Alberto Aggio: Descaminhos e batalhas do reformismo

A revolta e o rechaço unem duas pontas distantes num combate sem tréguas às reformas

Antes divisor de águas na esquerda e mais recentemente um tema capturado por liberais de todos os matizes, o apelo às reformas sofreu um deslocamento incontestável. Após o fracasso do “comunismo histórico”, as esquerdas fragilizaram-se e o liberalismo tornou-se a nova religião civil. O aprofundamento da crise fiscal favoreceu essa nova posição do liberalismo. Até quando isso vai durar não se sabe e ambos podem naufragar nas águas volumosas da transformação epocal em curso. É um desafio para a política, que lida com o contingente, embora também lhe seja próprio o esforço de fazer previsões.

No entanto, a identificação correlata a esse deslocamento não produziu uma renovação significativa na noção de reformismo, sempre rejeitado em latitudes como as nossas. Em função da vitória da revolução cubana de 1959, o reformismo tornou-se um anátema nas esquerdas latino-americanas e, mesmo hoje, nem sequer é considerado como parte do conjunto de culturas políticas que abrigamos entre nós. À direita as reformas são, em geral, reativas, se não reacionárias, enquanto na miríade de liberais as reformas não buscam nem organicidade nem projeção histórica. São “curativas” ante os desequilíbrios diagnosticados, embora isso não seja pouco. Mas trata-se de um reformismo que dispensa uma visão minimamente elaborada da sociedade que se almeja.

Fala-se muito em reformas, como a previdenciária e a tributária, por exemplo. Mas sem apoio da sociedade não se consegue estruturar um movimento em favor delas. Em passado recente vivemos um arremedo de reformismo, que não pode sequer ser chamado de ensaio, uma vez que nenhuma reforma digna do nome foi implementada. O primeiro caso é ilustrado pelo atual governo, de Michel Temer, e o segundo, pelos governos do lulopetismo. Mas o problema vem de longe.

Nos séculos 19 e 20 a esquerda se dividiu, de forma esquizofrênica, opondo reforma à revolução. Quando admitiu o lugar das reformas em suas estratégias, cujo horizonte mais visível eram os programas de estatização da economia, revelou que ainda concebia a proposição de reformas como antessala da revolução. Os políticos e ideólogos de esquerda que haviam aderido ao sistema da democracia adotavam, em geral, uma espécie de visão revolucionária das reformas. Foi o que se passou tanto com a social-democracia europeia (até o congresso de Godesberg de 1959, quando abandonou o marxismo) quanto com Salvador Allende, no Chile, entre 1970 e 1973. Não à toa, alguns analistas irão qualificá-lo ex post como um “reformista revolucionário”. O fato é que, mesmo com o fim do “comunismo histórico”, do fracasso de Cuba e da tragédia da Venezuela, a sombra da revolução paira sobre a esquerda, fazendo com que ela não tenha claro quais reformas propor e como transformá-las num feixe de referências para sua identidade como sujeito político reformista.

Outro descompasso que assola a esquerda latino-americana, em particular a brasileira, é o de ainda tomar o espaço nacional como referencial exclusivo para elaborar sua perspectiva de ação e seu futuro. Tais esquerdas concebem o “nacional” como ponto de partida e ponto de chegada de suas estratégias em pleno século 21 e em meio à globalização e à revolução tecnológica, que incide de maneira transformadora sobre os espaços econômicos mundiais. No caso brasileiro, defenderam o retorno ao nacional-desenvolvimentismo, acreditando que a partir dessa estratégia seria possível adubar o solo em torno do qual a nossa cultura popular se tornaria um elemento de convergência das supostas “tradições participativas brasileiras”. Nessas “tradições” o reformismo não comparece, nem mesmo aquele expresso no reformismo social do trabalhismo brasileiro. Fica claro, então, que os limites fatais do petismo não derivaram de erros de orientação supostamente premidos por conjunturas difíceis, mas, sim, de concepções que descartaram o reformismo como identidade e as reformas como pautas fundamentais. O suposto reformismo do PT não foi apenas fraco, foi anacrônico e lacunar.

O movimento democrático avançou muito no curso da redemocratização do País, mas formou poucas lideranças novas que o representassem e liderassem reivindicações de caráter reformista em diversos planos. Mais grave do que isso, uma parte dele recusou a lógica dos “construtores de escadas”, preferindo ainda a retórica do “assalto ao céu”, mesmo que tal fabulação se processasse nos quadros da democracia, que tem seus pesos e contrapesos. Por conta disso, o que se vê são jovens cada vez mais frustrados e que só veem possibilidade de participação nos espaços da micropolítica ou se deixam enredar pela antipolítica, que muitas vezes tece em seus espíritos e práticas uma mescla estranha de ódio, revolta e hedonismo individualista.

Haveria que superar conceitos e preconceitos nesta hora e pensar no reformismo como uma estratégia ampla e plural que abrigaria ações incrementais de mudança, sempre no interior dos marcos da democracia. O reformismo trava uma árdua batalha para renovar a si mesmo em meio a ataques do maximalismo de direita, que empastela tudo como sendo “comunista”, e daqueles que, afirmando o caráter histórico da grande transformação como uma época de transição, advogam por uma ruptura com a chamada “lei dos consensos”, que supostamente bloqueia a democracia. Recentemente, foi esse o fulcro do embate eleitoral nos Estados Unidos, na Alemanha e na Itália, que resultou em maiores ou menores derrotas do reformismo.

Revolta e rechaço unem de maneira funcional, mas pouco lógica, duas pontas distantes num combate sem tréguas ao reformismo. E este, por sua vez, deverá jogar sua sorte na sua capacidade de projetar transversalidades programáticas voltadas para as respostas exigidas por uma sociedade globalizada e em transformação permanente. É ainda uma luz para uma história que não está finalizada.


Punto Continenti: Prisão de Lula? Inevitável, diz Alberto Aggio

Em entrevista ao jornalista Rainero Schembri, do portal de notícias Punto Continenti (http://puntocontinenti.it/), da Itália, o professor e historiador Alberto Aggio comenta a prisão do ex-presidente Lula, no último sábado (7). Lula foi condenado a 12 anos e um mês de prisão por corrupção e lavagem de dinheiro.  Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista.

Professor Alberto Aggio, o que se pode dizer da prisão de Lula?
Alberto Aggio - A prisão do Lula é o resultado normal de um país que quer ver preservada a justiça, que quer ver o Brasil como, de fato, um país republicano no qual a lei é igual para todos. É evidente que trata-se de um caso muito particular. Pela primeira vez na história um ex-presidente é julgado, condenado e preso por um crime comum. Lula não é um preso político. Essa é uma narrativa que não se sustenta. Ele negociou ativos de todos os brasileiros, quando era presidente, para benefício próprio. E, esse processo pelo que foi condenado é apenas um deles, há mais processos nesse sentido contra o ex-presidente.

Muitos dizem que a prisão de Lula tem como finalidade evitar que ele participe das próximas eleições presidenciais de outubro próximo, uma vez que Lula aparece na frente das pesquisas. O que o senhor pensa disso?
De fato, há essa coincidência. Lula aparece na frente nas pesquisas. Mas a questão é que os processos contra ele são de crime comum. Não seria possível a justiça brasileira não levar adiante as denúncias que foram feitas contra ele. E não são poucas é pior: são gravíssimas. Os processos não são de crime político e sim de crime comum, que não podem deixar de ser executados. São os chamado crimes de “colarinho branco”. Lula é hoje um ex-operário e ex-dirigente sindical milionário. Seu envolvimento com empreiteiras e outros setores do capital são comprovados é bastante nocivos ao país. Lula não será impedido de disputar as eleições por conta da prisão e sim da lei da ficha limpa, que nasceu de uma emenda popular e o próprio PT ajudou a aprovar no Parlamento. Ele diz que não pode ser candidato que for condenado em segunda instância pela justiça. Lula é o o PT sabem disso, mas politizam os processos para tentar recuperar o terreno político perdido depois do impeachment e das eleições municipais de 2016, quando perderam mais da metade das prefeituras que governavam.

