Banco Central

Zeina Latif: Escolhas arriscadas

Juros baixos foram duramente conquistados; exageros fiscais e monetários podem ameaçar

Convém o Banco Central cortar ainda mais a taxa de juros Selic? Qual o benefício vis-à-vis ao custo?

Para alguns analistas essa pergunta nem deveria ser feita, afinal a taxa de inflação corrente (1,9% aa em maio) e as projeções (1,6% para 2020 e 3,0% em 2021) estão abaixo das metas (4% e 3,75%), em meio à elevada ociosidade de mão de obra e capacidade produtiva. A decisão de corte seria óbvia.

A questão, porém, é mais complexa pelos riscos envolvidos.

Para começar, o “painel de controle” do BC está avariado. Já discuti neste espaço que a queda abrupta da inflação reflete principalmente a restrição ao consumo por conta do isolamento social, não podendo ser tomada como sinalização para o futuro. A inflação de serviços, por exemplo, mais resistente, caiu bastante (de 3,9% há um ano para 2,7%) com a contração da demanda das famílias por serviços (-62% até abril), mas poderá acelerar em breve.

Há também riscos que precisam ser levados em conta, principalmente o fiscal. Ele poderá ser mitigado com a retomada de reformas estruturais. Porém, Bolsonaro não se mostra disposto, por ora, a encarar agendas polêmicas, como a necessária reforma administrativa.

Alguns analistas defendem que a Selic baixa contribui para reduzir o risco fiscal. Porém, se os juros básicos forem percebidos como artificialmente baixos, os juros de longo prazo que remuneram a dívida pública irão subir, pelo risco de uma volta mais rápida da inflação.

Não tem escapatória: inflação bem comportada e juros baixos de forma sustentada dependem do compromisso com a disciplina fiscal ao longo do tempo.

Não se sabe o limite para o corte da Selic, mas certamente está acima do observado em países ricos ou com contas públicas mais saudáveis. Taxas exageradamente baixas podem dar dor de cabeça, pela consequente pressão sobre o dólar. Juros muito baixos em um ambiente de riscos elevados reduzem ainda mais o interesse para investimento no País, de locais e estrangeiros, incluindo o financiamento do governo.

O fato de brasileiros terem ativos no exterior, obtendo ganhos de capital com o real fraco, não implica maior disposição a investir no Brasil.

Alguns argumentam que, em algum momento, a taxa de câmbio encontraria seu novo equilíbrio, produzindo uma melhora das contas externas com a redução de gastos no exterior e o ingresso de recursos atraídos pela queda dos preços de ativos brasileiros quando denominados em dólar (“o Brasil ficou barato”, dirão os investidores). O problema é o acidentado percurso até lá, sendo que volatilidade cambial elevada é veneno para o setor privado. Não é recomendável sobrecarregar o ajuste na taxa de câmbio.

A pressão cambial exacerbada machuca as finanças das empresas nacionais, pois eleva o valor (em real) da dívida externa (para este ano, as amortizações ultrapassam US$ 100 bilhões, sendo que a taxa de rolagem foi baixa em abril) e encarece os preços de insumos (atualmente os importados têm maior participação do que no passado). A valorização do dólar machuca o crescimento do PIB no curto prazo, agravando a crise.

O risco de uma surpresa inflacionária indesejada também aumenta. O baixo repasse do dólar aos preços nos últimos anos não está escrito em pedra.

O BC indica que prefere esticar a corda, aceitando o risco de ter de subir a Selic de forma mais rápida e mais intensa no futuro. Essa não será uma tarefa fácil.

O momento recomenda cautela. Outras políticas mais potentes no momento e focalizadas têm sido eficazes para estimular o crédito, como as medidas administrativas do BC e o socorro às empresas. O consumo tem reagido ao auxílio emergencial a indivíduos, a julgar pelos dados relativos ao uso de cartões de crédito. O montante de R$ 150 bilhões é expressivo à luz da renda gerada pela metade mais pobre do País, de menos de R$100 bilhões em 3 meses, segundo especialistas como Ricardo Paes de Barros.

Juros baixos foram duramente conquistados nas ultimas de décadas. Exageros fiscais e monetários agora poderão ameaçar essa conquista.

*Consultora e doutora em economia pela USP


Míriam Leitão: O pouco efeito dos juros baixos

O Banco Central cortou a Selic, dentro do esperado, e rompeu mais uma vez o piso histórico. Mas qual o efeito disso na economia? Ajudará a amenizar o custo da dívida, isso representa em torno de R$ 20 bilhões a menos de pagamento de juros. Mas o grande resultado que se busca com a queda da taxa básica é o estímulo à atividade econômica. Desde a última reunião do Copom, a previsão do PIB de 2020 saiu de uma recessão leve (-0,9%) para um tombo histórico (-6,51%) no Boletim Focus. E certamente a projeção vai piorar nas próximas semanas. Menos juros e mais liquidez oferecida aos bancos deveriam atenuar a recessão, mas até agora nada garante esse efeito. Primeiro, porque a taxa menor não tem chegado na ponta e as empresas micro, pequenas e médias não têm tido acesso às linhas que o governo criou no contexto da pandemia.

Os dados de abril vislumbram a queda livre da economia: produção industrial, vendas do varejo e serviços tiveram quedas entre 11% e 18% em relação a março. O desemprego oculto, segundo o IBGE, pode estar atingindo 17 milhões de brasileiros que não procuram emprego porque acham que não vão encontrar. Além dos que já estão desempregados. Tudo é absolutamente incerto na economia. A bolsa e o dólar estão numa gangorra. Na última reunião do Copom, o dólar estava subindo. No dia 14 de maio chegou a R$ 5,93, em 10 de junho havia caído para R$ 4,88 e ontem estava em R$ 5,24. Os ativos têm oscilado por fatores externos. Refletem a esperança de recuperação mais rápida de economias centrais, o medo da segunda onda, a expectativa de um remédio ou uma vacina. O ruído político, provocado por um governo que não sabe governar, mas adora criar confusão, é grande. Quando é levado em conta, atrapalha ainda mais a economia.

Diante dessa incerteza provocada pela pandemia, e pela incompetência do governo, reduzir a taxa de juros para níveis nunca antes vistos não vai atenuar a queda da atividade. Mas é um movimento natural diante de uma economia que está em deflação e na qual se fala a inédita palavra “depressão”. A queda dos juros tem a vantagem de tornar mais baixo o custo de uma dívida que está subindo. Essa queda da Selic começou no governo Temer, que a pegou em 14,25% e a deixou em 6,5%. No governo Bolsonaro, continuaram os cortes e, com a crise, eles se aprofundaram até os 2,25% decididos ontem. Cada ponto a menos significa teoricamente um gasto menor de R$ 30 bilhões. Mas isso se na equação tudo o mais permanecer constante. A dívida bruta tem subido, a taxa longa nem sempre tem o mesmo movimento. Além disso, como parte das reservas está investida em papel do Tesouro americano, que está rendendo menos, o custo da dívida tem se mantido constante nos dois últimos anos, em torno de R$ 380 bilhões líquidos, segundo dados do Banco Central.

