JACAREZINHO

Demétrio Magnoli: Quem é a polícia do B?

Tudo bandido!, decretou Hamilton Mourão horas depois do massacre no Jacarezinho, em 6 de maio, quando indagado sobre 27 das 28 vítimas fatais. O vice-presidente só conhecia a identidade do policial morto. Os supostos criminosos não tinham sido processados, julgados ou condenados. A segunda maior autoridade do país oferecia seu amparo a execuções extrajudiciais.

Mais: classificando como “bandidos” as vítimas ainda não identificadas, dizia implicitamente que são criminosos os que residem ou simplesmente circulam pelo Jacarezinho. A frase, síntese da barbárie nacional, esclarece os protocolos ocultos de ação da polícia no Rio de Janeiro. Desde o fracasso da política das UPPs, restaurou-se o padrão de invasão de favelas em operações letais. O pressuposto é que as favelas são terra estrangeira e seus moradores, combatentes inimigos.

Exige-se a investigação da Operação Exceptis, cujo nome de batismo enviava uma mensagem voluntária de deboche ao STF e uma outra, involuntária, a todo o país: a polícia do Rio não reconhece as leis regulares, mas apenas suas próprias leis, de “exceção”. O que procurar, porém, na investigação?

A resposta depende da hipótese inicial. Se acreditamos que a polícia do Rio é um corpo armado que opera sem planejamento e sem protocolos, a investigação deveria restringir-se aos desvios em relação aos padrões normais de ação policial e terminar com a punição dos agentes culpados. Mas tudo indica que a polícia segue planejamento e protocolos bem definidos, embora ocultos.

Na cidade do Rio, quase 60% da superfície dos territórios controlados por grupos armados irregulares encontram-se sob o comando de milícias, ou seja, da polícia do B. Apenas 15% são controlados por facções do crime, enquanto 25% são áreas de parceria ou disputa. Contudo a imensa maioria das operações policiais incide sobre os territórios de facções. É coisa incomum a ação da polícia oficial nos territórios de milícias — e mais raros ainda, os eventos de choques entre policiais e milicianos. Não estaríamos diante de uma aliança tácita entre a polícia e as milícias para estender o controle territorial das segundas?

O Jacarezinho situa-se nas vizinhanças da Cidade da Polícia, base principal das chefias e unidades operacionais da Polícia Civil. A favela vive sob a maior facção criminosa do Rio, um grupo sanguinário que nunca faz parceria com as milícias. A facção concorrente, pelo contrário, não rejeita parcerias baseadas numa nítida divisão de trabalho: os traficantes cuidam da venda de drogas, enquanto os milicianos dedicam-se à extorsão de comerciantes e moradores. A seleção do Jacarezinho para a Operação Exceptis parece obedecer a uma lógica de negócios. Quem ganha com uma eventual troca de guarda na favela?

A estúpida “guerra às drogas” é o pano de fundo e o álibi, mas não a causa, do massacre mais recente. Polícia é política. Uma investigação verdadeira do banho de sangue teria que ir muito além da operação no Jacarezinho, em busca das conexões subterrâneas entre a polícia oficial e a polícia do B.

O prefeito Eduardo Paes oscilou entre a condenação à violência da polícia e a crítica às restrições impostas pelo STF às ações policiais. “Se a reação for tão radical quanto a operação de ontem, um ‘ah, então libera geral esse território aqui para fazerem o que quiserem’, nós vamos viver esse pêndulo terrível que vitimiza principalmente as pessoas que moram em comunidades.” O “pêndulo terrível”, porém, instalou-se há décadas, e o “libera geral” exprime a postura estatal diante das milícias.

Paes identifica corretamente “as pessoas que moram em comunidades” como as vítimas da crônica guerra suja no Rio. Contudo finge que a solução encontra-se em olhar para outro lado, isto é, voltar à estranha “normalidade” vigente na segunda maior metrópole do país. Se ele se preocupa com as vítimas, deve clamar por uma “reação radical”: a implantação do Estado de Direito no conjunto da cidade que administra. Para isso, antes de tudo, é preciso reconhecer que a polícia oficial já não se distingue da polícia do B.

Fonte:

O Globo

https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/quem-e-policia-do-b.html


Michel Misse e Paulo Baía: Jacarezinho – O ativismo nada jurídico dos delegados e a República

Ainda no Brasil atual, como no passado, a pergunta que deveria ecoar em todos os ouvidos dos brasileiros é a seguinte: Quanto vale a vida de um cidadão brasileiro para o Estado? E para um delegado de polícia que o representa em suas atribuições? A Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, por seus responsáveis, os delegados de polícia, está aí a afrontar a vida, as leis e a decisão do STF, como puderam constatar os moradores da favela do Jacarezinho, mais uma vez, no último dia 6 de maio. Se não, vejamos.

No Brasil Império, o chefe de polícia era, por lei, um juiz. Na falta de juízes para atender a esse imenso continente que é o Brasil, criou-se, como figura provisória, um representante do juiz, por delegação, para os municípios onde não havia juiz para chefiar a polícia. Foi com essa delegação que surgiu o original cargo de delegado de polícia.

Na República, ele continuou a ser o responsável pelo inquérito policial, cabendo aos comissários distritais a chefia de investigações e diligências cotidianas. Mais tarde, em função de sua responsabilidade jurídica no inquérito policial, determinou a lei que, em concurso público para o cargo, os candidatos a delegados de polícia deveriam ser bacharéis em direito, aprovados pela OAB.

Tudo isso, evidentemente, para garantir responsabilidade jurídica pelos procedimentos de investigação e esclarecimento dos crimes e de diligências ou operações para a incriminação dos suspeitos. Policiais bacharéis garantiriam as normas constitucionais e do processo penal.

Ao contrário de ser formado por instituições garantidoras do seu pleno funcionamento, responsáveis por torná-lo eficiente, público, e ordenador para que a Constituição que o rege seja cumprida, o que mais uma vez verificamos é uma contrafação do poder público pela violência unilateral de seus agentes, com a ideia fixa de que só pela violência ilegal é possível enfrentar bandos urbanos de pequenos traficantes armados, moradores de favelas.

