RPD || Entrevista Especial – Marcos Nobre: ‘Se Bolsonaro se reeleger, acabou a democracia no país’

Jair Bolsonaro “tenta destruir as instituições por dentro”, avalia o cientista social Marcos Nobre. Para ele, é preciso que as forças democráticas de direita, de centro e de esquerda se unam em torno da queda do presidente.
Foto: José Cícero da Silva/Agência Pública
Foto: José Cícero da Silva/Agência Pública

Jair Bolsonaro “tenta destruir as instituições por dentro”, avalia o cientista social Marcos Nobre. Para ele, é preciso que as forças democráticas de direita, de centro e de esquerda se unam em torno da queda do presidente

Por Caetano Araujo e Vinícius Müller

O projeto autoritário do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) para o Brasil é de longo prazo e se a oposição insistir na estratégia de fidelizar parcelas separadas do eleitorado, sem pensar numa grande coalizão de forças, será impossível derrotar o atual presidente em 2022, avalia o professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH-Unicamp) e presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), Marcos Nobre, entrevistado especial desta 27a edição da Revista Política Democrática Online (RPD).

Para Marcos Nobre, Bolsonaro governa para um terço do eleitorado, no qual se apoia para não sofrer impeachment e chegar ao segundo turno das próximas eleições. E faz um alerta: “Nós temos que conversar com esse eleitorado e convencê-los de que é necessário levar Bolsonaro ao impeachment. Se não for possível o impeachment, em convencê-los de que é necessário votar em uma candidatura do campo democrático”, acredita.

Marcos Nobre, entre outros, publicou, pela Companhia das Letras, Imobilismo em movimento. Da redemocratização ao governo Dilma (2013) e, pela Todavia, Como nasce o novo. Experiência e diagnóstico de tempo na Fenomenologia do espírito de Hegel (2018) e Ponto-final. A guerra de Bolsonaro contra a democracia (2020). A seguir, os principais trechos da entrevista.

Revista Política Democrática Online (RPD) – Como interpretar a mudança de comportamento do governo após a reação do Supremo Tribunal Federal às ameaças de manifestantes governistas radicais?  

Marcos Nobre (MN): Acho importante ressaltar, em primeiro lugar, que Bolsonaro fez apenas um recuo tático, o projeto autoritário, vale dizer, o confronto dele com as instituições, continua em curso. O que aconteceu foi que uma parte do sistema político decidiu apoiar um projeto de extrema direita. O que se chama de Centrão são muitos, como ficou claro nas eleições municipais e, agora, no processo conducente à eleição das mesas da Câmara e do Senado. Ainda não conhecemos o resultado dessa disputa, mas sabemos que o sistema político se dividiu em três: um bloco de apoio ao governo, ou seja, um bloco que decidiu apoiar um presidente de extrema direita; um outro bloco que está à direita, que chamaria de direita tradicional, que também se organizou de maneira independente do governo Bolsonaro; e existe a esquerda. Qual é o elemento fundamental da situação atual? É que nós temos um presidente abertamente golpista, com um projeto autoritário. Aí diz-se: “Não, mas as instituições estão segurando”. Peço para se fazer uma única comparação, entre o Brasil de 2020 ou de 2021 com a Hungria de 2012 e 2013. Ou seja, naquele momento de primeiro mandato de Orbán, quantas pessoas achavam que a democracia estivesse de fato em risco na Hungria? Temos de ter clareza quanto à gravidade do momento.  

RPD – Na conjuntura presente, quais são as tarefas imediatas das forças democráticas de oposição?   

MN: Quando se tem uma situação como a nossa, o que se pode fazer é uma frente ampla em defesa da democracia, não existe outra saída. A não ser que se continue a subestimar, tanto o projeto autoritário do Bolsonaro, como a capacidade dele de se reeleger em 2022. Se todo mundo achar que as instituições estão funcionando, que a democracia não está em risco e que se o Bolsonaro se reeleger o Brasil vai continuar democrático, aí realmente não precisa fazer nada. O que tem que ser feito é um acordo para isolar Bolsonaro, ou seja, as forças democráticas precisam sentar e fazer um acordo em torno de coisas muito básicas. Não vai poder mais acontecer o que aconteceu no Brasil desde a eleição de 2014, ou seja, não se pode dizer que a eleição foi fraudulenta, não se pode dar golpe, não se pode dar rasteira no adversário e tentar jogar o adversário para fora do campo político, de fora do sistema político. Isso tem reflexo eleitoral? Tem. Por quê? Terá de ser um acordo de reconstrução institucional, um pacto de convivência democrática entre as forças políticas. Qualquer que seja a candidatura que passar para o segundo, terá de contar com o apoio da integralidade do campo democrático, não importando se é da esquerda ou da direita.  

