Alberto Aggio: Vida e pensamento de Gramsci

Vida e pensamento de Gramsci, de Giuseppe Vacca, segue esta pista e daí emerge a primeira biografia política de Antonio Gramsci desde a prisão até sua morte

Alberto aggio / Horizontes Democráticos

Antonio Gramsci nunca publicou um livro em vida. Sua condição de autor se deve aos esforços sucessivos de seus editores, particularmente aqueles que deram publicidade aos famosos Cadernos do cárcere, escritos na prisão fascista entre as décadas de 1920 e 1930. Considerado um “clássico da política” e um dos mais profícuos pensadores do marxismo no século XX, o estudo de suas ideias passou por muitas reformulações no curso de sua progressiva difusão desde o segundo pós-guerra. Mesmo com as conhecidas lacunas, a chamada “edição temática” (1948-1951) e, depois, a consistente “edição crítica” dos Cadernos (1975) acabaram por fornecer elementos essenciais para a construção de variadas interpretações a respeito de seu pensamento.

Ilustração da edição brasileira dos Cadernos do Cárcere

Gramsci foi visto inicialmente como o “teórico da cultura nacional-popular” e, depois “da revolução nos países avançados do capitalismo”, de cuja obra se extraíam conceitos que o tornaram um pensador assimilado em grande escala. Recentemente, a partir de uma “historicização integral”, aliada à recepção e ao tratamento de fontes inéditas ou até ignoradas, vem emergindo uma nova inserção de Gramsci na política do século XX. Referida aos dramáticos acontecimentos que abarcam a chamada “grande guerra civil europeia” (1914-1945), esta perspectiva analítica tem permitido a gradativa superação dos diversos enigmas que marcaram por longos anos os estudos gramscianos, originados da fratura entre sua vida e seu pensamento.

Vida e pensamento de Gramsci, de Giuseppe Vacca, segue esta pista e daí emerge a primeira biografia política de Antonio Gramsci desde a prisão até sua morte. O livro de Vacca supera a cisão entre trajetória pessoal e reflexão teórica ao trabalhar a um só tempo os dramas individuais e os dilemas políticos daquele prisioneiro especial do fascismo, cercado e atormentado pela angústia de ter sido “esquecido” pela mulher e “posto de lado” politicamente, o que aumentava suas suspeitas de que a direção do PCI havia sabotado sua libertação.

Há um pressuposto no livro: antes e depois de sua detenção, Gramsci foi, sobretudo, um homem de ação. Nas circunstâncias da prisão, tudo que Gramsci escreveu, de suas anotações nos Cadernos à correspondência com familiares e amigos, indica que ele permaneceu atuando como um dirigente. Nessa condição, por meio de um exercício extraordinário de codificação da linguagem, Gramsci procurava fazer chegar à direção do PCI, em especial a Palmiro Togliatti, avaliações do cenário italiano e mundial, bem questionamentos sobre orientações do PCI e da Internacional Comunista que lhe pareciam equivocadas. É deste permanente comprometimento que vão emergir os termos da “teoria nova” que, inúmeras vezes e incansavelmente, ele próprio anota e reescreve nas folhas dos cadernos escolares que pôde usar na prisão.

Alberto Aggio com Giuseppe Vacca, em Roma, em 25 de fevereiro de 2013

Nos Cadernos do Cárcere sedimenta-se um novo pensamento que resultaria numa revisão profunda do bolchevismo, notadamente em relação à concepção do Estado, à análise da situação mundial, à teoria das crises e à doutrina da guerra. Vacca sugere, com audácia teórica, que a formulação que revela definitivamente essa ultrapassagem estaria na proposição de luta pela conquista de uma Assembleia Constituinte contra o fascismo, desde 1929.

Esta proposta expressa um ponto de ruptura. Gramsci passaria a delinear uma visão da política como luta pela hegemonia, o que representa, na conjuntura dos primeiros anos da década de 1930, a adoção de um programa reformista de combate ao fascismo. A luta imediata do PCI deveria se deslocar da preparação da revolução proletária para a conquista da Constituinte: em outras palavras, a luta pela democracia deixava de ser pensada apenas como fase de transição para o socialismo. Para Gramsci, o núcleo da nova orientação dos comunistas italianos significaria a possibilidade de reconstrução da nação italiana. Vida e pensamento de Gramsci carrega a marca do ineditismo e da inovação em muitas dimensões. Os resultados não são de pouca monta.

O Gramsci que daqui emerge foi composto a partir de uma investigação histórica que acabou por estabelecer a passagem do bolchevismo para uma estratégia de ação com marcas claramente democráticas e reformistas. Localizar criticamente Gramsci na história de seu tempo permitiu essa grande descoberta.

(Este texto é a “orelha” do livro Vida e pensamento de Antonio Gramsci, 1926-1937, editado pela Contraponto/Fundação Astrojildo Pereira e Fundação Instituto Gramsci de Roma, em 2012, com tradução de Luiz Sérgio Henriques. O prefácio do livro, escrito por Maria Alice Rezende de Carvalho pode ser lido em https://www.acessa.com/gramsci/?page=visualizar&id=1548).

Fonte: Horizontes Democráticos
https://horizontesdemocraticos.com.br/vida-e-pensamento-de-gramsci/


Horizontes Democráticos: O presente como história

Já se disse que a História não é o que passou, mas o que, no presente, permanece do que passou, desafiando a consciência que se pode ter sobre o tempo e o mundo dos contemporâneos. É por isso que muitos historiadores são convocados a emitirem suas opiniões sobre os fatos do presente. Não há, portanto, nenhuma contradição nessa convocação. O conhecimento e a reflexão historiográfica parecem ser cada vez mais reconhecidos como parte da inteligência especializada em refletir sobre permanências, muitas vezes ocultas – não só para o homem comum –, que sustentam e dão base aos embates e conflitos que nos envolvem cotidianamente.


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Para além dessa dimensão pontual, está cancelada, da mesma forma, a possibilidade de o pensar historiográfico estar afastado da investigação sobre as formações culturais comumente entendidas como alicerces do mundo, desde aquelas que possibilitaram que se projetasse um futuro melhor – mais progressista ou simplesmente fazendo par com a ideia de progresso – até aquelas, contrario sensu, que, uma vez cristalizadas, condenam pessoas ou gerações inteiras a viverem como se o tempo não se alterasse ou os fatos, mesmo os moleculares, não fossem capazes de mudar a vida.

Reconhecer no passado uma instância permanente do nosso presente é entender que os tempos humanos são estruturas fundantes da nossa cultura, no sentido lato do termo. Assim, pensar em como se lida com a História e fazer com que ela seja útil, científica ou mesmo moralmente, é o que move os historiadores do nosso tempo. Como parte disso, a História que produzimos no Brasil, por historiadores de profissão ou não, deve ser vista como uma das expressões particulares do métier historiográfico que vai da produção desse conhecimento até a função social que desempenha. E uma das dimensões essenciais desse conhecimento especializado, compartilhado por historiografias que se desenvolvem em outras latitudes, é a perspectiva de atualização constante. Assim, cada vez mais o que é entendido como interdependência em outras dimensões da atividade humana invade da mesma maneira o campo da História. Isso é notável no percurso da historiografia que hoje se produz e não poderia deixar de estar presente na reiterada proposta dos capítulos desse livro, a saber, repensar o presente brasileiro a partir de critérios que superem demarcações restritivas, notadamente as ideológicas, e possibilitem novas visões sobre o passado que insiste em demarcar sua presença nas estruturas da nossa sociedade.