É o que se tem visto no Rio de Janeiro há décadas, sem que haja qualquer avanço significativo nessa área que não seja também de tipo ilegal. Como a responsabilidade pode ser apurada, nesses casos?

Quanto vale a vida de um cidadão brasileiro para as nossas polícias e para os nossos delegados inquisidores da polícia judiciária, que até outubro de 1988 tinham o poder de decretar prisões preventivas sem limite de prazo? Talvez tenhamos que ir mais longe ao elaborar a questão.

De que material a nossa coisa pública foi e é constituída? As polícias – nós sabemos bem –, são antigas donas do açoite a escravizados, seus descendentes e pobres de maneira ampla. No Brasil contemporâneo, com sua permanente desigualdade e hierarquização social, temos facções lutando contra facções, sejam elas políticas, criminosas ou de negociantes pelos butins dos ilícitos.

Enredados nessas guerras intestinas, deixamos de olhar para a questão central – qual é a nação que desejamos construir como um projeto de República? Qual a República que se sustenta tendo como prática a violência sistemática e as sucessivas e inócuas matanças feitas pelos agentes públicos em nome do combate ao crime? A que conceito de ordem pública a mentalidade policial reinante está submetida?

Planejamento

delegado Rodrigo Oliveira, subsecretário de Planejamento e Integração Operacional da Polícia Civil, que atuou na Operação do Jacarezinho no último dia 6/5, onde 28 brasileiros morreram, disse em entrevista coletiva que houve um planejamento de inteligência da polícia judiciária, mas que o conhecimento do território das favelas não funciona mais nas operações policiais, não diminui a letalidade, e criticou o que ele denomina de ativismo judicial contra a ação policial.

Oliveira sustentou que a operação, a mais violenta do Rio de Janeiro, não visava executar o povo favelado. Defendeu a atuação policial pois moradores das favelas estão sob o domínio do tráfico, e que em cada operação a polícia tem o intuito de salvar os moradores trabalhadores, reféns dos criminosos traficantes.

Agem com um sebastianismo militarizado, desejando libertar o povo da opressão dos traficantes. Para tanto, se morrerem brasileiros pelo caminho não há importância, faz parte da limpeza urbana de libertação, depreende-se do discurso oficial da instituição policial.

Tanto a Polícia Civil quanto o Ministério Público dizem que a operação, nomeada como “Exceptis” para ciência do eminente ministro Edson Fachin, teve como objetivo cumprir os 21 mandados de prisão expedidos pela Justiça a partir de investigações da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA). Estavam lutando contra o aliciamento de menores, homicídios, sumiço de corpos, roubos e “atos terroristas” contra trens da Supervia.

A resposta veio como justificativa para atender a decisão do STF, que permite operações nas favelas cariocas somente em casos excepcionais, por conta da pandemia. E receberam apoio da Associação de Delegados de Polícia, formada por todos esses bacharéis que juraram respeitar os direitos civis da população. A justificativa é que quase todas as vítimas da operação tinham alguma ficha, alguma anotação ou alguma passagem pela polícia.

Ora, presumidos bacharéis, essa justificativa para matar é uma afronta ao Estado Democrático de Direito. Com argumentos desse tipo, podemos concluir que os brasileiros devem respeitar as instituições de Estado, que estão fazendo o seu trabalho de caçar bandidos. Afinal, matar os brasileiros já se tornou hábito, tradição, e faz parte da política e projeto de constituição de uma nação de brasileiros. Só resta saber quantos brasileiros ainda existirão para formar tal projeto.

  • Michel Misse e Paulo Baía são sociólogos, doutores em sociologia e professores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

Fonte:

Metrópoles

https://www.metropoles.com/ponto-de-vista/jacarezinho-o-ativismo-nada-juridico-dos-delegados-e-a-republica


Hélio Schwartsman: Operação no Jacarezinho é chocante até para os padrões do Rio

Como já escrevi aqui, polícia é civilização. O surgimento de Estados fortes com suas milícias e o monopólio do uso da violência, no século 16, fez, nas contas de Steven Pinker, as taxas de homicídio despencarem para algo entre um décimo e um quinquagésimo dos valores anteriores. Considerada isoladamente, foi a medida que mais fez reduzir a violência inter-humana.

Mas, se a criação da polícia foi o grande passo, o controle do aparato policial para que ele não ocupe o lugar do assassino de plantão é o segundo grande passo. Este o Brasil ainda não deu.

A ação policial na favela do Jacarezinho que deixou 29 mortos é mais uma prova disso. A operação, que tem todas as marcas de uma chacina, é chocante mesmo para os padrões do Rio de Janeiro.

Em 2019 (último ano de normalidade pré-pandêmica), a taxa de letalidade da polícia fluminense foi de 10,5 por 100 mil habitantes, o que corresponde a 30% do total de homicídios no estado. A letalidade policial brasileira naquele ano foi de 3 por 100 mil, o que representa 13% dos homicídios no país.

A título de comparação, a letalidade policial nos EUA, a mais violenta das nações industrializadas, é de 0,34, e a japonesa, de 0,002. Basicamente, a polícia do Rio mata 3,5 vezes mais que a média nacional, 31 vezes mais que a americana, e 5.250 vezes mais que a japonesa.

O que talvez seja mais perturbador é que o ímpeto assassino da polícia fluminense é inútil no que diz respeito à segurança pública. Homicídios e outros indicadores de criminalidade vinham em queda no Rio em 2020. Em junho, o STF proibiu a polícia local de realizar operações nas favelas senão em casos excepcionais. A partir daí, a letalidade policial caiu e os outros indicadores não subiram.

Isso nos faz perguntar o que têm na cabeça as autoridades que celebram os cadáveres de ações como a do Jacarezinho. É uma pergunta retórica; não precisam responder.

Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/2021/05/operacao-no-jacarezinho-e-chocante-ate-para-os-padroes-do-rio.shtml


Paulo Fábio Dantas Neto: A política entre universos paralelos

Esta coluna é dedicada aos brasileiros assassinados na favela do Jacarezinho, Rio de Janeiro, na última quinta-feira, dia 6. Seus CPFs, ou suas “folhas corridas”, não são condições prévias para que se defenda seu direito à vida. No Brasil, nem a Justiça pode decretar pena de morte. Menos ainda uma operação policial, embora essa prática nefasta seja banal no mundo que existe fora da lei. Mundos paralelos, os dos justiceiros e o da lei, não se pode ignorar nem um nem outro, o primeiro, porque precisa ser identificado, para que possa virar passado, o segundo, porque precisa ser valorizado, como a única possibilidade de um futuro mais civilizado para o nosso país.

Voltando a Jacarezinho, se parte, ou mesmo a maioria das vítimas, cometera algum crime antes, essa mesma palavra é que exprime o que a polícia civil do Rio cometeu. Execução e massacre são crimes, em qualquer hipótese. E o são mais ainda no contexto de uma operação subversiva, como foi aquela, feita em flagrante desobediência a uma proibição do STF. O tom desafiador da operação, salientado por uma entrevista coletiva insolente de um delegado, é fato singular. Como tal precisa ser encarado, não como se fosse apenas “mais do mesmo”, parte da violência corriqueira de prepostos do Estado que, em nome do combate a criminosos, promovem terror contra cidadãos indefesos. Não é corriqueiro um funcionário público policial usar posição de comando numa operação letal para desafiar dessa forma um poder da República. Muito grave, tanto o que ele disse, como a situação que permitiu que dissesse.

É inaceitável, do ponto de vista social, que quem, diariamente, em ônibus ou em trens de metrôs, se expõe à pandemia para ganhar a vida corra o risco de perdê-la por comportamento miliciano de uma corporação de Estado que tem como missão garantir o oposto. E inaceitável, também, do ponto de vista institucional, que o desafio verbalizado por esse delegado passe batido. Se instâncias administrativas da cúpula da segurança o acobertam, cabe ao ministério público e à sociedade civil provocar instâncias judiciárias e, a essas, agir com presteza, de modo especial o STF que, a rigor, tendo sido flagrantemente desafiado, nem precisa ser mais provocado.  Precisa ser apoiado, sem ressalvas, no seu esperado agir.

Inaceitável, por fim, do ponto de vista político, que autoridades eleitas não tomem providências que enquadrem as cúpulas policiais na linha da segurança pública, para que a população não se veja abandonada. E que, ao contrário, o governador do estado onde ocorreu o massacre adote, como adotou, o discurso policial, sendo nisso abertamente avalizado pelo vice-presidente da República. Aliás, o abandono, pelo General Mourão, ao falar dessa ação policial, da pele de cordeiro e das meias palavras que costuma usar sobre todos os demais assuntos, é politicamente pedagógico. Mostra o quão ilusório é o impeachment como solução estabilizadora, nas circunstâncias dramáticas do Brasil atual.

Fecho parênteses para retomar o fio do argumento sobre o modo com que a política lidou, até aqui, com esse fato indicador – ao modesto ver deste colunista – de uma escalada subversiva gradual e não de um mero episódio isolado, muito menos de um “equívoco” da inteligência policial. Além da omissão, ou responsabilidade ativa, do governador, na operação policial subversiva, registra-se também posições pusilânimes, como a do prefeito da capital do Rio, tentando se colocar num ponto equidistante entre a ação de supostos “malucos” e um também suposto (pelo delegado insolente) “liberou geral” do STF. Preocupa também o silêncio ruidoso de importantes políticos fluminenses a ponto de o deputado Marcelo Freixo despontar, mais uma vez, para quem não usa lupa minuciosa, como honrosa exceção.

Universos paralelos: uma leitura política de Jacarezinho, para além do Rio

Todos os aspectos que abordei até aqui contribuem para qualificar como política a violência inaudita da operação policial que banhou Jacarezinho de sangue. Mais relevante que todos eles, é, no entanto, aquele fator que leva o fio do argumento a transcender a dramática situação do Rio de Janeiro e se concentrar num perigoso paralelismo que ameaça acometer a política brasileira. A coalizão de forças reacionárias que chegou ao governo com Bolsonaro perde amplitude e força na política institucional enquanto o presidente se ampara nas suas facções mais extremadas para deslocar às ruas o confronto que provocou (e perde) no âmbito do sistema político e no seu relacionamento com o Judiciário. Fracasso cumulativo, que não cessa de provocar fissuras no arranjo político-miliciano, bem como em suas conexões com o mundo da economia e com interesses de grupos sociais abençoadores da coalizão. É dos efeitos desse evidente fracasso que ele tenta, obstinadamente, blindar – até aqui com sucesso – a sua popularidade. Para segurar esses dedos, abandona, um a um, os anéis do governo e aposta no quanto pior, melhor. Incapaz de vencer na política, quer vencer a política insuflando o povo contra ela. Dispensa mediações, cria uma arena paralela e direta de operação política e a elege como seu universo.

É a partir desse universo que Bolsonaro tenta desviar a pauta nacional ou, não podendo fazer isso, deslegitimar, perante o eleitorado, as instituições políticas e judiciais (no limite as próprias eleições), os partidos e a sociedade civil que, gradativamente, se articulam para lhe impor uma pauta indigesta, qual seja a da responsabilização de seu não-governo pela crise e a de governar o país para tirá-lo dela. A crise que, há um ano, era adivinhada por ele como temida adversária, a ponto de lhe incutir paranoia, hoje é realidade que precisa se converter em caos para que o presidente sobreviva politicamente.