Se a popularidade de Lula é tão grande é porque a população pensa que os seus governos foram positivos para ela, sobretudo no plano social. A sua prisão não poderia gerar muito sérios problemas?
A popularidade de Lula é indiscutível. No entanto, ele não é uma unanimidade. Deve ter um eleitorado que gira entre 20 e 30 por cento. É isso é uma força importante na medida em que o quadro político está inteiramente fragmentado, como nunca se viu antes. Lula é enfim um mito político. Conjuga a ideia do herói dos pobres, do Robim Wood, mas foi também muito amigo dos ricos. Nos últimos anos se tornou um lobbysta da Oldebrecht. Ontem, se comparou a Jesus Cristo dizendo aos populares “eu vivo em ti”, um sinal para a nova campanha do Lula Livre: “eu sou Lula”. Trata-se de uma visão de elites, típica do discurso que se convencionou chamar de populista.

O senhor não teme que Lula indo à prisão fique ainda mais forte, se transforme num mito, numa verdadeira lenda nacional e internacional?
Lula já é um mito. E com todo mito, se não quisermos aderir à ele, temos que saber ser críticos, pensar e sermos capazes de analisá-lo. Não creio que se fortaleça com a prisão. Ao contrário. O que se viu na sua prisão é que Lula está isolado politicamente no campo de uma esquerda já anacrônica, com discurso anacrônico, incapaz de abordar o mundo de hoje. Lula faz hoje um discurso bolivariano, com recordações saudosistas da época do sindicalismo, há quase 40 anos atrás, sem nenhuma projeção para o futuro de forma séria. E pior, sem reconhecer que seu segundo governo e os dois sucessivos de Dilma é que levaram o país a maior crise econômica da sua história, com desemprego recorde e crescimento da polarização política nuca visto no país. Creio que será bom para o Brasil que se ultrapasse o mito Lula é seu período, para que possamos nos reintegrar ao mundo, fazermos as reformas para isso, e olharmos para frente. Lula continuará com alguma força, mas hoje já é passado.


Alberto Aggio: Cinco anos depois

As manifestações de 2013 sugeriram elementos e anseios, mas não uma nova teoria democrática

As jornadas de 2013 não produziram uma pauta clara (excetuando-se a suspensão do aumento do preço do bilhete de transporte público urbano) que pudesse ser seguida, organizada e negociada politicamente, embora seu impacto tenha sido tão forte que chegou a alterar o andamento normal do mundo político.

As manifestações daquele ano devem ser compreendidas como expressão do contexto democrático brasileiro. Foram difusas, plurais e apresentaram demandas republicanas fragmentadas em defesa da ética na política e contra a corrupção. Havia nelas uma demanda pelo bem comum e pela melhoria de vida das pessoas, identificada explicitamente com a melhoria dos serviços públicos voltados para a mobilidade urbana, a saúde e a educação. Elas colocaram em xeque, portanto, a eficiência dos governos, em todos os níveis, especialmente no plano federal, por ser este o maior arrecadador de impostos e por ser dele que se esperam as respostas mais significativas em termos de financiamento das políticas públicas.

Forçoso reconhecer que, passados 5 anos, muitas das pautas ali presentes ainda aguardam seu equacionamento pelo Estado brasileiro.

Outra virtude dessas manifestações foi o fato de que elas foram capazes de produzir um retrato mais preciso da sociedade. Nelas as pessoas protestaram contra as carências sociais, a ineficiência e a parca qualidade dos serviços públicos, reivindicaram seus direitos e necessidades, mas também revelaram seus ardentes desejos libertários e igualitários em plena rua, à luz do dia, às vezes com humor e irreverência. Revelaram também uma nova maneira de se manifestar e de se agrupar, de dar sentido ao seu pertencimento, na qual as redes sociais passaram a ser o nexo agregador. Os móveis de arregimentação foram, ao mesmo tempo, iguais e diferentes, em cada lugar do país e mesmo em cada passeata, que podia começar e se dividir em duas ou mais torrentes de pessoas. Contudo, essa “falta de centro” não foi integral, elegendo-se algumas questões como unificadoras, tais como a tarifa do transporte público, a corrupção, a precariedade na saúde e a baixa qualidade na educação.

Havia nas manifestações um rechaço e, no limite, ira e mesmo ódio em relação aos representantes políticos em geral e aos partidos políticos, em particular. Em 2013 emergiu um fenômeno político jamais visto: a negação dos partidos políticos. A consigna “sem partido”, gritada insistentemente, passou a ser um ícone. Era um sinal claro de que a crise invadia o território da política organizada pela via do rechaço. Uma sociedade mobilizada diante de um sistema político que tardava a mudar acabou por produzir a frase símbolo das jornadas de 2013 e que ainda sobrevive nos dias que correm: “vocês não me representam”! Ambas as construções discursivas continuam presentes e demarcam territórios no interior da cultura política brasileira atual, espraiando-se para todos os espectros ideológicos.

As multidões que ocuparam as ruas em 2013 buscavam uma via de passagem para um “represamento”, já então angustiante. Mas há que se olhar todo esse processo a partir de uma perspectiva mais ampla. As “jornadas de junho” expressaram uma crise específica de legitimação dos mecanismos do sistema político, uma crise na democracia e não uma crise da democracia, onde sua legitimação fosse colocada em questão. “Democratizar a democracia” – outra expressão muito vocalizada em 2013 – parecia se conectar quase que exclusivamente com a noção de “democracia direta”, que se fundamenta, ao nosso ver, numa hipersimplificação do político, uma retórica que visa traduzir o ato de governo como algo simples e direto, sem delegação, no qual o envolvimento dos cidadãos com a coisa pública seria contínuo e permanente, algo duvidoso senão irrealista.

Adicionalmente, argumentava-se a total compatibilidade da democracia direta com a revolução digital em curso. Esquecia-se, contudo, que a fórmula da representação política foi criada no mundo contemporâneo, e com êxito, para superar a dicotomia entre a democracia dos antigos (de ênfase pública) e a dos modernos (na qual se introduzem dimensões do mundo privado na vida política). A crítica à democracia representativa aparecia como anacrônica e simplista na medida em que, hoje, a democracia não se exaure nas eleições e tornou-se uma realidade política complexa, composta de arenas participativas e de novos fluxos comunicacionais que ampliam, condicionam e estabelecem a vigilância entre representados e representantes. Além desse aspecto, a democracia contemporânea se expressa por meio de um pulsar e de uma expressão crítica da sociedade que lhe dão vida, fora das instituições representativas, ao demandar reformas no sistema político que sustente, de maneira mais eficaz, essas mesmas instituições. Em suma, não há mais, por assim dizer, uma democracia liberal tout court, apartada das tensões e crises próprias de um laboratório conceitual e prático do presente em que se transformou a experiência democrática contemporânea. Essencialmente, portanto, 2013 apenas sugeriu elementos e anseios, mas não uma nova teoria democrática digna desse título.

De lá pra cá, a crise que estava instalada entre a sociedade e o sistema político se desdobrou em novos impasses, levando o país a uma situação no qual o sentimento de orfandade e de abandono é latente. A conjuntura atual não tem favorecido visões otimistas e ampliam-se as dificuldades e os desafios para que os atores políticos encontrem, com realismo, os termos, os meios e os modos para superar a crise.

Mas não é difícil reconhecer a necessidade de que a política democrática — essa invenção da moderna sociedade de massas, alicerçada na representação, nas liberdades, na soberania popular e, por fim, em identidades e subjetividades que impetuosamente se expandem — deva e mereça recobrar sentido para, com isso, buscar estabelecer as balizas para o equacionamento de interesses e demandas por meio de reformas pactuadas das instituições do Estado brasileiro.

Apesar de todas as dificuldades e dúvidas, resta a expectativa de que a alegria das ruas e o desprendimento dos atores da política democrática, dentro e fora das instituições do Estado, dentro e fora dos partidos políticos, hão de inventar maneiras para promover, em novo patamar, o encontro do país com a modernidade política. A voz das ruas é sempre bem-vinda e, bem traduzida, poderá enfim anunciar um novo momento para a jovem democracia brasileira.


Alberto Aggio: Um novo partido democrático para o Brasil

O Brasil vive um momento dramático. Os brasileiros irão às urnas em outubro esperando que o país encontre saídas reais para a crise e um novo sentido de futuro. As últimas escolhas e a composição dos últimos governos deixaram sequelas profundas que comprometeram a credibilidade da política. Hoje, a crise ética é uma fratura aberta, a segurança pública um descalabro, acossada pelo crime organizado. Parcas melhoras na economia e no emprego não fizeram alterar esse cenário de desesperança.

