Demétrio Magnoli: Quem é a polícia do B?

Presidente da República em exercício, Hamilton Mourão, durante Sessão Solene de posse dos novos dirigentes do Tribunal Regional Federal da 4ª Região.
Presidente da República em exercício, Hamilton Mourão, durante Sessão Solene de posse dos novos dirigentes do Tribunal Regional Federal da 4ª Região.

Tudo bandido!, decretou Hamilton Mourão horas depois do massacre no Jacarezinho, em 6 de maio, quando indagado sobre 27 das 28 vítimas fatais. O vice-presidente só conhecia a identidade do policial morto. Os supostos criminosos não tinham sido processados, julgados ou condenados. A segunda maior autoridade do país oferecia seu amparo a execuções extrajudiciais.

Mais: classificando como “bandidos” as vítimas ainda não identificadas, dizia implicitamente que são criminosos os que residem ou simplesmente circulam pelo Jacarezinho. A frase, síntese da barbárie nacional, esclarece os protocolos ocultos de ação da polícia no Rio de Janeiro. Desde o fracasso da política das UPPs, restaurou-se o padrão de invasão de favelas em operações letais. O pressuposto é que as favelas são terra estrangeira e seus moradores, combatentes inimigos.

Exige-se a investigação da Operação Exceptis, cujo nome de batismo enviava uma mensagem voluntária de deboche ao STF e uma outra, involuntária, a todo o país: a polícia do Rio não reconhece as leis regulares, mas apenas suas próprias leis, de “exceção”. O que procurar, porém, na investigação?

A resposta depende da hipótese inicial. Se acreditamos que a polícia do Rio é um corpo armado que opera sem planejamento e sem protocolos, a investigação deveria restringir-se aos desvios em relação aos padrões normais de ação policial e terminar com a punição dos agentes culpados. Mas tudo indica que a polícia segue planejamento e protocolos bem definidos, embora ocultos.

Na cidade do Rio, quase 60% da superfície dos territórios controlados por grupos armados irregulares encontram-se sob o comando de milícias, ou seja, da polícia do B. Apenas 15% são controlados por facções do crime, enquanto 25% são áreas de parceria ou disputa. Contudo a imensa maioria das operações policiais incide sobre os territórios de facções. É coisa incomum a ação da polícia oficial nos territórios de milícias — e mais raros ainda, os eventos de choques entre policiais e milicianos. Não estaríamos diante de uma aliança tácita entre a polícia e as milícias para estender o controle territorial das segundas?

O Jacarezinho situa-se nas vizinhanças da Cidade da Polícia, base principal das chefias e unidades operacionais da Polícia Civil. A favela vive sob a maior facção criminosa do Rio, um grupo sanguinário que nunca faz parceria com as milícias. A facção concorrente, pelo contrário, não rejeita parcerias baseadas numa nítida divisão de trabalho: os traficantes cuidam da venda de drogas, enquanto os milicianos dedicam-se à extorsão de comerciantes e moradores. A seleção do Jacarezinho para a Operação Exceptis parece obedecer a uma lógica de negócios. Quem ganha com uma eventual troca de guarda na favela?

A estúpida “guerra às drogas” é o pano de fundo e o álibi, mas não a causa, do massacre mais recente. Polícia é política. Uma investigação verdadeira do banho de sangue teria que ir muito além da operação no Jacarezinho, em busca das conexões subterrâneas entre a polícia oficial e a polícia do B.

O prefeito Eduardo Paes oscilou entre a condenação à violência da polícia e a crítica às restrições impostas pelo STF às ações policiais. “Se a reação for tão radical quanto a operação de ontem, um ‘ah, então libera geral esse território aqui para fazerem o que quiserem’, nós vamos viver esse pêndulo terrível que vitimiza principalmente as pessoas que moram em comunidades.” O “pêndulo terrível”, porém, instalou-se há décadas, e o “libera geral” exprime a postura estatal diante das milícias.

Paes identifica corretamente “as pessoas que moram em comunidades” como as vítimas da crônica guerra suja no Rio. Contudo finge que a solução encontra-se em olhar para outro lado, isto é, voltar à estranha “normalidade” vigente na segunda maior metrópole do país. Se ele se preocupa com as vítimas, deve clamar por uma “reação radical”: a implantação do Estado de Direito no conjunto da cidade que administra. Para isso, antes de tudo, é preciso reconhecer que a polícia oficial já não se distingue da polícia do B.

Fonte:

O Globo

https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/quem-e-policia-do-b.html

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