Demétrio Magnoli

Demétrio Magnoli: Ciro, uma análise de texto

O homem que fala como quem desfere tiros nunca teve que escolher entre a fidelidade a suas ideias e a segurança pessoal

Jacques Derrida, o filósofo célebre pela desconstrução semiótica, imaginava que “nada existe fora do texto”. Não é preciso rezar pela cartilha dele para reconhecer a importância da linguagem, na política ou na literatura. Diz-se de Ciro Gomes, um compulsivo franco-atirador de adjetivos insultantes, que é boquirroto.

O irmão, Cid, interpreta seu destempero nos registros da “franqueza” e da “sinceridade” (Folha, 21/6). Tomo a sugestão de Cid como guia de análise das palavras escolhidas por Ciro, no Roda Viva (28/5), para qualificar a oposição venezuelana: “Fascista, neonazista, entreguista”. O tema está longe do centro do debate eleitoral brasileiro, mas o curto texto esclarece muito sobre o candidato.

Apesar de Derrida, o contexto sempre importa. No plano da ética pessoal, dirigir insultos a correntes políticas que operam num sistema democrático não é o mesmo que fazê-lo contra opositores perseguidos por um regime autoritário. A opção de poupar o regime chavista de sua artilharia verbal, desviando-a para figuras que enfrentam a repressão, a prisão ou o exílio, desvenda um traço de caráter. A biografia de Ciro ajuda a iluminá-lo.

A carreira política de Ciro começou no movimento estudantil, nos anos anteriores à Lei de Anistia (1979). Havia perigo, mas não para ele, que pertencia à Arena Jovem, base da chapa pela qual concorreria à vice-presidência da UNE.

Ciro jamais experimentou a condição de opositor de uma ditadura. Da política estudantil, seguiu para o PDS, o sucessor da Arena, antes de migrar para o MDB. O homem que fala como quem desfere tiros nunca teve que escolher entre a fidelidade a suas ideias e a segurança pessoal. Isso, antes de tudo, o distingue dos venezuelanos que ele ofende.

Alexander Soljenítsin, um dos mais destacados dissidentes soviéticos, era um nacionalista grão-russo; Václav Havel, dissidente tcheco que se tornaria presidente, um democrata liberal; Vladimir Herzog, assassinado na prisão pela ditadura brasileira, um comunista.

É possível, sem comungar com as ideias deles, defender o direito de expressá-las, que se confunde com o direito das sociedades de debater livremente seu futuro. Ciro optou por outro caminho, repetindo as senhas cunhadas pelo regime venezuelano para suprimir a oposição.

A repressão política vale-se da linguagem, tanto quanto do cassetete e do calabouço. O governo soviético crismava Soljenítsin como fascista. O governo comunista tcheco qualificava Havel como agente da CIA. O governo militar no Brasil classificava Herzog como agente da KGB.

Não existe nenhuma indicação de que os líderes opositores venezuelanos sejam fascistas ou neonazistas. Henrique Capriles pertence ao Primero Justicia, um partido-ônibus que abrange de social-democratas a liberais. Leopoldo López fundou o Voluntad Popular, um partido filiado à Internacional Socialista.

Henri Falcón, candidato oposicionista às eleições farsescas de maio, é um chavista histórico que cindiu com o regime em 2012. O general Raúl Baduel, que cumpre uma segunda sentença de prisão, foi um íntimo colaborador de Chávez entre 1982 e 2007. No Roda Viva, Ciro falou como porta-ofensa de Maduro.

Derrida não deixaria escapar a palavra “entreguista”. Diferente de fascista ou neonazista, “entreguista” não descreve uma ideologia e, rigorosamente, nada significa –mas cumpre função decisiva na linguagem do chavismo.

O termo destina-se a marcar um opositor como agente de interesses estrangeiros, senha crucial para forjar processos judiciais e justificar encarceramentos. Ciro pode ter falado taticamente, a fim de granjear as simpatias do PT. Ou pode ter exercitado a “franqueza” e a “sinceridade”.

Na primeira hipótese, o candidato mostra-se capaz de sacrificar qualquer valor no altar de sua campanha eleitoral. Na segunda, revela que, uma vez Arena, sempre Arena.

* Demétrio Magnoli é doutor em geografia humana e especialista em política internacional.


Demétrio Magnoli: A religião dos empresários

O jogo da liberdade econômica precisa de regras estáveis e árbitros independentes. As mágicas dos populistas produzem lucros imediatos, contratando catástrofes futuras

O“caso de amor” entre a elite empresarial dos EUA e Donald Trump foi manchete de capa da revista “The Economist”, em maio. No Brasil, uma longa série de indícios e algumas sondagens de opinião sugerem que Jair Bolsonaro é o presidente dos sonhos de significativa parcela do empresariado. Bolsonaro venera Trump, mas é um equívoco cravar explicações ideológicas para os “casos de amor” paralelos: afinal, poucos anos atrás, nossos empresários ajoelhavam-se no altar da devoção ao lulismo. A solução para o enigma situa-se no campo dos interesses — ou, mais precisamente, numa percepção rudimentar, quase infantil, sobre os interesses de negócios.

“Os executivos americanos estão apostando que o presidente é bom para os negócios”, escreveu a “Economist” no seu editorial. Na “era Trump”, as instituições estatais debilitam-se, os EUA conhecem inédito isolamento internacional, e o déficit fiscal tende a explodir. Contudo, os dirigentes das empresas preferem olhar para outra direção: os cortes de impostos corporativos, as iniciativas de desregulamentação econômica e as tarifas comerciais protecionistas prometem ampliar as margens de lucro – no horizonte de curto prazo. O futuro é amanhã: o cálculo político subordina-se aos tempos curtos e ritmos alucinantes da Bolsa.

Um fenômeno similar conduziu o núcleo do empresariado brasileiro ao pátio de folguedos do lulismo. O “caso de amor” não começou no primeiro mandato de Lula, caracterizado pela manutenção do tripé macroeconômico ortodoxo de FHC, mas no segundo, junto com a expansão das políticas de financiamento subsidiado às empresas, a ossificação do protecionismo alfandegário e a explosão dos estímulos ao consumo. A desastrosa “nova matriz macroeconômica” de Dilma Rousseff, uma teorização das políticas implantadas desde o mandato derradeiro de Lula, não afastou o empresariado. De fato, a ruptura só se deu às vésperas das eleições de 2014, quando o colapso econômico tornou-se evidente. “Os ricos nunca ganharam tanto como no meu governo” — o lulismo empresarial encontra explicação na frase célebre — e verdadeira! — de Lula.