No livro que o leitor tem em mãos, o mundo das narrativas, aparentemente inevitável no nosso tempo, é submetido, capítulo a capítulo, a uma operação que visa estabelecer um inventário amplo e diversificado daquilo que coloniza o território das ciências humanas e sociais, com destaque especial para a reflexão historiográfica. Essa operação é muitas vezes ampliada no sentido de incorporar também a essa reflexão o complexo de narrativas intelectuais que a vida cultural assimilou como o mainstream da opinião pública. Ambas dimensões – para mencionarmos apenas duas delas – estão aqui seletivamente recrutadas em agudos diálogos, todos pertinentemente compostos em análises rigorosas e estimulantes.

Caio Prado Jr (1907-1990)

Cada capítulo deste livro é dedicado, conforme o tema e a abordagem, tanto a sondar o que há de mais atual no debate intelectual a respeito de questões decisivas relativas às teorias e metodologias que orientam a produção do conhecimento histórico quanto a problemas análogos referentes à História do Brasil, selecionando para o debate as narrativas que, em seu tempo, ajudaram a construir as visões que temos sobre o país. Muitas delas, enfatiza o autor, contribuíram enormemente para encobrir uma visão mais complexa e plural da realidade brasileira, obstaculizando uma perspectiva política e cultural ampla e renovada que hoje a imensa crise que vivenciamos se encarrega de evidenciar com notável eloquência.

Em meio a tantas narrativas que brotam no terreno da nossa historiografia, duas merecem ser mencionadas. A primeira é de caráter metodológico e convida o leitor a ultrapassar uma visão modelar que por décadas gerou um apego a explicações e hipóteses calcadas no antagonismo como elemento explicativo da história do país. Como reafirma criticamente o autor, “lamentavelmente para muitos, quando a História não se encaixa no modelo, errada está a história, não o modelo. Assim, continuamos a reproduzir tal modelo e nele ‘encaixar’ tudo o que queremos saber. Inclusive aquilo que ele, o modelo, não é capaz de explicar”. Nesse momento do livro se faz uma crítica clara à sobrevivência de muitos equívocos da abordagem de Caio Prado Jr. a respeito da nossa história, mesmo relevando seus inúmeros acertos, mas, tal apreciação tem caráter mais geral e deve ser entendida como uma referência crítica a outras temáticas e/ou autores. A ênfase no caso mencionado se reporta ao fato de que a abordagem sistêmica com base na oposição metrópole/colônia como determinante explicativo não possibilitou uma leitura mais acurada de processos específicos de desenvolvimento que o país vivenciou, chamando atenção para sua diferenciação regional ou mesmo local, o que nos leva à segunda dimensão que queremos destacar.

Brasilia, capital do Brasil

Trata-se da perspectiva de ver na hipertrofia do Estado na história brasileira não um modelo de afirmação ou condenação, mas uma história eivada de ambiguidade ou mesmo um paradoxo que acabou gerando um labirinto para as forças políticas que buscam estabelecer projetos de futuro para o país. Acertadamente, Vinicius Müller aponta para o fato de que a centralização do Estado que marca a história brasileira desde o Império passou a ser entendida até hoje como responsável pela má distribuição dos recursos e consequentemente dos determinantes do desenvolvimento regional”. O paradoxo é que esta narrativa imagina que apenas um Estado altamente centralizado seria capaz de inverter esta tendência. Ela trabalha com a noção de que há “uma dívida histórica creditada ao Estado central, dada sua culpa em ter criado as desigualdades regionais a partir de seu arbitrário comportamento em relaçãà distribuição dos recursos e incentivos públicos. Müller nos alerta para o fato de que alguns trabalhos começam a chamar a atenção para o fato de que os descaminhos e entraves do nosso desenvolvimento residem também no modo como os poderes locais se comportam frente aquilo que a eles cabia ou lhes cabe hoje, ou seja, a oferta, a qualidade e o alcance de bens públicos que são transferidos para seu gerenciamento e aplicação. O que envolve analisar dimensões políticas e administrativas locais e regionais nem sempre relevadas como importantes ou mesmo como elementos explicativos para nossos problemas de desenvolvimento.

Haveria muito mais a explorar a respeito destes e de outros pontos apresentados nesta coletânea. Em cada um dos pequenos ensaios que a compõe há o grande mérito de buscar, por meio do debate intelectual, compreender as incompletudes e os déficits da nossa formação nacional. Não é sem razão que aqui se convoca o passado para pensar o nosso presente como História.

(Publicado originalmente como Prefácio ao livro de Vinícius Müller, A História como Presente – 46 pequenos ensaios sobre a História, seus caminhos e meios. Brasília: FAP, 2020)


Blog Horizontes Democráticos

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Alberto Aggio: Sobre o artigo de Hamilton Mourão

Em relação ao sentido político do artigo do vice-presidente Hamilton Mourão [O Estado de S. Paulo, 14 de maio], creio que se deverá especular muito sobre o seu sentido diretamente político, ou seja, de conjuntura e de ação política. O ambiente bolsonarista instaurou uma "guerra de movimento" em que o confronto é o tom mais habitual (no mesmo 14 de maio, Bolsonaro foi explícito ao falar com empresários contra o governador de São Paulo João Doria: "É guerra").

A complexidade da situação pode ser mobilizada sugerindo que, em certo sentido, Mourão revela que sob o bolsonarismo estaríamos imersos naquela metáfora dos "45 cavaleiros húngaros" comentada por Gramsci em referência a situações abertas ou que são maturadas para um possível assalto ao poder por parte de um grupo minoritário [cf. o texto de Gramsci no post abaixo]. A fala de "um jipe, um cabo e um soldado para fechar o STF", pronunciada pelo Eduardo Bolsonaro, bem como os “300 de Brasília” são exemplares dessa situação.
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O artigo de Mourão faz, no essencial, uma defesa do governo e cita várias vezes os "pais fundadores" do federalismo norte-americano. É possível especular sobre as fontes, sua validade, correção ou mesmo instrumentalização. Mas é preciso considerar que o artigo tem nível e Bolsonaro seria incapaz de escrever algo minimamente similar.

Bastante preocupante talvez seja aquilo que se pode inferir em termos de ação política, ou seja, a ênfase de que as FFAA, que foram colocadas por Bolsonaro para dentro do sistema político, parece que serão os principais atores a resolver a nossa profunda e enorme crise, já que o autor condena veementemente a imprensa e os outros poderes, notadamente o judiciário, além de eximir inteiramente o presidente de qualquer responsabilidade. Mourão sugere que as FFAA são "o ator" capaz de, novamente, salvar o Brasil de "tanto mal" que se faz contra o País. Creio que Mourão alerta para o fato de que está se aproximando o momento em que as FFAA terão que cumprir, novamente, um papel estabilizador: nem Bolsonaro nem as forças de oposição a ele. Podem até manter Bolsonaro (que terá que pagar o seu preço), mas se abrirá uma luta interna forte entre grupos militares.

O artigo de Mourão seria destinado aos generais que estão no governo, seria uma advertência para salvá-los, ao mesmo tempo que indicaria um caminho para salvar as FFAA de um desenlace desastroso deste governo. No fundo, Mourão adverte que há possibilidade de salvar o país: com eles no comando. Se vai se dar por um golpe clássico ou não, só se saberá no momento certo. Creio que nessa hipótese de análise do artigo de Mourão o País poderia deixar o clima de "45 cavaleiros húngaros", que é o movimento de Bolsonaro, para entrar numa lógica mais próxima daquela do regime militar brasileiro.