São dois universos paralelos. Num, a política democrática avança, escancara a natureza do retrocesso político, administrativo, cultural e moral em que o país mergulhou. Exorciza perigos, isola o extremismo, produz alguma política pública para situações emergenciais, busca saídas e fabrica alternativas, inclusive eleitorais, colocando obstáculos a que a aventura bolsonarista se renove pelas urnas. Noutro universo, a estratégia desestabilizadora do presidente volta a se radicalizar, em comícios e em suas lives. Repõe ameaças ao STF, aos governadores, às eleições; menciona, possessivamente, as três armas como cúmplices de suas ambições autocráticas e faz novas sabotagens à vacinação. A sensação de perigo retorna porque a desenvoltura do ator sugere que as amarras institucionais que aqui e ali bloqueiam seu ímpeto destrutivo estão mais frouxas do que há semanas atrás.

Tanto quanto os da polícia legal e da polícia fora da lei, esses dois universos políticos são reais. A crise sanitária, social e econômica é o pano de fundo que sustenta esse paralelismo. Nenhuma avaliação ponderada considerará inexorável o derretimento político do presidente hostil, nem superestimará sua capacidade de revogar aquele universo político que visivelmente acumula forças para derrotá-lo. Da mesma forma que não se pode – confiando no que vem ocorrendo no universo da política sistêmica – considerar seu universo paralelo como delírio e deixá-lo solto como se fosse cachorro quase morto que sangrará até a eleição, pelas garras duvidosas da CPI, também não se pode ir atrás do canto de sereia de sua estratégia, cedendo ao combate aberto nas ruas, como opção ao institucional, no qual ele patina.

Sinalizações subversivas do universo bolsonarista

De fato, não é puro delírio, nem se explica como desespero, o que Bolsonaro tem dito nas lives e em palanques armados país afora. Em primeiro lugar, o discurso não apenas tem repetido os mantras de sempre, mas os tem requalificado também, com boas doses de racionalidade. O discurso do comício de Rondônia, especialmente, mostra uma inflexão importante. Ali não estava mais o autocrata vítima de uma conspiração do sistema e limitado, por uma Constituição hostil à sua vontade, no cumprimento de promessas que fez ao seu povo. Agora ele não se limita a reclamar e a ameaçar reagir contra o Judiciário que estaria lhe empurrando a Carta pela goela. Declara-se agora dono efetivo da prerrogativa – que, no universo republicano, é conferida ao STF – de defensor e intérprete positivo da Carta, plenipotenciário senhor do destino do isolamento social, das prerrogativas de cada instituição e do próprio processo eleitoral, aí querendo ocupar também o lugar do TSE. Em segundo lugar, tem dado passos concretos para obter, dos indivíduos despoticamente livres do “seu povo”, o “eu autorizo” para implementar sua pauta. Não é sensato ignorar que levou muita gente à rua no domingo passado, além de estar armando milícias. Quem deu atenção ao clima do discurso da deputada Carla Zambelli, naquele insólito primeiro de maio, não viu desespero, mas celebração confiante de uma aparente decisão bolsonarista de avançar e tomar posse da Constituição como se fosse coisa sua. Como no dizer do professor Miguel Pereira, “não se trata mais de destruí-la, mas sim de preenchê-la com novo conteúdo, mantendo a forma”.

É na moldura desse universo político paralelo, que busca antagonizar o das instituições do Estado e movimentos da sociedade civil, que Jacarezinho adquire conteúdo político e dimensão nacional. A provocação policial ao STF, presente na acintosa coletiva após a chacina, consiste em insinuar que todos os gênios sairão das garrafas, inclusive algum que possa dirigir ao seu alvo o jipe do zero três.  Assinalando essa relação, não me vem à mente a ideia de que corramos, nessa conjuntura complicada, risco de golpe, ditadura ou algo assim.  Vontade não falta ao presidente paralelo, o que lhe falta é como fazer da bravata realidade. Mas sua aposta perene em que anomia fabrique caos social não pode sair do radar democrático.  A expansão da energia destrutiva pode abrir caminho a um imponderável e não são poucas as analogias que se lê com o que se tornaram Colômbia e México a partir de conjunturas críticas. E uma vez admitida a possibilidade de incremento da violência política, daqui a 2022, é forçoso não afastar, no rastro da fala de Mourão, uma “solução” que iniba e mutile a democracia de modo mais sério.

O universo paralelo que Bolsonaro agita contra o “sistema” assusta, impacienta e/ou planta ceticismo em muitas consciências “centristas”, ou de centro-esquerda, que não se identificam com o PT. Exigir uma Justiça ainda mais ativa, ao mesmo tempo contra Bolsonaro e contra as “incoerências” e o “toma lá, dá cá” dos políticos é aí uma pregação frequente que, por vezes, adquire um tom apostolar e desatento à imprescindibilidade democrática do mundo real da política. Por outro lado, a mesma agitação bolsonarista apressa certo pensamento assumidamente voluntarista, situado “à esquerda” da oposição de esquerda, a deduzir daí a ineficácia da Justiça e a complacência do sistema político, denunciando a inadequação de nossas instituições republicanas e liberal-democráticas para a necessária defesa contra o perigo. Enfrentar o fascismo com “luta popular” nas ruas e superar os “limites” do universalismo da democracia representativa são duas diferentes facetas de uma mesma ideia iliberal de fundação de uma república para os “de baixo”, através de uma democracia com maior “intensidade”.

Duas conclusões fatalistas resultam dessas variadas percepções que tendem a construir seus próprios universos paralelos. Elas não são eleitoralmente significativas, mas têm influência cultural e intelectual inibidora de convergências democráticas na política institucional. As de “centro radicalizado” percebem a polarização entre Bolsonaro e Lula como inevitável, tendendo a antecipar um alinhamento por gravidade, para evitar o pior. As da “esquerda crítica” são céticas, quase distópicas, face a qualquer política de frente. Apelam a um discurso de oposição com teor antissistêmico simetricamente oposto ao do bolsonarismo, no qual eleição é instrumento de arregimentação ideológica e não de solução política.