O Copom disse que o corte dos juros até agora “parece compatível com os impactos econômicos da pandemia”. Apesar de ter indicado na última reunião que esse seria o corte que encerraria o atual ciclo de relaxamento monetário, no comunicado após a decisão de ontem houve uma abertura para uma nova queda, dependendo da análise que fizerem dos impactos da Covid-19 e do efeito das medidas de crédito e de recomposição da renda.

Na verdade, novas reduções dos juros não ajudam muito. O Banco Central participou há três meses do anúncio no Palácio do Planalto de medidas de socorro a empresas, como a linha para cobrir o pagamento da folha, que nunca virou realidade. Até agora, três meses depois da primeira morte, o ministro Paulo Guedes disse ontem que o governo está finalizando o programa emergencial para minimizar os efeitos da pandemia. Várias das medidas anunciadas não se tornaram realidade.

Guedes, ao falar do que ele chama de segunda onda, a da crise econômica, disse que é consequência de termos “paralisado parcialmente a nossa economia” e que isso provocou “uma recessão que pode se transformar em uma depressão se não lutarmos adequadamente”.

Guedes acha que a luta adequada é a retomada das reformas. O momento, contudo, ainda é das medidas emergenciais para evitar a morte serial de empresas. E isso se faz com projetos que não sejam apenas peças de propaganda governamental, mas cheguem aos cofres das empresas, principalmente as micro, pequenas e médias.


Eduardo Rocha: Qual austeridade fiscal ou quem pagará a conta (3)?

Não há dúvida que aumentaram extraordinariamente as despesas públicas para fazer frente aos efeitos nefastos da pandemia da Covid-19, que fez diminuir a arrecadação de impostos por conta da paralisação econômica inédita. A Secretaria do Tesouro Nacional estima que o rombo nas contas públicas (União, estados, municípios e empresas estatais) deverá somar R$ 708,7 bilhões em 2020, ou 9,9% do Produto Interno Bruto (PIB). No caso do déficit nominal, que inclui os juros da dívida, deve chegar a R$ 1 trilhão e o PIB poderá ter uma queda histórica de até 10%.

A pandemia da Covid-19 aguçou, por conseguinte, o debate sobre como superar esse rombo, como garantir o futuro fiscal do Estado e qual o seu papel na retomada econômica. Para fazer frente a essas questões há o velho e batido discurso de austeridade fiscal feito pelo pensamento convencional que expressa política e intelectualmente os interesses dos grupos dominantes da economia e das finanças, cujo receituário é o liquidacionismo estatal nas esferas econômica e social.

Tal austeridade conservadora baseada nesse liquidacionismo consiste na privatização ampla, geral e irrestrita, na eliminação da regulação do Estado sobre o privado, na manutenção generosa dos privilégios fiscais (isenções, incentivos, subsídios etc.) a grupos dominantes e o corte glacial e impiedoso do gasto público nas áreas sociais sensíveis, perpetuando assim as desigualdades, injustiças e desequilíbrios regionais de desenvolvimento.

O maligno tem bela aparência. Em sua forma, a austeridade conservadora apresenta-se como o paraíso à maioria, mas, em sua essência, conserva os privilégios da minoria. Se os EUA dos anos 30 do século XX convocassem os espíritos do futuro para tirá-los da Grande Depressão e a história fosse tão malvada e enviasse o receituário de Paulo Guedes para salvar-lhes, a grande nação norte-americana não seria o que é hoje. Na história, há utopias que são verdades avançadas, mas há outras que são mentiras eternas.

O momento histórico da vida nacional está certamente cheia de riscos, mas oferece a grande oportunidade de se trabalhar dentro da própria crise para, desviando das areias movediças em que a sociedade atual corre o risco de afundar, transformar a natureza da austeridade fiscal numa outra orientação capaz de caminhar rumo à renovação da nossa República democrática.

Recuperação e sustentabilidade financeira do Estado diante das crises cíclicas inerentes ao capitalismo (cada vez mais integrado nas cadeias globais de valor) e da inédita crise causada pela COVID-19, demandam outra austeridade fiscal, de natureza democrática. É o que trataremos no próximo artigo.

*Eduardo Rocha é economista


Cristiano Romero: A Grande Devastação

No exterior, pessimismo em relação ao Brasil é impressionante

Ainda é muito cedo para fazer projeções confiáveis sobre o estrago que a pandemia do novo coronavírus provocará nas economias, mas, lá fora, o pessimismo em relação ao Brasil é impressionante. A Economist Intelligence Unit projetou contração de 5,5% para o Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro neste ano, em linha com a previsão do Fundo Monetário Internacional (FMI) divulgada ontem, de queda de 5,3%. O número do Institute of International Finance, entidade que representa os maiores bancos do mundo, é menos pessimista - recuo de 1,8%.

No último boletim Focus, elaborado pelo Banco Central (BC) com base nas projeções feitas pelo mercado, a mediana das projeções prevê queda de 1,96% para o PIB do país em 2020, bem maior que a mediana das opiniões colhidas há uma semana (-1,18%). “Assusta ver uma instituição muito conservadora [o FMI] prevendo contração do PIB do Brasil maior do que a visão de consenso de mercado [no país]. Além disso, a recuperação do Brasil é lenta frente aos Estados Unidos, a Alemanha e por aí vai”, disse a esta coluna o economista Nilson Teixeira, sócio-fundador da gestora de recursos Macro Capital.

De fato, o FMI prevê, em seu Panorama Econômico Mundial, que em 2021 a economia americana, depois de levar um tombo de 5,9% neste ano, crescerá 4,7% no próximo ano, enquanto o Brasil deve ter avanço de 2,9%. A Alemanha teria crescimento negativo de 7% em 2020, mas teria expansão de 5,2% no ano que vem.

Em ambientes de incerteza como o que vivemos, a chance de as previsões errarem o alvo é enorme. Em favor dos economistas, e Nilson Teixeira é um que acerta com grande frequência as suas projeções - dos 18 anos que trabalhou no banco Credit Suisse, atuou como economista-chefe durante 14 -, diga-se que os cálculos não são meros chutes. As projeções são feitas com base na assunção de uma série de dados, a partir de um cenário que considera, inclusive, eventos políticos com força suficiente para interferir no funcionamento da economia.

O problema é que a pandemia do coronavírus é um fenômeno absolutamente inesperado, que não estava nas contas de ninguém. O vírus foi descoberto na China no último dia de 2019 e, apenas 20 dias depois, já havia se disseminado com velocidade incrível por várias cidades e províncias chinesas. O restante do mundo não se deu conta imediatamente da gravidade do que ocorria no país mais populoso do planeta e essa letargia, não se tenha dúvida, é a responsável pela contaminação devastadora que o vírus provocou em nações ricas como Itália, Alemanha, França e, por fim, Estados Unidos, onde está hoje o epicentro da pandemia.