No essencial, o artigo é, por ora, uma advertência. Mas pode-se depreender um sentido maior: sair da guerra de movimento, da lógica que levaria inevitavelmente aos "45 cavaleiros húngaros". Os atores para isso são os militares. Não há outra sugestão no artigo, nem mesmo a presidência da República: Bolsonaro não é sequer mencionado. Creio que, de acordo com Mourão, os militares assumiriam o poder diretamente, com ou sem Bolsonaro, e não seriam moderadores. Esse seria o preço a ser pago por Bolsonaro. Por ora, há uma advertência, mais à frente pode-se montar as condições para isso. Talvez aí Bolsonaro pague o preço para não ser defenestrado. E, com certeza, essa história não terminaria assim.

*Alberto Aggio, historiador é professor titular da Unesp


Alberto Aggio: Isso é Bolsonaro

Com recessão à porta, presidente combate as lideranças que ameaçam seu caminho para 2022

É traço comum das análises sobre o Brasil atual buscar entender o que melhor caracterizaria Jair Bolsonaro e seu governo. Bolsonaro é efetivamente um personagem singular, minimamente letrado, um tanto tosco, que numa circunstância especialíssima chegou à Presidência da República. Não estaria errada essa descrição, mesmo reconhecendo sua insuficiência.

Dizer que ele representa os militares seria uma generalização absurda e um desprestígio da categoria. Os militares compõem uma camada intelectual de relevância incontestável para o Estado brasileiro. Como se sabe, Bolsonaro foi afastado do Exército por indisciplina. Tornou-se político profissional com votos da corporação militar por longos 28 anos. Como parlamentar e agora como presidente permanece um defensor das demandas dos militares – vide a reforma da Previdência. É certo que recheou o Ministério com muitos deles, o que não garantiu identidade absoluta entre o presidente e os militares convidados.

Não há novidade também na caracterização de Bolsonaro como representante da extrema direita. Não apenas ele, mas seus filhos – igualmente políticos profissionais, vale ressaltar – não escondem isso de ninguém, até mesmo as ligações internacionais com essa corrente política. Tal posição, distinta de outras correntes e personalidades desse campo, acabou por definir mais precisamente Bolsonaro como expressão de uma facção da direita que tem cultivado um comportamento fascistizante.

O presidente não abre mão de concentrar em si a narrativa e a estratégia de seu governo. Embora em ambas não haja um programa determinado, coerente e sistêmico, que ele faça questão de explicitar. Mas há uma ênfase digna de menção: a persona (o “mito”) sobrepõe-se ao governo e por isso a dimensão pessoal está sempre à frente da institucional, no limite do decoro. A pessoalização existe, porém, sem nenhum afeto, nem o maneirismo típico da nossa tradição ibero-americana. A Bolsonaro não interessa o savoir-faire da política, as gentilezas com outros atores, mesmo com possíveis aliados.

Ele modula seu comportamento pelo que entende ser o jogo duro do poder. E para isso adota o método do confronto permanente, pondo sempre em relevo as discrepâncias ideológicas no lugar das soluções para os problemas da Nação. A confrontação é essencial para sua estratégia de manter o apoio de parcela significativa do eleitorado, rumo à reeleição de 2022.

Tudo isso lhe garantiu a iniciativa política até aqui. Mas 2020 começou mal para ele e para todos nós. A divulgação do “pibinho” (1,1%) de 2019, a disparada do dólar, a fuga de investimentos e, por fim, o ingresso do Brasil na pandemia do covid-19 alteraram o cenário. A pandemia jogou Bolsonaro nas cordas, fazendo-o perder a iniciativa política. Em poucos dias deu mostras de faltar-lhe o chão e de que sua estratégia maior poderia estar comprometida.

Desde então as ações do presidente visam à recuperação da iniciativa perdida. Com parte da sua equipe contaminada pelo vírus, Bolsonaro lançou-se numa escalada desesperada: não hesitou em cumprimentar os poucos manifestantes que pediam o fechamento do Congresso e do STF. Em seguida, com declarações estapafúrdias, atacou os governadores que determinaram o isolamento social para conter o avanço da epidemia. Essa atitude produziu uma fratura na estrutura federativa do País, criando embate institucional, desorientação política, além de complicar o combate à pandemia.

Mesmo na defensiva, Bolsonaro tenta manter a opção por uma “guerra de movimento” definida desde a campanha e a posse, cujo objetivo é destruir a democracia da Carta Constitucional de 1988 e implantar um regime iliberal no Brasil. Essa espécie de “revolução reacionária” levada em fogo brando (sem violência aguda, até o momento) não pode parar até as eleições de 2022. É nela que Bolsonaro imagina consolidar sua legitimidade e impor ao País uma “nova hegemonia”, não mais com os valores e ideias da “esquerda”. Para ele 2022 é o turning point.

Mas até lá haverá muita turbulência. O certo é que, para confrontar o frágil reformismo liberal-democrático que marcou a trajetória do País desde o fim da ditadura, Bolsonaro não cederá à “guerra de posições”. Em sua avaliação, esse é um ambiente hostil. No limite, poderia fazê-lo, mas imagina que estaria compactuando com um modelo que, segundo ele, marcou os governos dos presidentes que o antecederam, com custos e problemas que não saberia gerenciar.

Diante da pandemia, Bolsonaro age com mão pesada: escanteia governadores e prefeitos, desafia orientações epidemiológicas, desestrutura a federação e tensiona ao limite a relação com o Congresso. Mas não ganha nenhuma posição. Busca resgatar sua “guerra de movimento” e colocar nas ruas os que o apoiam incondicionalmente, pouco se importando em ver o País à beira da conflagração.

Com a recessão às portas, o que pode comprometer sua reeleição, Bolsonaro visa a combater as lideranças que ameaçam seu caminho rumo a 2022. Isso é Bolsonaro.

*Historiador, é professor titular da Unesp


Alberto Aggio: Um Gramsci para o século XXI

O livro de Marcus Vinicius Oliveira, versão revisada de sua tese de doutorado, tem uma qualidade notável que se observa de imediato. Ao se fixar na leitura do texto original dos Quaderni del Carcere, escritos por Antonio Gramsci nas prisões do fascismo, o autor esclarece de saída que eles se transformam em “obra” por meio das várias edições a que foi submetido desde o final da Segunda Grande Guerra. Levar isso em conta já é um grande mérito porque compreende claramente sua principal fonte de pesquisa e exploração reflexiva além de estabelecer um critério de interpretação historiográfica hoje considerado absolutamente necessário para o entendimento do pensamento de Gramsci.

Como se sabe, Gramsci nunca publicou um livro em vida e seus escritos foram, por escolha dos seus editores, primeiramente publicados a partir de temas que se entrecruzavam nos Quaderni, para só depois, na década de 1970, ganharem uma “edição crítica” que buscou acompanhar a cronologia da escritura gramsciana. Hoje, os Quaderni, junto a outros textos e cartas de Gramsci, estão sendo organizados na denominada “edição nacional”, que já conta com alguns volumes publicados na Itália. Para Marcus Vinicius, os editores, os estudiosos e os comentadores de Gramsci formam o conjunto de “intelectuais mediadores” que deram vida à difusão do pensamento de Gramsci e são tratados com a distância e a importância historiográfica que têm cada um deles.