No início, a maioria do empresariado rejeitava Bolsonaro. No final de 2017, sob o patrocínio de Meyer Nigri, da Tecnisa, uma campanha de banquetes aproximou o candidato de grupos pequenos de empresários. A onda cresceu exponencialmente. Em fevereiro, num evento para CEOs promovido pelo BTG Pactual no hotel Hyatt, em São Paulo, o candidato foi ovacionado, de pé, por 2,5 mil participantes. Depois, em maio, três dias foram suficientes para esgotar os ingressos para um almoço organizado pela Associação Comercial do Rio. À frente do locaute das grandes transportadoras que deflagrou o movimento dos caminhoneiros estiveram alguns empresários bolsonaristas, notadamente Emílio Dalçóquio, proprietário de 600 caminhões. As bases da candidatura de Bolsonaro estendem-se a amplos setores do agronegócio, especialmente no Centro-Oeste.

A constelação de motivos declarados por empresários lança alguma luz sobre a opção. Nigri apoia “quem seja contra a esquerda”, pois o Brasil teria se tornado “um país socialista, impossível para os empresários”. Nos eventos do agronegócio, aplaude-se a promessa de “armamento do povo” contra invasores de terras e criminosos. Em Roraima, ovações acompanham as ideias de exploração econômica das terras indígenas e de implantação de campos de refugiados venezuelanos. Bolsonaro descobriu que ganha adesões entusiásticas quando, sob a “inspiração” de Trump, fala em “radicais” medidas de redução de impostos e privatizações. A sedução do empresariado passa pela figura de Paulo Guedes, guru econômico do candidato.

O coração dos empresários oscila da esquerda à direita, sem nunca sair realmente do lugar. Na “era Lula”, enfeitiçava-os o canto de sereia do capitalismo de estado. Numa hipotética “era Bolsonaro”, a miragem ultraliberal produz efeito narcótico semelhante. A religião do dinheiro fácil, aqui e agora, tolda o julgamento, implode a razão estratégica. Tanto quanto nos EUA, os dirigentes das empresas querem um “Estado máximo”, quando se trata de protegê-los da concorrência externa, provocar bolhas de consumo ou subsidiar os combustíveis, e um “Estado mínimo”, quando se trata de preservar bens e serviços públicos. No passo trôpego do embriagado, eles transitam de Arno Augustin, o arauto da “nova matriz macroeconômica” lulista, a Paulo Guedes, o teórico bolsonarista do capitalismo de faroeste.

Os donos do dinheiro nada aprenderam — nos livros ou na experiência histórica. A confiança, ativo intangível que propicia o investimento e a difusão dos intercâmbios, nasce na esfera do contrato político. A economia de mercado só floresce sob a estufa de instituições que garantem os direitos individuais e sociais. O jogo da liberdade econômica precisa de regras estáveis e árbitros independentes. As mágicas dos populistas geralmente produzem lucros imediatos, contratando catástrofes futuras. Os empresários apaixonados por Bolsonaro, um Trump vira-lata dos trópicos, sabotam a si mesmos, enquanto sabotam o Brasil.

* Demétrio Magnoli é sociólogo


Demétrio Magnoli: Kim no paraíso

O termo histórico aplica-se efetivamente ao encontro entre Trump e Kim, mas por razões inesperadas

Tudo indica que a Coreia do Norte já tem um novo ministro da Propaganda. É um astro de reality show, só fala inglês e tem cabelo laranja. Donald Trump elevou Kim Jong-un à condição de estadista e parceiro dos EUA, cumulou-o de elogios, firmou um documento de princípios que reproduz a fórmula cunhada pela Coreia do Norte e, finalmente, fez uma inaudita concessão unilateral voluntária.

O termo “histórico”, banalizado pelos veículos de imprensa, aplica-se efetivamente ao encontro entre Trump e Kim –mas por razões inesperadas.

Do texto do comunicado conjunto salta o compromisso com a “desnuclearização da península Coreana”. Utilizada por Kim no seu encontro com o presidente sul-coreano Moon Jae-in, no final de abril, a expressão é uma senha norte-coreana para exigir a remoção do chamado “guarda-chuva nuclear” americano, que protege a Coreia do Sul e a retirada das tropas dos EUA estacionadas no país aliado desde a Guerra da Coreia (1950-53).

A exigência ritual americana de “desmantelamento completo, verificável e irreversível do arsenal nuclear da Coreia do Norte” não aparece no comunicado. Kim não cedeu um só milímetro; Trump recuou quilômetros.

Mais de quatro décadas atrás, na valsa da reaproximação dos EUA da China, Nixon não transformou os direitos humanos numa muralha contra a diplomacia –mas não renunciou ao dever de mencioná-los.

No Comunicado de Xangai, a declaração conjunta sino-americana de 1972, os pontos de acordo estavam precedidos por um elenco de divergências –entre elas, as referências americanas à “aspiração pela liberdade” e uma defesa das “liberdades individuais”.

Trump, em contraste, assinou um documento que silencia sobre os direitos humanos, e qualificou o ditador norte-coreano como “um homem muito talentoso” que “ama profundamente seu país”. O país amado por Kim é uma tirania feroz que encarcera mais de 80 mil dissidentes em campos de trabalho forçado. No Brasil, coerentemente, os adeptos incondicionais de Bolsonaro são, também, ardorosos admiradores de Trump.

Numa insólita entrevista concedida após o encontro, o presidente americano escolheu os adjetivos “provocativos” e “inapropriados” para se referir aos exercícios militares conjuntos conduzidos anualmente pelos EUA e a Coreia do Sul, ecoando termos usados rotineiramente pela própria Coreia do Norte. Das palavras, passou aos atos, prometendo suspendê-los de imediato.

A ruptura da aliança militar entre os EUA e a Coreia do Sul é uma meta estratégica da Coreia do Norte –e da China. Quando, em troca de nada, Trump anuncia a suspensão dos exercícios conjuntos, está dizendo que os EUA desprezam os compromissos geopolíticos assumidos com seus aliados. Os sul-coreanos e os japoneses interpretarão a mensagem como um alerta de que a segurança oferecida pela “Pax Americana” tem seus dias contados.

O espetáculo midiático protagonizado por Trump em Singapura é o maior golpe jamais desferido contra o regime de não proliferação nuclear. “A posse de um arsenal nuclear compensa –persiga-o até o fim, custe o que custar”– eis a lição dele emanada.

Iraque e Líbia: os regimes que abdicaram da busca de armas nucleares foram derrubados. Irã: o regime que congelou seu programa nuclear, submetendo-se a inspeções intrusivas, sofre a reimposição de sanções americanas. Já a Coreia do Norte, que testou mísseis intercontinentais e uma bomba de hidrogênio, ganhou o estatuto de interlocutor privilegiado da maior potência mundial.

A caminho de Singapura, Trump converteu a reunião de cúpula do G7 em palco de guerra verbal, anunciou a cobrança de tarifas protecionistas contra os aliados prioritários dos EUA e cobriu de insultos o chefe de governo do Canadá. O francês Macron ensaiou até a proposta de redução do G7 a G6. O paraíso de Kim corresponde ao inferno da ordem ocidental do pós-guerra.

