Marcos Nobre

RPD || Entrevista Especial - Marcos Nobre: 'Se Bolsonaro se reeleger, acabou a democracia no país'

Jair Bolsonaro “tenta destruir as instituições por dentro”, avalia o cientista social Marcos Nobre. Para ele, é preciso que as forças democráticas de direita, de centro e de esquerda se unam em torno da queda do presidente

Por Caetano Araujo e Vinícius Müller

O projeto autoritário do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) para o Brasil é de longo prazo e se a oposição insistir na estratégia de fidelizar parcelas separadas do eleitorado, sem pensar numa grande coalizão de forças, será impossível derrotar o atual presidente em 2022, avalia o professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH-Unicamp) e presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), Marcos Nobre, entrevistado especial desta 27a edição da Revista Política Democrática Online (RPD).

Para Marcos Nobre, Bolsonaro governa para um terço do eleitorado, no qual se apoia para não sofrer impeachment e chegar ao segundo turno das próximas eleições. E faz um alerta: "Nós temos que conversar com esse eleitorado e convencê-los de que é necessário levar Bolsonaro ao impeachment. Se não for possível o impeachment, em convencê-los de que é necessário votar em uma candidatura do campo democrático", acredita.

Marcos Nobre, entre outros, publicou, pela Companhia das Letras, Imobilismo em movimento. Da redemocratização ao governo Dilma (2013) e, pela Todavia, Como nasce o novo. Experiência e diagnóstico de tempo na Fenomenologia do espírito de Hegel (2018) e Ponto-final. A guerra de Bolsonaro contra a democracia (2020). A seguir, os principais trechos da entrevista.

Revista Política Democrática Online (RPD) - Como interpretar a mudança de comportamento do governo após a reação do Supremo Tribunal Federal às ameaças de manifestantes governistas radicais?  

Marcos Nobre (MN): Acho importante ressaltar, em primeiro lugar, que Bolsonaro fez apenas um recuo tático, o projeto autoritário, vale dizer, o confronto dele com as instituições, continua em curso. O que aconteceu foi que uma parte do sistema político decidiu apoiar um projeto de extrema direita. O que se chama de Centrão são muitos, como ficou claro nas eleições municipais e, agora, no processo conducente à eleição das mesas da Câmara e do Senado. Ainda não conhecemos o resultado dessa disputa, mas sabemos que o sistema político se dividiu em três: um bloco de apoio ao governo, ou seja, um bloco que decidiu apoiar um presidente de extrema direita; um outro bloco que está à direita, que chamaria de direita tradicional, que também se organizou de maneira independente do governo Bolsonaro; e existe a esquerda. Qual é o elemento fundamental da situação atual? É que nós temos um presidente abertamente golpista, com um projeto autoritário. Aí diz-se: "Não, mas as instituições estão segurando". Peço para se fazer uma única comparação, entre o Brasil de 2020 ou de 2021 com a Hungria de 2012 e 2013. Ou seja, naquele momento de primeiro mandato de Orbán, quantas pessoas achavam que a democracia estivesse de fato em risco na Hungria? Temos de ter clareza quanto à gravidade do momento.  

RPD - Na conjuntura presente, quais são as tarefas imediatas das forças democráticas de oposição?   

MN: Quando se tem uma situação como a nossa, o que se pode fazer é uma frente ampla em defesa da democracia, não existe outra saída. A não ser que se continue a subestimar, tanto o projeto autoritário do Bolsonaro, como a capacidade dele de se reeleger em 2022. Se todo mundo achar que as instituições estão funcionando, que a democracia não está em risco e que se o Bolsonaro se reeleger o Brasil vai continuar democrático, aí realmente não precisa fazer nada. O que tem que ser feito é um acordo para isolar Bolsonaro, ou seja, as forças democráticas precisam sentar e fazer um acordo em torno de coisas muito básicas. Não vai poder mais acontecer o que aconteceu no Brasil desde a eleição de 2014, ou seja, não se pode dizer que a eleição foi fraudulenta, não se pode dar golpe, não se pode dar rasteira no adversário e tentar jogar o adversário para fora do campo político, de fora do sistema político. Isso tem reflexo eleitoral? Tem. Por quê? Terá de ser um acordo de reconstrução institucional, um pacto de convivência democrática entre as forças políticas. Qualquer que seja a candidatura que passar para o segundo, terá de contar com o apoio da integralidade do campo democrático, não importando se é da esquerda ou da direita.  

