Demétrio Magnoli: Raiz da desconfiança da vacinação está no poder estatal

Incontáveis levantes antivacinais refletiram as suspeitas populares sobre as motivações dos governos
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Quantos? 100 mil, segundo os jornais da época, ou 20 mil, segundo historiadores, marcharam na cidade inglesa de Leicester em 23 de março de 1885, protestando contra a vacina obrigatória da varíola.

A resistência ativa ou passiva à imunização é tão antiga quanto a moderna história das vacinas, que começa com a invenção de Edward Jenner, em 1796. No seu capítulo atual, ela ameaça impedir a imunidade coletiva à Covid-19 em certos países ou regiões.

A raiz profunda da desconfiança da vacinação encontra-se no temor do poder estatal, especialmente quando se trata do controle sobre o próprio corpo dos indivíduos. No passado, os agentes vacinadores eram os mesmos funcionários encarregados de trancafiar os pobres em estabelecimentos de trabalho ou de remover habitações de locais insalubres.

De Leicester, 1885, a Zomba, no Maláui britânico, em 1960, passando pela Revolta da Vacina, no Rio de Janeiro, em 1904, incontáveis levantes antivacinais refletiram as suspeitas populares sobre as motivações dos governos.

A resistência segue nítidos contornos ideológicos. Na França, uma pesquisa de 2019, anterior à pandemia, revelou que 53% dos eleitores da extrema esquerda e 61% dos eleitores da extrema direita acreditavam num conluio do governo com as farmacêuticas destinado a ocultar os malefícios das vacinas. A polarização política anda de mãos dadas com a resistência à imunização: nos EUA, entre os seguidores de Trump; no Brasil, entre os de Bolsonaro.

Deus me protege, a vacina traz a Marca da Besta —religiosos fundamentalistas, sejam eles cristãos, muçulmanos ou judeus, resistem à imunização. Numa sondagem conduzida nos EUA, 45% dos brancos evangélicos responderam que não tomarão vacina contra Covid, contra 30% da população em geral.

Meu corpo é um santuário intocável —naturalistas radicais também resistem, pois vacinas seriam substâncias artificiais e, portanto, tóxicas. Mas, diante da pandemia, a hesitação deriva, sobretudo, de atitudes políticas.

Campanhas de vacinação associam-se ao centralismo estatal, à ênfase na proteção coletiva e à ideia de um bem público oferecido igualitariamente. Na ponta oposta, a doutrina ultraliberal prega o individualismo, a fragmentação das instituições hospitalares e a adoção de soluções de mercado para a saúde pública. A aversão dos ultraliberais ao contrato social está na base da hesitação de setores da população diante da vacina.

Mas os ultraliberais não estão sós. O discurso conspiratório ritual da esquerda, contrário às multinacionais farmacêuticas, foi adotado pela direita nacionalista, que o coloriu como denúncia do “globalismo”. A vacinação faria parte de um plano maligno de instituições multilaterais (OMS), governos internacionalistas (Biden, Merkel, Xi Jinping) e corporações globais para submeter as nações.

Nas suas versões mais desvairadas, esse discurso assegura que as vacinas são vetores biológicos de controle das mentes. O Bolsonaro da “vachina do Doria” ilustra, em toda a sua estupidez, a campanha antivacinal da extrema direita.

Nos EUA, onde quase 50% tomaram a primeira dose, o ritmo da imunização reduziu-se fortemente, pois a campanha começa a enfrentar a barreira demográfica da resistência vacinal: 64% dos restantes não confirmam que tomarão a dose inicial. Na União Europeia, onde apenas 30% tomaram a primeira dose, o cenário é igualmente preocupante: dependendo do país, entre 61% e 39% dos restantes hesitam em tomá-la.Os governos europeus só contribuíram com a resistência ao questionar a eficácia e segurança das vacinas. A maior hesitação encontra-se na França, o que reflete a amarga polarização política nacional.Boa notícia: no Brasil, parcela pequena, e decrescente, da população resiste à imunização. Eis mais uma derrota de Bolsonaro —e um dos raros sinais positivos na nossa paisagem política.

Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/demetriomagnoli/2021/05/a-raiz-profunda-da-desconfianca-da-vacinacao-encontra-se-no-temor-do-poder-estatal.shtml

 

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