Sinalizações democráticas do universo da política e da sociedade civil

O argumento final aqui – reiterando um ponto que marca esta coluna desde a sua inauguração – vai na direção oposta, de salientar a realidade e vitalidade simultâneas do universo da “política dos políticos” e da rede de movimentos e outras organizações da sociedade civil. Quando nesse universo predominam consensos amplos ou conflitos civilizados, a qualidade da democracia e das relações sociais tende a melhorar, dando-se o oposto quando esse universo trava por polarizações extremas e, por isso, estéreis. A observação continuada do processo político no interior desse universo revela um processo lento, marcado por avanços e recuos, mas ainda assim contínuo, na direção da passagem de uma situação de polarização disfuncional (entre 2013 e 2018) para uma de agregações parciais, transição benigna ligada à  experiência traumática de defrontamento comum com o pathos destrutivo do bolsonarismo, variável em grau de intensidade, mas compartilhada com todas as instituições e todos os atores (mesmo aqueles que a ele se aliaram), desse universo sistêmico animado pela representação política.

No interior desse universo duas agregações estão em marcha, conforme comentei, nesta mesma coluna, três sábados atrás (“Pautas das oposições”, em 17.04.21). Uma delas em torno do nome do ex-presidente Lula, outra, ainda sem nome, por tentativas de aproximação de partidos e personalidades que, no ponto de partida, situam-se entre os campos de atração de Lula e de Bolsonaro. Coloco aqui uma objeção a análises que se suponham cientes, ou videntes, quanto aos respectivos pontos de chegada desses dois subcampos. São ainda ignorados, tanto os limites de agregação de cada um, quanto as entonações políticas que assumirão, por conta dessas mesmas agregações e de tendências que serão, a seu tempo, detectáveis no eleitorado (e que reverberam também a partir do que se dê no universo paralelo, assim como podem afetá-lo). As projeções possíveis de cenários precisam ser recebidas com a imprescindível cautela de quem está ciente do material perecível de que se compõem. Isso inclui as que farei, no próximo sábado, sobre o campo de agregação alternativo ao de Lula, já que a esse último dediquei outra recente coluna (“Lula não é para amadores”, em 24.04.21). Antecipo que, na mão oposta à de previsões fatalistas, vejo se dar, no universo da política sistêmica, uma aceleração de movimentos de convergência para oferecer, às forças que se despregam, ou podem se despregar, do combo bolsonarista, uma alternativa eleitoral que não as afaste do eleitorado afim ao seu posicionamento político, o qual, na falta de termo mais preciso, chamarei, por ora, de liberal, ou de centro-direita.

A possibilidade dessa lógica de agregação do campo democrático afetar e desconstruir o universo paralelo que Bolsonaro construiu para movimentar suas hostes não depende de uma convocação afoita de uma militância oposta para guerrear com ele e suas falanges nas ruas infestadas de coronavírus. Dependem mais da capacidade e do compromisso da política das instituições e partidos, em especial de governadores e prefeitos, tomar a si a responsabilidade por milhares de jacarezinhos que têm seus gritos abafados pelo terror das milícias do Rio e de suas congêneres espalhadas pelo Brasil. Essa empreitada não terá nada de passeio. Embora não se saiba ao certo (ao menos em público) até que ponto essa reprodução de células malignas já avançou sobre a área de segurança pública da União e dos Estados, é certo que não se pode mais adiar um freio de arrumação “nisso aí”, seguido de um programa de reconstrução institucional e de regeneração moral que sinalize aos cidadãos que eles não estão sós.

O desafio de fazer isso contando com o boicote e a sabotagem do governo federal e com a violência retaliativa que emergirá dos porões com a complacência, estímulo e apoio de representantes organizados em bancada no interior das instituições legislativas propicia compreensíveis raciocínios céticos. Mas não há outra atitude a cobrar da representação política, ainda que ao custo de conflitos que compliquem os movimentos de agregação acima mencionados. Além de cerrar fileiras em apoio ao STF, ela precisa assumir, como sua missão, fazer da sorte dos jacarezinhos uma causa nacional. Assim como os poderes da República buscam, com a luta pela vacina, fazer, apesar do presidente, os brasileiros todos virarem jacarés, é preciso buscar que os jacarés defendam os direitos violados dos jacarezinhos. Essa é uma construção cultural inadiável e de importância política decisiva, a ser feita no campo específico do Estado e no campo aberto da sociedade civil. Sem querer calar céticos e ouvindo as notícias verazes que trarão, dirijo-lhes o argumento final. Além desse dever de dirigentes do Estado não ser um passeio, ele nada terá de altruísmo. Deter a escalada de terror miliciano é condição para haver, em 2022, eleições capazes de lhes conferir mandatos. Nessa medida é um desafio que fala também ao seu interesse vital.

*Cientista político e professor da UFBa.

Fonte:

Democracia Política e novo Reformismo

https://gilvanmelo.blogspot.com/2021/05/paulo-fabio-dantas-neto-politica-entre.html


Vinicius Torres Freire: Mortos de fome, de Covid, a bala, muitos pobres não largam Bolsonaro

Pouco antes do segundo turno de 2018, o Datafolha perguntou qual era o candidato a presidente que mais defendia os ricos. Deu Jair Bolsonaro com 55% e Fernando Haddad (PT) com 22%.

Quem mais defendia os pobres? Haddad, 54%, Bolsonaro, 31%. Os mais pobres, com renda familiar de menos de dois salários mínimos, eram algo mais estritos na definição de classe: Bolsonaro defendia os mais ricos para 59%, Haddad defendia os mais pobres para 60%.

“Tudo bandido”, disse Hamilton Mourão sobre os mortos do bairro pobríssimo e apartado do Jacarezinho (“apartado” também no sentido de “apartheid”).

No que interessa aqui, tanto faz qual era a situação jurídica das vítimas do massacre: tanto fazia para Mourão. No universo mental bolsonariano atira-se primeiro, esquece-se depois. Os pobres e apartados em geral são “tudo bandido”, filho de porteiro que tira zero, empregada que viaja para fora, filho desajustado de mãe solteira, quilombola gordo imprestável etc. Tudo isso é mui sabido, inclusive o autoritarismo da turma: naquele Datafolha, Bolsonaro era o mais autoritário para 75%.