A forma como a China decidiu enfrentar o avanço veloz do vírus - fechando a entrada e a saída de pessoas de cidades com até 15 milhões de habitantes - foi vista no Ocidente como coisa de país autoritário. Sim, o regime chinês é autoritário, mas, se tivessem olhado o tamanho do problema mais de perto, especialistas e autoridades da área de saúde teriam constatado rapidamente que o “lockdown” (o bloqueio das cidades, numa tradução imprecisa) promovido pelo governo chinês é a única estratégia à mão para de se conter a velocidade de contágio do coronavírus, um agente infeccioso novo e cujo DNA tem uma única missão: hospedar-se em células do corpo humano para se reproduzir.

A opção da China deu certo, uma vez que, à medida que os dias foram passando, a curva epidêmica do vírus foi sendo achatada, com o número de novos casos diminuindo dia a dia. O achatamento da curva não tem outro objetivo a não ser conter a evolução do contágio, alongar no tempo a chegada da contaminação ao seu ápice, de forma que o número de novos casos possa ser atendido pelo sistema de saúde de cada país.

Mas o perigo nunca está afastado, uma vez que há o risco de haver uma nova onda de contaminação, uma vez que a China, por exemplo, começou a relaxar as medidas de isolamento social e o “lockdown”. Um possível retorno da pandemia, dizem especialistas, é muito perigoso porque, como ainda não se descobriu uma vacina contra o vírus e a maioria da população ficou isolada em suas casas, o organismo das pessoas não desenvolveu anticorpos contra o novo coronavírus. Uma segunda onda teria, portanto, efeitos ainda mais fortes sobre a saúde da população e devastadores no que diz respeito à economia, à medida que o isolamento social e a restrição ao direito de ir e vir das pessoas teriam que ser novamente postos em prática, paralisando uma vez uma economia já fragilizada pela parada súbita anterior.

O “lockdown”, evidentemente, paralisa a atividade econômica de forma radical. O isolamento social, estratégia recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e adotada pelo Brasil e muitos países, é menos rígido que o “lockdown”, mas também faz um estrago gigantesco na economia, especialmente no setor de serviços.

No documento divulgado ontem, o FMI assim definiu o momento vivido pela economia mundial: “O Grande Bloqueio: a pior crise econômica desde a Grande Depressão”. E nós que achávamos que a crise mundial de 2008 tinha sido mais profunda desde 1929

Nesse contexto, as projeções de recuperação rápida em 2021 soam frágeis. Se o Brasil, que está sendo atingido por este tsunami com a economia fragilizada depois de três anos de recessão, seguidos de um triênio em que não avançou acima de 1,3% ao ano, crescer os 2,9% previstos pelo FMI no ano vindouro será o melhor desempenho em quase dez anos.


Monica de Bolle: A PEC 10/2020 e o BC

Faltam-nos os corrimões em que economistas costumam se apoiar para traçar cenários e políticas públicas

*Em coautoria com o senador Randolfe Rodrigues

Na tarde dessa quarta-feira, 15 de abril, o Senado Federal votará a PEC 10, conhecida como “PEC do orçamento de guerra”, porém mais adequadamente denominada de “PEC da pandemia”. Embora o uso da metáfora da guerra possa render boas análises, não estamos numa guerra propriamente, e sim atravessando um momento inédito em que a vulnerabilidade dos sistemas de saúde e das redes de proteção social estão em ampla evidência mundo afora, e no Brasil em particular. A epidemia e a paralisia econômica têm dimensões humanitárias que precisam ser adequadamente tratadas pelos governos.

Entre os temas mais polêmicos da PEC está a autorização dada ao Banco Central “para comprar e vender títulos de emissão do Tesouro, nos mercados secundários local e internacional, e direitos creditórios e títulos privados de crédito em mercados secundários, no âmbito de mercados financeiros, de capitais e de pagamentos. Essa autorização tem vigência e efeito restrito ao período de calamidade pública nacional”.

A medida é indispensável, pois poderá prover a liquidez necessária aos títulos negociados nos mercados secundários, além de permitir a negociação de títulos do Tesouro, ampliando sua aceitação num momento decisivo, de crise aguda, e assim afastando os riscos de uma crise financeira. Embora esse tipo de atuação por parte do BC seja novidade no Brasil, muitos outros bancos centrais pelo mundo (como Fed, Banco Central Europeu, Banco da Inglaterra, Banco do Japão) já praticam essa modalidade de operação.

Contudo, o texto da PEC aprovado na Câmara deixou frouxos muitos dos critérios para que o BC possa realizar a compra de títulos do Tesouro, de direitos creditórios e títulos privados. Por essa razão, a proposta recebeu dezenas de emendas no Senado Federal.

A emenda apresentada pelo senador Randolfe Rodrigues, da Rede Sustentabilidade, previa parâmetros técnicos para os títulos a serem adquiridos, garantias ao BC, como o direito de aquisição de ações das instituições financeiras beneficiadas, e a proibição de estas empresas distribuírem bônus e dividendos até que os títulos tenham sido resgatados no BC, dentre outros critérios e contrapartidas.

O relator da PEC, senador Antonio Anastasia, optou por um texto enxuto. No seu substitutivo, estabeleceu critérios de qualidade para os títulos a serem negociados pelo BC atrelados às notas de classificação de risco atribuídas a diferentes classes de ativos financeiros pelas agências internacionais de rating. Além disso, o relatório do senador exigiu a publicação do preço de referência do ativo, a demarcação específica de quais títulos poderão ser adquiridos, e ampliou os critérios de transparência a serem obedecidos pelo BC.

Entretanto, foram suprimidas as propostas que estabeleciam obrigações para as instituições financeiras que tenham obtido ganhos com essas operações de crédito no mercado secundário. O relator alegou a impossibilidade de reconhecer quem os obteve, pois “a empresa não financeira emissora do título não é a beneficiária da aquisição no mercado secundário, que tem caráter fluido”.

Nada impede que tal critério seja adotado em relação a ativos que estejam nas carteiras das instituições financeiras, uma vez que não se trata de impedir a distribuição de bônus e dividendos das empresas emissoras originais do título: estas, de fato, já se perderam na fluidez dos mercados secundários. A ideia seria impedir que o atual detentor do título, que poderá vir a lucrar com a ação do BC, distribua esses ganhos antes de resgatar os ativos com o BC.

Tais contrapartidas já estão previstas na Resolução 4.797 emitida pelo Conselho Monetário Nacional (CMN) há poucos dias. Contudo, resoluções do CMN podem ser revogadas antes de o BC ter sido ressarcido e carecem do peso da garantia por uma emenda constitucional que estabeleça claramente as contrapartidas.