“Se ele (Bolsonaro) se reeleger, acabou a democracia no país. O primeiro mandato é de destruição de instituições e o segundo mandato é de implantação do autoritarismo”

É um projeto difícil, mas a alternativa é perder a democracia. Basta olhar para a eleição americana. O Trump tentou – e continuou tentando – dar golpe, ao insistir em manipular os resultados do pleito. Agora, vamos transferir isso para o Brasil. O Bolsonaro vai querer sair do poder tranquilamente? Ele sabe que o risco dele, da família e dele próprio irem para a cadeia é muito alto. Então ele não tem nada a perder. Se ele se reeleger, acabou a democracia no país. O primeiro mandato é de destruição de instituições, e o segundo será de implantação do autoritarismo, como o fez Viktor Orban, na Hungria. Esse é que é o script autoritário do populismo da década de 2010.   

 
RPD: Quais os principais obstáculos à cooperação entre as diversas forças e oposição e como superá-los?
MN: Primeira coisa: o exemplo dos Estados Unidos não nos serve. Ou seja, nós não teremos uma candidatura única do campo democrático em 2022. Então não nos serve esse exemplo.  

Mas há elementos que permitem pensar uma saída. Um sinal disso é o que se está insinuando na organização de forças para a escolha do novo presidente da Câmara dos Deputados. Uma direita tradicional se descolou da extrema direita e propôs à esquerda um acordo em torno da presidência, isso é muito importante. Não é pouco importante. Então talvez se possa pensar no seguinte. A pergunta central tem de ser formulada com clareza e a resposta dada com consciência: É grave risco para a democracia a reeleição de Bolsonaro? È preciso com que o campo democrático repactue entre si a democracia brasileira? Vejam bem; não é uma discussão a ser enfrentado no nível dos partidos, do sistema político, mas conduzida desde baixo. Caso contrário, a pretendida repactuação ocorrerá simplesmente no topo do sistema político, nas cúpulas.   

Na democracia, só existem adversários, mas Bolsonaro é um inimigo, porque ele é um inimigo da democracia. Então como fazer para que essas forças aceitem se sentar para negociar? Primeira coisa, muita política, precisam conversar. Diante da atual correlação de forças, a julgar pelos resultados recentes das eleições municipais, o projeto de esquerda – se é que a esquerda tem um projeto – consegue se impor? Não é provável, a correlação de forças lhe foi claramente desfavorável, tendo alcançado algo como 25% dos votos.   

Mas lembremos que um projeto de esquerda precisa da democracia, é um oxigênio sem o qual não dá para construir seu projeto político. A conversa à que me referi como caminho obrigatório para a repactuação tanto almejada terá, portanto, de consolidar a visão de que a democracia é também objetivo maior para a direita tradicional. Somente assim será possível construir algo como uma frente ampla comprometendo os campos da direita democrática e da esquerda democrática.  

A direita democrática não pode atrapalhar a reconstrução da esquerda, assim como a esquerda não pode atrapalhar a reconstrução da direita, dessa direita democrática, não da extrema direita, que evidentemente, está fora da mesa de negociação. Esse é que é o ponto: não só fazer política, mas também discutir política, porque isso é que desapareceu. Não se pode mais ficar nesse joguinho de lacrar em rede, “Você me deu um golpe, não converso com você”, “Você votou no Bolsonaro, não converso com você”, pois isso é o levará exatamente à reeleição do Bolsonaro. É importante empurrar os partidos na direção de discutir política como gente grande, sem o quê não há saída.  

“A primeira coisa que eu acho importante é que Bolsonaro fez apenas um recuo tático, o projeto autoritário dele continua em curso, o confronto dele com as instituições continua em curso”

Volto a mencionar o que estamos presenciando na disputa em torno do novo presidente da Câmara, para mim sinais alentadores de que, de alguma forma, já se vem insinuado uma frente ampla democrática no Congresso. Se não, como explicar a convergência de esforços que viabilizou a aprovação do FUNDEB e do auxílio emergencial? Isso é a frente democrática na prática. Para mim, pouco importa se a direita tradicional resolve fazer suas declarações de amor à democracia, por pragmatismo, ao não ter conseguido dirigir e ocupar o governo Bolsonaro, como achava que pudesse. Isso para mim pouco importa. O que importa é que demonstrou que está realmente preocupada com o que pode acontecer com uma reeleição do Bolsonaro, isso para mim está claro, e abandonou o barco do governismo.   

“Qual é o elemento fundamental da situação atual? É que nós temos um presidente abertamente golpista e que tem um projeto autoritário”

A esquerda, por outro lado, considera necessário o impeachment, na avaliação de que não é possível deixar Bolsonaro chegar até 22, no exercício do mandato, porque concorreria com mais poder. Se a direita democrática vai topar um impeachment ou não, vai depender da esquerda convencer a sociedade. Esta, sim, é uma tarefa da esquerda – convencer a sociedade da necessidade do impeachment. Por quê? Porque as condições para o impeachment são muito exigentes. Será preciso subtrair apoio social do Bolsonaro, muito. E sabemos que a aprovação do governo Bolsonaro é altíssima, 37%, algo enorme, sobretudo depois de tudo o que aconteceu. Se formos capazes de convencer a sociedade dessa necessidade, se conseguirmos retirar apoio ao governo Bolsonaro, se conseguirmos fazer pressão sobre o Congresso, se conseguirmos convencer a direita democrática das vantagens do impeachment, teremos feito a coisa mais importante para a democracia brasileira, a mais importante de todas.   