Por essa razão, a pesquisa que subsidia a tese e o livro não teria como deixar de levar em conta as atuais correntes interpretativas do pensamento de Gramsci, relevando tanto a leitura filológica do pensador sardo, que enfatiza a compreensão dos seus conceitos no ato da escritura, quanto o viés de “historicismo integral” que procurou analisar simultaneamente pensamento e vida como a interpretação mais profícua de Gramsci, fazendo jus ao líder político do comunismo italiano, primeiro, para em seguida aloca-lo no corpo dos pensadores democráticos do século XX.

Situando o debate nesses termos, Marcus Vinícius assume a perspectiva de um diálogo entre filologia e historicismo integral. Também não esconde sua permanente intenção de convocar Gramsci para a grande discussão dos dilemas políticos da nossa contemporaneidade, centrada nas temáticas da interdependência e do cosmopolitismo, dois vetores essenciais para a compreensão e o enfrentamento dos conflitos e dos desafios de um mundo globalizado.

Feita essa opção, o autor não prescindiu, em momento algum, de enfatizar o caráter aberto do texto gramsciano, reconhecidamente uma das razões da grandeza do seu pensamento. Um outro aspecto importante é que não há no livro a perspectiva, como se fez no passado, de procurar extrair do pensamento de Gramsci orientações imediatas para a ação política ou então concepções de mundo integrais sobre a moral e a cultura, a sociedade e a história, o que invariavelmente produz operações reducionistas. É preciso enfatizar, assim, que o autor comunga a ideia da impossibilidade de se pensar em um gramscismo como sistema ou esquema que deveria ser seguido por seus supostos adeptos. O pensamento de Gramsci efetivamente não se presta a isso. Criteriosamente, ao contrário, pode-se notar que está presente em cada passagem do livro a advertência para o fato de que a grandeza do pensamento de Gramsci encontra-se muito distante de qualquer esquema ideológico predeterminado. O que possibilitou ao autor uma orientação metodológica no sentido de compreender e tratar o próprio caráter fragmentário e inacabado do texto gramsciano como um signo da abertura, em sentido produtivo.

Entretanto, é preciso chamar atenção para algumas tentações às quais o nosso autor procura não se deixar seduzir. No livro, não há sinais daquele Gramsci interpretado como homem exclusivamente vinculado à cultura, fora da política, ou como um personagem “aprisionado” na cultura heróica do movimento comunista. Mesmo porque, em relação a esta última imagem cristalizada de Gramsci, hoje já se sabe das dissensões entre Gramsci e a Internacional Comunista (IC), dentre elas a discrepância frente à proposição de luta por uma Constituinte contra o fascismo. A IC buscava fomentar a revolução proletária na Itália como processo simultâneo e sucessivo à derrubada do fascismo enquanto Gramsci projetava uma estratégia de luta democrática para derrotar o fascismo a partir da conquista de uma Constituinte que reunificasse a Nação. É relevante esse aspecto uma vez que explica o isolamento de Gramsci não apenas motivado por sua prisão pelo fascismo, mas por uma “condenação” da IC, desde 1929, em relação à sua proposta de uma Constituinte para a Itália.

Visto sob esse aspecto essencial, há um pressuposto que deve ser assumido de forma límpida: mesmo sendo Gramsci um intelectual-político vinculado ao comunismo histórico, seu pensamento deve ser tratado a partir de uma posição de autonomia em relação ao movimento comunista de sua época e especialmente daquele que se seguiu a ela. Por muito tempo se pensou numa relação estreita e reiterativa entre Gramsci e o comunismo, apesar de reconhecida sua especificidade no interior daquele movimento. Nesta perspectiva, Gramsci deveria ser lido como um pensamento caudatário do desenvolvimento do marxismo revolucionário mundial, reservando a ele um lugar especial em torno da reflexão a respeito da estratégia revolucionária nos países centrais do desenvolvimento capitalista. Relevado como “teórico da revolução” nos países avançados, isto é, como um teórico do “Estado ampliado” ou da “revolução processual”, esse Gramsci perderia os elementos de inquietação intelectual que marcam um texto escrito não somente numa situação-limite como também obcecado em buscar o entendimento de como enfrentar as novíssimas configurações do novo mundo que se descortinava no seu tempo.

É esta perspectiva analítica que dá viço ao livro de Marcus Vinicius, acompanhando o percurso realizado por alguns estudiosos de Gramsci que procuraram buscar efetivamente sua originalidade, especialmente quando enfatiza que nos Quaderni havia o reconhecimento de que o século XX havia presenciado uma emergência de massas jamais vista em qualquer época da história. Gramsci seria assim um pensador que havia assimilado produtivamente essa grande mudança, tornando-a presente, de forma permanente em toda sua reflexão. Nesse quadro, a revolução bolchevique havia sido, antes de tudo, uma revelação da até então desconhecida possibilidade de ação das massas, mas depois desse momento a questão da revolução se havia complicado em termos reais. Na linguagem gramsciana, as ações dos dominantes também sofreriam uma inflexão em relação às massas, revelando que os métodos exclusivamente repressivos não eram mais seguros, sendo necessário acolher, responder e controlar suas demandas e reivindicações. É desse reconhecimento que nasce em Gramsci o conceito de “revolução passiva” que, por sua vez, iria estimulá-lo a pensar na necessidade de um novo tipo de direção política e intelectual, que assumisse a política como elaboração positiva e de reconstrução consensual da ação e da estratégia dos setores subalternos.

O conceito de “revolução passiva” em Gramsci seria a abertura para uma nova concepção de política que se apresentasse de forma produtiva e com capacidade de intervenção nesse novo cenário. Propositalmente polêmico, o conceito de “revolução passiva” não era assumido por Gramsci como um programa político, mas se configurava como a referência analítica e o instrumento de conhecimento mais importante de toda sua obra. Por meio dele se poderia compreender não apenas o movimento da transição para a ordem burguesa, mas também sua universalização, ultrapassando a interpretação de que esses processos teriam, como dimensão empírica, apenas o paradigma clássico da revolução francesa. É, nesse sentido, que Gramsci irá anotar que o americanismo – pela hegemonia da fábrica – se apresentava como a modalidade de revolução passiva típica do capitalismo maduro, uma expressão de racionalidade integral com enorme capacidade de universalização. Na Europa, a política realizaria, de muitas maneiras, a intermediação entre as classes do mundo produtivo. Nos países retardatários – não apenas europeus –, avançava-se em direção ao moderno por meio de uma superestrutura que se colocava à frente dos movimentos da infraestrutura, compensando a defasagem que os caracterizava frente aos países de capitalismo maduro. Em todos esses cenários, contudo, haveria saltos e processos moleculares. Seriam modalidades especificas de revolução passiva que teriam vigência histórica, condicionariam e determinariam fortemente os processos de generalização do capitalismo e da ordem burguesa. Muitos desses processos históricos, fracassados ou não (como o fascismo), iriam marcar profundamente as sociedades contemporâneas que vivenciariam, mais à frente, a passagem do século XX para o século XXI.

Conforme nos explica Marcus Vinícius em seu belo livro, a integridade do categorial gramsciano somente pode ser bem compreendida por meio da mobilização das ferramentas de estudo da história do pensamento político. Trata-se de uma escolha feliz para acompanhar os movimentos criativos e de ruptura que se encontram nos Quaderni, dando sustentação para a historicização das inovações conceituais da hegemonia, da revolução passiva e da filosofia da praxis, seus conceitos basilares.