* Demétrio Magnoli é doutor em geografia humana e especialista em política internacional.


Demétrio Magnoli: Ideias fora do tempo

'Unidade' é o eufemismo para chamado a renúncias em favor de Alckmin

Há quatro décadas, investigando o fermento liberal na obra de Machado de Assis, Roberto Schwarz inventou as "ideias fora do lugar". Dias atrás, na tentativa de refazer o cenário eleitoral, os tucanos inventaram as ideias fora do tempo.

O manifesto "Por um polo democrático e reformista" conclama "liberais, democratas, social-democratas, democrata-cristãos e socialistas democráticos" à união contra "populismos radicais, autoritários e anacrônicos". Seus 17 itens são sementes de um discurso capaz de seduzir a maioria dos eleitores, órfãos de representação política. Mas o tempo passou na janela e a notória Carolina não viu.

As "ideias iniciais para alimentar o debate", como o manifesto classifica suas proposições, traçam fronteiras com Bolsonaro (defesa da liberdade e da democracia) e com Ciro (busca do equilíbrio fiscal). Lá está a plataforma reformista nos campos da economia (Previdência, tributação) e das instituições (reforma do Estado, reforma política). O combate à pobreza é conectado à ampliação da produtividade e à qualificação dos serviços públicos (educação, saúde).

O texto enfatiza o combate à corrupção e à criminalidade, evidenciando que esses temas fundamentais não devem ser entregues à sanha do discurso demagógico. Contudo, no atual estágio da corrida eleitoral, tudo isso soa como operação da campanha de Alckmin.

Inicialmente firmado pelos tucanos FHC, Aloysio Nunes e Marcus Pestana e pelo senador Cristovam Buarque, do PPS, o manifesto apresenta-se como ponto de partida de uma "obra coletiva envolvendo partidos políticos e lideranças da sociedade civil". No universo onírico instalado por essas palavras, a eleição presidencial surge como horizonte distante: o ponto de chegada.

De fato, como o tempo não para, a fragmentação do centro político já se estratificou em diversas candidaturas. Nessas circunstâncias, "unidade" é o eufemismo para um chamado a improváveis renúncias eleitorais em favor do candidato tucano.

Rodrigo Maia e Henrique Meirelles são candidatos especulativos. DEM e MDB não usarão recursos escassos para investidas fadadas ao fracasso. Mas suas decisões sobre coligação dependerão das sondagens de opinião. Por outro lado, Marina e Alvaro Dias são candidatos firmes: eles não miram necessariamente o Planalto, mas a viabilização eleitoral de seus partidos.

A minirreforma política aprovada pelo Congresso ameaça inviabilizar a participação dos pequenos partidos no pleito de 2022. Os dois candidatos não sacrificarão seus projetos partidários no altar etéreo do manifesto da Carolina.

A maioria dos cientistas políticos profetiza que a próxima eleição presidencial terminará reiterando o modelo de todas as anteriores, desde 1994, polarizadas entre PSDB e PT. O argumento é que, apesar de tudo, prevalecerão as máquinas partidárias e uma inércia sistêmica.

A profecia acalenta as esperanças de Alckmin e pode até revelar-se correta, mas origina-se menos da análise objetiva que dos interesses profissionais dos analistas: os partidos tradicionais e seus candidatos, sempre é bom lembrar, formam o núcleo do mercado de trabalho dos cientistas políticos. No fim das contas, é a hipótese alternativa, de uma eleição de crise, mais parecida com a de 1989, que provocou o lançamento do manifesto tucano.

Desde a reeleição de FHC, no longínquo 1998, o PSDB desistiu de formular ideias políticas.

Sob os governos lulopetistas, acuado pelo discurso populista, trancou-se na jaula estreita da denúncia da corrupção. O manifesto seria uma retomada do fio partido e, talvez, a fonte de uma rearticulação do centro político --se produzido no rescaldo das eleições municipais de 2016.

O PSDB preferiu, porém, aguardar que o Planalto caísse no seu colo graças à inércia do sistema político. Agora é tarde: suas belas ideias perderam-se nas dobras do tempo.

*Demétrio Magnoli é doutor em geografia humana e especialista em política internacional.


Demétrio Magnoli: A hora da covardia

Nem Alckmin, nem Marina exigiram a garantia dos direitos básicos de circulação nas estradas e de abastecimento de bens essenciais

Não se tem notícia de humilhação similar. Para todos os efeitos práticos, o governo Temer sucumbiu, atropelado por um caminhão. Mas, em meio ao caos, entre as vozes estridentes dos populistas e os ecos secundários dos oportunistas, deve-se registrar o silêncio dos candidatos de centro. Na paisagem de ruínas, ninguém ousou sair em defesa do interesse geral. A covardia será punida nas urnas.

O Planalto sabia que a explosão viria, mas permaneceu inerte. Diante da catástrofe consumada, ensaiou uma valsa de sucessivos rugidos e recuos, até a completa desmoralização. No início, corretamente, identificou a natureza da operação de locaute, que se fantasiava como greve espontânea. Na sequência, renunciou ao exercício da força legítima, oferecendo carta branca aos grandes empresários de transportes e às facções amotinadas dos caminhoneiros. Corte das estradas, abolição do direito de ir e vir, colapso do abastecimento essencial: uma nação sem governo, sem lei, converteu-se em refém da força privada.

Temer capitulou duas vezes, entregando bem mais do que exigiam as milícias invasoras. No meio do percurso, estendeu sua própria humilhação ao STF, que dera amparo à liberação compulsória das estradas, e aos militares, que se preparavam para cumprir a ordem de romper os bloqueios. O presidente e seu círculo de patéticos estrategistas temiam que a aplicação da lei provocasse uma reprodução das “jornadas de junho” de 2013, incendiando as cidades. No altar sacrificial da capitulação, eles imolaram todos os bens públicos que tinham ao alcance. A desoneração da folha das transportadoras, o tabelamento do frete, a contratação de transporte sem licitação, o subsídio ao diesel serão financiados por cortes de gastos sociais, inflação e emissão de dívida. Há, contudo uma perda maior: agora, ninguém mais duvida de que a chantagem compensa, especialmente se for conduzida a seus limites extremos.

Soltaram os cachorros loucos. Nos bloqueios e acostamentos, os especuladores do caos desfraldaram as bandeiras da “intervenção militar”. Na arena de campanha, Jair Bolsonaro prometeu apoio integral aos “caminhoneiros”, simulou um pedido de moderação e, finalmente, garantiu que “um futuro presidente honesto/patriota” anistiará qualquer hipotético atingido por penalidades legais. O protagonista inconteste ganhou coadjuvantes, que se aninharam na boleia de uma carreta bitrem. Ciro Gomes avisou que, sem a revogação da lei do teto de gastos públicos, “vai faltar escola e hospital”. Já Álvaro Dias, um inesperado nostálgico da idade de ouro dilmista, clamou pela administração política dos preços de combustíveis.