"Se ele (Bolsonaro) se reeleger, acabou a democracia no país. O primeiro mandato é de destruição de instituições e o segundo mandato é de implantação do autoritarismo"

É um projeto difícil, mas a alternativa é perder a democracia. Basta olhar para a eleição americana. O Trump tentou – e continuou tentando – dar golpe, ao insistir em manipular os resultados do pleito. Agora, vamos transferir isso para o Brasil. O Bolsonaro vai querer sair do poder tranquilamente? Ele sabe que o risco dele, da família e dele próprio irem para a cadeia é muito alto. Então ele não tem nada a perder. Se ele se reeleger, acabou a democracia no país. O primeiro mandato é de destruição de instituições, e o segundo será de implantação do autoritarismo, como o fez Viktor Orban, na Hungria. Esse é que é o script autoritário do populismo da década de 2010.   

 
RPD: Quais os principais obstáculos à cooperação entre as diversas forças e oposição e como superá-los?
MN: Primeira coisa: o exemplo dos Estados Unidos não nos serve. Ou seja, nós não teremos uma candidatura única do campo democrático em 2022. Então não nos serve esse exemplo.  

Mas há elementos que permitem pensar uma saída. Um sinal disso é o que se está insinuando na organização de forças para a escolha do novo presidente da Câmara dos Deputados. Uma direita tradicional se descolou da extrema direita e propôs à esquerda um acordo em torno da presidência, isso é muito importante. Não é pouco importante. Então talvez se possa pensar no seguinte. A pergunta central tem de ser formulada com clareza e a resposta dada com consciência: É grave risco para a democracia a reeleição de Bolsonaro? È preciso com que o campo democrático repactue entre si a democracia brasileira? Vejam bem; não é uma discussão a ser enfrentado no nível dos partidos, do sistema político, mas conduzida desde baixo. Caso contrário, a pretendida repactuação ocorrerá simplesmente no topo do sistema político, nas cúpulas.   

Na democracia, só existem adversários, mas Bolsonaro é um inimigo, porque ele é um inimigo da democracia. Então como fazer para que essas forças aceitem se sentar para negociar? Primeira coisa, muita política, precisam conversar. Diante da atual correlação de forças, a julgar pelos resultados recentes das eleições municipais, o projeto de esquerda – se é que a esquerda tem um projeto – consegue se impor? Não é provável, a correlação de forças lhe foi claramente desfavorável, tendo alcançado algo como 25% dos votos.   

Mas lembremos que um projeto de esquerda precisa da democracia, é um oxigênio sem o qual não dá para construir seu projeto político. A conversa à que me referi como caminho obrigatório para a repactuação tanto almejada terá, portanto, de consolidar a visão de que a democracia é também objetivo maior para a direita tradicional. Somente assim será possível construir algo como uma frente ampla comprometendo os campos da direita democrática e da esquerda democrática.  

A direita democrática não pode atrapalhar a reconstrução da esquerda, assim como a esquerda não pode atrapalhar a reconstrução da direita, dessa direita democrática, não da extrema direita, que evidentemente, está fora da mesa de negociação. Esse é que é o ponto: não só fazer política, mas também discutir política, porque isso é que desapareceu. Não se pode mais ficar nesse joguinho de lacrar em rede, "Você me deu um golpe, não converso com você", "Você votou no Bolsonaro, não converso com você", pois isso é o levará exatamente à reeleição do Bolsonaro. É importante empurrar os partidos na direção de discutir política como gente grande, sem o quê não há saída.  