Nem o insulto bolsonarista nem a injúria da vida dura bastam para fazer com que os pobres larguem de vez Bolsonaro. É ingenuidade citar estatísticas socioeconômicas para explicar bolsonarices, mas convém lembrar delas.

Foram os pobres que mais perderam emprego e renda na epidemia, bidu, os que mais ficaram sem escola ou mesmo merenda. Segundo os estudos disponíveis (com dados do ano passado), são os que mais adoecem e morrem de Covid-19.

Nos últimos 12 meses, a inflação média para pessoas de renda muito baixa foi de 7,2%; para as de renda alta, 4,7% (dados da Carta de Conjuntura do Ipea). Desde que Bolsonaro assumiu, a inflação média (IPCA) acumulada foi de 11,2% —o salário médio subiu menos do que isso, o dos mais pobres, informais, menos ainda, isso quando têm renda de trabalho. A inflação média da comida foi de 28,9%.

Apenas entre os mais pobres Haddad deve ter vencido a eleição, segundo o Datafolha da véspera da votação de 2018. No Datafolha mais recente, de março, 30% do eleitorado dá “ótimo/bom” a Bolsonaro, com diferenças estatisticamente irrelevantes entre as classes de renda. Mas a taxa de decepção com Bolsonaro é muito maior entre os mais ricos (medida pela diferença entre a parcela dos que dão nota “ótimo/bom” agora e a votação em 2018).

Os pobres das grandes cidades vivem sob ocupação de milícias e facções, que são também polícia do Estado de terror. A milícia é um modo alternativo de ascensão social, por assim dizer, de ex-militares de baixa patente e agregados, a mobilidade de parte do precariado. Já tem vínculos firmes com a política municipal de regiões metropolitanas, avança nas Assembleias e pôs um pé no Congresso e no poder federal, vide os Bolsonaro.

A ocupação dos bairros pobres assim se institucionaliza, também no sentido de ter apoio estatal permanente. Em um movimento de pinça, os Bolsonaro apoiam tanto matanças policiais como milícias nos bairros pobres. Apresentadores de TV sanguinários fazem a propaganda do bolsonarismo político e militar-miliciano.

É fácil perceber que diagnósticos socioeconômicos não ajudam a explicar a persistência do bolsonarismo popular, como não explicavam parte da política, digamos, normal. Mas cabe a pergunta, que não é acadêmica: por que não explicam?

É assunto para outro dia, mas bolsonarismo tem a ver com machice, ressentimentos e medos reativos vários, religião e autoritarismo “raiz”. Mas também é revolta contra o “sistema” que larga os pobres à própria sorte, revolta que pode ter essa ou aquela conformação, autoritária ou outra, a depender da conjuntura e da política, de esquerda em particular.

Quem é que vai “lá” falar com os pobres?

Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/viniciustorres/2021/05/mortos-de-fome-de-covid-a-bala-muitos-pobres-nao-largam-bolsonaro.shtml


Dorrit Harazim: Fica para 2022

Era para ser um texto leve sobre o Dia das Mães — uma oportunidade rara neste espaço de saudar com delicadeza um domingo especial. Um domingo sem referências a desassossego, pandemia ou Bolsonaro. Era para ser um texto leve, também, em homenagem à radiação afetiva e contagiante de Paulo Gustavo, que deixou órfão um Brasil inteiro. Seu humor, humanidade, talento e coerência com a vida mereciam essa tentativa de leveza.

Mas não deu. Fica para outra vez.

A fuzilaria policial desencadeada quinta-feira na Favela do Jacarezinho, no Rio, nos faz retroceder com crueza ao cotidiano nacional. O horizonte ficou vermelho. Desta vez foram 28 os mortos (inclusive um policial civil) em operação planejada para eliminar alvos, não fazer prisioneiros. Assim, de uma só tacada, a série estatística sobre lei e ordem no estado, que já era estarrecedora, deu novo salto. Segundo levantamento do Instituto de Segurança Pública (ISP), 20.957 pessoas morreram em confronto com a polícia do Rio entre janeiro de 1998 e março de 2021. Descascando melhor a frieza dessa matança, O GLOBO deu uma recalculada para mais perto: ao longo dos últimos 23 anos, a polícia do Rio matou, em média, uma pessoa a cada 10 horas.

Impossível chamar a isto de sociedade, nem de civilização ou exercício da lei.

Foi tudo tão abissalmente errado na execução da invasão ao Jacarezinho que nem sequer é necessário elencar, neste espaço, a cascata inteira de desvios. O importante é frisar que, à exceção de um ou outro detalhe, foi tudo planejado para terminar como terminou. A operação foi idealizada para ser espetaculosa, ao estilo tous azimuts da ocupação militar do Complexo do Alemão em 2010 — apenas sem apoio popular nem da mídia, como houve à época. Desta vez, os delegados encarregados de justificar a ação explicitaram um ato de fé. Ou, como apontou o advogado e filósofo Silvio de Almeida, um ato de afirmação de poder pela Polícia Civil — poder este que não se submete a nenhuma lei e que desconhece a Constituição. “Foi um recado, uma mensagem em forma de espetáculo, assinado com o sangue no chão e nas paredes das casas”, escreveu ele.

Nem todo o sabão do mundo será capaz de erradicar as manchas da violência de Estado impregnadas no Jacarezinho. Impossível esquecer o testemunho desamparado do pai de uma menina de 9 anos que teve, primeiro, o quarto invadido por um suspeito em fuga, já ferido; em seguida, pai e filha viram a policia irromper na casa à procura do invasor. A execução parece ter sido a frio, antes de os moradores conseguirem sair dali, rumo a um trauma indelével. “O maior desespero e a maior tristeza para um pai é não ter ideia de como fazer para salvar um filho. Não sei nem por onde começar”, disse ele. Referia-se ao futuro da filha. Vale para o futuro do Brasil negro, pardo, pobre e trabalhador.