A falência técnica da Petrobras nada ensinou ao lulopetismo, engajado na repetição farsesca de uma história trágica. Precisamente quando Bolsonaro advertiu para “a hora de acabar” o motim das estradas, a Federação Única dos Petroleiros (FUP), tentáculo sindical do PT, ensaiou um espetáculo alternativo de dupla utilidade. No plano puramente simbólico, a frustrada greve dos petroleiros reivindicava a redução dos preços do gás de cozinha, uma bandeira “popular” de contraponto petista à baderna da direita. No plano prático, exigia a demissão de Pedro Parente, o presidente que resgatou a Petrobras de um poço sem fundo, passo necessário para uma futura restauração do controle partidário sobre a estatal.

Bolsonaro e o PT operaram segundo seus interesses, apostando nas ações do colapso. O visceral oportunismo de Álvaro Dias só surpreendeu os que não o conhecem. Mas é o silêncio tumular de Geraldo Alckmin e Marina Silva, os candidatos viáveis do centro do espectro político, que indica a dimensão da crise nacional. O candidato tucano permaneceu virtualmente calado durante o auge da crise. No epílogo, depois de firmado o tratado de capitulação, produziu uma exigência vazia de retorno à “normalidade”. A candidata da Rede, por sua vez, criticou com justiça a falta de medidas preventivas do governo e a política de variação diária de preços, apenas para ensaiar um raciocínio primitivo — e demagógico — sobre a possibilidade de usar a produção doméstica de petróleo para regular os preços dos combustíveis.

A covardia triunfou. Nem Alckmin, nem Marina exigiram a garantia dos direitos básicos de circulação nas estradas e de abastecimento de bens essenciais. Nenhum dos dois formulou uma nítida condenação dos termos da rendição do Planalto à chantagem dos promotores do locaute. Nenhum deles teve a audácia de defender a gestão de Pedro Parente, explicando que inexiste almoço grátis — e que, sob o império do lulismo, a Petrobras foi à lona por financiar subsídios de cunho populista.

Segundo constatação do Datafolha, 87% dos brasileiros aprovaram o movimento de paralisação, mas 56% o consideraram prejudicial à população. O instituto registra, ainda, que exatos 87% recusam os aumentos de impostos e cortes de gastos derivados da capitulação governamental. As nações enlouquecem quando o conjunto de suas lideranças políticas entregam-se ao populismo, ao oportunismo e à covardia. Nessa hora, a velha ordem desaba.


Demétrio Magnoli: A voz do povo

O que o brasileiro diz é que a roda de um caminhão esmagou o sistema político

Decifra-me ou devoro-te! Segundo o Datafolha, 87% dos brasileiros aprovaram o movimento que paralisou o país durante uma semana e 56% defenderam sua continuidade. Ao mesmo tempo, 87% rejeitaram os aumentos de tributos e cortes de gastos públicos necessários para atender às reivindicações do movimento —e 56% avaliaram que o resultado é prejudicial ao “brasileiro em geral”. A “voz do povo” não faz sentido lógico. Mas há método na loucura.

Sondagens sobre a opinião subjetiva a respeito de eventos em curso são investigações complexas. A formulação intrínseca e a contextualização das perguntas têm forte impacto nas respostas. Uma pesquisa do Ideia Big Data, divulgada em O Globo e realizada dias antes, registrou desaprovação majoritária ao movimento (55%). Não há, porém, como fugir ao desafio da esfinge expresso pela contradição interna exposta no relatório do Datafolha. Atrás dela, distinguem-se os contornos da ruína de nosso sistema político.

Greve é o eufemismo destinado a ocultar a precisa natureza de um locaute articulado entre as grandes empresas de transporte e setores politicamente organizados dos caminhoneiros autônomos. O movimento tornou letra morta o direito de ir e vir, provocou o colapso de atividades essenciais, causou perdas universais irreparáveis. À primeira vista, sacralizamos o “direito de manifestação”, elevando-o ao estatuto de dogma e aceitando que seu exercício extremado implique a abolição de todos os outros direitos. De certo modo, absorvemos a pedagogia do lulopetismo, que serve hoje ao bolsonarismo: o “povo organizado”, a corporação, vale mais que a nação.

O “brasileiro em geral” é o povo desorganizado, o cidadão comum. Os “brasileiros em geral”, alvos da sondagem do Datafolha, habituaram-se à ideia de que os interesses privados sempre triunfam. Os políticos beneficiam-se de propinodutos subterrâneos. Os empresários, de subsídios oficiais, refinanciamentos de dívidas, contratos superfaturados. Os juízes e promotores, de rendas privilegiadas, como a exorbitância do auxílio-moradia. Se as corporações de fidalgos podem, por que não a corporação dos caminhoneiros, que são gente comum? No elogio da baderna, avulta uma ânsia por igualdade.

Traçam-se paralelos errados, que contêm grãos de verdade relevante. O maio de 2018 não é, nem de longe, a retomada do junho de 2013. De fato, sob um aspecto decisivo, um evento representa o oposto do outro. “Brasil, é hora de acordar: o professor vale mais que o Neymar” —cinco anos atrás, na Paulista, protestava-se contra a subordinação do bem público ao interesse privado.

Agora, nas estradas interrompidas, exigiu-se o bem privado, às custas da imolação do interesse público. A desoneração da folha das transportadoras, o tabelamento do frete, a contratação de transporte sem licitação, o controle do preço do diesel serão pagos por mais impostos, mais inflação, menos educação e menos saúde. Mas, na percepção da maioria, dessa vez, para variar, triunfou uma “corporação dos humildes”. Somos todos caminhoneiros —eis uma mensagem expressa nas estatísticas do Datafolha.

Os grãos de verdade espalham-se além dessa constatação. Nas “jornadas de junho”, em 2013, o povo nas ruas dobrou a arrogância do governo, estragando a festa nacionalisteira da Copa.

Agora, nas estradas, segundo a interpretação predominante, o governo sofreu uma humilhação inédita, rendendo-se a gente sem sobrenome, sem rosto, sem cargo, sem partido. “Não aceitamos pagar a conta da derrota do governo” —o pensamento mágico, a dissociação absoluta entre causa e efeito, faz parte do raciocínio. Na visão da maioria, o mundo das regras cedeu lugar à regra da força.

O governo acabou? Sim, claro, mas isso é só o óbvio. Na véspera das eleições, o povo está dizendo que a roda de um caminhão esmagou todo o sistema político.

* Demétrio Magnoli é doutor em geografia humana e especialista em política internacional.