Um dos tratamentos inovadores deste livro e que compõe um dos referentes do seu título é o fato de Marcus Vinícius considerar o texto gramsciano como um conjunto de “fractais”, em “constante mutação” e gerador de uma “nova consciência histórica”. Para o autor, ancorado em Marx, mas sem reiterá-lo, Gramsci ultrapassa efetivamente o marxismo e o bolchevismo na medida em que seus conceitos são deduzidos do diagnóstico histórico a respeito da transformação morfológica que havia ocorrido entre o final do século XIX e inicio do século XX, principalmente na Europa e nos EUA, exigindo que história e política passassem a ser pensadas “fora do paradigma revolucionário”. Mediante essa operação Gramsci vai se tornar “o político e o intelectual da hegemonia, pensando a política, a democracia e o consenso como formas de transformação histórica”. Assim, depois de ter descoberto o sentido e a dinâmica das estruturas em que se assentou o século XX, o autor sugere que Gramsci tenha aberto a nós a possibilidade de pensarmos, de forma similar, o mesmo para o século XXI.

Assumidamente polêmico, o livro que o leitor tem em mãos é um convite à reflexão, aberta e profunda, a respeito de um pensamento que pertence rigorosamente ao nosso tempo.

 


Alberto Aggio: Há resistências à “guerra de movimento” de Bolsonaro

Paulo Guedes, ministro da Economia do Governo Bolsonaro, se inspira no ditador Augusto Pinochet

Creio que sejam necessários alguns referenciais para compreender a conjuntura política em curso, pelo menos em sua linhas gerais. O centro da conjuntura passa pelas iniciativas permanentes e recorrentes do governo Jair Bolsonaro. É ele quem tem a ofensiva, no momento. O seu método é equivalente a uma “guerra de movimento” (para usar aqui o categorial gramsciano), com objetivos no curto e no longo prazo.

Embora o cenário mundial e nacional seja mais propício à “guerra de posições”, Bolsonaro escolheu a primeira porque se imagina dotado de um “programa” geral de alteração das perspectivas por onde o Ocidente trilhou o estabelecimento e consolidação de uma sociedade democrática. As oposições e a sociedade civil permanecem, por ora, em atitude de “resistência” e, portanto, na defensiva, mas realizam uma “guerra de posições”, em termos políticos e organizativos que poderá se consolidar e dar frutos.

A “guerra de movimento” de Bolsonaro pode ser sinteticamente vista como o que se convencionou chamar de “bolsonarismo” e seu objetivo maior é a alteração do regime político democrático no Brasil. O bolsonarismo é uma especie de pinochetismo meio torto em situação democrática. Não nasceu de um golpe de Estado e, portanto, não pode ter domínio de todo o Estado e da sociedade, mas seu movimento tem precisamente o sentido de estabelecer um regime político iliberal no Brasil. Evitar esse desfecho é essencial para a manutenção da democracia. Cada contenda com o governo tem esse preciso sentido. Talvez o episódio de manifestação de caráter abertamente nazista tenha sido o ápice desse embate. Mas, certamente, seguirão outros.

A movimentação de Bolsonaro é incessante e não tem como ser diferente. As parcas vitórias do governo em termos econômicos não são alçadas como elementos centrais pelo próprio presidente. As razões para isso estão nessa estratégia de “guerra de movimento” e não de “posições”. Os blefes de Bolsonaro em relação a Sergio Moro, Ministro da Justiça, fazem parte da mesma estratégia. Pode ser que Bolsonaro tenha que mudar sua orientação geral, mas isso é bastante improvável.

No final do livro de Thaís Oyama, Tormenta (Companhia das Letras, 2020) no qual a jornalista narra, com competência, momentos significativos do primeiro ano do governo Bolsonaro, a impressão exposta ao final não deixa de revelar a estratégia do presidente. Escreve a jornalista: “No final do primeiro ano de mandato, os lábios de Jair Bolsonaro não tremiam mais, nem seus olhos se movimentavam nervosos de um lado para o outro. Estavam fixos em 2022” (p. 211). Curiosamente, me detive nesse ponto. O final do artigo que escrevi para a revista Política Democrática On-line n. 15 (FAP, no prelo) carrega sentido similar. No inicio de janeiro, quando mandei o artigo ao editor, finalizava o texto da seguinte maneira: ” O “ano 1” de Bolsonaro está focado no segundo mandato. Ele precisa desesperadamente da sua reeleição. Para isso quer nos manter estacionados politicamente em 2018″.

Ao que parece, os anos seguintes de Bolsonaro serão mais do mesmo: movimento incessante de sentido reacionário, errático, mas controlado; atropelos na governança que exigirão reformas tópicas, com substituições aleatórias; blefes e recuos; e que a economia siga sua recuperação estabilizadora – mais do que isso, não é o objetivo deste governo.


Alberto Aggio: O populismo com as lentes de Gramsci

O video registra a minha exposição no Seminário Internacional Egemonia e Modernità – il pensiero di Gramsci in Italia e nella Cultura Internazionale, realizado em Roma entre 18 e 20 de maio de 2017. Nessa exposição procuro refletir sobre o conceito de populismo sugerindo que o conceito de “revolução passiva”, presente nos Cadernos do Cárcere, escritos por Gramsci nas prisões do fascismo, poderia ser altamente produtivo na análise daquilo que se convencionou chamar de a “era do populismo” na América Latina.

O texto completo da exposição encontra-se publicado no capitulo 10 do livro Itinerários para uma esquerda democrática, cuja referência de acesso também está aqui no Blog, na seção “Livros”.

 

https://youtu.be/2XJCbRNrq7E


Alberto Aggio: As lacunas e os equívocos de Marcos Nobre

Marcos Nobre é um ensaísta cada vez mais requisitado pela mídia. Seus méritos acadêmicos são inquestionáveis. Contudo, no plano da análise política nem sempre estou de acordo com ele. O artigo “Contagem Regressiva” (veja aqui) que ele publica na revista Piauí (edição 159, dezembro de 2019; indicado abaixo) evidencia mais uma vez muitos desacordos. O principal deles é que sua referência maior para o “campo democrático” é a oposição ao governo Bolsonaro por ser este “contra a democracia”. Estamos de acordo com essa formulação. No entanto, ela ilude e não apreende a realidade política como ela realmente é. Na nossa concepção, o “campo democrático” tem também a tarefa de combater também o partido (e suas lideranças) que criou um sistema de corrupção jamais visto na nossa história, o que comprometeu profundamente a crença da sociedade na política democrática. E isso, sem dúvida, abriu passagem para a vitória de Bolsonaro e a afirmação do Bolsonarismo.

Essa leitura não é sequer considerada na análise de Marcos Nobre. Dai fica difícil apreender a situação como realmente ela se mostra. Nobre chancela a posição de Lula ao rejeitar o pedido de autocrítica do PT. Esse posicionamento do analista anula qualquer possibilidade de conversa entre forças democráticas. Aliás, em nenhum momento o PT é responsável pela crise em que estamos metidos como país. Na leitura do artigo, o lugar do centro vem na fala de Jorge Bornhausen e isso me parece injustificadamente provocador não fosse absolutamente lacunar.