Enfrentamos uma crise sem precedentes e, diante desse quadro, faltam-nos os corrimões em que economistas costumam se apoiar para traçar cenários e políticas públicas. No entanto, há práticas internacionais exemplares por estabelecerem boas referências, sobretudo no que diz respeito aos instrumentos extraordinários dos bancos centrais. Países acostumados a adotar essas práticas exigem contrapartidas claras das instituições beneficiadas. Não há nenhum motivo para que no Brasil o tema seja tratado de forma distinta.

*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University


Benito Salomão: Política Monetária em tempos de Coronavírus

Conforme o mundo mergulha na crise sanitária hora vista, fica evidente que a crise econômica será aguda e inevitável. As medidas anunciadas até aqui e defendidas nos últimos dois artigos neste espaço, sem dúvidas ajudam a diminuir o sofrimento humano diante de uma catástrofe destas proporções, mas não evitam a crise e nem tão pouco sustentam uma recuperação. Ainda é prematuro se falar de recuperação quando os dados da real magnitude da crise ainda são desconhecidos. No entanto, já é possível pensar em instrumentos. A política fiscal, parece que encontrará o seu limite após a vigência do decreto de calamidade em curso. Estima-se que a monta de gastos do orçamento de guerra somado a queda nas receitas eleve a dívida pública para próximo de 90% do PIB. Diante deste provável cenário e num contexto de regras fiscais como o teto de gastos, haverá pouca margem para utilização dos instrumentos fiscais com efeitos estabilizadores do ciclo aos moldes do que propunha Barro (1979).

O Brasil será chamado a recorrer a sua política monetária para estimular a atividade a médio prazo. Isto, no entanto, não significa meramente manusear as operações de open market controlando a liquidez por vias da taxa de juros. Primeiro, porque as taxas de juros da economia brasileira já estão demasiadamente baixas e devem permanecer assim durante enquanto a economia mundial operar com taxas reais negativas. Ademais, novos cortes na taxa nominal devem exercer um efeito nulo sobre a atividade. O canal de transmissão da política monetária para a economia real é o crédito, em tempos normais uma redução da taxa de juros de 3,75% para 3,25% demoraria entre 6 a 9 meses para incentivar o crédito (Cardim et. al. 2007), em tempos de crise tal medida fará pouca diferença. Segundo, porque durante a vigência do orçamento de guerra, no qual o Banco Central excepcionalmente comercializará títulos do Tesouro, é possível que durante um tempo, o excesso de demanda do Banco Central por títulos do Tesouro cause um descolamento entre a meta fixada pelo Copom para a taxa Selic e a taxa verificada nas operações de open market Selic over. Sendo possível que as taxas de mercado perdurem, por algum tempo, abaixo da meta fixada.

Simplesmente imprimir monetizar a economia através da expansão do M1, como proposto por renomados economistas, pode não funcionar. Isto porque a moeda emitida pelo Banco Central chega na economia real através dos bancos comerciais, vários obstáculos se colocam para que o dinheiro novo entre em circulação: O primeiro obstáculo consiste nos quase 50 milhões de pessoas desbancarizadas no Brasil, a mera injeção de liquidez via bancos terá dificuldades para atingir esta quantidade de pessoas. O segundo obstáculo é que períodos de incerteza são caracterizadas pela preferência pela liquidez (Keynes, 1936), isto significa que o aporte monetário pode ser empoçado no caixa dos bancos ou mesmo entesourado já que é sabido que sob incertezas as famílias recorrem a formação de poupança precaucionaria (Carroll e Samwich, 1998).

Se os efeitos tradicionais da política monetária tais como a redução da taxa de juros e a expansão monetária tendem a ter efeitos limitados no curto prazo, qual seria a solução? Uma política monetária que pretenda dinamizar a economia, deve ter por objetivo principal fomentar o gasto privado em um momento de incerteza. Em um contexto recessivo a resposta virá muito mais da microeconomia (porém com impactos agregados) do que da macroeconomia tradicional. É preciso olhar para as famílias e firmas e compreender qual a causa da sua demanda reprimida. Observando os dados de endividamento das famílias, percebe-se claramente que o excessivo endividamento é uma das razões que inibem o consumo. O Gráfico 01 mostra a evolução do endividamento das famílias como proporção da sua renda acumulada em 12 meses. Verifica-se que as famílias bancarizadas possuem um endividamento de 45% da sua renda, ao se excluir os financiamentos habitacionais, este endividamento cai para 26% da sua renda.

Fonte: Banco Central do Brasil

Os dados retratam ainda uma piora do perfil deste endividamento nos últimos anos, isto porque cerca de 50% do compromisso orçamentário das famílias com dívidas (excluindo financiamentos habitacionais) é direcionado ao pagamento de juros e apenas os 50% restantes é direcionado para amortizações. Dados da Serasa Experian de 2019 mostram que 63 milhões de pessoas possuem dívidas atrasadas a mais de 90 dias, isto é, inadimplência. Este cenário traz efeitos agregados não desprezíveis sobre o comportamento do consumo e isto irá se agravar fortemente com a elevação projetada do desemprego e com a queda na renda.

Sob a óptica das firmas o cenário vinha apresentando uma significativa melhora, a inadimplência das empresas de pequeno porte vinha se retraindo desde a crise de 2015. O Gráfico 02 mostra este comportamento para microempreendedores, microempresas e empresas de pequeno porte no Brasil. É bem possível que a inadimplência das PJs volte a crescer nos próximos trimestres em face dos efeitos do Coronavírus na economia. É também plausível acreditar que empresas de médio porte ou menores venham a sofrer com insuficiência de capital de giro em função de uma eventual retração do crédito esperada para este período o que ampliaria ainda mais suas dificuldades de caixa.

Fonte: Banco Central do Brasil

Em um cenário de restrições ao crédito das famílias e insuficiência de liquidez nas empresas os efeitos da crise tendem a ser amplificados. Dadas as supracitadas limitações dos instrumentos tradicionais de política fiscal e monetária, a proposta de política monetária aqui trazida é um tanto quanto ousada. O Banco Central possui um instrumento de política monetária comumente aplicado ao salvamento de bancos comerciais, que felizmente nesta crise apresentam-se sólidos. Trata-se das operações de redesconto. Na prática, em economias caracterizadas por crises bancárias, o Banco Central atua como emprestador de última instância assegurando a liquidez das instituições em dificuldades através de empréstimos.