Diante da confirmação da condenação de Lula pelo TRF4, que deve ceifar sua candidatura presidencial, o país tem diante de si o desafio de superar o lulismo. A corrupção sistemática que arrasou o país nos anos do lulismo abalou todo o edifício político que havia sido montado nesses anos de democratização. O cenário pós-Lula deverá requisitar o concurso do conjunto da sociedade, da opinião pública, dos intelectuais, dos partidos políticos e de todos aqueles que possam se mobilizar pela reconstrução do país.

Lula e o PT nasceram no outono do autoritarismo como peças do “sindicalismo de resultados”, com roupagem e retórica de esquerda. No governo, analogicamente, o lulopetismo foi uma "esquerda de resultados", nefasta à sociedade brasileira, especialmente aos mais pobres pois os subalternizou, fixando-os em seus interesses individuais e impedindo qualquer perspectiva de elevação cultural e política que os convocasse a formular e compartilhar um projeto nacional e civilizatório. O lulopetismo foi tóxico à democracia e à esquerda. Como escreveu Demétrio Magnoli, em artigo recente, "a 'esquerda' lulista escolheu o capitalismo selvagem do consumo privado, do crédito popular, do cartão magnético, das Casas Bahia e do Magazine Luiza" como horizonte de satisfação hedonista das massas. A pragmática petista contou, das origens até agora, com a anuência da "esquerda maximalista" que soldava apoios ao “grande líder” quando julgava necessário e conveniente. Um papel jogado também pelos intelectuais das universidades públicas. Foi assim que o lulopetismo condenou o Brasil a não ver realizada a social-democracia ou o reformismo que poderiam instaurar um novo cenário histórico no país. Em nome do mito e servindo-se dele, o PT bloqueou a afirmação de uma esquerda democrática, defensora das reformas e aberta ao novo.

No Brasil de hoje, as ruas, que foram essenciais em 2013 e no impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, esmoreceram, mas não se despreocuparam. Como se sabia, seria ilusão esperar delas uma saída clara para a crise em que o país mergulhou. Sem conseguir estancar a crise ética, o governo Temer não produziu a expectativa positiva que se esperava, mesmo com uma oposição fraca e prisioneira do lulismo. A política que havia revivescido acabou por não se consolidar. Resultado: o drama se instalou, com uma sociedade órfã sem poder confiar no governo ou na oposição.

A expectativa se voltou para as dimensões externas à política, notadamente para a Operação Lava Jato, que cumpria exemplarmente o seu papel republicano e constitucional. Desorientada, a opinião pública passou a admitir saídas ilusórias e despropositadas.  Alguns continuaram a ver nas ruas, via democracia direta, a alternativa a esse estado de desorientação. Outros concluíram que decisivo seria “dar o poder” aos “homens de toga” como substitutos da má política. Embalados pela ânsia de poder, outros ainda viram nas eleições presidenciais de 2018 a salvação mediante apoio a algum outsider, uma sedução ao transformismo que não faria mais do que prolongar nossa agonia; por sorte parece que essa febre está cedendo. De toda forma, como sabemos, a saída está na política e é em torno dela que devemos nos reagrupar.

É nesse cenário que se deve valorizar a recente abertura do Partido Popular Socialista (PPS) aos chamados “movimentos cívicos” que brotam na sociedade com o objetivo de renovar ou refundar a política. Um partido político abrir-se ao diálogo com o que há de autonomamente organizado na sociedade é sempre saudável. Isso pode gerar novos ares novos e novas perspectivas, especialmente se o objetivo for renovar os nossos carcomidos costumes políticos e ultrapassar essa fase nefasta da vida política brasileira.

Sucedâneo do antigo PCB, para o PPS isso é fundamental. O PPS é um partido pequeno e, na conjuntura atual, necessita eleitoralmente dessa abertura. Esse talvez seja o sentido mais imediato dessa aproximação com os chamados "movimentos cívicos", como o Agora, o Renova Brasil e o Livres, além de outros. Na linguagem destes movimentos, a perspectiva eleitoral também é evidente e talvez até mais explícita. A atrasada legislação eleitoral brasileira não permite as chamadas listas cívicas de candidatos autônomos e, por isso, os movimentos precisam se credenciar nos partidos políticos para seus candidatos postularem um lugar na disputa. O PPS abriu essa porta a eles.

Entretanto, para o PPS talvez seja mais do que isso ou talvez possa ser mais do que isso. Intencionalmente ou não, o fato é que essa abertura (e mesmo as circunstâncias em que ela se realiza) pode colocar um desafio novo ao PPS. Em casos assim, de uma abertura à sociedade, à novas culturas política, como não poderia deixar de ser, abre-se a discussão em torno do destino dessa organização política.

Pode-se dizer que entre o fim do PCB e o advento do PPS, até os dias que correm, o PPS configurou-se essencialmente como um partido pós-comunista, com aderentes que vieram de diversas culturas políticas ou até mesmo de nenhuma, mas com um núcleo dirigente político caudatário da história e da cultura política do pecebismo. O PPS é antes de tudo um partido pós-pecebista, que busca valorizar o que entende como positivo na trajetória do “velho partidão”, especialmente sua postura democrática, adotada depois de 1958 e realçada no combate à ditadura militar que se impôs no Brasil entre 1964 e 1985. O pecebismo é aqui tratado como uma cultura específica do movimento comunista internacional que deu origem e guiou os passos da trajetória do comunismo no Brasil. Como em outros países, a versão nacional do movimento comunista estabeleceu uma característica especial a cada um dos partidos. No caso brasileiro, o pecebismo foi uma espécie de ato de “civilização do comunismo” por meio de sua adesão à política democrática. Daí a ambiguidade sempre marcante do PCB, especialmente depois da Declaração de Março de 1958 que acabou por dar ao partido (talvez da mesma forma que ocorreu com o Partido Comunista Italiano, guardadas as devidas proporções) uma espécie de “dupla alma”: mantida a adesão ao comunismo internacional, buscou organizar sua linha política que procurava ler cuidadosamente a situação nacional, integrando-se às lutas democráticas do seu povo.

Como pós-comunista, o PPS trouxe para dentro de si as características marcantes do pecebismo e, talvez por isso, tardou muito a encontrar uma nova identidade. Demorou muito em admitir que o seu ideário anterior, o comunismo, havia fracassado e não apenas havia sido derrotado (em certo sentido, a ideia de derrota ainda prevalece, uma vez que ainda se fala a partir da trajetória vivida, ou seja, do momento comunista ainda incrustrado no PPS). Tardou muito também a se perceber como partido reformista, sem ambiguidades, no sentido de que as reformas devem compor uma perspectiva de futuro e de destino e não uma etapa de um processo revolucionário ou transformador, como pensavam antigamente os comunistas. A fase pós-comunista do PPS se fixou como uma inercia mental que o dificultou a ir além, malgrado alguns esforços momentâneos e isolados.

Assim, para além do eleitoral, para o PPS, a abertura aos “movimentos cívicos” talvez possa se constituir num momento particularmente precioso, histórico, que se volte para a perspectiva de se pensar na criação de um novo sujeito político. É ilusória a fórmula de um "partido-movimento", na medida que isso deve fazer parte de qualquer processo de renovação ou refundação dos partidos atuais, especialmente à esquerda do espectro político-ideológico. Assim como é taxativa e fora da realidade a assertiva de que os partidos "têm prazo de validade determinado". Há partidos que morrem, que se desqualificam, que se renovam, que se refundam e que nascem. O PCB e o PCI morreram, o PTB e o MDB se desqualificaram, o PD italiano e o Partido Liberal canadense, imersos nas incertezas da democracia e do seu jogo eleitoral, se renovam e se refundam, o Podemos, na Espanha, e o En Marche, na França, são novas criações que derivam das lutas efetivamente populares nos seus países por renovação da política, e assim por diante. A lista seria grande e aqui menciono apenas alguns exemplos. Mas o certo é que a questão não é simplesmente a mudança de nome dos partidos, em especial quando o critério for apenas eleitoral, sem vínculos políticos e simbólicos com o que se passa na sociedade (falar em Movimento23, como às vezes se cogita, é algo que, ao nosso ver, não se deve acolher em razão de sua exclusiva dimensão eleitoral, sem vínculos simbólicos nem com o passado nem com o presente)

Fala-se eufemisticamente de uma nova "formatação" ou "formação política". Mas, realisticamente, se deveria falar num novo partido político, com novo nome, novo programa, novos métodos, novas aberturas, nova identidade. Instituir uma nova formação partidária com os mesmos vícios do antigo comunismo (justiça seja feita: não apenas dele), como a eternização das direções e o controle férreo da sucessão dos quadros dirigentes, não terá nenhuma valia.