A menção a Luiz Carlos Prestes e ao PCB é outra provocação que somente quem não tem conhecimento básico da história das forças políticas do campo democrático aceita de bom grado. A opção desta linhagem política é por uma “frente democrática”, defendida por Roberto Freire, presidente do Cidadania, que nem sequer é mencionada – e mereceria, para dar algum sentido à ideia de “espírito de urgência”, de que fala o autor, na construção de uma suposta “concertação democrática”.

Aliás, Nobre pensa que a defesa de cada um dos “terços” que divide as forças políticas no Brasil, pelas forças de esquerda e de centro-direita, é inteiramente negativa, por ser defensiva em relação a Bolsonaro. Ora, a política de “frente” também é defensiva; o que ele propões como “concertação” não deixa de ser defensiva em relação a Bolsonaro; é apenas ofensiva em relação aos propósitos do PT, que é de reconquista do poder pela via eleitoral (mas isso Nobre não diz).

Por qual razão as forças de centro (para Nobre só existe centro-direita)se aliariam hoje com o PT. Não há nenhuma razão para isso, ainda mais com o sentido dos discursos de Lula, cada vez mais afirmativo do partido e dele mesmo, muito distante da ideia de “concertação”. Ao final, Nobre fala em DR (discussão da relação) no campo democrático. Mas creio que antes disso, faltam anos de terapia para intelectuais como ele possam repensar a trajetória petista e o mal que ela fez para a política democrática.

Fora disso, não vejo saída, a não ser construir um centro democrático e progressista animado por uma esquerda democrática que, com clareza, possa competir eleitoralmente contra o Bolsonarismo (que é a guerra de movimento de Bolsonaro) e o lulopetismo. (Blog do Aggio)

*Alberto Aggio, historiador e professor da Unesp (Universidade Estadual Paulista)


Alberto Aggio: Aporias da ‘frente democrática’

A competição eleitoral não deverá obstar uma unidade reformista em favor da Nação

A queda de popularidade do presidente Jair Bolsonaro fez com que se abrissem especulações a propósito do quadro sucessório, que, por sinal, ainda vai longe. Diante das dificuldades de governança cada vez mais evidentes, o próprio presidente não se furtou a estimular o desvelamento do quadro de oponentes, fosse ele composto pelo que resta da oposição derrotada na eleição que lhe garantiu o poder ou por aqueles que, vendo os problemas de largo calado do governo, passaram a buscar um espaço para iniciar a órbita em direção a uma possível candidatura futura.

Sem um projeto claro a perseguir como marca de seu governo, além da confusa intenção de destruir o que “a esquerda impôs ao País” durante as três últimas décadas, a Bolsonaro interessa que a questão eleitoral permaneça flutuando como tema a possibilitar-lhe uma contraposição retórica com seus possíveis adversários. Sua sucessão passou a ser um instrumento usado pelo presidente para medir a temperatura em relação aos seus apoios, sem necessitar, mais uma vez, ceder à articulação com o mundo político. Bolsonaro continua investindo suas fichas nas correias de transmissão que lhe garantiram a vitória eleitoral, com prevalência nas redes sociais.

Permanecer com o porcentual de apoio que lhe garanta a passagem para o segundo turno em 2022 parece ser o objetivo que está por trás dessa estratégia.

Ao admitir que disputará sua própria sucessão, contraditando discurso de campanha, quando defendeu o fim da reeleição, Bolsonaro aferra-se à ideia de que o melhor cenário seria não permitir o surgimento de novos postulantes, consolidando a contraposição eleitoral com o PT, o que lhe garante um público cativo e, supostamente, poderia dar-lhe novamente a vitória. Contudo, como se viu, emergiram alguns nomes, uns mais e outros menos abertamente, que procuraram aproveitar-se da oportunidade para se colocarem como protagonistas dessa precoce contenda. No cenário que se instalou, podem-se identificar alguns “dissidentes” em velada campanha. Outros, na oposição derrotada, pleiteiam uma nova identidade para esse campo, mas há ainda aqueles que acalentam uma confrontação entre “mitos” e continuam a reiterar os velhos bordões de antes. De novidade apenas uma reaparição, até certo ponto esperada, a prometer superar o “último” dos vários “ciclos de erros” vividos pelo país nos últimos tempos.

Em razão da fraqueza da oposição, voltou-se a especular sobre a necessidade de articulação de “frentes” para se contraporem a Bolsonaro. De imediato se propôs uma “frente de esquerda”, antigo mote de uma esquerda ancilosada. Uma opção pela afirmação ideológica e pelo isolamento político, sem nenhuma chance eleitoral verdadeira. De outro lado, fala-se numa “frente democrática”, repondo, de certa maneira, os termos do enfrentamento virtuoso contra a ditadura militar nas décadas de 1970 e 1980. Trata-se de uma proposição mais realista, de memória positiva, bastante complexa nos tempos atuais, que carrega, é preciso dizer, uma certa coloração passadista.

É verdade que foi Bolsonaro quem passou a enfatizar um certo apadrinhamento de seu governo com o regime militar (1964-1984). Mas Bolsonaro expressa mais um setor ou facção reacionária daquele regime do que o seu conjunto. Essencialmente reacionárias, suas declarações e ações políticas guardam um tom de ameaça ao regime democrático da Carta de 1988, o que justificaria a união de forças em defesa da democracia. Sob Bolsonaro boa parte da Nação começa a dar-se conta de que não pode permanecer sob tutela de uma facção insidiosa e deve buscar o diálogo entre diferentes setores político-ideológicos.

No passado, a existência de um “partido-frente”, como foi o MDB, facilitou o sentimento de unidade e a construção daquela “frente democrática”. Atualmente, os partidos e atores políticos estão abertamente em competição eleitoral e isso dificulta a reposição daquele sentimento, bem como sua articulação política num ator relevante. Depois do êxito do PT e de Lula, abriu-se uma fase de “democracia de audiência”, na qual a combinação de interesses com os da mídia, sancionados por pesquisas quase diárias, se estabeleceu como critério decisivo para os atores políticos. Daí partidos e lideranças se terem tornado essencialmente pragmáticos, além de midiáticos, o que acabou por redefinir os termos da competição política. É de perguntar se uma “frente democrática”, baseada numa perspectiva defensiva, encontrará passagem no tipo de política que vivenciamos.

Uma “frente democrática” contra o reacionarismo bolsonarista necessitará apresentar propostas de reformas concretas à Nação, como exposto na entrevista do cientista político José Álvaro Moisés ao Estado (30/9), na qual se postulam temas de qualificação da nossa democracia, como a implantação imediata do voto distrital misto. Certamente outras pautas, de caráter econômico-social, poderiam ser agregadas a essa.

A decisão do STF cancelando a prisão em segunda instância e a soltura de Lula jogam o PT no centro da cena política, complicando mais ainda o quadro eleitoral. Em certo sentido, dá falsas esperanças a uma “frente de esquerda”, que dificilmente se agregará em torno de Lula. Além disso, não dilui a tese da divisão de três terços, acentua a polarização e, por fim, coloca barreiras intransponíveis à fórmula da “frente democrática”.

A rearticulação do centro político em torno de ações políticas renovadoras em sentido democrático talvez seja o novo nome da “frente democrática”. O cenário latino-americano é, como sabemos, de crispação. O Brasil pode se afastar disso forjando um programa comum que se apresente como alternativa a este governo reacionário de facção que aí está. A competição eleitoral, como na Espanha, não deverá obstar uma unidade reformista em favor da Nação, para espantar as divisões e o facciosismo.