"A primeira coisa que eu acho importante é que Bolsonaro fez apenas um recuo tático, o projeto autoritário dele continua em curso, o confronto dele com as instituições continua em curso"

Volto a mencionar o que estamos presenciando na disputa em torno do novo presidente da Câmara, para mim sinais alentadores de que, de alguma forma, já se vem insinuado uma frente ampla democrática no Congresso. Se não, como explicar a convergência de esforços que viabilizou a aprovação do FUNDEB e do auxílio emergencial? Isso é a frente democrática na prática. Para mim, pouco importa se a direita tradicional resolve fazer suas declarações de amor à democracia, por pragmatismo, ao não ter conseguido dirigir e ocupar o governo Bolsonaro, como achava que pudesse. Isso para mim pouco importa. O que importa é que demonstrou que está realmente preocupada com o que pode acontecer com uma reeleição do Bolsonaro, isso para mim está claro, e abandonou o barco do governismo.   

"Qual é o elemento fundamental da situação atual? É que nós temos um presidente abertamente golpista e que tem um projeto autoritário"

A esquerda, por outro lado, considera necessário o impeachment, na avaliação de que não é possível deixar Bolsonaro chegar até 22, no exercício do mandato, porque concorreria com mais poder. Se a direita democrática vai topar um impeachment ou não, vai depender da esquerda convencer a sociedade. Esta, sim, é uma tarefa da esquerda - convencer a sociedade da necessidade do impeachment. Por quê? Porque as condições para o impeachment são muito exigentes. Será preciso subtrair apoio social do Bolsonaro, muito. E sabemos que a aprovação do governo Bolsonaro é altíssima, 37%, algo enorme, sobretudo depois de tudo o que aconteceu. Se formos capazes de convencer a sociedade dessa necessidade, se conseguirmos retirar apoio ao governo Bolsonaro, se conseguirmos fazer pressão sobre o Congresso, se conseguirmos convencer a direita democrática das vantagens do impeachment, teremos feito a coisa mais importante para a democracia brasileira, a mais importante de todas.   

RPD: Estas dificuldades em mantermos um ambiente democrático não revelam, na verdade, um problema estrutural da sociedade brasileira? A ascensão de Bolsonaro não é fruto de uma combinação entre uma conjuntura -  que vem sendo alimentada desde os anos 90 e que foi potencializada a partir de 2013 - , e traços estruturais e mais enraizados da sociedade brasileira?  

MN: Para mim, o marco temporal é 2013, porque, em 2013, ficou claro que a democracia brasileira, tal como estava funcionando até ali, não estava mais funcionando para a população brasileira. Qual foi a resposta do sistema político a junho de 2013? Blindar-se. A resposta do sistema político foi lamentável, porque foi uma resposta de se blindar, de se fechar em si mesmo, colocando-se em um modo de autodefesa, de sobrevivência, e, com isso, permitindo que essa energia social, já dispersa, solta na rua, não fosse canalizada para o sistema político. E, não sendo canalizada para o sistema político, para onde foi, então? Foi, de um lado, para a Marielle Franco, para um monte de mandatos coletivos, para novas intervenções. Mas foi também, de outro lado, para a Lava Jato, para maneiras de vampirizar essa energia social difusa que vendiam a ilusão de que poderiam fazer a reforma que o sistema político se recusou a fazer. Foi uma vertente que favoreceu também Bolsonaro, que aproveitou para proclamar: ‘Esse sistema nunca vai se autorreformar, então você tem que votar em alguém que é contra o sistema, e o único que é contra o sistema sou eu’. Esse populismo antiestablishment é característico da extrema direita dos anos 2010.  

"O que tem que ser feito é um acordo sobre isolar o Bolsonaro, ou seja, as forças democráticas precisam sentar e fazer um acordo em torno de coisas muito básicas"

RPD: Por que Bolsonaro, com seus ataques à democracia e às instituições e mesmo com uma conjuntura desfavorável - pandemia e crise econômica - mantém sua popularidade?  