Imagens de qualquer chacina, seja ela no Iraque, nos Estados Unidos ou no Rio de Janeiro, embolam qualquer estômago minimamente humano. Por vezes, olhando para além de paredes, pisos e camas tingidas de sangue, ou para além de mobiliários contorcidos pela violência, é possível entrever pedaços de um cotidiano destruído. Lana de Holanda, em seu perfil nas redes sociais, apontou para o esmero na decoração de uma sala ensanguentada — as plantas que adornavam prateleiras continuavam verdejantes. E um livro de Felipe Neto sem manchas permanecia numa bancada. Outro internauta notou o controle remoto da Sky em cima da mesma bancada, imaginando que aquela sala devia ser um local de alegria, de família assistindo a futebol, série ou filme.

Para o vice-presidente da República, Hamilton Mourão, o caso é simples e segue a lógica da pena de morte seletiva que vigora no Brasil: “Era tudo bandido”. (Das 27 vítimas consideradas suspeitas, pelo menos 25 tinham passagem pela polícia, o que costuma ser suficiente para serem eliminados.) Felizmente, o entendimento do ministro do Supremo Edson Fachin foi outro, levando-o a solicitar à Procuradoria-Geral da República que investigue a ação num prazo de cinco dias. Segundo ele, haveria indícios que poderiam configurar ter ocorrido uma “execução sumária” no Jacarezinho.

Como falar de Dia das Mães num país onde a polícia e a milícia atiçadas pelo seu líder formam uma mesma tropa de combate à esperança? Não dá. Fica para 2022.

Fonte:

O Globo

https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/fica-para-2022.html


Bernardo Mello Franco: A polícia não mata sozinha

Uma operação com blindados e helicópteros aterrorizou o Jacarezinho e deixou 28 mortos no maior massacre da história do Rio. Na manhã seguinte, a Polícia Civil só havia identificado a vítima que usava farda. Sem conhecer as outras 27, o vice-presidente Hamilton Mourão sentenciou: “Tudo bandido”.

O general está afinado com a tropa no poder. O governador Cláudio Castro, aliado do Planalto, classificou a matança como fruto de um “detalhado trabalho de inteligência”. O vereador Carlos Bolsonaro, filho do presidente, fez piada com o relato de uma viúva. Há poucos dias, seu pai ergueu um cartaz com a inscrição “CPF cancelado”. O capitão é um velho defensor de milícias e grupos de extermínio.

“A polícia não mata sozinha. Esse tipo de discurso legitima a barbárie e a violência policial”, afirma o advogado Joel Luiz Costa, coordenador do Instituto de Defesa da População Negra. Criado no Jacarezinho, ele voltou à favela horas depois do banho de sangue. Percorreu as vielas, ouviu testemunhas e saiu convencido de que ocorreu uma chacina.

Em 2018, o Rio elegeu um governador que se fantasiava de soldado do Bope e mandava a PM atirar “na cabecinha”. Seu substituto é mais discreto, mas quer provar que também tem DNA bolsonarista. Ao exaltar a inteligência da polícia, Castro ofende a inteligência alheia. A operação deveria cumprir 21 mandados de prisão, mas só cumpriu três. Além de produzir uma carnificina na favela, feriu dois passageiros dentro de um vagão de metrô.

Representantes da OAB e da Defensoria Pública apontam outros abusos. Os policiais modificaram cenas e removeram os corpos sem perícia. Depois levaram mais de 24 horas para entregá-los ao IML. Testemunhas relataram execuções sumárias e uso desproporcional da força. Apesar de tudo, a polícia se sentiu autorizada a comemorar a operação.

Na quinta, uma entrevista sobre o caso virou comício bolsonarista. O subsecretário Rodrigo Oliveira reclamou do “ativismo judicial” e disse que os defensores dos direitos humanos têm “sangue do policial nas mãos”. O delegado Felipe Curi julgou e condenou os 27 mortos pelos colegas. “Não tem nenhum suspeito aqui. A gente tem criminoso, homicida e traficante”, afirmou.

O chefe do setor que deveria investigar o massacre já se convenceu de que não há o que apurar. “Não houve execução. Houve sim uma necessidade real de um revide a uma injusta agressão”, disse o diretor do Departamento de Homicídios, delegado Roberto Cardoso. As declarações mostram o caso não pode ficar nas mãos da Polícia Civil.

Além de ignorar regras e protocolos, a matança pisoteou a decisão do Supremo Tribunal Federal que proíbe operações em favelas durante a pandemia, salvo em casos excepcionais. Numa clara provocação, a polícia batizou a ação no Jacarezinho de “Exceptis”. Os responsáveis pela barbárie também não fariam isso sozinhos. Eles sabem que têm cobertura para desafiar o Judiciário e as leis.

Fonte:

O Globo

https://blogs.oglobo.globo.com/bernardo-mello-franco/post/policia-nao-mata-sozinha.html


Alon Feuerwerker: Jacarezinho, empregos e lei

Toda eleição tem seus temas propulsores, que criam ambiente favorável ao perfil certo. Quando este tem a sorte de, e a competência para, encaixar na demanda. Em 1994 e 1998, Fernando Henrique Cardoso navegou nos mares do cansaço com a inflação, depois veio Luiz Inácio Lula da Silva para saciar a sede da rejeição à pobreza e à corrupção. O período petista sustentou-se por mais de uma década, mesmo sob acusações relativas à segunda, e muito porque entregava no combate à primeira.

Quando a economia ruiu, a tolerância virou fumaça, veio o impeachment de Dilma Rousseff e depois Jair Bolsonaro surfou as duas ondas do momento: os combates à corrupção e ao crime. Sobre este último, um aspecto evitado sempre que possível no debate é o aparente paradoxo: se os governos do PT reduziram as desigualdades, combateram a pobreza e ampliaram as oportunidades para os antes marginalizados, por que então o crime se agravou no período?