Demétrio Magnoli: Um mundo que desaparece

EUA subordinaram sua política para o Oriente Médio aos interesses geopolíticos de Israel (ou melhor, à linha extremista do governo israelense) e da monarquia saudita
‘O mais poderoso preditor único da posição do presidente em qualquer tema é a posição de Obama. Ele faz o exato oposto do que Obama fez.” O guia de análise, formulado por Michael Hayden, ex-diretor da CIA, logo após a decisão da Casa Branca de abandonar o acordo nuclear com o Irã, está essencialmente correto. Mas não se trata apenas de Obama: Donald Trump rompe com uma tradição mais antiga, cujas raízes encontram-se no imediato pós-guerra. Nas palavras do próprio Hayden: “Quase todos os presidentes americanos disseram: ‘No fim das contas, quanto mais comércio livre, melhor para os EUA; no fim, a imigração é positiva para os EUA; no fim, os EUA se fortalecem por terem aliados fortes’. Agora, temos um presidente que se opõe ao livre comércio, enxerga os imigrantes como ameaça e vê os aliados como um fardo.”

A ruptura com o acordo nuclear e a inauguração da embaixada americana em Jerusalém, dois gestos conexos separados por apenas uma semana, formam um grande ato de abdicação de influência. Os EUA subordinaram sua política para o Oriente Médio aos interesses geopolíticos de Israel (ou, dito melhor, à linha extremista do atual governo israelense) e da monarquia saudita, renunciando à interlocução com quase todo o mundo árabe e, ainda, com a Turquia.

Livres da teia de compromissos do acordo, os falcões iranianos ampliarão a presença militar na Síria e reforçarão a cooperação com o Hezbollah libanês, enquanto os moderados, enfraquecidos, buscam amparo diplomático na Rússia, na China e nas potências europeias traídas pela Casa Branca. Respaldado por Trump, Netanyahu avançará no projeto de perenização da ocupação dos territórios palestinos, aprofundando o isolamento internacional e regional de Israel.

As pedras do dominó desabam em sequência. Sob o patrocínio da Rússia, as negociações sobre o futuro da Síria envolvem o regime de Assad, o Irã e a Turquia, excluindo os EUA. Nas eleições libanesas, em 6 de maio, a coalizão liderada pelo Hezbollah, partido-milícia xiita financiado pelo Irã, converteu-se no maior grupo parlamentar. Já nas eleições iraquianas, em 13 de maio, triunfou a heterogênea aliança articulada pelo clérigo xiita Moqtada al-Sadr, um inimigo dos EUA. Enquanto isso, no Iêmen, a campanha saudita de bombardeios indiscriminados revela-se incapaz de dobrar os rebeldes houthi, que contam com o apoio iraniano.

Trump bloqueou as estradas da diplomacia. A erosão da autoridade do presidente Hassan Rouhani, que apostava no acordo nuclear para recuperar a economia iraniana, desloca poder para a linha-dura dos aiatolás. Depois do massacre de palestinos em Gaza que assinalou com sangue a transferência da embaixada americana, as forças iranianas na Síria e o Hezbollah tendem a multiplicar as provocações contra Israel. Ao mesmo tempo, um Irã submetido a novo ciclo de sanções americanas ampliará seu programa de mísseis e reativará gradualmente o enriquecimento de combustível nuclear.

“Será aberta a caixa de Pandora”, profetizou o francês Emmanuel Macron, concluindo que “pode haver guerra”. De fato, fazendo o “exato oposto do que Obama fez”, Trump monta, involuntariamente, o cenário para uma guerra. Macron observou, acertadamente, que Trump não deseja um conflito militar com o Irã. Deve-se acrescentar, porém, que esse é precisamente o resultado almejado pelo secretário de Estado Mike Pompeo e pelo conselheiro de Segurança Nacional John Bolton, seus novos timoneiros de política externa.

As reverberações da explosão representada pela ruptura do acordo nuclear ultrapassam em muito a esfera do Oriente Médio. “A primeira linha de confrontação não é com os iranianos, mas com nossos aliados europeus”, enfatizou Hayden. Um editorial do semanário alemão “Der Spiegel” caracterizou a decisão de Trump como “a mais perigosa e arrogante” desde a invasão do Iraque, em 2003, mas destacou que, desta vez, os EUA unificaram a Europa inteira, em “choque”, “cólera” e, especialmente, “desamparo”. O impacto abala as fundações da aliança transatlântica erguida pelo Plano Marshall e corporificada na Otan. “O Ocidente, como o conhecemos, não mais existe”, constata o “Der Spiegel”.

Na hora da ruptura americana do acordo, Ali Khamenei fugiu a seus hábitos, experimentando a ironia. O líder supremo iraniano disse que seu país discutiria o tema com “as duas potências mundiais, China e Rússia”. Os EUA conservam o estatuto de maior potência global, uma condição assegurada pelo seu incontrastável poderio militar e pelo fato decisivo de que o Federal Reserve emite a moeda do mundo. Não estamos diante de uma súbita derrocada americana, mas de algo mais sutil — e inédito.

No passado, a influência do Reino Unido declinou devido ao surgimento de potências mais fortes, enquanto a da URSS se exauriu sob o impacto da combinação de falência econômica doméstica com sucessivas intervenções externas. Sob Trump, como assinalou Richard Haass, os EUA declinam por efeito de uma “renúncia voluntária ao poder e às responsabilidades”. Não é uma boa notícia para o mundo.

* Demétrio Magnoli é sociólogo

 


Demétrio Magnoli: 'A rua de teus pais e avôs'

Na Catalunha, como em outros lugares da Europa, a direita é a nova esquerda

“Vergonha é uma palavra que, há anos, os espanhóis eliminaram de seu vocabulário.” “Os espanhóis só sabem espoliar.” “Se continuamos aqui mais alguns anos, corremos o risco de terminar tão loucos quanto os próprios espanhóis.” “Mais que tudo, o que surpreende é o tom, a má educação, a ofensa espanhola: sensação de imundície.”

Quim Torra, eleito governador regional (president) pela estreita maioria independentista no Parlamento da Catalunha, apagou centenas de tuítes como esses de sua conta —mas eles já haviam sido copiados e traduzidos para o espanhol. Na Catalunha, como em outros lugares da Europa, a direita é a nova esquerda.

Torra é um nativista, um xenófobo antiespanhol, um supremacista catalão. Sua eleição obedeceu ao comando direto de Carles Puigdemont, o president destituído, exilado em Berlim. Contudo, a maioria da bancada independentista é formada por dois partidos de esquerda: a ERC, moderada, e a CUP, radical. Sem o apoio deles, Torra não teria sido alçado à chefia do governo regional. Mussolini moveu-se da extrema-esquerda à extrema-direita para inventar o fascismo. Um século depois, na abrangente moldura do nacionalismo, a esquerda catalã identifica-se com um semifascista.

Os tuítes são o de menos. Artigos de Torra publicados por obscuras revistas separatistas desvendam suas inclinações ideológicas. Num, classifica a Espanha como “um país exportador de miséria, material e espiritualmente falando”.