MN: Vamos fazer uma diferenciação no caso do Bolsonaro. É difícil estimar qual que é o núcleo duro de apoio ao Bolsonaro, é difícil. Mas é alguma coisa entre 12 e 15% do eleitorado. Estamos falando de uma coisa enorme, cerca de 20 milhões de votantes no núcleo duro do Bolsonaro. Agora, para chegar a 37%, faltam ainda 22%. Esses 22% não pertencem a esse núcleo autoritário do Bolsonaro, embora também comprem a história do antissistema. O Bolsonaro continua sendo, como presidente, contra o sistema, ele continua se colocando como outsider, e nós continuamos tratando o Bolsonaro como se ele fosse de fato um outsider. E isso é extraordinário, é a hegemonia total, a vitória total do Bolsonaro no campo cultural, se a gente quiser usar a expressão antiga. É isso, ele destrói as instituições porque as instituições devem ser destruídas porque elas são injustas. E ele tem apoio por isso.   

Então o que a gente, como democratas, temos que fazer? Temos que conversar com esse eleitorado, esses 22%, que apoiam o Bolsonaro, mas que não pertencem ao núcleo duro, e convencê-los de que é necessário levar Bolsonaro ao impeachment. Se não for possível o impeachment, em convencê-los de que é necessário, em 2022, votar em uma candidatura do campo democrático. Essa é a nossa tarefa política. Porque se a gente considerar que 37% são autoritários, então esquece, não tem mais saída. A tática do Bolsonaro sempre foi de governar para um terço, que é esse um terço do eleitorado que é claramente antissistema. Que vota em quem for antiestablishment, e como eles não têm alternativa, eles ficam com o Bolsonaro, porque não apareceu nenhuma alternativa. Então o Bolsonaro decidiu: "Eu vou governar para esse um terço, eu não vou governar para a maioria". Isso é uma tática, e por que é um terço? Porque com um terço você continua não dando maioria e, portanto, você convence todo mundo de que você é antissistema mesmo, porque você não consegue ter o apoio da maioria, então você só pode ser antissistema, certo? Segundo, você consegue com isso uma vaga no segundo turno em 2022 com um terço, e você tem um seguro anti-impeachment. Você tem as três coisas. Isso é muito relevante para entender como o Bolsonaro funciona. Sem entender bem como o Bolsonaro funciona, o campo democrático não vai saber onde tem que bater, porque precisa ter tática, precisa ter estratégia muito clara, porque se não nós vamos perder. E vamos perder feio.    


O Globo: 'Bolsonaro quer mudar o assunto das mortes para ele não ser responsabilizado', diz filósofo

Para Marcos Nobre, presidente tem projeto de implantar regime autoritário no país

Dimitrius Dantas, O Globo

SÃO PAULO — O professor da Unicamp e filósofo Marcos Nobre lançou nesta sexta-feira "Ponto final - A guerra de Bolsonaro contra democracia", um dos livros em formato eletrônico (e-book) e físico da coleção lançada pela editora Todavia sobre o Brasil em meio à pandemia do coronavírus.
No livro, Nobre defende que Bolsonaro tem um projeto autoritário cujo objetivo é a ruptura da democracia. A chegada da pandemia, entretanto, alterou o plano e levou o presidente a ser ainda mais agressivo com as instituições.

Em conversa com o GLOBO, Nobre defendeu o inquérito das fake news e classificou os ataques do presidente ao Supremo Tribunal Federal, como uma forma de fugir da responsabilidade do combate à pandemia.
— Bolsonaro conscientemente quer mudar o assunto das mortes para que ele não seja responsabilizado. Isso é algo que é a coisa mais pusilânime — diz.

O senhor começa o livro criticando o discurso que diz que Bolsonaro é "burro" e "louco" e defende que o presidente atua com uma racionalidade política. Como funciona essa racionalidade política?
O que quero dizer com isso é que tratar o Bolsonaro de outra maneira que não como um político é uma estratégia que reforça sua imagem de não-político, que é a que ele quer passar. É uma maneira que tira sua responsabilidade dos atos que pratica, afinal burros e loucos não podem ser responsáveis pelas burrices e loucuras. Então, é preciso tentar entender a racionalidade do Bolsonaro: o Bolsonaro como político. Isso significa entendê-lo como alguém que tem um firme projeto autoritário. Temos que levar isso muito a sério.