Se essa abertura do PPS aos chamados “movimentos cívicos” avançar, para além do eleitoral, será uma perda de oportunidade histórica não superar a fase pós-comunista do partido e, com ela, decretar o fim das suas estruturas e costumes inerciais e o nascimento de um novo sujeito histórico, não mais pós-comunista e muito menos comunista. Ao nosso ver, não se deve perder aqui a orientação que está identificada na marca da esquerda democrática”, embora do ponto de vista programático poderá haver uma maior abertura a elementos do que se pode chamar de "esquerda liberal" ou mesmo um "centro-esquerda liberal-democrático", como vem ocorrendo na França, na Inglaterra e no Chile. O presente está aberto e o que fizermos agora dirá quais serão os nossos caminhos para o futuro.

Os termos deverão ser claros: um novo partido, uma força cosmopolita e reformista que possa, além de governar o país, ser capaz propor uma visão geral e uma ideia do futuro diante de um mundo que muda de maneira vertiginosa e profunda. Que seja capaz de responder às necessidades e também aos desejos de todos aqueles que querem trilhar esse caminho carregando consigo suas legítimas preocupações, anseios e ambições.

Devemos partir claramente de uma verdade insofismável: o cenário global é complexo assim como a revolução tecnológica em curso constitui-se numa grande oportunidade. Contudo, a sociedade em seu conjunto e o Estado brasileiro, em especial, deve estar equipado para enfrentar os problemas que também derivam dessa grande transformação. Esse novo partido democrático deve propor medidas de fortalecimento da nossa economia para que o país volte a crescer, com qualidade e sustentabilidade, e a ser visto como um player importante no mundo, libertando suas energias e seu enorme potencial. O Brasil tem todas as credenciais para proporcionar aos seus cidadãos os meios para uma vida digna e as oportunidades para a realização de suas ambições, como indivíduos e como uma comunidade que busca reafirmar suas identidades no momento em que irá completar 200 anos de existência como país independente.

É, certamente, uma batalha dramática e exigente frente a todos os desafios que temos pela frente, cujo inimigo maior são as promessas, imprudentes e perigosas, que comprometem os horizontes fiscais da República além de escamotearem, com políticas econômicas dignas de desenhos autárquicos do passado, os equívocos trágicos que a história, mesmo a mais recente, nos têm ensinado.

Vivemos um momento de resgate da política e de refundação. Não há razão para se partir do zero, mas também não há razão para imaginarmos que o novo cairá do céu ou derivará de qualquer retórica mercadológica ou marqueteira. Também não há razão para acreditar que os brasileiros de bem não construíram, mesmo que contraditoriamente, um país cheio de vitalidade e que, transformado, deverá ser um excelente lugar para se viver. É preciso extrair do esforço democrático de luta dos brasileiros, tal como se fez na luta contra o autoritarismo, os fundamentos de um amplo programa de reformas que deverá, sem as falsas promessas e ilusões fáceis da demagogia e da antipolítica, transformar o país. É hora de nos atualizarmos ao mundo e vivermos com sinceridade os desafios do futuro. Não surgirá efetivamente nada de novo e positivo nessa quadra se nossos propósitos não forem largos e claros visando uma atualização verdadeira e realista. Trata-se, desta forma, de uma oportunidade histórica que não pode ser vivida como “oportunismo” ou mais um “transformismo”.

Não surgirá nada de novo nessa quadra se nossos propósitos não visarem a uma atualização verdadeira e realista. As ideias-chave para tanto são a valorização do trabalho, da ética e da República, estímulo à inovação e ao crescimento econômico, visão social consonante com o mundo em transformação, democracia e novo reformismo. Tudo depende de cada um e de todos nós. De um pequeno partido e de movimentos renovadores da política formados por pessoas que devem, como o conjunto da população, estarem no centro das nossas preocupações e dos nossos horizontes.

 


Alberto Aggio: Uma líder que deve ser honrada pela esquerda democrática

Após a comoção que gerou o bárbaro assassinato de Marielle Franco, uma brava brasileira, uma democrata eleita na cidade do Rio de Janeiro, com mais de 40 mil votos e que exercia com dignidade sua representação, não podemos ceder à retórica fácil que já começa a aparecer aqui e acolá, e que nasce quer do emocionalismo romântico, quer do maximalismo de setores que raramente defenderam a democracia. Ultrapassarmos o impacto dos acontecimentos e passarmos da esfera do humano para a esfera específica da política, neste caso, exige-se um cuidado redobrado e uma mirada com amplitude suficiente para não permanecermos ao nível da sua superficialidade.

A direita que apoia Bolsonaro - que se registre - se manifestou como era esperado: de forma boçal, acusando em nível baixíssimo a vereadora, a mulher e a líder popular. Quando não fez isso, manteve o silêncio do seu representante maior, jogando nuvens de dúvida a respeito de suas relações mais perversas com a instituição policial ou com setores do crime organizado no Rio de Janeiro.

A esquerda democrática se manifestou em consonância com o conjunto da cidadania, lamentando profundamente a violência que se abateu contra a vereadora do PSOL, pedido apuração imediata e justiça. Da mesma forma, diversas personalidades que emprestam sua respeitabilidade à opinião pública, às mídias e às redes sociais.

Infelizmente não foi o caso de uma esquerda maximalista, que visa escapar do ostracismo em que foi colocada pelo eleitorado brasileiros. Essa esquerda atua de maneira paradoxal: ao invés de valorizar a República e suas instituições, incide mais ainda no confronto e no seu próprio isolamento, iludindo-se com a consternação de milhões que foram às ruas contra a escalada da violência política. Alguns articulistas viram nas manifestações de ontem uma espécie de renascimento das mobilizações de rua que marcaram o país em 2013.

O fato é que na vigília pelo assassinato de Marielle ultrapassaram os pedidos por justiça aqueles apupos típicos do oportunismo dessa esquerda, outra vez com as consignas "Fora Temer" e "Fim da PM". Além disso, ao invés de conquistar apoios de setores diferentes, como antes, como sempre, vaiaram os representantes das instituições políticas. Trata-se de uma esquerda desorientada: ao invés de angariar apoios e promover a unidade, os afasta; justo nessa hora em que um dos seus é golpeado de forma fatal.

O lamentável, portanto, é que essa esquerda continua no mesmo lugar, em nada mudou. Ilude-se com a fabulação, oportunisticamente, imaginando que é chegada a sua hora. Pior, não honra a sua brava representante: chama para a briga aqueles que, democraticamente, se colocaram contra essa barbárie.

Que descanse em paz, Marielle, a despeito dos seus antigos parceiros, que não fazem jus ao seu legado de grande batalhadora democrática, representando os mais pobres e humildes. Nós continuaremos aqui, resistindo em nome da democracia e de uma sociedade mais justa, buscando o apoio de todos aqueles que querem o mesmo.

 


Alberto Aggio: O drama é maior do que 2018

Cenário pós-Lula deverá requisitar o concurso do conjunto da sociedade na reconstrução do País

O Brasil vive um momento dramático. Os brasileiros vão às urnas em outubro esperando que o País encontre saídas reais para a crise e um novo sentido de futuro. As últimas escolhas e a composição dos últimos governos deixaram sequelas profundas que comprometeram a credibilidade da política. Hoje a crise ética é uma fratura aberta; a segurança pública, um descalabro, acossada pelo crime organizado. Parcas melhoras na economia e no emprego não alteraram esse cenário de desesperança.