 


Alberto Aggio: Lula não pacificará o país

A decisão do STF cancelando a prisão em segunda instância realiza uma intervenção radical na conjuntura política. A soltura de Lula e José Dirceu da prisão, condenados a crimes de corrupção, joga o PT novamente no centro da cena política. Quem imaginava que tudo caminhava morosamente com a divisão de três terços (direita, centro e esquerda) deve ter gostado do resultado da decisão do STF. Isso porque agora o PT sai da defensiva. Não sabemos os movimentos de Bolsonaro. Talvez fique na mesma toada, agitando seus cones ideológicos. O centro deve permanecer no mesmo lugar, em busca de uma identidade mais clara e consolidada para um perfil democrático-liberal, mais progressista ou menos, em oposição aos chamados “dois extremos”.

Pelos discursos dos dois próceres petistas atendidos pela decisão do STF, o PT deve radicalizar sua posição, situando-se em oposição a Bolsonaro (quem imaginava outra coisa estava fora do mundo), mas, mais do que isso. Parece que Lula e o PT irão levantar a bandeira da identidade de “esquerda e socialista”. Com isso, Lula e José Dirceu imaginam que podem “retomar o governo”; na linguagem mais direta de Dirceu: “tomar o poder”. Considerando discursos desse tipo, fica claro que a tal teoria dos três terços, feita para ser superada, não encontrará no PT e em Lula seu algoz já que um discurso assim vai distanciar o PT do centro, necessário para a empreitada de retomada do poder.

Com o PT indo mais à esquerda – sabemos que isso é mais retórica do que outra coisa – revela-se que uma das preocupações de Lula é com o Psol, que cresceu significativamente nesse processo. Trata-se, portanto de uma retomada. Não creio que falar em socialismo a essa altura possa atrair Ciro Gomes e o PDT, aferrados a um nacionalismo ancilosado (o mesmo me parece que se pode dizer do PSB). Essa retomada do discurso petista me parece que só pode vingar nos termos e no campo movediço do lulismo. E ai nós ja sabemos como as coisas se movem, juntando maneirismos e malandragem, no limites, a corrupção. Se não for isso, esquece: não haverá condições de ampliar seus apoios.

Muito provavelmente essa esquerda não se unirá, a não ser pela lógica perversa da corrupção. Outros segmentos de esquerda, a democrática e liberal, está fora de qualquer compromisso como esse e fora desse suposto terço, parte da divisão politica e ideologicamente da sociedade brasileira. Ela ja abandonou qualquer veleidade socialista e não voltará atrás. Esses terços imaginários dificilmente se unirão. A situação também é complicada no campo das direitas e das correntes e partidos ao centro. O futuro de todos eles será decidido democraticamente na competição eleitoral.

Uma coisa é clara. Lula imagina equivocadamente que o tempo passou em vão. Sua libertação ajudará a compreender melhor que a teoria dos três terços só faz sentido dentro de uma lógica de irredutibilidade das estratégias políticas. Ela foi imposta por Bolsonaro e isso lhe garantiu até agora a inciativa política; há grandes cientistas sociais que acreditaram nisso. Mas a realidade não é idêntica a esse desejo, o Brasil é mais complexo. A libertação de Lula ajudará a colocar por terra também a tese de que com Lula na prisão o país não encontraria paz. Como se pode ver pelos discursos dos próceres que estão no centro da cena, trata-se de uma sandice, bem ao gosto do Sr. Fernando Haddad.

Lula não pacificará o Brasil. Bolsonaro é a antítese da paz e da democracia. O Brasil precisa encontrar um rumo novo.


Alberto Aggio || Um lugar errado no mundo

Um nacionalismo anacrônico manchado de reacionarismo não nos serve

Se com Lula já era claro que a política interna vivia fortes condicionamentos externos, particularmente no que se refere a uma inserção do País na globalização, marcada por tensões ideológicas, sem considerar o nível de criminalização que em paralelo se praticou, com o governo Bolsonaro, excetuando aparentemente esta última ponderação, a dimensão internacional parece ser inescapável. O episódio da indicação do filho, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), é ilustrativo dessa evidência.

Com Bolsonaro acentua-se a percepção de que nos encontramos imersos naquilo que Giuseppe Vacca define como “conflito econômico mundial”, uma situação sistêmica que caracteriza o mundo desde a superação da guerra fria, posicionando-nos definitivamente no tempo da globalização. Trata-se de um conflito perene e global que envolve múltiplos atores em torno de decisões geopolíticas, econômico-financeiras, do mundo do trabalho e da cultura, questões tecnológicas, ambientais, etc.

Torna-se conveniente, assim, analisar o governo Bolsonaro a partir dessa perspectiva. Seu nacionalismo e seu notável reacionarismo são equivalentes ao que ocorre em diversos países e traduzem o lugar que Bolsonaro vê para o Brasil no contexto global. O que se apresenta nos EUA sob Trump ou na Hungria sob Orbán tem lógica similar aos posicionamentos de Bolsonaro, embora este possa talvez ser considerado o mais despreparado dentre tais líderes, tanto em termos pessoais como de assessoria imediata.

O momento que vivemos não recoloca na agenda mundial o retorno da guerra fria, mesmo porque não há duas potências orientando os vetores do “conflito econômico mundial”. A guerra fria foi um conflito forjado de dentro para fora das duas potências rivais, os Estados Unidos e a União Soviética, e representou um equívoco de ambas, já que nenhuma delas seria capaz de suplantar a outra e estabelecer um domínio efetivo a partir de uma suposta vitória militar sobre a adversária (G. Vacca, La Sfida de Gorbaciov – Guerra e Pace nell’Era Globale, no prelo).

Parece não haver espaço também para outros retornos cultivados no imaginário de muitos que ambicionam combater a extrema direita como um conflito do tipo “comunismo versus fascismo” – por evidente anacronismo, além do erro de avaliação que julgava ser tal disjuntiva a única alternativa que existia na década de 1930 –, ou uma confrontação do tipo “frente popular versus nazi-fascismo”, como sucedeu no século passado.

O bipolarismo morreu com a guerra fria, mas um multilateralismo compartilhado pelos principais países ainda não se consumou. O momento evidencia um avanço da extrema direita, até mesmo com a formação de entidades autônomas de orientação internacional de que participam representantes do governo Bolsonaro. Na outra ponta há forte desorientação da esquerda, com inclinações incompreensíveis para uma política de autoisolamento; a exceção surpreendente fica por conta da esquerda dita tradicional, que tem buscado uma renovação, ainda precária e inicial, mas que já dá alguns frutos, como os avanços eleitorais da social-democracia em alguns países europeus. Liberais, conservadores e liberal-democráticos vivem cada um sua própria crise, fustigados pelo iliberalismo da extrema direita, que põe em xeque os fundamentos da democracia liberal representativa. Nas recentes eleições europeias, a novidade foi a emergência de núcleos ecológicos, especialmente os verdes alemães, que difusamente atuam em busca de expressivas alternativas futuras, mas sem ainda alcançar capacidade orgânica e/ou institucional de se conformarem num peso forte no cenário mundial.