Noutro, recomenda “um psiquiatra” para curar “o torturado cérebro espanhol”. Um terceiro qualifica os catalães que têm no espanhol sua língua habitual como “bestas com rosto humano”, “víboras” e “hienas”.

A tecla perene de Torra é o essencialismo identitário. Um artigo explica que “pátria é um estado de espírito” e, ainda, que “se somos catalães, não podemos ser outra coisa”. A obsessão pelo idioma sintetiza-se em outro texto, que faz da língua a “alma da pátria”. A pulsão romântica evidencia-se na passagem: “Que deterioração. Sais a rua e nada indica que aquilo seja a rua de teus pais e de teus avôs: o castelhano avança implacável, voraz.” Pouco mais de metade dos eleitores catalães rejeitaram os partidos independentistas. “Aqui, não cabe todo mundo”, escreveu o novo presidente.

Estat Català é um partido ultranacionalista, o equivalente catalão da Falange franquista, que operou na primeira metade da década de 1930, organizando milícias de tipo fascista e negociando acordos com o regime de Mussolini. Num artigo de 2014, Torra celebrou seus líderes como “pioneiros da independência”, agradecendo-lhes a “belíssima lição” de “tantos anos de luta solitária”. O president eleito pela esquerda catalã situa-se no campo dos partidos xenófobos da direita europeia.

O mito da “nação do sangue”, ancestral e pura, impulsiona o separatismo catalão. Nas palavras de Torra: “Corre-se o risco de que a nação se dissolva como açúcar em copo de leite, espremida entre a avalanche imigratória, a monstruosa espoliação fiscal e uma globalização que só trata com respeito a quem pertence à ordem mundial: os Estados”. A “espoliação fiscal” é referência à Espanha; a “globalização”, à União Europeia; a “avalanche imigratória”, às ondas de trabalhadores andaluzes que se transferiram para a Catalunha desde a década de 1960 e —horror! — falam espanhol.

A encruzilhada esquerda/direita não desapareceu. Hoje, porém, ela se redefine à sombra da cisão cosmopolitismo/nacionalismo. A esquerda catalã escolheu seu lado.

O Podemos, partido esquerdista espanhol que figura como modelo para o PSOL, deixou-se seduzir pelos nacionalistas catalães, apoiando o plebiscito ilegal de independência. Agora, um tanto tarde, acordou e classificou os textos de Torra como “racistas”. Não parece, mas o Brasil faz parte do mundo. A esquerda brasileira deve, cedo ou tarde, escolher um lado.

*Demétrio Magnoli é doutor em geografia humana e especialista em política internacional.


Demétrio Magnoli: A ciência política do negacionismo

Nos EUA, como no Reino Unido, o nacionalismo bebeu no pântano dos destroços da classe trabalhadora

Diana Mutz, da Universidade da Pensilvânia, afirma que o triunfo de Trump em 2016 não foi fruto de um levante eleitoral dos “deserdados da globalização”, mas o resultado de uma reação dos brancos às percepções de ameaça a seu status de grupo e à posição dominante dos EUA no mundo. Racismo, não insegurança econômica –eis o diagnóstico dela.

Na Folha (7/5), Vinicius Mota enaltece o artigo de Mutz, publicado na revista da Academia Nacional de Ciências, que “analisa os dados disponíveis com a melhor técnica”. Só que a “técnica” da autora está toda enviesada pela ideologia, o que a faz escolher as estatísticas inadequadas.

Trump perdeu no voto popular, por 2,9 milhões, uma diferença apreciável. Sua vitória deu-se no Colégio Eleitoral, pela transferência de quatro ou cinco decisivos estados da coluna dos democratas para a dos republicanos.

Mutz compara as percepções do conjunto do eleitorado americano em 2012 e 2016 –mas isso é irrelevante para se entender o resultado. A “melhor técnica” exigiria cotejar as percepções dos eleitores dos estados que mudaram de mãos. Ela precisaria investigar Pensilvânia, Ohio, Michigan, Indiana e Wisconsin –isto é, o Manufacturing Belt devastado pela longa recessão. Se o fizesse, porém, seria obrigada a olhar para o que não quer.

“Viver em alta renda –isto é, ser vencedor na globalização– fez subir a chance de voto em Trump”, sintetiza Mota, a partir das conclusões de Mutz. Errado, mesmo nacionalmente. Entre 2012 e 2016, as maiores transferências de voto de democratas para republicanos ocorreram nos condados com piores índices de saúde, que se concentram desproporcionalmente no Manufacturing Belt.

Na história recente, o voto branco sempre vai, majoritariamente, para os republicanos. Mas, entre 2012 e 2016, cresceu a parcela de votos nos democratas entre os com diploma universitário, enquanto aumentou a parcela de votos nos republicanos entre os sem grau universitário. Não custa lembrar: Romney, o republicano de 2012, era tudo menos um nacionalista e um populista.

Mutz registra, em favor de sua tese, que os EUA experimentaram recuperação econômica nos mandatos de Obama. Oculta, porém, que a retomada propiciou o crescimento real dos salários mais elevados, mas não dos salários médios e baixos, que permaneceram estagnados.

No Reino Unido, o Brexit triunfou por 1,2 milhão de votos. A diferença refletiu o forte apoio à saída da UE nas Midlands, regiões industriais antigas submetidas a prolongada depressão. Não há sinais, ali, de percepções de perda de status social pelos brancos –mas há expressiva contração da renda e redução de empregos qualificados. Como nos EUA, o nacionalismo bebeu no pântano dos destroços da classe trabalhadora.

Na campanha, Hillary Clinton quase não visitou os estados tradicionalmente democratas do Manufacturing Belt, enquanto Trump realizou intensa campanha pessoal em todos eles. Dos 650 condados que votaram em Obama por duas vezes, um terço escolheu Trump em 2016. Entre os brancos sem diploma, 22% mudaram o voto de Obama para Trump.

Assim como Clinton, Mutz circula bem longe de onde as coisas acontecem. À distância, qualquer gramado parece liso. Vítima dessa ilusão ótica, Mota qualifica a tese do levante dos “deserdados da globalização” como um produto da “máquina de fabulações que é o cérebro humano”.

O que é ilusão ótica em Mota, é “fabulação” ideológica em Mutz. O desastre de 2016 ativou o debate sobre a estratégia do Partido Democrata de formar coalizões de minorias e sobre as implicações de seu discurso multiculturalista.

Os democratas, dizem os críticos, abandonaram os brancos pobres aos seus próprios temores. Mutz esgrime “a melhor técnica” –no caso, a prestidigitação estatística– para praticar o negacionismo, salvando uma linha política fracassada. Trump sorri, agradecido.

* Demétrio Magnoli é doutor em geografia humana e especialista em política internacional.