Diante da confirmação da condenação de Lula pelo Tribunal Regional Federal da 4.ª Região (TRF-4), que deve ceifar sua candidatura presidencial, o País tem diante de si o desafio de superar o lulismo. A corrupção sistemática que arrasou o País nos anos do lulismo abalou todo o edifício político que havia sido montado nos anos de democratização. O cenário pós-Lula deverá requisitar o concurso do conjunto da sociedade, da opinião pública, dos intelectuais, dos partidos políticos e de todos os que se possam mobilizar pela reconstrução do País.

Lula e o PT nasceram no outono do autoritarismo como peças do “sindicalismo de resultados”, com roupagem e retórica de esquerda. No governo, o lulopetismo foi uma “esquerda de resultados”, nefasta para a sociedade brasileira, em especial para os mais pobres pois os subalternizou, fixando-os em seus interesses individuais e impedindo qualquer perspectiva de elevação cultural e política que os convocasse a formular e compartilhar um projeto nacional e civilizatório. O lulopetismo foi tóxico para a democracia e a esquerda. Como escreveu Demétrio Magnoli em artigo recente, “a ‘esquerda’ lulista escolheu o capitalismo selvagem do consumo privado, do crédito popular, do cartão magnético, das Casas Bahia e do Magazine Luiza” como horizonte de satisfação hedonista das massas. A pragmática petista contou, das origens até agora, com a anuência da “esquerda maximalista” que soldava apoios ao “grande líder” quando julgava necessário e conveniente. Papel desempenhado também pelos intelectuais das universidades públicas. Foi assim que o lulopetismo condenou o Brasil a não ver realizada a social-democracia ou o reformismo que poderiam instaurar um novo cenário histórico no País. Em nome do mito e servindo-se dele, o PT bloqueou a afirmação de uma esquerda democrática, defensora das reformas e aberta ao novo.

No Brasil de hoje, as ruas, que foram essenciais em 2013 e no impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, esmoreceram, mas não se despreocuparam. Como se sabia, seria ilusão esperar delas uma saída clara para a crise em que o País mergulhou. Sem conseguir estancar a crise ética, o governo Temer não produziu a expectativa positiva que se esperava, mesmo com uma oposição fraca e prisioneira do lulismo. A política, que havia revivescido, acabou por não se consolidar. Resultado: o drama se instalou, com uma sociedade órfã sem poder confiar no governo ou na oposição.

A expectativa voltou-se para as dimensões externas à política, notadamente para a Operação Lava Jato, que cumpria exemplarmente seu papel republicano e constitucional. Desorientada, a opinião pública passou a admitir saídas ilusórias e despropositadas. Alguns continuaram a ver nas ruas, via democracia direta, a alternativa a esse estado de desorientação. Outros concluíram que decisivo seria “dar o poder” aos “homens de toga”, como substitutos da má política. Embalados pela ânsia de poder, outros ainda viram nas eleições presidenciais de 2018 a salvação mediante apoio a algum outsider, uma sedução pelo transformismo que não faria mais que prolongar nossa agonia; por sorte, parece que essa febre está cedendo.

Mesmo nesse cenário parece haver alguma oxigenação no protagonismo dos chamados “movimentos cívicos” que clamam por renovação da política. Indiscutivelmente positivos, seu exclusivismo e seu finalismo eleitoral merecem, contudo, preocupação, bem como requerem uma checagem do seu real tamanho e sua incidência. Se é preciso evitar o “populismo” como alternativa, também é justo preocupar-se com o que os italianos chamam de qualunquismo, isto é, uma política sem organicidade, que se esgota na identidade do homem comum e das coisas simples, pois sabemos que a política é complexa e exige muito mais do que isso.

Fará bem ao País uma coalizão de forças que se expresse em ideias claras, equipando a sociedade e o Estado para enfrentarem os problemas que derivam da grande transformação advinda da revolução tecnológica em curso. O Brasil tem todas as credenciais para proporcionar a seus cidadãos uma vida digna no momento em que vai completar 200 anos de existência como país independente.

É, certamente, uma batalha dramática e exigente, considerando todos os desafios que temos pela frente, cujo inimigo maior são as promessas, imprudentes e perigosas, que comprometem os horizontes fiscais da República, além de escamotearem, com políticas econômicas dignas de desenhos autárquicos do passado, os equívocos trágicos que a História, mesmo a mais recente, nos tem ensinado.

Não há razão para desejar partir do zero e tampouco há razão para descrer dos brasileiros de bem que construíram, mesmo contraditoriamente, um País cheio de vitalidade e que, transformado, será um excelente lugar para viver. É preciso extrair do esforço democrático de luta dos brasileiros um amplo programa de reformas que deverá, sem as falsas promessas e ilusões da demagogia e da antipolítica, pôr o País para andar. Não surgirá nada de novo nesta quadra se nossos propósitos não visarem uma atualização verdadeira e realista. As ideias-chave para tanto são a valorização do trabalho, da ética e da República, estímulo à inovação e ao crescimento econômico, visão social consonante com o mundo em transformação, democracia e novo reformismo. Com as pessoas no centro das nossas preocupações e dos nossos horizontes.

 


Alberto Aggio: Impasse nas eleições italianas

Em meio às nossas turbulências paroquiais, acompanhamos desde o Brasil as eleições para o Parlamento italiano a serem realizadas no próximo domingo, 04 de março. São eleições gerais para a recomposição do Parlamento e indicar um novo governo para o país. Contudo, pelas últimas pesquisas, não é certo que se consiga indicar um novo Primeiro Ministro e formar um novo governo. A divisão em três blocos políticos assume feições irreconciliáveis, impedindo a formação de uma maioria. Isso faz parte da lógica do Parlamentarismo que os italianos conhecem muito bem.

As eleições de domingo não mexem com a Presidência da República, hoje exercida por Sérgio Mattarella. A mudança, se houver, atingirá o Primeiro Ministro, Paolo Gentiloni, que governa com o apoio de uma coalisão que tem no Partido Democrático (PD), de centro-esquerda, sua maior força.

Apesar dos anos de crise e austeridade, a Itália vem saindo da recessão e a economia vem evidenciando um crescimento significativo para padrões europeus. Dessa forma, é equivocado imaginar que a retomada econômica não tenha sido resultado de programas e ações governamentais, como alguns imaginam. As eleições não se realizam, portanto, em meio a um cenário de fracasso irreversível do governo de turno. E, mesmo com as divisões políticas, com as quais os italianos convivem há décadas, não se pode dizer que a população espera que o melhor é não haver governo algum. Esse é um raciocínio hipócrita e calcado numa visão estereotipada dos italianos de que, em seu momento, Mussolini se aproveitou, ao afirmar que “governar os italianos não era impossível, era inútil”.

Estas eleições se realizam num cenário novo do ponto de vista institucional em razão da nova lei eleitoral que reintroduziu a proporcionalidade no sistema eleitoral. Isso pode dar ensejo a uma alteração no perfil da democracia italiana, que passaria a ser uma “democracia de partidos” e não apenas de líderes, ainda que haja necessariamente uma combinação entre essas duas dimensões. Com essa mudança aumentou a fragmentação partidária e a competição eleitoral, com a necessidade da formação de coalizões relativamente autônomas com vistas à formação do futuro governo.

Em função dessas mudanças e de outras que já estavam em curso, houve um significativo realinhamento de forças políticas. A maior novidade foi a consolidação do Movimento 5 Estrelas (M5S), criado pelo cômico Beppe Grillo, em 2009, e que hoje se afirma como o maior partido isoladamente, com aproximadamente 28% do eleitorado, de acordo com as pesquisas. Trata-se de um partido-movimento que nasce na vaga da antipolítica que vicejou nos últimos anos na Europa e no mundo. A contestação e o antagonismo a todo sistema político acabaram por fixar no M5S uma política antialiancista que pode inviabilizá-lo como força política capaz de formar governo. A não ser que cometa um “estelionato eleitoral” e se proponha a governar com algum partido de extrema-direita, como a Liga Norte, que compartilha das mesmas críticas maximalistas contra o sistema político.