O senhor afirma que, antes da pandemia, ele estava numa fase inicial de destruição das instituições. O que caracteriza essa fase de destruição?
É colocar um ministro do Meio Ambiente que destrói o meio ambiente, um diretor de uma fundação pensada para lutar contra o racismo que diz que não existe racismo. É inverter o sentido das instituições democráticas. Fazer elas funcionarem ao contrário do que é a sua função. É introduzir no vocabulário político a ideia de que uma ditadura é uma coisa normal, que ela pode ser democrática.

Muitos criminalistas, mesmo de esquerda, criticam a forma como o inquérito das fake news foi criado no Supremo Tribunal Federal. Como o senhor vê este caso?
O ministro Alexandre de Moraes acertou no joelho do Bolsonaro. Porque sem a central de fake news, Bolsonaro não se sustenta. O ministro mostrou que ele sabe onde acertar, qual é a fraqueza do Bolsonaro.

Mas criminalistas questionam a constitucionalidade do inquérito criado de ofício, sem participação do Ministério Público.
Em um momento como esse, não adianta pensar em abstrato. Bolsonaro pratica a política da guerra e montou um governo de guerra. Uma guerra instaurada pelo Bolsonaro. Vamos fazer a lógica da paz? Não, não existe isso. É claro que quem defende a democracia não vai recorrer à violência e à força para afastar Bolsonaro, mas a procedimentos democráticos, a articulações políticas em defesa da democracia.

Agora, não dá para imaginar que estamos numa condição institucional normal e que devemos nos pautar por critérios abstratos de como funcionam as instituições. Esse é um momento de clareza, é um momento em que a democracia não está funcionando.

Na questão da suspensão do Alexandre Ramagem para a direção da PF, alguns lembraram da medida tomada pelo Gilmar Mendes que impediu a posse do ex-presidente Lula.
As decisões têm sentidos completamente diferentes, porque naquele momento poucas pessoas razoáveis diriam que a democracia estava em risco iminente de ruptura. Quando fica claro que as instituições não estão mais funcionando, e que existe alguém que quer usar esse colapso para destruir a democracia, qualquer pessoa que tome decisões para defender a democracia, mesmo que isso pareça arbitrário, deve ser defendida.

Com a pandemia do coronavírus, Bolsonaro subiu mais o tom no ataque às instituições. Ontem, voltou a ameaçar o Supremo Tribunal Federal, por exemplo.
O que tento mostrar no livro é que, ao fazer isso, ele age por fidelidade às suas convicções autoritárias. Como todo líder autoritário, ele se apresenta como não-político, como antissistema. Portanto, ele precisa dizer para quem o apoia, que ele se tornou presidente, mas nem por isso foi domado pelo sistema.

O senhor diz no livro que a postura antissistema é exatamente o que o impede de governar.
Exato. Porque atualmente ele precisa não só dirigir o sistema. Isso é pouco. Numa crise sanitária dessa magnitude, ele precisa reorganizar inteiramente o sistema em função do combate ao vírus. Precisa pegar todo o aparelho do estado, todos os ministérios e remodelá-los de maneira a enfrentar a pandemia. Precisa remodelar a indústria brasileira para fabricar produtos.

Mas por que esses ataques logo agora?
São ataques severos às instituições mas tem muito de diversionismo, de produzir confusão. Esse efeito diversionista é ainda mais tétrico. Bolsonaro conscientemente quer mudar o assunto das mortes para que ele não seja responsabilizado. Isso é algo que é a coisa mais pusilânime. Não é que não temos que discutir esses ataques, porque ele de fato quer destruir a democracia, mas o que ele está fazendo agora é confundir as pessoas.