Dado que as dívidas aqui tratadas são do público para com o sistema bancário, propõe-se uma espécie de operações de redesconto para a economia real, sobretudo para a pequena economia que se financia a altas taxas. Na prática o Banco Central age como pagador de última instância comprando (liquidando) os passivos creditícios (atrasados e a vencer [exceto os habitacionais]) de famílias e firmas para com os bancos, mitigando restrições ao crédito e abrindo espaço no orçamento corrente das mesmas para que ampliem os seus gastos. Uma medida como esta teria algumas vantagens no momento: i) certamente custará menos do que os tradicionais salvamentos de bancos, ii) não pode ser acusada de provocar efeitos inflacionários, iii) não custará dinheiro do Tesouro, a liquidação destes créditos é uma mera operação contábil no balanço do BC em que sai moeda do seu passivo e entram estas dívidas do público no seu ativo e, iv) dado que é uma medida direcionada para a pequena economia, um alivio orçamentário destas firmas e famílias pode significar demanda instantânea para reaquecer a economia.

*Benito Salomão – Doutorando Economia Universidade Federal de Uberlândia e Visiting Researcher University of British Columbia.

Referências

BARRO, R. J. On Determination of the Public Debt. Journal of Political Economy. Vol. 87(5). October 1979.

CARDIM, F. J. C. SOUZA, F. E. P. SICSÚ, J. PAULA, L. F. STUDART. R. Economia Monetária e Financeira. Ed. Campus Elsiever. 2007.

CARROLL C, SAMWICK A. How important is precautionary saving? Review of Economics and Statistics,  vol. 80 (pg. 410-19). 1998.

KEYNES, J. M. Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda. 1936.


Zeina Latif: Juros baixos não blindam a economia

O contágio financeiro sobre o setor produtivo, se relevante, precisa ser mitigado

O momento é de apreensão por conta das incertezas decorrentes da epidemia de coronavírus. Não há, no momento, como afirmar quando será o ápice da crise, para podermos dizer que o pior já passou.

Como agravante, o timing da epidemia não é nada favorável, pois o comércio mundial está encolhendo desde o ano passado, por conta, principalmente, das políticas protecionistas dos países. O foco da crise, a China, representa hoje mais de 20% do PIB mundial, e a expectativa de uma desaceleração econômica suave caducou. Estivesse a economia mundial em melhor forma, seria mais fácil dirimir as incertezas.

Adicionalmente, os países, com poucas exceções, não contam com muitos instrumentos para mitigar o impacto da crise. Além dos juros já muito baixos, poucos têm espaço para expansão fiscal, diante dos déficits e dívidas elevados. Exageros na expansão dos gastos públicos podem até piorar o quadro econômico, ao despertar a desconfiança de credores. Além disso, não é qualquer expansão fiscal que funcionaria. O momento pede políticas sanitárias e para ampliar o acesso da população aos serviços de saúde, e não o aumento indiscriminado de gastos.

No caso dos EUA, o Fed resolveu cortar a taxa básica de juros para 1,0-1,25% em reunião extraordinária de seu comitê de política monetária, alegando a necessidade de um ação preventiva por conta da epidemia. A preocupação é bastante compreensível, mas essa decisão em um quadro de incertezas e indefinição sobre o impacto da epidemia sugere uma sensibilidade exagerada do Fed à piora no mercado financeiro.

O contágio financeiro sobre o setor produtivo, se relevante, precisa ser mitigado. As empresas poderão enfrentar problemas financeiros, em caso de uma paralisia da economia, mas está cedo para este diagnóstico. E se ocorrer, a indicação seria mais por injeção de liquidez ou relaxamento regulatório para empréstimos. Juros baixos, mesmo próximos de zero, não seriam muito eficazes para ativar o crédito nessas circunstâncias.

Finalmente, o choque do coronavírus é, por ora, um choque mais de oferta (afeta o funcionamento das empresas por falta de insumos), do que de demanda (mais localizado em atividades relacionadas ao fluxo de pessoas entre países), ainda que o este último possa aumentar. E o corte de juros se refere a um estímulo à demanda, e não à oferta.

Entendo que seria o momento de aguardar por mais informações sobre o impacto da epidemia, antes de os bancos centrais cortarem as taxas de juros. E convém guardar munição caso se confirmem as perspectivas mais pessimistas, com contágio relevante na demanda.

No Brasil, vale a mesma reflexão. Ainda não se sabe se o efeito da crise será inflacionário ou desinflacionário: se a alta do dólar e a retração da oferta de alguns bens terão maior impacto nos preços do que a queda dos preços de commodities e o recuo do consumo (menos provável) e das exportações.

O Banco Central, a julgar pelo seu comunicado de terça-feira, já tem a resposta ao afirmar: “À luz dos eventos recentes, o impacto sobre a economia brasileira proveniente da desaceleração global tende a dominar uma eventual deterioração nos preços de ativos financeiros.” Foi um sinal claro para os mercados que haverá um corte da taxa Selic na próxima reunião do Copom.

Parece uma avaliação precipitada. E considerando que os juros reais estão em patamares bastante baixos, não haveria razão para tanta pressa.

Se o Banco Central estiver errado – e não saberemos isso tão rapidamente –, a consequência será uma necessária correção de rumos antes do esperado, gerando uma volatilidade indesejada nos juros.

De qualquer forma, não será a taxa de juros baixa que trará a volta do investimento produtivo – praticamente estagnado em 2019 – e protegerá o Pais do contágio. É querer demais da política monetária. O que fará diferença será o avanço das reformas. A letargia do governo e os ruídos constantes atrapalham bastante.

* Consultora e doutora em economia pela USP


Banco Central

Míriam Leitão: Uma superterça na economia

O problema da epidemia do covid-19 na economia é saber quais os instrumentos apropriados para lidar com uma crise como esta

Na economia também foi uma superterça. O movimento de ontem no mercado americano mostrou o tamanho da crise provocada pelo novo coronavírus. O Fed fez uma reunião de emergência e cortou os juros. As bolsas subiram e depois despencaram. A ação foi entendida não como um estímulo, mas como alerta. Mais cedo, a Austrália também havia cortado os juros. E a Malásia. Houve casos na Argentina e no Chile. O FMI avisou que talvez não faça o encontro de abril. O Banco Central brasileiro soltou nota indicando futuros cortes. O Banco Mundial anunciou linha para auxiliar os países a enfrentaram os efeitos da crise, e o G7 fez uma reunião para discutir o que pode ser feito. Os BCs europeu e inglês defenderam medida para equilibrar a economia. No Japão, informou-se que os Jogos Olímpicos podem ser adiados.

O grande problema da epidemia do covid-19 é quais são os instrumentos econômicos apropriados para lidar com uma crise como esta. A produção está caindo não por uma desaceleração clássica, mas porque há falta de peças e componentes. O consumo está encolhendo porque as pessoas suspendem reuniões e evitam lugares públicos. Os instrumentos convencionais não funcionam.

A revista “Economist” usou um título recente que define o momento: “Globalização em quarentena.” A reportagem tratava de um assunto específico, mas o título reflete de forma ampla o momento de separação entre países, controle de fronteiras, redução da circulação de mercadorias. O fechamento de fábricas na China afetou países em série e isso terá impacto sobre a economia mundial.