Sem ter um partido que ultrapasse o percentual de 20% do eleitorado, a centro-direita italiana pode alcançar mais de 37% dos votos e se credenciar para a formação do novo governo. Compõem a centro-direita a Forza Italia, de Silvio Berlusconi mais a extrema-direita representada tanto pela Liga Norte quanto pelos Fratelli di Italia, expressões do renascimento do fascismo na Itália de hoje. A centro-direita parece ser uma união de fachada, sem organicidade programática e muito flutuante. Se a marca de neoliberista, de eficiência, empreendedorismo, elitismo, mais europeísmo são características fortes de Berlusconi, esses temas tocam pouco aos extremistas de direita que buscam empurrá-lo para temas anti-imigração e um nacionalismo fora de contexto. Com suas divisões reais, a centro-direita também terá dificuldades em formar governo depois das eleições, mesmo porque não atingirá o quórum necessário para não precisar do apoio de mais nenhum outro partido.

Por fim, a centro-esquerda comandada pelo PD. Não há dúvida que o PD passa por momentos muito difíceis eleitoralmente. É fiador de um governo relativamente exitoso, mas que não se envolveu diretamente na campanha em favor do partido (há que se considerar que a votação na Itália é tanto por partido quanto por lista e nomes). Desta forma, a identificação entre os êxitos do governo e o PD ficou rarefeita. Nas pesquisas, a sua votação se fixa em torno de 22%, disputando com o M5S o lugar de primeiro partido. No entanto, o PD conseguiu formar uma coalizão com pequenos partidos e movimentos que, segundo as previsões, deve elevar a votação da centro-esquerda a 27 ou 28%. Não fosse a fratura sofrida pelo partido, com a saída de líderes pós-comunistas, como Massimo D’Alema, Bersani, dentre outros, para formarem uma coalisão denominada Liberi e Uguali, que deve atingir por volta de 5 a 6%, a esquerda italiana estaria disputando a liderança da eleição com a direita.

Dividida em três polos, as forças políticas da Itália muito dificilmente terão condições para formar um novo governo nascido das eleições de 04 de março. O líder do PD, Matteo Renzi, afirma que jamais formará um governo com M5S e/ou Berlusconi. Este, por sua vez, não pode assumir o posto de Primeiro Ministro, por questões jurídicas: ainda está cumprindo pena de exclusão da vida pública. Terá problemas se indicar Matteo Salvini, da Liga Norte, para o comando do governo, na medida que não poderá controla-lo. Luigi Di Maio, líder do M5S anuncia na imprensa os ministros de seu possível governo, mas não diz como conseguirá a assunção ao poder.

Tudo isso significa que não há a mínima possibilidade de se propor qualquer transversalidade programática entre as principais forças políticas na Itália ou pelo menos entre algumas delas. O resultado será a indefinição e uma nova convocação ao eleitorado.

Mas, há hipóteses em circulação. Uma delas, de difícil realização: uma possível aliança entre o PD de Renzi e Forza Italia de Berlusconi, para um governo de transição visando novas eleições daqui a um ano. Outra hipótese, mais plausível, é a de um novo período para Paolo Gentiloni, ainda indefinido, com consentimento tácito do Parlamento, na medida em que o atual Primeiro ministro pode figurar acima dos impasses eleitorais e compor um novo gabinete que pode continuar dando respostas efetivas à população. Uma saída que é também um paradoxo: Gentiloni não disputou as eleições, mas as venceria. É útil ficar atento à política italiana. Ao menos nos estimula a tentar compreender a complexidade.

http://revistasera.ne10.uol.com.br/impasse-nas-eleicoes-italianas-alberto-aggio/


Alberto Aggio: De Beijing a Roma, os dilemas do pós-comunismo

O ex-PCI aprofundou a democracia e a China se aferra ao nacionalismo autoritário histórico

No ano passado relembraram-se os cem anos da revolução bolchevique, referência maior do chamado “comunismo histórico”. Muitos livros foram publicados, um sem-número de artigos ganharam as páginas de revistas e jornais, congressos e seminários foram realizados ao redor do mundo. Seria excessivo imaginar que uma revisão daquele processo histórico, por mais bem feita que fosse, tivesse o condão de superar todas as polêmicas em torno dele. O dado positivo, contudo, é que a “celebração” da efeméride não produz mais o mesmo efeito. A revolução comunista da Rússia já é um fato do passado e não promove as divisões que antes promovia entre os simpatizantes do seu ideário.

Imposto o comunismo na Rússia, não apenas o país foi revolvido, como o mundo passou a ser impactado por um sistema antagonista do capitalismo que se transformou num fenômeno global, influenciando vários países e milhões de pessoas. A crença no poder dos comunistas tornou seu movimento uma força global, não havendo no século 20 nenhuma dimensão da vida que não tenha sofrido sua influência. Mas esse movimento guardava paradoxos que, com o tempo, lhe seriam fatais.

Talvez não haja síntese mais fiel à glória e à tragédia do comunismo do que a formulada por Silvio Pons no seu livro A Revolução Global (Fap/Contraponto, 2014). Para ele, o comunismo se constituiu simultaneamente em “realidade e mitologia, sistema estatal e movimento de partidos, elite fechada e política de massas, ideologia progressista e dominação imperial, projeto de sociedade justa e experimento com a humanidade, retórica pacifista e estratégia de guerra civil, utopia libertadora e sistema concentracionário, polo antagônico da ordem mundial e modernidade anticapitalista. Os comunistas foram vítimas de regimes ditatoriais e artífices de Estados policiais”.

Entre os historiadores, em sua maioria, há um consenso quanto ao fracasso do “comunismo histórico”, levando em conta os objetivos que nortearam suas estratégias. De um ponto de vista analítico, não se aceita mais quem busque “erros” específicos dos principais dirigentes e governantes. Suas ações são inscritas em conjunturas precisas e postas como parte dos desafios e dilemas que se afirmaram no processo histórico. É a história in acto o que importa aos historiadores e aos demais intérpretes, e não uma discussão ideológica e justificativa. O que torna evidente a virada na perspectiva de muitos pesquisadores é o fato de a chamada “história do cotidiano” ter garantido o seu ingresso nessa historiografia, retirando centralidade da discussão sobre poder revolucionário e colocando sob novas luzes a história de homens e mulheres de carne e osso que viveram sob o comunismo.

O resultado não é em nada surpreendente. Diversos investigadores têm demonstrado que o comunismo foi incapaz de inspirar uma crença espiritual que envolvesse mais do que a realidade material da vida. Concluem que a revolução bolchevique e o poder soviético não produziram efetivamente uma hegemonia cultural como “religião civil” (Gramsci falaria em uma “hegemonia civil”) que lhe pudesse dar sustentação. O julgamento é assim categórico e definitivo.

Enganam-se os que pensam que foi uma questão de tempo. Que o capitalismo se afirmou durante séculos e o comunismo necessitaria ser pensando nessa chave. Equivocam-se. Ele entrou em colapso na antiga URSS e se despedaçou porque não foi capaz de construir o que prometeu: um novo mundo e um novo homem! Hoje, numa nova fase da humanidade, o comunismo não é mais do que história e, por essa razão, não há como sustentar que sua prática e seus horizontes possam ainda fazer sentido para os homens e mulheres do século 21.

Entretanto, essa história não está inteiramente arquivada, por conta da fulgurante presença da China na economia global. A sobrevivência do “comunismo capitalista” chinês, baseado num regime ditatorial, que instaurou o capitalismo como modo de produção material, constitui-se hoje no maior enigma quanto aos destinos do pós-comunismo.

Essa alternativa estava inteiramente descartada para os partidos comunistas no Ocidente, em particular para o maior deles, o Partido Comunista Italiano (PCI), ao abandonarem, no início dos anos 1990, o nome, seus símbolos e, especialmente, o que era reconhecido como sua “dupla alma”, isto é, a adesão ao comunismo soviético, (no caso do PCI) sobreposta à defesa da República democrática italiana, vinda à luz com sua colaboração ativa. Acabou prevalecendo o segundo termo da equação como orientação que seguirá presente até o tramonto do comunismo italiano.

A fase pós-comunista do partido de Gramsci, Togliatti e Berlinguer, ao contrário dos chineses, aprofundou a democracia ao se estabelecer como uma força política reformista voltada para a modernização do país e defesa da União Europeia. Abrindo-se para diferentes movimentos e culturas políticas, dentre elas os católicos progressistas, assumiu várias denominações: Partito Democratico di Sinistra (PDS), Democratici di Sinistra (DS) e, por fim, Partito Democratico (PD), nos últimos dez anos.