Demétrio Magnoli: Estilhaços de 1968

Cuba carece de relevância, mas desempenhou papel crucial no plano ideológico. Castrismo formou uma caverna escura, santuário para a esquerda latino-americana

No 13 de maio de 1968, meio século atrás, o levante estudantil levou 800 mil às ruas de Paris. No Quartier Latin, os muros falavam: “A imaginação no poder”, “É proibido proibir”, “Abaixo das ruas de pedra, a praia”, “O tédio é contrarrevolucionário”, “Seja realista, exija o impossível”, “Decretado o estado de felicidade permanente”. 1968 não terminou? Terminou, sim, mas seus estilhaços estão por aí.

A revolta de Paris assinalou a ruptura do controle da juventude pelo Partido Comunista. A imagem da URSS ruía no espelho da invasão da Hungria (1956) e da Primavera de Praga, esmagada pelos tanques soviéticos meses depois. Mas a cisão extinguiu o próprio levante: no fim, os sindicatos comunistas interromperam a greve geral, isolando os estudantes. Pouco antes, 30 de maio, algo como um milhão de apoiadores do general De Gaulle, a “maioria silenciosa”, tomaram os Champs-Elysées.

O 1968 francês foi festa, decepção e silêncio. Na Alemanha Ocidental e na Itália, as revoltas estudantis deixaram fragmentos letais. Delas, ou de suas franjas extremas, nasceram o Baader-Meinhof e as Brigadas Vermelhas, dois grupos terroristas infiltrados pela Stasi, a polícia política da Alemanha Oriental. A luta armada, escreveu Ulrike Meinhof, servia para “resgatar o estado de conhecimento” alcançado pelo movimento de 1968. Qual “conhecimento”? A ideia de que a democracia ocidental não passava de uma delgada película destinada a ocultar a natureza fascista do Estado. Eis um estilhaço ideológico do passado que permanece conosco, no pensamento infértil da extrema-esquerda.

A correnteza do 1968 europeu bifurcou-se na encruzilhada da democracia parlamentar. Os que não seguiram a trilha da “ação direta” inventaram a política ecológica. Cohn-Bendit, o Daniel Le Rouge, trocou o grupo radical autonomista de sua juventude, no qual militara com Joschka Fischer, que viria a ser ministro do Exterior alemão, pelo Partido Verde. Eis mais um estilhaço de 1968: o alargamento do discurso da esquerda moderada e a introdução do conceito de desenvolvimento sustentável na política contemporânea.

O 1968 representou coisas distintas em lugares diferentes. Na Alemanha Ocidental, abriu caminho à ascensão de uma social-democracia reformada: Willy Brandt tornou-se chanceler em 1969, interrompendo as duas décadas de hegemonia conservadora do pós-guerra. Nos EUA, propiciou a fusão das lutas pelos direitos civis e contra a guerra no Vietnã, revolucionando por dentro o Partido Democrata. Já na América Latina, não se repetiu a ruptura europeia entre a juventude e a esquerda stalinista tradicional. As fotos do corpo sem vida de Che Guevara haviam sido divulgadas pelo governo boliviano em outubro de 1967. Sob a força gravitacional da Revolução Cubana, os grupos latino-americanos de esquerda aderiram ao castrismo e deixaram-se embriagar pela ideia do “foco revolucionário”. Na Argentina, no Uruguai, no Brasil eclodiram as lutas armadas.

Caetano e Os Mutantes tocaram “É proibido proibir” numa noite de domingo, 15 de setembro de 1968, provocando a célebre, irada reação da plateia estudantil que identificava a guitarra elétrica ao imperialismo. No Brasil, o 1968 libertário quase se restringiu à Tropicália. Seis meses antes do happening no festival da canção, um PM matara o secundarista Edson Luís Lima Souto, no restaurante Calabouço, no Rio. Três meses depois, no 13 de dezembro, o AI-5 terminou o nosso ano que supostamente nunca acabou. Dali em diante, as dissidências armadas do PCB instalaram seus focos urbanos, enquanto o PCdoB preparava a guerrilha no Araguaia. Não faz muito sentido conectar o “nosso” 1968 ao “deles”.

Cuba carece de relevância econômica ou geopolítica, mas desempenhou um papel crucial no plano ideológico. O castrismo formou uma caverna escura, que serviu de santuário para a esquerda latino-americana. Dentro dela, protegidos dos clarões que vinham da Europa, os grupos esquerdistas podiam continuar a rezar pela Bíblia do “socialismo real” e estudar o Minimanual do Guerrilheiro Urbano de Carlos Marighella. Do nosso 1968, restou um estilhaço: a atração pelos personagens trágicos da luta armada, homenageados até hoje em sessões oficiais e celebrados em filmes ou canções que gotejam vandalismo intelectual.

Jorge Amado, um comunista de carteirinha, terminou a vida abraçado a Antônio Carlos Magalhães, pedindo que se erigisse uma estátua a Marighella em Salvador. Caetano cantou Marighella em “Um comunista”, em 2012, sem atinar para a evidência de que seria fuzilado num hipotético regime comandado pelo guerrilheiro. Na Bahia, em 2010, ainda presidente, entre um e outro encontro com os Odebrecht, Lula reverenciou a figura de Marighella, conclamando-nos a elevá-lo ao panteão dos heróis da pátria e a “valorizar as razões pelas quais fez o que fez”. Os militantes do PT e do PSOL circulam vestidos em camisetas com a efígie do Che. A caverna é escura.

* Demétrio Magnoli é sociólogo


Demétrio Magnoli: A conciliação do poder público com os bolsões de invasões é também um gesto político

A conciliação do poder público com os bolsões de invasões é também um gesto político

É lamentável que tenha gente querendo fazer uso político em cima de um incêndio”, disse um indignado Guilherme Boulos. Mas, como ele bem sabe, o material inflamado pelas chamas é todo feito de política —ou melhor, de uma tripla depravação política.

O mercado perfeito só existe no éter dos modelos econômicos puros. A cidade é a epítome da falha de mercado. Como o valor dos imóveis reflete suas localizações, o jogo de oferta e demanda tende à segregação social absoluta, expulsando os pobres para as periferias e, nesse movimento, separando geograficamente os empregos da força de trabalho.

Da disjuntiva, emanam tanto uma tensão social dilacerante quanto as políticas urbanas destinadas a estabilizar a segregação. As townships do apartheid, as cidades-satélites de Brasília, os conjuntos habitacionais das franjas de Paris, o Minha Casa Minha Vida pertencem, cada um no seu tempo e lugar, à mesma lógica implacável.

A ordem do absurdo exige, porém, níveis extremos de controle político. Nos seus interstícios, floresce a cidade ilegal: o cortiço, a favela, a invasão, a colonização de praças e viadutos por moradores de rua. A política infiltra-se em tudo.