Mas o senhor acredita que esses ataques são apenas diversionistas? Ou representam uma ameaça?
São reais. Se ele tiver uma chance, ele vai dar o golpe. Ele usa uma coisa que é real para confundir, para turvar as águas. Ele precisa ganhar tempo para três coisas: um acordo com o centrão, que seja anti-impeachment, aprofundar a aliança com as forças militares para coordenar o governo e tornar mais aguerrida sua base social de apoio.

Para superar o Bolsonaro, o senhor fala que é necessária a formação de uma frente ampla a favor da democracia. Mas também defende que o impeachment só viria se negociado com os militares ou o que chama de "partido militar". O que motivaria os militares a apoiarem um afastamento de Bolsonaro?
As Forças Armadas foram um ator político importantíssimo desde a proclamação da República. Quando deixaram de ser? Nos últimos 30 anos. Se sentiam excluídos da política de forma injusta e indevida e aproveitaram para voltar ao governo, assim como outros grupos. E não sairão tranquilamente, porque querem ser reconhecidas como um ator político relevante. O que eles querem dizer é: nós temos quadros aptos a servirem a governos. Temos quadros aptos a ajudar a desenvolver o Brasil e estamos sendo excluídos por pura discriminação. É isso que está em jogo nessa transição.

Por outro lado, essa frente também dependeria da união de forças políticas que, há pouco tempo, eram adversárias. PT e PSDB, por exemplo.
Exato. E é disso que se alimenta o Bolsonaro. Ele se alimenta dessa lógica dos três terços em que nenhum dos três negocia com o outro. Mas essa divisão não é só das forças políticas, é na sociedade. Tem PSDB e tem PT, mas também tem o tio e o sobrinho, o irmão e a irmã, essa divisão na base da sociedade. Se essa tendência de aumento de rejeição se confirmar, até o ponto de atingir algo perto de 60%, isso significa que está tendo um movimento na base da sociedade que diz o seguinte: "pode ser que tenhamos diferenças insuperáveis e que impediram a gente de almoçar juntos no domingo, mas temos que juntar forças contra essa ameaça maior." E as forças políticas organizadas são obrigadas a ir atrás. Enquanto não há condições objetivas para isso, ele aproveita esse tempo para montar seu governo de guerra. Hoje, Bolsonaro encena ser o único homem livre em um país de confinados.


Alberto Aggio: As lacunas e os equívocos de Marcos Nobre

Marcos Nobre é um ensaísta cada vez mais requisitado pela mídia. Seus méritos acadêmicos são inquestionáveis. Contudo, no plano da análise política nem sempre estou de acordo com ele. O artigo “Contagem Regressiva” (veja aqui) que ele publica na revista Piauí (edição 159, dezembro de 2019; indicado abaixo) evidencia mais uma vez muitos desacordos. O principal deles é que sua referência maior para o “campo democrático” é a oposição ao governo Bolsonaro por ser este “contra a democracia”. Estamos de acordo com essa formulação. No entanto, ela ilude e não apreende a realidade política como ela realmente é. Na nossa concepção, o “campo democrático” tem também a tarefa de combater também o partido (e suas lideranças) que criou um sistema de corrupção jamais visto na nossa história, o que comprometeu profundamente a crença da sociedade na política democrática. E isso, sem dúvida, abriu passagem para a vitória de Bolsonaro e a afirmação do Bolsonarismo.

Essa leitura não é sequer considerada na análise de Marcos Nobre. Dai fica difícil apreender a situação como realmente ela se mostra. Nobre chancela a posição de Lula ao rejeitar o pedido de autocrítica do PT. Esse posicionamento do analista anula qualquer possibilidade de conversa entre forças democráticas. Aliás, em nenhum momento o PT é responsável pela crise em que estamos metidos como país. Na leitura do artigo, o lugar do centro vem na fala de Jorge Bornhausen e isso me parece injustificadamente provocador não fosse absolutamente lacunar.

A menção a Luiz Carlos Prestes e ao PCB é outra provocação que somente quem não tem conhecimento básico da história das forças políticas do campo democrático aceita de bom grado. A opção desta linhagem política é por uma “frente democrática”, defendida por Roberto Freire, presidente do Cidadania, que nem sequer é mencionada – e mereceria, para dar algum sentido à ideia de “espírito de urgência”, de que fala o autor, na construção de uma suposta “concertação democrática”.