O pós-comunismo chinês aferra-se ao legado nacionalista e autoritário do comunismo histórico ao mesmo tempo que abre sua economia para o mundo. Essa linha se aprofunda de Deng Xiaoping a Xi Jinping, sem desvios.

Mesmo diante das incertezas da Europa, o caminho do PD parece ser o de superar a fase pós-comunista buscando combinar a ética de defesa do trabalho dos antigos comunistas com o europeísmo social-democrático e sua vertente democrático-reformista. A preponderância de uma ou outra vertente ora o empurra para a oposição, ora lhe abre possibilidades de ser governo.

Não mais comunista nem sequer pós-comunista, o PD talvez seja, na Europa, a possibilidade de um novo sujeito político. Imersa no pós-comunismo, a China parece estar longe disso.

 

 

 


Alberto Aggio: Impasses ao centro

O núcleo da política democrática está nas saídas para a crise que o PT nos deixou

Qual o ponto central da conjuntura política neste difícil percurso até as eleições presidenciais de 2018? Essa pergunta, mais do que necessária, vai impulsionar o batimento cardíaco da política pelo menos até a definição das candidaturas, desenlace que se prevê para o primeiro semestre do próximo ano.

Em julho alertamos para o risco de que os temas centrais para superar a crise poderiam ficar de lado se a nova polarização entre Lula e Bolsonaro acabasse por predominar. A expectativa de chegarmos a bom porto em 2018 parecia esvair-se por entre os dedos. Caminharíamos, então, para uma eleição falsa, uma espécie de reiteração da eleição presidencial de 1989 (apesar das suas diferenças pontuais), o que poderia redundar num retorno tão inconsequente quanto infeliz (Caminhamos para uma eleição falsa?, Estado, 18/7).

Dois meses depois, observávamos que havia um grande ausente naquela trama: o centro político. A forte fragmentação do centro fazia prever grande dificuldade eleitoral para esse campo. Tratava-se, então, de reconstruir o centro político, uma vez que uma postulação ao centro, como expressão de um campo democrático, representaria a reintrodução na cena política de um ator indispensável à estabilidade, com vista a projetarmos avanços civilizatórios dos quais o País se havia afastado injustificadamente. Afirmávamos que “uma recomposição do centro teria, pelo menos, a virtude de gerar a expectativa de superação da política de facções que se instalou nos últimos anos, comprometendo nossa convivência política” (Entre dois polos, como reconstruir o centro?, Estado, 26/8).

Lamentavelmente, a conjuntura não se moveu integralmente nessa direção, a despeito da emergência de alguns ensaios, em meio a muita desorientação e significativas fraturas entre os mais expressivos atores do centro político. Uma parte desse campo assumiu uma posição rigidamente defensiva em torno do governo Temer, o que, em função de sua alargada impopularidade, vem dificultando a construção de um movimento rumo a uma candidatura de caráter propositivo e que não represente apenas o governo.

A repercussão dessa posição em relação a outros importantes atores é notória. O dilema tucano em relação ao governo Temer não é o centro da conjuntura, mas é um problema para a definição de uma candidatura forte que possa chegar ao segundo turno expressando um programa que articule setores democráticos posicionados desde a direita liberal até a esquerda democrática. Não é desprovido de razão o argumento de que o tempo político de “ruptura” com o governo Temer já passou e mesmo que o PSDB assim decida serão duvidosos os dividendos eleitorais a serem obtidos. O núcleo central da política democrática está nas saídas para um país que se encontra afogado pela crise que nos deixou o PT e tem pouco que ver com o fato de apoiar ou ter apoiado o governo Temer.

Ao que tudo indica, a futura eleição presidencial não será um confronto entre situação e oposição, mesmo que essa disjuntiva seja colocada pelos candidatos. Lula imaginava que esse seria um trunfo seu e que lhe daria uma colheita segura. Certamente fincará suas trincheiras nesse ponto e fará muita retórica. Mas seu foco já passou a ser outro: “Agora não é hora de tirar Temer, é hora de saber quem será o próximo presidente do Brasil”. Lula vem atualizando seu discurso na linha do “perdão aos golpistas”, o que significa principalmente abrir o PT a negociações com o PMDB para tentar recuperar o eleitorado perdido com o processo de impeachment, que produziu efeitos danosos para a legenda nas últimas eleições municipais. Está claro, portanto, que erros de avaliação nesta hora certamente abrirão passagem para Lula conquistar uma parte do centro político, que estava perdido para ele.

A população reprova o governo, mas não vai às ruas protestar, sinalizando que não quer mais instabilidade. Assim, o discurso que apostar apenas na confrontação com o governo estará fadado ao fracasso. Ainda mais agora que seus parcos êxitos econômicos começam a ter alguma repercussão pública, animando o núcleo palaciano a projetar uma candidatura à feição de Temer ou a própria reeleição do presidente. Se isso ganhar força, é bem provável que o centro político se fragmente ainda mais.

A polarização de mais de duas décadas entre PT e PSDB vai ficando para trás, o que, por sua vez, leva à diluição da chamada “terceira via”. Com um possível segundo turno entre Lula e Bolsonaro, a construção de uma alternativa a partir do “centro democrático” ganha a máxima relevância. Lula sabe disso e já flerta com o centro, buscando romper seu isolamento à esquerda. Por outro lado, o discurso de uma candidatura de centro ainda não decolou, seja pela dificuldade de unificação, seja pela indefinição em torno de quantos e quais aspirantes postularão esse protagonismo.

Em São Paulo, o governador Geraldo Alckmin bate na tecla de que “o Brasil precisa de construtores, e não de gladiadores”, enquanto o prefeito João Doria enfatiza a necessidade de uma “frente do centro democrático” conta o lulismo. Os outsiders ainda estão fora da verdadeira luta política. No apelo a figuras como Luciano Huck ou Joaquim Barbosa há um sentimento difuso de renovação política, mas há também muito de personalismo, ilusionismo e até aventureirismo, envolto, em alguns casos, num “corporativismo de partido” instrumental e anacrônico. Nada diferente, portanto, da “velha política” que se quer combater.

Até meados de 2018, os brasileiros estarão condenados a uma “espera ativa”. Nesse ínterim, o jogo ficará cada vez mais pesado, exigindo dos atores políticos, sejam partidos, personalidades ou os chamados “movimentos cívicos”, capacidade de convencimento e realismo diante do que teremos pela frente.

 


Alberto Aggio: O difícil e trabalhoso caminho até 2018

Como refletir e desvendar o ponto central da conjuntura política que estamos vivendo? Essa pergunta, mais do que necessária, é o dilema político que vai impulsionar o batimento cardíaco da política, pelo menos até a definição das candidaturas para o embate de 2018.

É um equívoco imaginar que a campanha presidencial de 2018 irá ser travada em torno do governo Temer. A eleição presidencial não será um confronto entre situação e oposição ao governo federal. Lula imaginava que esse seria um trunfo seu e que lhe daria uma colheita segura. Certamente fará muita retórica desse ponto de força. Mas seu objetivo não é a avaliação do governo em si e sim a definição de um inimigo para lhe dar sustentação ao discurso salvacionista. Mesmo ele, como noticiam os jornais, já arriou a bandeira de derrubar

Temer. Nas suas palavras: “agora não é hora de tirar Temer, é hora de saber quem será o próximo presidente do Brasil”. O tempo de derrubar Temer passou e Lula imediatamente atualizou seu discurso afirmando que “perdoaria os golpistas”, o que foi entendido também que o PT deveria estar aberto a negociar politicamente com o PMDB, principalmente, para tentar recuperar o eleitorado perdido.

Por outro lado, os parcos êxitos do governo em matéria econômica (controle da inflação, retomada da atividade econômica e pequena diminuição do desemprego) não são suficientes a ponto de se imaginar que Temer conseguirá fazer o sucessor. Em função da sua baixíssima popularidade – que não dá sinais de recuperação –, o mais provável é que Temer não tenha nem mesmo um candidato para chamar de seu. Mais do que isso: pode-se supor que posicionamentos polarizados em relação ao governo Temer serão, no fundo, irrelevantes na pugna que se travará em 2018. A população reprova contundentemente o governo, mas não vai às ruas protestar, sinalizando que não quer mais instabilidade. Assim, um discurso que apontar nesse sentido estará fadado ao fracasso.