Os habitantes do prédio Wilton Paes de Almeida pagavam, em dinheiro, a proteção oferecida por um certo movimento Luta por Moradia Digna. Os ocupantes de edifícios gerenciados pelo MTST pagam proteção em outra moeda: a presença nas passeatas e manifestações que projetaram um candidato presidencial.

Três vezes depravação. A conciliação do poder público com os bolsões de invasões, inclusive aqueles enraizados em imóveis inseguros, é também um gesto político, que reflete escolhas ideológicas ou a mera inércia de uma ordem precária. O incêndio é de Haddad e de Doria, em partes iguais.

Nabil Bonduki, um lulista como Boulos, fez “uso político” do incêndio para clamar por “uma estratégia de produção massiva de habitação social em áreas bem localizadas” (claro: chancelada pelos “movimentos de moradia sérios”). Mas a proposta de habitação social no centro expandido apenas troca o gueto de lugar.

As experiências das Habitações de Locação Moderada parisienses, de Havana Velha, da antiga Berlim Leste ou das cidades soviéticas já deveriam ter ensinado o suficiente sobre o lúgubre destino reservado a edificações de propriedade estatal cedidas em usufruto a moradores pobres. Gueto é ruína anunciada, como constataram tantos urbanistas livres da gaiola do dogma.

As chamas que consumiram o Wilton Paes de Almeida servirão para ofuscar ou iluminar? Na longa era do lulismo, o Minha Casa Minha Vida tornou-se eixo de uma santa aliança de negócios e política.

Numa ponta, o programa oferecia vultosos subsídios ocultos às construtoras. Na outra, gerava clientelas eleitorais a prefeitos e vereadores, além de seguidores compulsórios de líderes de movimentos de moradia. O produto final foi o congelamento do debate sobre o futuro de nossas cidades. Esquerda e direita combinaram, tacitamente, que ninguém pronunciaria as duas palavras proibidas: reforma urbana.

Não precisava ser assim. Londres e Paris acordaram, anos atrás, para a necessidade de reinventar seus centros expandidos por meio de projetos público-privados de uso múltiplo de áreas degradadas. As metas são evitar tanto a especialização funcional quanto a segregação residencial segundo faixas de renda. Na América Latina, cidades colombianas e chilenas adotaram iniciativas em direções semelhantes.

O edifício que desabou “era um ponto fora da curva na arquitetura, um prédio de vanguarda”, na descrição do arquiteto Francesco Perrotta-Bosch, ou um “esgoto a céu aberto, enxame de mosquito”, no relato do pastor Frederico Ludwig. As duas imagens devem ser conectadas: o Wilton Paes de Almeida era o retrato de um país que, em nome dos interesses privados, depreda a cidade.

* Demétrio Magnoli é doutor em geografia humana e especialista em política internacional.


Demétrio Magnoli: A história de Anna

Sem o conceito de civilização do espetáculo, não se entende a política contemporânea de ultraesquerda

Anna foi o retrato da CUP, o partido “anti-sistema” Candidatura de Unidade Popular, que luta “pelos Países Catalães independentes, socialistas, ecologicamente sustentáveis, territorialmente equilibrados e desvinculados das formas de dominação patriarcais”.

No Parlamento catalão, exibia-se como revolucionária pós-moderna: cabelos curtos de corte irregular, franja reta, camisetas ornadas com slogans insurgentes. Diante da hipótese de um processo judicial decorrente de sua participação secundária na fracassada secessão da Catalunha, fugiu para Genebra –e reformou sua aparência.

A Anna do exílio voluntário, cabelos longos escorridos, roupas casuais de professora, a declarada vontade de retornar à docência, tornou-se uma perfeita senhorita suíça. As duas Annas, ou o percurso de uma a outra, ajudam a entender o que Mario Vargas Llosa batizou como a “civilização do espetáculo”.

Anna Gabriel Sabaté nasceu em 1975, ano da morte de Franco, em Sallent, povoado catalão dividido pelo rio Llobregat. Fala perfeitamente o espanhol –mas, em público, só usa o catalão. Não tem filhos –mas, se tivesse, gostaria de educá-los “em comunidade”, “numa tribo”. Tribo é a palavra-chave para entender Anna.

Seu avô e seu bisavô militaram na CNT, a central sindical anarquista que mandou em Barcelona durante uns poucos meses insurrecionais, entre 1936 e 1937. Dos velhos anarquistas, ela guardou o anticapitalismo.

Da “civilização do espetáculo”, um fruto do capitalismo tardio em sociedades ricas, extraiu o ecologismo e o feminismo. Uma companheira sua, Mireia Boya, sugeriu boicotar as eleições catalãs de dezembro, substituindo-as por uma “paella massiva, insubmissa e solidária”. Na paella ideológica de Anna, o ingrediente final é o encanto pelo romance da Revolução Cubana e pela autoritária (e machista) Venezuela chavista.

“Somos as filhas e netas das bruxas que não puderam queimar” –o brado ritual de Anna, sua marca registrada, contrasta com o percurso da CUP rumo a uma aliança com o PDeCat, o partido conservador catalão. Concluída após as eleições regionais de 2015, a aliança propiciou a maioria parlamentar de sustentação do governo separatista de Carles Puigdemont.

No processo, a CUP sacrificou a pulsão revolucionária no altar de um nacionalismo de corte étnico e aristocrático. O contraste não poderia ser maior: no discurso dos líderes nacionalistas oficiais, a Catalunha independente nascerá de uma derradeira batalha da Guerra da Sucessão Espanhola (1702-14); no de Anna, do levante de uma nação oprimida pelas engrenagens do capitalismo globalizado.

A CUP, estilhaço da esquerda pós-marxista, é constituída por duas facções em rusgas perenes, mas igualmente inspiradas pela “esquerda abertzale”, as organizações radicais bascas ligadas ao ETA. Dois anos atrás, no parlamento catalão, Anna celebrou a libertação de Arnaldo Otegi, um líder do ETA condenado por atos terroristas, acusando a Espanha de manter presos políticos. “Você não chega nem à sola do sapato de Otegi”, respondeu a um deputado indignado com a comemoração.

Anna milita na facção Endavant, cujas raízes encontram-se nos movimentos de ocupação de moradias (okupa) da década de 1990. No fim de fevereiro, concedeu entrevista em Genebra explicando que escolheu: “Um país onde meus direitos fundamentais são garantidos” –isto é, a próspera Suíça que lava mais branco.

Depois, posou diante do lago para o fotógrafo francês Laurent Guiraud, cabelos soltos, jeans da Diesel e, sinal remanescente de rebeldia, os antigos piercings de orelha. Andrea Vilallonga, especialista em imagem, explicou que seu novo look cumpre a função de dissolver a marca cultural da militante implacável.

Sem o conceito de “civilização do espetáculo”, não se entende a política contemporânea de ultraesquerda. Anna, a catalã, está entre nós.

* Demétrio Magnoli é doutor em geografia humana e especialista em política internacional