Aliás, Nobre pensa que a defesa de cada um dos “terços” que divide as forças políticas no Brasil, pelas forças de esquerda e de centro-direita, é inteiramente negativa, por ser defensiva em relação a Bolsonaro. Ora, a política de “frente” também é defensiva; o que ele propões como “concertação” não deixa de ser defensiva em relação a Bolsonaro; é apenas ofensiva em relação aos propósitos do PT, que é de reconquista do poder pela via eleitoral (mas isso Nobre não diz).

Por qual razão as forças de centro (para Nobre só existe centro-direita)se aliariam hoje com o PT. Não há nenhuma razão para isso, ainda mais com o sentido dos discursos de Lula, cada vez mais afirmativo do partido e dele mesmo, muito distante da ideia de “concertação”. Ao final, Nobre fala em DR (discussão da relação) no campo democrático. Mas creio que antes disso, faltam anos de terapia para intelectuais como ele possam repensar a trajetória petista e o mal que ela fez para a política democrática.

Fora disso, não vejo saída, a não ser construir um centro democrático e progressista animado por uma esquerda democrática que, com clareza, possa competir eleitoralmente contra o Bolsonarismo (que é a guerra de movimento de Bolsonaro) e o lulopetismo. (Blog do Aggio)

*Alberto Aggio, historiador e professor da Unesp (Universidade Estadual Paulista)


Marcos Nobre: A nova geração da política

Terminada uma eleição, a primeira pergunta que se faz é pelas chances que teriam figuras já conhecidas para as eleições seguintes. As chances de Geraldo Alckmin, Aécio Neves, Lula, Marina Silva, Ciro Gomes, Fernando Haddad e por aí vai. O problema desse tipo de foco é o imediatismo, limitado à próxima eleição. É um raciocínio que pensa que política é apenas eleição.

Tentar entender política envolve saber distinguir movimentos políticos de lógica partidária e de estratégia eleitoral. Quadros políticos são construídos ao longo de décadas. Não surgem nem desaparecem apenas em momentos de eleição. Nem são formados apenas dentro de partidos. Suas trajetórias de vida determinam o que são e onde estão para além da política oficial. Temos de nos perguntar como se politizaram e como tomaram a decisão por um caminho e não por outro.

É importante não reduzir a pergunta pela nova geração da política à pergunta pela geração nova da política. Para conseguir pensar o que será a política nos próximos 20 anos. E o que se quer que se ela seja. Para tentar sair da armadilha imediatista e pensar adiante, vale lembrar, por exemplo, onde estavam figuras da nova geração 20 anos atrás.

Nestas eleições, há casos clássicos de uma nova geração com formação partidária ortodoxa, como o do prefeito reeleito de Salvador, ACM Neto, do DEM. Nascido em 1979, acompanhou desde cedo um político tradicional, o avô, ACM, e conquistou seu primeiro mandato de deputado federal aos 23 anos. Mas está longe de ser paradigmático de sua geração. Basta olhar para outras figuras políticas que nasceram entre 1980 e 1984.

O procurador da República no Paraná, Deltan Dallagnol, nasceu em 1980 e formou-se em direito em 2001 na UFPR. Seu mote sobre a transformação do país pode ser enunciado assim: “Não é o envolvimento político-partidário, mas o exercício de cidadania”. Provavelmente foi sua avaliação negativa do cenário político-partidário no momento de sua decisão profissional o que o fez optar pela carreira de procurador em lugar de um engajamento na política oficial.

Liderança do MTST, Guilherme Boulos tem hoje 34 anos e aos 17 já tinha assinado uma carta de rompimento com o PCB. Como será que, durante seu curso de filosofia na USP, decidiu que o caminho partidário ou a militância em um movimento social tradicional não conseguiriam traduzir mais suas aspirações políticas? No momento em que decidiu participar de sua primeira ocupação, o PT e os movimentos sociais estavam voltados para a eleição de 2002. Não parece que era essa a sua ideia do que significa fazer política.