Estão sendo revistas no mundo inteiro as previsões de crescimento. Do Brasil, só ontem, a consultoria Capital Economics cortou a projeção de crescimento em 2020 de 1,5% para 1,3% e o Goldman Sachs cortou de 2,2% para 1,5%. Outras instituições estão esperando o resultado do PIB de 2019, que sai hoje, para voltar a fazer contas.

A OCDE cortou a projeção do PIB mundial em meio ponto, para 2,4%, no melhor cenário, de impactos mais localizados na China. No pior, a desaceleração chegará a 1,5%, com a epidemia espalhando pela Ásia, Pacífico e hemisfério Norte. As estimativas da China sofreram o maior corte, de 5,7% para 4,9%. Para o Brasil, foram mantidas em 1,7% este ano e 1,8% no ano que vem.

A entidade explicou que o vírus atingiu a economia em várias frentes. As medidas de contenção levaram a quarentenas, restrições de viagens e fechamentos de espaços públicos. Pelo lado da oferta, fábricas ficaram fechadas, serviços deixaram de ser fornecidos com impactos nas cadeias de suprimento. Pelo lado da demanda, houve queda da confiança, redução do turismo e de serviços de educação e entretenimento.

A economia chinesa hoje representa mais de 15% do PIB mundial, mais de 10% do comércio e 9% do fluxo de turistas. Por isso, a desaceleração do país preocupa e terá efeitos em cascata. Os países exportadores de commodities serão afetados. Para se ter uma ideia, a China importa quase 60% de todo o alumínio vendido mundialmente, mais de 50% do cobre e quase a metade do níquel.

Se na China há falta de informação sobre o tamanho real da paralisação no país, aqui no Brasil entidades setoriais têm feito sondagens para medir os impactos econômicos do coronavírus. O presidente da Abinee, que representa o setor de eletroeletrônicos, Humberto Barbato, explica que o problema é que algumas informações são consideradas estratégicas pelas companhias.

— Ninguém quer mostrar o seu nível de estoque. É uma informação guardada a sete chaves porque pode demostrar vulnerabilidade. Nossa melhor expectativa é que a China consiga superar a crise neste mês de março e volte a produzir plenamente em abril— explicou.

Os segmentos de telefonia celular e computadores têm sido os mais afetados dentro do setor de eletroeletrônicos no Brasil, pela falta de peças e componentes. E não há outros fornecedores disponíveis no mundo para se importar. Até porque é preciso um período de testes que minimizem o risco das fábricas brasileiras.

O maior problema sempre será a proteção da vida humana e a luta para vencer um vírus que ainda não está sob o controle dos médicos e dos cientistas. Ainda se aprende a cada dia sobre sua capacidade de dispersão e letalidade. Enquanto isso, a economia mundial oscila entre o pânico e a incerteza.


Vinicius Torres Freire: Economia não tem bala para enfrentar o coronavírus

Apenas para amainar crise, BC teria de jogar taxa real de juros para zero

O Banco Central do Brasil indicou que também vai cortar os juros: a crise mundial deve causar mais danos do que uma alta daninha do dólar.

Entenda-se: taxa de juros menor em tese favorece mais desvalorização da moeda brasileira; um real rapidamente desvalorizado pode provocar alta de preços. Porém, o risco de a economia brasileira travar é maior do que o de termos alguma inflação por causa do câmbio.

Foi o que o BC disse em nota publicada no fim da tarde desta terça-feira (3). Disse daquele "jeito BC", de contador diplomata fazendo neurocirurgia. Mas disse.

Se o BC vai mexer mesmo na taxa básica de juros, são outros quinhentos. A próxima decisão agendada sobre a Selic ocorrerá em duas semanas. Até lá, o mundo pode ter entrado em colapso financeiro ou ressuscitado para a primavera do hemisfério Norte.

Como se sabe, o BC dos EUA, o Fed, deu um talho grande na taxa básica de juros deles, em reunião extraordinária, o que não acontecia desde a epidemia provocada pela grande finança global, a crise de 2008.

O BC do Brasil, por sua vez, disse "estamos atentos, mas vai indo que (por ora) eu não vou". Em vez de cortar a Selic, soltou uma nota que, em parte, chancela a redução que já ocorreu na taxa básica de juros na praça financeira.

O mercado já derrubou os juros. Quer dizer, os negociantes no atacadão de dinheiro levaram a taxa básica da praça financeira para a casa de 3,8% ao ano. Na prática, não havia tanta confiança de que o BC baixaria os juros desde o início de dezembro de 2019.

E daí? Caso o BC reduza a Selic de 4,25% para 4% vai fazer diferença notável? Vai aumentar a imunidade contra o choque da desaceleração da economia mundial? Hum.

Desde os anos 1990, a variação do crescimento da economia brasileira está associada em 60% da variação do crescimento da China, pelo menos. Claro que, desde 2012, no mínimo, fazemos besteira suficiente para nos destruirmos sozinhos. Isto posto, uma derrocada chinesa é um problema grande, ainda mais nesta economia brasileira já doente.

O preço das commodities, do ferro, petróleo ou comida que o país vende, vai sofrer. Apesar de uma economia fechada, o Brasil vai sentir ainda a falta de insumos que importa da China para alimentar as fábricas.

Corremos também algum risco de choque de confiança e de medo em geral, como no resto do mundo: medo de aglomeração, comércios, viagem, feiras etc.

Um corte de 0,25 ponto percentual ou até maior não deve evitar a pancada externa nem diminuir o medo da doença. O BC pode ajudar a conter algum estrangulamento financeiro, que não é visível, por ora.

No mais, pouco a fazer. A prestar atenção: se as expectativas de inflação não baixarem e o BC tomar medida mais forte (Selic a 3,5%?), a taxa real de juros vai a zero no Brasil.

Muito importante, para nós também, será a atitude dos governos dos países centrais.

Os bancos centrais deles vão ter de recorrer de novo a políticas ditas heterodoxas. Juros negativos em quase todo o mundo rico tornam nulo o efeito de política monetária convencional. Está na pauta repetir as mirabolâncias para amainar a crise de 2008 (imprimir muito dinheiro, em última instância) e ajudar até pequenos negócios.

Se essa coisa não passar, os governos do mundo rico vão ter de gastar: em obras, no sistema de saúde, nas contas dos doentes e suas famílias (é uma proposta de Elizabeth Warren, senadora democrata e candidata a presidente dos Estados Unidos).


José Márcio Camargo: A polêmica do Copom

Os efeitos da queda de juros estão por vir. Interromper o ciclo agora não significa parar de forma definitiva

Em sua última reunião, o Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central do Brasil cortou a taxa básica de juros da economia brasileira (Selic) em 0,25 ponto de porcentagem (p.p.), para o nível mais baixo da série histórica: 4,25% ao ano. No comunicado e na ata da reunião, os diretores anunciaram que, em razão das incertezas quanto à potência da política monetária e das defasagens entre as decisões de política e seus efeitos sobre o nível de atividade e a taxa de inflação, iriam interromper o ciclo de cortes de juros na reunião de março.