Mesmo de forma errática, Bolsonaro se posiciona claramente contra o globalismo e, pela via de um nacionalismo anacrônico, aposta na sua capacidade de anular a dinâmica e os efeitos da globalização entre nós. Trata-se de um equívoco: não há país que possa ficar de fora do “conflito econômico mundial”, que se expressa de forma global. O alinhamento ativo diante dessas circunstâncias – que Bolsonaro por seu viés ideológico de extrema direita não contempla – é a defesa de uma perspectiva de cooperação entre os países, advinda de uma nova orientação estratégica, isto é, de uma política de interdependência que favoreça a convivência entre diferentes e a busca de um destino comum para a humanidade. O regressismo de Bolsonaro é uma escolha que leva o País para o pior dos lados do “conflito econômico mundial”, numa posição subalterna ao atual governo norte-americano, além de vinculá-lo ao que há de mais reacionário na política europeia.

Por um lado, é inútil afirmar uma visão apologética ou catastrófica do novo cenário criado pela globalização. Por outro, no caso brasileiro não se trata apenas de retomar uma política externa equilibrada, uma das marcas da nossa História diplomática, mas de enfrentar politicamente o “conflito econômico mundial” e apresentar ao mundo uma orientação nova diante de um cenário novo. O passado pode, certamente, nos ajudar, mas não será a chave para um futuro de ampla cooperação, suplantando os vetores ideológicos.

É preciso politizar, em termos democráticos, tanto externa quanto internamente, o quadro de conflitos que se estabelece no mundo atual. Isso significa superar a noção tantas vezes mencionada de que vivemos um tempo em que “a política está morta”. Ao contrário, é preciso ultrapassar a antiga noção territorial de soberania nacional e buscar uma perspectiva inovadora para conectar cidadania, nação, interdependência e cooperação. E, com isso, avançar no sentido de recolocar a modernidade em novos termos, com seus ricos avanços e aberturas ilimitadas a novas subjetividades.

O regresso a um nacionalismo anacrônico manchado de reacionarismo não nos serve e pode malograr todas as expectativas de um lugar generoso no mundo para os brasileiros.

*Historiador, é professor titular da UNESP


Alberto Aggio: Do fantasma Pinochet ao risco Savonarola

Bolsonaro mantém seus apoios, mas já vê uma parte deles fugir por entre os dedos

Não foi preciso esperar cem dias para se admitir que os brasileiros elegeram um líder político com agudas dificuldades para o exercício do posto maior da República. Desde janeiro os atropelos se seguem, com bate-cabeça de auxiliares, recuo de ministros, demissão de dois deles, vários disse-desdisses do presidente, causando estupefação e desorientação. Tudo isso sem que houvesse influência direta da oposição.

Jair Messias Bolsonaro carrega um passivo de bravatas que lhe rendeu a imagem de homofóbico, racista, antiparlamentar, anti-institucional, antirreformista, antidemocrata, e assim por diante. Essa imagem negativa afeta o presidente da República e parece ser de difícil superação. Mesmo porque Jair Bolsonaro faz questão de se apresentar como o líder de um governo de “destruição” de tudo o que se havia construído nos 30 anos de vigência da Constituição de 1988, durante os quais se implementou, reformou e inovou, tanto quanto possível, o que previa a Carta Magna.

Não há sentido em sustentar a impostura de vincular os governos Fernando Henrique Cardoso ou mesmo os de Lula da Silva ao socialismo. Foram governos de políticas semelhantes e distintas entre si, dentre elas uma inclinação à privatização das empresas públicas e à manutenção do equilíbrio fiscal, pautas liberais que marcam os últimos decênios em nível mundial. Os problemas advindos do modelo de relação do Estado com a economia, que abrange excesso de estatização, controle de preços, hipertrofia fiscal, centralização de recursos, etc., vem de muito antes desses governos, em especial do período militar, que Bolsonaro louva tanto.

Quem bloqueou a adoção do modelo bolivariano no Brasil, que muitos petistas vocalizavam, foram a sociedade, a imprensa, a opinião pública e, em especial, os institutos políticos que emanam da Carta Constitucional de 1988. Isso precisa ficar claro, para que os bolsonaristas percam a ilusão de que foram eles que barraram a continuidade do petismo e também para que não imaginem que será fácil construir no Brasil, a partir da “destruição” a que se refere Bolsonaro, um novo regime político, fazendo sucumbir a nossa institucionalidade democrática perante uma plataforma de tipo iliberal. Bolsonaro admira um Donald Trump iliberal, mas se esquece de que os Estados Unidos permanecem uma democracia liberal institucionalmente consolidada.

Do governo Bolsonaro emanam vetores que se entrecruzam e até se opõem. Os claros e cada vez mais evidentes conflitos entre os generais que compõem o governo (o vice-presidente Hamilton Mourão incluso) e o grupo “palaciano” comandado pelos filhos do presidente, especialmente em relação ao tema da Venezuela, não são de pouca monta e podem provocar uma quebra irreparável na sustentação política do governo.

Mas o ponto mais agudo advém da reforma da Previdência, alcunhada de “Nova Previdência”. O ministro da Economia, Paulo Guedes, faz blague com a noção de “revolução”. Mas se a inspiração de Paulo Guedes é Chicago e sua aplicação no Chile de Augusto Pinochet, não deixa de haver sentido. Pinochet liderou uma “revolução neoliberal” inversa ao programa socialista em vigor nos anos de Salvador Allende.

Enquanto Pinochet vocalizava que seu governo “não tinha prazos, mas metas”, seus ministros e intelectuais falavam de “revolução silenciosa”. Não há que estranhar a obsessão com a palavra. Contudo o cenário brasileiro é de democracia, sustentada pela Carta Constitucional e suas instituições, situação inteiramente distinta da do Chile nos anos Pinochet.

Imaginar uma ruptura política no Brasil está, por enquanto, apenas no plano das utopias e os militares parecem pouco inclinados a uma aventura como essa. No governo federal são poucos os que percebem que há que fazer política e que se trata de uma maratona de quatro anos, e não de poucos meses.

Na chamada área dos “costumes” ou mais “ideológica”, na qual predomina uma orientação católica ultramontana combinada com um pentecostalismo radical que se fia na letra da Bíblia como orientação para toda a vida social, institucional, educacional e pessoal – o que carrega uma boa dose de hipocrisia –, o governo Bolsonaro se faz parecer mais com o franquismo e o salazarismo, que tiveram a Igreja Católica como apoiadora essencial, do que com o fascismo e o nazismo, que se fundamentavam mais em dimensões econômicas do moderno.

Há, ainda, uma menção mais remota que se pode fazer, a título de reflexão, ressalvando os anacronismos. Se a dimensão religiosa se fixar como conduta central ou ponto de referência maior do governo, Bolsonaro, por seu evidente plebeísmo, poderá ser aproximado ao monge Girolamo Savonarola, que liderou, em 1494, uma revolta contra o poderio oligárquico dos Médicis em Florença.

Savonarola instaurou uma “República popular” fundada na religião e na condenação das artes e da vida social das elites, que, para ele, representavam a decadência de Florença. Savonarola adotou medidas drásticas, como um índex de livros proibidos e a queima deles em praça pública. Seu destino não foi propriamente feliz. Maquivel, em O Príncipe, diz que Savonarola “fracassou na sua tentativa de reforma quando o povo começou a não lhe dar crédito. E ele não tinha meios para manter firmes aqueles que haviam acreditado, nem para fazer com que os incrédulos acreditassem”.

Eleito democraticamente, Jair Bolsonaro mantém seus apoios, mas já vê uma parte deles fugir por entre os dedos. É ilusória sua fé obsessiva nos milhões de apoiadores das redes sociais, sem articulação política e sem que os resultados econômicos se produzam, e desastrosa sua desconfiança em relação aos membros do seu próprio governo, com exceção dos próprios filhos.