurança suas economias e suas fronteiras. Mas, no fim das contas, tudo depende de uma escolha política crucial de Joe Biden. Se os EUA se fecharem no nacionalismo vacinal, perderão sua vantagem potencial. Se, pelo contrário, liderarem o esforço de vacinação dos países em desenvolvimento, virarão o jogo.


Demétrio Magnoli: A cidade de Crivella

Não há como fugir à constatação de que prefeito venceu no primeiro turno em territórios controlados por uma milícia específica

No primeiro turno das eleições municipais de São Paulo, Bruno Covas (PSDB) obteve 33% dos votos, e Guilherme Boulos (PSOL), seu rival no segundo turno, 20%. A ampla diferença, de 13 pontos percentuais, refletiu-se no triunfo de Covas em todos os distritos da capital paulista. No primeiro turno do Rio de Janeiro, Eduardo Paes (DEM) conseguiu 37% dos votos, contra 22% de Marcelo Crivella (Republicanos). Mas a diferença, de 15 pontos percentuais, não se traduziu por vitórias de Paes em todos os distritos. O atual prefeito venceu em cinco zonas eleitorais, quatro delas situadas na Zona Oeste. O mapa eleitoral conta uma história sobre o Rio.

Há uma regra sociológica geral, violada pelo mapa do primeiro turno no Rio. No caso de eleições decididas por margens apertadas, é normal que se verifiquem vencedores distintos em diferentes regiões. Contudo, em pleitos muito assimétricos, o primeiro colocado triunfa em todas as grandes regiões. As exceções merecem análise específica, pois decorrem de cisões sociais marcantes. O mapa de Crivella inscreve-se nessa categoria.

A cisão de renda não explica o fenômeno. Certamente, o atual prefeito obteve suas escassas vitórias em áreas pobres da cidade — mas não em todas, nem na maioria delas. O cenário Leblon versus Campo Grande, tão atraente para analistas apressados, distorce radicalmente a realidade eleitoral do primeiro turno. Prova disso está nos triunfos de Paes em diversos bairros ainda mais pobres da própria Zona Oeste.

A influência neopentecostal da Igreja Universal explica apenas um aspecto do fenômeno. A Universal opera com força em quase todas as periferias da cidade, não apenas nos bairros que deram maioria ao prefeito. Não há como fugir à constatação de que Crivella venceu em territórios controlados por uma milícia específica.

A territorialização de grupos armados ilegais percorre duas etapas clássicas. Na primeira, os milicianos estabelecem redes de negócios, explorando o mercado compulsório formado pelos habitantes das áreas sob seu domínio. Na segunda, a fim de consolidar tais atividades econômicas, infiltram-se na esfera política, capturando instituições estatais. O mapa de Crivella evidencia o grau de progresso das milícias cariocas nessa direção.

No Rio, as milícias nasceram no interior da polícia, um aparato estatal, e já operam há tempo na política, elegendo vereadores e deputados. A impunidade prolongada dos grupos de milicianos, bem como a natureza explícita de seus negócios, indica a cumplicidade passiva ou ativa de sucessivos governos estaduais e municipais com essas organizações criminosas. Policiais-milicianos foram celebrados e agraciados por comendas parlamentares. As casamatas das milícias atravessaram, intocadas, o longo período de intervenção militar federal na segurança pública do estado. Hoje, em certas regiões da cidade, como revela o mapa de Crivella, as milícias sequestraram o direito de voto dos cidadãos.

Campo Grande, centro do mapa de Crivella, é a base da Liga da Justiça (hoje Bonde do Ecko), maior milícia carioca, fundada pelos irmãos Natalino Guimarães, ex-deputado estadual, e Jerominho Guimarães, ex-vereador. A milícia expandiu-se para a Baixada Fluminense e controla negócios variados e bem conhecidos, com um foco especial em condomínios do programa Minha Casa Minha Vida.

As empresas do grupo financiam campanhas eleitorais de inúmeros candidatos. Um inquérito policial apura o envolvimento de milicianos do Bonde do Ecko no assassinato de diversos pré-candidatos rivais às câmaras de vereadores da Baixada Fluminense, do ano passado para cá. Desde as eleições de 2016, a organização criminosa tem candidato a prefeito — e o nome dele é Crivella. A cruz do pastor e a arma do miliciano marcham juntas na Zona Oeste do Rio.

O conceito de “Estado falido” aplica-se aos países em que o poder estatal perdeu, total ou parcialmente, o monopólio da força. O Brasil ainda não pode ser rotulado como “Estado falido”, mas a classificação descreve à perfeição a paisagem de sua segunda maior cidade. O mapa eleitoral não mente.