Áurea Carolina nasceu em 1984. Sua atuação no coletivo “Hip Hop Chama” e no movimento feminista, seu engajamento nas lutas do movimento negro nas periferias se traduziu em 2016 na maior votação para a Câmara Municipal de Belo Horizonte. Elegeu-se pelo Psol, mas seu mandato está ligado à iniciativa “Muitas | Cidade que queremos”, semelhante à que foi realizada em São Paulo pela “Bancada Ativista”.

A pergunta que se pode fazer agora é: por que recuar 20 anos se há caras da nova geração que têm 20 anos de idade, como o vereador eleito Fernando Holiday, em São Paulo? Também o caso de Holiday vai além do horizonte partidário. Negro, pobre e primeiro vereador assumidamente gay, elegeu-se pelo DEM, mas sua atuação se pauta pelo movimento do qual é uma das lideranças, o MBL.

Em Junho de 2013, Holiday era secundarista. Se optou por se lançar na política oficial desde já, não foi esse o caminho escolhido por muitos da mesma idade que saíram às ruas três anos atrás. O exemplo de Holiday leva à ideia simples de que pensar o futuro é pensar o que está acontecendo agora nas escolas ocupadas em quase metade dos Estados. Da natureza dessas iniciativas e das respostas que serão dadas a elas sairá muito do Brasil de 2036.

Para quem quer entender essa “primavera secundarista”, é indispensável ler “Escolas de luta: o movimento dos estudantes contra a ‘reorganização’ escolar”, de Antonia M. Campos, Jonas Medeiros e Márcio M. Ribeiro (Veneta). É um relato generoso tanto com quem lê o livro como com quem ocupou e continua a ocupar as escolas. Reconstrói, com paciência e detalhe, o processo de “reorganização escolar” desencadeado pelo governo Alckmin em São Paulo em 2015, reunindo informações que se encontram espalhadas em fontes diversas e dispersas.

Mas não existe neutralidade quando se trata de recortar uma exuberância de dados, uma multiplicidade de vozes. Cada escola ocupada tem sua história, sua linguagem e seus temas. E nem os autores pretendem neutralidade. Se não há tomada de posição nem preferências por uma ou outra ação, é explícita sua adesão ao sentido geral das movimentações secundaristas como ações de resistência e de auto-organização.

A peculiaridade do livro é fazer com que esse conjunto de ações surja como um movimento, algo que talvez não seja claro nem para quem faz nem para quem está tentando entender o que está sendo feito. A dificuldade que o livro se colocou é dar esse caráter de movimento sem confundi-lo com homogeneidade, muito menos com partidos e com a política oficial.

Não por acaso, em lugar de “movimento”, fala-se muito desde 2011 no mundo todo em “primaveras”: árabe, feminista, secundarista. Um movimento como o de “secundas” não é um movimento no sentido que se conheceu até antes dos anos 2010. Parece que o próprio conceito de “movimento” e de “movimento social” ficou obsoleto. Nessa lógica, primavera é uma estação de germinação. As formas anteriores de organização ficaram como que com o inverno da política.

Ninguém mais tem dúvida de que o cenário partidário e a forma atual de organização do sistema político caducaram. O problema é que muitos parecem continuar a olhar apenas para a política oficial, com a expectativa de que ela se transforme de dentro e por si mesma. Essa miopia não permite ver adiante. Para olhar para frente, é preciso olhar para trás. E para um presente que não é só o da política institucionalizada. Principalmente para quem ainda acha que partidos são instituições fundamentais da institucionalização da política. (Valor Econômico – 31/10/2016)

Marcos Nobre é professor de filosofia política da Unicamp e pesquisador do Cebrap. Escreve às segundas-feiras
E-mail: marcosnobre.valoreconomico@gmail.com


Fonte: http://www.pps.org.br/2016/10/31/marcos-nobre-a-nova-geracao-da-politica/