A ata deixa claro que uma das preocupações dos diretores do Banco Central é o nível de capacidade ociosa existente hoje na economia brasileira. Após uma recessão extremamente perversa, com grande perda de capacidade produtiva, destruição e má alocação de capital, ainda que a produção e o Produto Interno Bruto (PIB) continuem muito abaixo dos níveis recordes de 2012/2013 e o desemprego em 11,0% da força de trabalho, a pergunta que ficou no ar é quanto de ociosidade ainda existe na economia, após três anos de crescimento de 1,1% ao ano.

Alguns dias após a decisão, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou a taxa de inflação de janeiro de 2020, que surpreendeu positivamente os analistas, mostrando o menor número para janeiro desde a implantação do Plano Real, 0,21%. Ao mesmo tempo, os dados de crescimento da atividade do último trimestre de 2019 mostraram desaceleração em relação ao terceiro trimestre, gerando revisões para baixo das estimativas de crescimento em 2020.

Imediatamente, alguns analistas se prontificaram a anunciar que o Copom havia se precipitado ao anunciar o fim do ciclo de queda da Selic e que, quem sabe já na próxima reunião, tenha de voltar atrás e continuar o ciclo de reduções. Afinal, com desemprego em 11,0% da força de trabalho e a economia crescendo a uma taxa mais próxima de 2,0% do que de 3,0% e as expectativas para a inflação abaixo da meta em 2020 e 2021, certamente há, ainda, muita capacidade ociosa para ser utilizada antes que pressões inflacionárias apareçam no horizonte.

Porém, depois do conjunto de reformas que foram implementadas ao longo dos últimos 3,5 anos – o teto para o crescimento do gasto público, a troca da Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP) pela Taxa de Longo Prazo (TLP), a reforma trabalhista, a liberalização da terceirização, a Lei da Liberdade Econômica, a reforma da Previdência, entre outras – e das reformas microeconômicas em implementação pelo Banco Central, ninguém sabe com certeza o efeito de uma redução da taxa Selic em 2,25 p.p., ou seja, 35% de seu valor inicial (6,5% ao ano), nem quanto tempo vai levar para que a decisão de política monetária (redução dos juros) comece a ter efeitos sobre o nível de atividade e a taxa de inflação.

O Copom iniciou o ciclo de queda da Selic em 31 de julho de 2019, ou seja, há seis meses. Antes das reformas, as estimativas indicavam que a defasagem era de aproximadamente nove meses. Caso não tenha ocorrido nenhuma mudança, o que é pouco provável, ainda assim os efeitos da queda de juros estão por vir. Portanto, interromper o ciclo de queda neste momento significa parar para ver como vai reagir a economia diante do volume substancial de estímulos já implementados, e não necessariamente parar de forma definitiva.

Antes da reunião do Copom, nossa avaliação era de que o Banco Central deveria manter a Selic em 4,5% ao ano, exatamente por causa das incertezas levantadas no comunicado e na ata. Nossas estimativas (que, óbvio, não são exatas) apontam para uma taxa neutra (que nem gera pressão inflacionária nem deflacionária) de 2,1% real ao ano e, em decorrência das reformas, caindo 0,31 p.p. por trimestre. Como a previsão de inflação é 3,5% em 2020, a Selic real estaria em 1,0% ao ano, provavelmente abaixo da neutra. Neste cenário, seria mais adequado esperar que os efeitos das quedas já realizadas e as novas reformas em andamento se manifestassem, antes de continuar a reduzir os juros, provavelmente no segundo semestre. A queda de 0,25 p.p. não muda este cenário.

* Professor do Departamento de Economia da PUC/Rio, é economista chefe da Genial Investimentos


Claudia Safatle: Autonomia do BC será votada em breve

Na quarta-feira relator vai definir data com Campos e Maia

Nunca o Congresso esteve tão perto de aprovar o projeto de autonomia do Banco Central. O momento não poderia ser mais favorável. Os juros básicos (Selic) estão no patamar mais baixo da história e a inflação em setembro foi negativa. Houve uma ligeira deflação, de 0,04%, e o risco, agora, é de o IPCA, índice oficial do regime de metas, ficar bem abaixo da meta de 4,25% neste ano. O nível de atividade continua em banho-maria e amplia-se o espaço para uma redução adicional da taxa de juros, para a casa dos 4,5% ao ano.

O ex-presidente do BC Ilan Goldfajn deixou bem pavimentado o caminho para a votação do projeto de lei complementar (PLP) que confere autonomia ao BC junto às lideranças dos partidos. Foram inúmeras as conversas com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), em um processo de negociação que continuou com o novo presidente, Roberto Campos Neto. Na semana passada, por pouco a proposta de autonomia técnica, operacional, administrativa e financeira do Banco Central não foi colocada em votação na Câmara.

O deputado Celso Maldaner (MDB-SC), relator do PLP, informou que entre terça e quarta-feira da próxima semana terá uma reunião com Maia e Campos para definir a data que o assunto será levado ao plenário da Câmara.

Quando votado e aprovado, encerra-se um longo período de três décadas para esse assunto amadurecer. As primeiras iniciativas de atribuir autonomia legal para o BC datam de 1989 e precederam a própria estabilização da economia, a partir do Plano Real, de 1994. O objetivo dos projetos era, então, de garantir à autoridade monetária autonomia para controlar a quantidade de moeda na economia.

Agora, o objetivo fundamental do BC será o de assegurar a estabilidade de preços e zelar pela estabilidade financeira. O projeto de lei complementar que o Executivo enviou ao Congresso em abril deste ano foi apensado ao projeto 200/1989.

Ao estabelecer mandato fixo e alternado para o presidente e para os oito diretores do Banco Central, a lei estará retirando-os do alcance de eventuais pressões políticas. A possibilidade de exoneração da diretoria do Banco Central, pelo presidente da República e com a chancela do Senado, ficará restrita a casos de doença que impeça o exercício do mandato, à condenação mediante decisão transitada em julgado ou por insuficiência de desempenho para o alcance dos objetivos citados acima.

A autonomia e o mandato fixo dificultam, mas não eliminam totalmente a possibilidade de demissão da diretoria do BC. Foi o que aconteceu na Argentina quando a então presidente Cristina Kirchner exonerou o então presidente do BC independente, Martín Redrado, em 2010, por divergências políticas. Em geral, as pressões são por mais crescimento no curto prazo, em detrimento do controle da inflação.

A inflação e o desemprego observados no mundo nas décadas de 1970 e 1980 levaram os bancos centrais a ajustar o foco na proteção do valor da moeda e, para isso, tiveram que ser isolados de pressões políticas contrárias ao cumprimento desse mandato.