RPD: Estas dificuldades em mantermos um ambiente democrático não revelam, na verdade, um problema estrutural da sociedade brasileira? A ascensão de Bolsonaro não é fruto de uma combinação entre uma conjuntura –  que vem sendo alimentada desde os anos 90 e que foi potencializada a partir de 2013 – , e traços estruturais e mais enraizados da sociedade brasileira?  

MN: Para mim, o marco temporal é 2013, porque, em 2013, ficou claro que a democracia brasileira, tal como estava funcionando até ali, não estava mais funcionando para a população brasileira. Qual foi a resposta do sistema político a junho de 2013? Blindar-se. A resposta do sistema político foi lamentável, porque foi uma resposta de se blindar, de se fechar em si mesmo, colocando-se em um modo de autodefesa, de sobrevivência, e, com isso, permitindo que essa energia social, já dispersa, solta na rua, não fosse canalizada para o sistema político. E, não sendo canalizada para o sistema político, para onde foi, então? Foi, de um lado, para a Marielle Franco, para um monte de mandatos coletivos, para novas intervenções. Mas foi também, de outro lado, para a Lava Jato, para maneiras de vampirizar essa energia social difusa que vendiam a ilusão de que poderiam fazer a reforma que o sistema político se recusou a fazer. Foi uma vertente que favoreceu também Bolsonaro, que aproveitou para proclamar: ‘Esse sistema nunca vai se autorreformar, então você tem que votar em alguém que é contra o sistema, e o único que é contra o sistema sou eu’. Esse populismo antiestablishment é característico da extrema direita dos anos 2010.  

“O que tem que ser feito é um acordo sobre isolar o Bolsonaro, ou seja, as forças democráticas precisam sentar e fazer um acordo em torno de coisas muito básicas”


RPD: Por que Bolsonaro, com seus ataques à democracia e às instituições e mesmo com uma conjuntura desfavorável – pandemia e crise econômica – mantém sua popularidade?  

MN: Vamos fazer uma diferenciação no caso do Bolsonaro. É difícil estimar qual que é o núcleo duro de apoio ao Bolsonaro, é difícil. Mas é alguma coisa entre 12 e 15% do eleitorado. Estamos falando de uma coisa enorme, cerca de 20 milhões de votantes no núcleo duro do Bolsonaro. Agora, para chegar a 37%, faltam ainda 22%. Esses 22% não pertencem a esse núcleo autoritário do Bolsonaro, embora também comprem a história do antissistema. O Bolsonaro continua sendo, como presidente, contra o sistema, ele continua se colocando como outsider, e nós continuamos tratando o Bolsonaro como se ele fosse de fato um outsider. E isso é extraordinário, é a hegemonia total, a vitória total do Bolsonaro no campo cultural, se a gente quiser usar a expressão antiga. É isso, ele destrói as instituições porque as instituições devem ser destruídas porque elas são injustas. E ele tem apoio por isso.   

Então o que a gente, como democratas, temos que fazer? Temos que conversar com esse eleitorado, esses 22%, que apoiam o Bolsonaro, mas que não pertencem ao núcleo duro, e convencê-los de que é necessário levar Bolsonaro ao impeachment. Se não for possível o impeachment, em convencê-los de que é necessário, em 2022, votar em uma candidatura do campo democrático. Essa é a nossa tarefa política. Porque se a gente considerar que 37% são autoritários, então esquece, não tem mais saída. A tática do Bolsonaro sempre foi de governar para um terço, que é esse um terço do eleitorado que é claramente antissistema. Que vota em quem for antiestablishment, e como eles não têm alternativa, eles ficam com o Bolsonaro, porque não apareceu nenhuma alternativa. Então o Bolsonaro decidiu: “Eu vou governar para esse um terço, eu não vou governar para a maioria”. Isso é uma tática, e por que é um terço? Porque com um terço você continua não dando maioria e, portanto, você convence todo mundo de que você é antissistema mesmo, porque você não consegue ter o apoio da maioria, então você só pode ser antissistema, certo? Segundo, você consegue com isso uma vaga no segundo turno em 2022 com um terço, e você tem um seguro anti-impeachment. Você tem as três coisas. Isso é muito relevante para entender como o Bolsonaro funciona. Sem entender bem como o Bolsonaro funciona, o campo democrático não vai saber onde tem que bater, porque precisa ter tática, precisa ter estratégia muito clara, porque se não nós vamos perder. E vamos perder feio.    

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