A ponto de a repulsa a ele ajudar decisivamente não só na eleição de Bolsonaro, mas de todo um contingente de políticos ligados à segurança pública Brasil afora.

Aliás, o crime encorpou mais onde a prosperidade avançou de maneira mais pujante, em especial em certas regiões metropolitanas e na fronteira agrícola. Não é opinião, mas fato: o combate à pobreza é fundamental, mas nem de longe é suficiente para solucionar os problemas da segurança pública. É só olhar os números, e tem gente boa que os organiza de maneira cuidadosa. E, simplesmente, o mapa da pobreza não bate com o do crime.

Na falta de consensos, a subida dos índices de criminalidade vai sendo enfrentada na base do “na minha opinião”. Uns acham que é uma disputa de espaços assistenciais entre o crime e o Estado. Outros estão certos de que falta mesmo é punição garantida e proporcional ao delito. Mas tem quem imagina resolver na bala. Jacarezinho. Vão lá, matam um certo tanto e voltam para casa. Quando nova leva ocupa o lugar dos que morreram, vai-se lá e mete-se bala de novo.

Com os habituais “danos colaterais”.

A exemplo da maioria dos outros assuntos importantes, é impossível no Brasil de hoje organizar alguma discussão produtiva sobre como atacar a endemia do crime. Se o debate sobre a pandemia da Covid-19 foi capturado por “certezas científicas”, que aliás independem de comprovação científica e se baseiam somente no “princípio da autoridade”, mais ainda algo que se tornou endêmico, parte da paisagem. Ao fim e ao cabo, convive-se com o crime. De vez em quando acontece alguma coisa que produz, como agora, algum calor. Nunca luz.

Entrementes, os candidatos à presidência vão afiando a faca. De um lado, reforça-se o discurso de que a polícia tem mesmo é de eliminar bandidos, e que não se faz omelete sem quebrar os ovos. Do outro, desarquiva-se a panaceia da “presença do Estado”. Será que não está na hora de compreender que sem crescimento acelerado da economia, e portanto das oportunidades, o crime continuará garantindo seu market share na atração de potenciais entrantes no mercado de trabalho?

Empregos e lei. Quem conseguir juntar essas duas ideias, até agora separadas por um muro, vai ter público em 2022.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação

Fonte:

Análise Política

http://www.alon.jor.br/2021/05/jacarezinho-empregos-e-lei.html


Oscar Vilhena Vieira: A exceção como regra

Ao nomear como “Exceptis” a operação que invadiu a comunidade de Jacarezinho, na capital fluminense, na última quita feira (6), o governo já deixava claro que a lei não condicionaria a ação dos seus agentes, antecipando o que se converteu numa das maiores chacinas no do Estado do Rio de Janeiro nas últimas décadas.

O fato é que o ideal civilizatório de que todas as pessoas e, em especial, os agentes públicos (civis e militares) devem pautar as suas condutas pela legalidade jamais se consolidou no Brasil. Certamente, os dois regimes de exceção, fundados na ruptura da ordem constitucional, exercidos por meio do arbítrio e coroados pela impunidade daqueles que cometeram crimes contra a humanidade, não contribuíram para fortalecer, em nossa acidentada história republicana, a noção básica de império da lei.

A incompletude do estado de direito no Brasil transcende, porém, os regimes propriamente autoritários. A profunda e persistente desigualdade, o racismo estrutural e a forte hierarquização social têm se demonstrado obstáculos intransponíveis para que todas as pessoas sejam reconhecidas como sujeitos de direitos e, portanto, tratadas como igual respeito e consideração.

O que a imagem de corpos sempre pretos ensanguentados a cada nova chacina reforça é a realidade bruta de que a lei, nessas plagas, não é para todos. Que no Jacarezinho e nas demais periferias sociais brasileiras vigora um permanente estado de exceção. Que a “ordem” é determinada pelo arbítrio das milícias, do tráfego e, quando necessário, pelo arbítrio dos agentes do Estado.

Mais de três décadas de democracia não foram suficientes para pôr fim a um regime de exceção permanente que se impõe à grande parte da população. A perda de mais de 1 milhão de vidas, vitimadas por homicídios neste período, e a crueldade das experiências de comunidades dilaceradas pela violência, não foram suficientes para que governos democráticos levassem a cabo um plano de reformas das instituições de aplicação da lei, voltado a expandir o Estado de direito para todos os brasileiros.

Os poucos líderes que se propuseram modernizar as policias e o sistema de segurança e aplicação da lei criminal sucumbiram à resistência de interesses corporativos ilegítimos e políticos irresponsáveis, quando não coniventes ou mesmo beneficiários da deterioração do sistema de justiça criminal. O medo do crime abriu um amplo mercado para milícias e poder para maus policiais. Também rende votos para aqueles que oferecem uma solução rápida, fácil, mas, no entanto, incapaz de reduzir a criminalidade.

As políticas do “bandido bom é bandido morto”, da “Rota na rua”, dos “direitos humanos para humanos direitos” e de “armar o cidadão de bem”, que prevaleceram no Brasil nas últimas décadas, com amplo apoio da direita —como fez questão de deixar claro o general Mourão, ao legitimar a operação “Exceptis”— redundaram num retumbante fracasso. Com raras exceções, a constrangedora omissão de liberais e incompetência da esquerda também contribuíram para o fiasco na segurança pública.

A eleição de Bolsonaro e aliados armados, paradoxalmente, premiou justamente aqueles que mais têm contribuído para que a população se encontre refém da criminalidade e da violência de Estado.

operação “Exceptis” não apenas afronta o Supremo Tribunal Federal, que impediu a realização de operações policiais nas comunidades do Rio de Janeiro durante a pandemia, mas também deixa clara a indisposição de determinados setores do Estado brasileiro de se submeter ao império da lei.

*Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.

Fonte:

Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/oscarvilhenavieira/2021/05/a-excecao-como-regra.shtml