Delegar o controle da política monetária a bancos centrais independentes foi um processo bem-sucedido pois a inflação, no mundo ocidental, saiu de pouco mais de 20% nos anos de 1980 para quase nada hoje.

No Brasil, após 1994, a estabilidade da moeda tornou-se um patrimônio nacional. Mas faltou o marco legal da autonomia do BC para dar, inclusive, segurança jurídica à instituição no desempenho dessa função.

Desde então, o BC obteve autonomia delegada pelo presidente da República, mas não está escrito em nenhum lugar que o objetivo institucional do Banco Central é manter a estabilidade de preços e que o seu objetivo complementar é zelar pela estabilidade financeira.

Também não há lei que atribua ao BC a condição de autarquia de natureza especial, caracterizada pela ausência de vínculos de subordinação à ministérios.

Associados aos mandatos fixos e escalonados da diretoria do BC, esses são elementos necessários para dissociar a administração da taxa básica de juros dos ciclos políticos eleitorais.

Haverá um mecanismo de coordenação com o ministério da Economia para o caso de alguma operação da autoridade monetária gerar custo fiscal. O BC terá que informar o Conselho Monetário Nacional (CMN) quando for fazer, por exemplo, empréstimos com instituições financeiras públicas ou privadas que representem algum impacto fiscal.

Guedes e o BC
O ministro da Economia, Paulo Guedes, declarou que a deflação registrada em setembro abre espaço para queda da taxa de juros.

Como o Comitê de Política Monetária (Copom) já indicou que deverá cortar a Selic em mais 0,5 ponto percentual na próxima reunião, marcada para os dias 29 e 30 de outubro, é de se supor que Guedes esteja sinalizando cortes adicionais, que levem a taxa básica para o terreno dos 4,5% ao ano. O ministro já demonstrou que não se importa de tratar de assuntos relativos ao BC. Em junho ele anunciou que o Banco Central iria liberar R$ 100 bilhões de depósitos compulsórios. E referiu-se, também, à redução das reservas cambiais, ao dizer que, se o dólar chegar a R$ 4,50 ou R$ 5,00, poderá vender US$ 100 bilhões das reservas e usar esse dinheiro para abater a dívida pública.

Sem reforma
Um ministro do círculo mais próximo do presidente da República garantiu que não se cogita, no governo, fazer uma reforma ministerial. Esse mesmo ministro disse, ainda, que nunca ouviu qualquer menção a uma eventual saída de Paulo Guedes do governo, seja por vontade própria, seja por desejo de Jair Bolsonaro.


Monica de Bolle: Bancos centrais verdes

O BC brasileiro foi pioneiro na compreensão do impacto ambiental de suas ações junto ao mercado financeiro

Deveriam os bancos centrais incluir questões como o meio ambiente e mudanças climáticas no escopo de seus mandatos? Há 15 anos, ninguém em sã consciência pensaria em fazer essa pergunta. Afinal, antes da crise financeira de 2008 – que completa 11 anos essa semana – os objetivos e instrumentos dos bancos centrais estavam muito bem definidos. Salvo poucas exceções, o objetivo principal era a estabilidade de preços e o instrumento para alcançá-la a sintonia fina das taxas de juros de curto prazo. Com a crise, entretanto, surgiram outras preocupações além da estabilidade dos preços, como a estabilidade financeira. Surgiram, também, outros instrumentos. As operações conhecidas como afrouxamento quantitativo, ou a compra direta de títulos de longo prazo pelos bancos centrais após os juros terem caído para zero. Mais recentemente, o uso das taxas de juros negativas para prover estímulos adicionais, conforme as iniciativas do Banco do Japão e do Banco Central Europeu, entre outros.

As enormes mudanças na condução da política monetária provocadas pela crise financeira de 2008 e os questionamentos sobre o papel dos bancos centrais continuam a ter destaque no debate global. As mais novas áreas do debate incluem o impacto das ações de política monetária na distribuição de renda e se as autoridades monetárias podem, de alguma forma, serem usadas para combater as mudanças climáticas. Há quem veja nessa discussão investidas políticas contra a autonomia dos bancos centrais, o que sem dúvida alguma seria prejudicial para os principais objetivos da política monetária, como o controle inflacionário. Contudo, dada a urgência desses temas, não é irrazoável que eles sejam trazidos para o âmbito das políticas macroeconômicas. A desigualdade de renda, por exemplo, guarda relações estreitas com o nacionalismo econômico ressurgente no mundo, conforme pesquisas que eu e outros temos realizado. O nacionalismo econômico, atrelado ao discurso populista extremista, pode ser bastante prejudicial para a organização macroeconômica e para a estabilidade política – a conscientização generalizada de que uma não existe sem a outra tem sido um dos poucos legados positivos desses tempos de transição global.

Do mesmo modo, a agenda ambiental não pode continuar isolada da agenda econômica mais ampla. Uma possível grande contribuição que os bancos centrais podem fornecer passa por uma compreensão mais profunda a respeito da dinâmica dos impactos ambientais a partir de suas interações com o sistema financeiro. Entre 2016 e 2018, o Banco da Inglaterra e o BCE compraram títulos corporativos como parte do afrouxamento quantitativo – as compras foram proporcionais à composição do mercado e tinham por objetivo reduzir as taxas de juros de longo prazo para impulsionar a demanda, e trazer a inflação para a meta estabelecida. Para manter a neutralidade em relação à composição dos títulos no mercado, os bancos centrais acabaram comprando papéis de empresas mais intensivas no uso de carbono, como revelaram alguns estudos (Matikainen et al. (2017)). Há espaço, portanto, para repensar as compras de títulos: e se os bancos centrais passarem a comprar relativamente mais títulos de empresas com selo ambiental, ignorando a neutralidade da composição do mercado? Essa é certamente uma pergunta que merece a atenção cuidadosa dos departamentos de pesquisa dos BCs.

Curiosamente, o Banco Central brasileiro foi pioneiro na compreensão do impacto ambiental de suas ações junto ao mercado financeiro. Em 2008, o BC e o Conselho Monetário Nacional promulgaram a Resolução no. 3545, cujo objetivo era condicionar o crédito rural subsidiado ao cumprimento de normas ambientais. A medida teve grande sucesso em impedir o desmatamento em várias partes da Amazônia Legal, conforme mostrou o estudo da Climate Policy Initiative da PUC-Rio de autoria de Juliano Assunção e coautores em 2013 – esse estudo será brevemente publicado em uma revista científica de grande prestígio internacional.

O debate sobre a atuação dos bancos centrais para combater as mudanças climáticas está ganhando tração internacional entre acadêmicos e gestores de política econômica. O Brasil tem uma experiência pioneira nessa área, e espaço de sobra para exibi-la no momento em que a Amazônia está no centro das atenções. Será mesmo que vamos insistir em perder a oportunidade de tratar do tema com as evidências científicas que merece em vez de abordá-lo com barbaridades ideológicas?

* Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University