Na conjuntura política que vai compondo o embate eleitoral, a polarização PT versus PSDB deixou de ser um tópico essencial. Da mesma maneira que a visualização de uma “terceira via” perdeu pequena força que tinha. Diante de Lula e Bolsonaro e do problema que isso pode significar caso essa disjuntiva chegue ao segundo turno, a alternativa que emergiu foi a de se buscar a construção de uma alternativa a partir da ideia de um “centro democrático”. Mas, como construí-lo? Quais seriam os seus termos e o seu programa? Quais seriam os seus signos identificadores, suas marcas, capazes de carrear apoios não apenas entre os setores organizados, mas em relação ao conjunto da sociedade?

As alternativas ainda não estão seladas. Pior, o discurso que possa compor essa candidatura de centro, apesar de contar com o apoio de pessoas preparadas e experientes, ainda não decantou. Lula sabe disso e já se dispôs a novamente flertar com o centro, buscando romper seu isolamento à esquerda, a despeito de setores do seu partido, em especial da sua presidente, a senadora Gleisi Hoffmann, que rejeitam esse movimento do seu líder maior. Por outro lado, a consigna “o Brasil precisa de construtores e não de gladiadores”, repetida comumente por Geraldo Alckmin visa insinuar que aqueles que querem o “bem do Brasil” devem buscar sua união e não digladiarem entre si.

Para os propósitos de uma candidatura de centro democrático, está é uma construção feliz. Em tom mais beligerante do que Alckmin, mas não sem ter suas razões, João Doria tem falado incisivamente em que o combate ao lulismo – para ele o principal adversário – deve se dar com a formação de uma “frente do centro democrático”. Certamente, um discurso alinhado com a alternativa que se propugna para os setores que não querem os extremos à direita nem à esquerda. Por enquanto os outsiders ainda estão fora da luta política e, por isso, é duvidoso que politicamente possam dar alguma contribuição ao país. Pior, o chamado “corporativismo de partido” que tanto o PT praticou no passado, pensando mais nele do que no país, não é bom conselheiro, especialmente numa época de crise profunda por que passa a relação da sociedade com a política.

O dilema tucano em relação ao governo Temer, que vem agitando a cena política, não é o centro da conjuntura, mas é um problema para a definição de uma candidatura forte que possa chegar ao segundo turno expressando um programa que articule setores democráticos da direita liberal à esquerda democrática. Ao que parece, o tempo político de “ruptura” com o governo Temer já passou e mesmo que o PSDB assim decida até dezembro, pouco afetará a tarefa que os democratas têm pela frente. Sair do governo provavelmente será uma operação com dividendos irrelevantes se pensarmos em função do impacto que terá no conjunto da sociedade. Em contrapartida, pode produzir um resultado nefasto: abrir passagem para Lula conquistar uma parte do centro político que estava perdido para ele. O núcleo central da política democrática está nas saídas para um país que se encontra afogado pela crise que nos deixou o PT e tem pouco a ver com o fato de estar ou ter apoiado o governo Temer.

Felizmente, já nos afastamos da lógica binária que tantos prejuízos políticos causaram e precisamos construir uma estratégia de largo folego para enfrentar e superar a crise. As expectativas quanto à uma transição que colocasse o país num novo patamar não foram e não serão correspondidas até o final do próximo ano, por diversas razões. Haverá a necessidade de paciência nessa espera ativa que teremos que cumprir até as eleições de 2018. Nesse percurso, à moda de Weber, teremos que mobilizar, dentro das nossas melhores tradições, além da “conciliação”, os valores da política, na sua dimensão de vocação, bem como ato de realismo diante de nossas responsabilidades públicas perante o país.


Alberto Aggio: O comunismo histórico em perspectiva global

A propósito da efeméride dos 100 anos da Revolução Russa de outubro de 1917, livros foram publicados e reeditados, artigos ganharam as páginas de revistas e jornais, congressos e seminários foram realizados ao redor do mundo e, no entanto, a discussão sobre o tema ainda continuará aberta por algum tempo. Seria um excesso imaginar que qualquer revisão daquele processo teria capacidade de (re)estabelecer a verdade dos fatos. Mas uma coisa é certa: nenhuma revisão consegue ter impacto nas orientações políticas hodiernas da esquerda mundial, como antes acontecia. A revolução comunista da Rússia já é um fato do passado e não promove a divisão ou a reorientação que antes promovia entre os simpatizantes das suas principais ideias.

Há alguns anos atrás a editora da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, convidou especialistas, principalmente historiadores, e decidiu organizar uma publicação sobre a história do comunismo, tomando como referência principal o que foi estabelecido como comunismo histórico, depois de 1917. Os três volumes estão indicados em https://www.cambridge.org/core/series/cambridge-history-of-communism/0399F87881C31D61C89C961E62A2DDEC para serem eventualmente adquiridos e lidos. Dentre os especialistas convidados estão Lucien Bianco, da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, de Paris, Stephen A. Smith, da Universidade de Oxford e Silvio Pons, da Roma Tor Vergata, que já publicou entre nós “A Revolução Global - história do comunismo internacional (http://www.contrapontoeditora.com.br/produto.php?id=3036 ). Esta coleção de três volumes da Cambridge constituiu a base do seminário “Ripensare la storia del comunismo”, realizado em Roma, entre 26 e 27 de outubro, na Biblioteca do Senado italiano, cuja organização esteve a cargo da Fondazione Gramsci de Roma e dos grupos parlamentares do Partido Democrático (PD) da Câmara e do Senado.

Os historiadores presentes não tiveram dúvida em qualificar como fracassadas as duas revoluções que implantaram o comunismo na Rússia e na China, levando-se em conta os objetivos que nortearam suas ações ao longo do tempo, desde o momento da conquista do poder. Não há mais nenhuma perspectiva interpretativa que busque erros específicos dos principais dirigentes e governantes. Suas ações são inscritas em conjunturas precisas e diante de desafios e dilemas que constituem parte do processo histórico. É a história in acto que importa a estes historiadores e não uma discussão ideológica e justificativa.

O traço fundamental do seminário - distinto da publicação de Cambridge, uma vez que nem todos os temas e autores estiveram presentes - foi o de tratar o comunismo como um fenômeno global, que influenciou varios países do mundo e milhões de pessoas durante o século XX. De fato, a crença no poder dos comunistas que se impuseram na Rússia tornou o seu movimento uma força global. Claro que esse tratamento teve um desenvolvimento específico, onde se tratou do papel do internacionalismo e do transnacionalismo na história do comunismo russo, bem como da experiência do comunismo na Europa depois da Segunda Grande Guerra, o que importa sobremaneira para uma reflexão do fenômeno em relação à trajetória e aos desafios da esquerda europeia.

Mas, a questão fundamental, no que tange a essa visão geral, é a de se comparar o comunismo russo com o chinês. O problema não é apenas quando se instala ou quando termina o comunismo, pois o fim do comunismo na antiga URSS já é fato conhecido e na China é algo suposto em razão do processo no qual o PCC, atuando em regime ditatorial, instaura o capitalismo como modo de produção material. O problema é efetivamente o destino do “comunismo capitalista” chinês como um player mundial e que papel ele poderá jogar no mundo globalizado.

Realidades não europeias também foram contempladas, como aquelas que envolvem a dinâmica de transformações do Vietnã, similar à chinesa, os limites da estratégia nacionalista dos comunistas da África do Sul e Argélia, e, mais importante, as mudanças que se operaram nos países que compunham uma espécie de commonwealth comunista, como Lituânia, Estônia, Ucrânia, etc.

Mas, o que torna mais evidente a mudança de perspectiva investigativa é o fato de se incluir na análise do comunismo histórico o que os historiadores vêm chamando de “história do cotidiano”. Isso retira, definitivamente, a discussão da temática do poder revolucionário e do seu destino e a coloca na história dos homens e mulheres de carne e osso que viveram sob o comunismo histórico. A historiadora Juliane Fürst, da Universidade de Bristol, Inglaterra, assumiu precisamente essa tarefa ao organizar uma pesquisa voltada para o “comunismo como experiência vivida”. Quem assistiu e se recorda do filme “Adeus, Lenin” se lembrará muito bem das questões cotidianas que envolviam a vida das pessoas na antiga Alemanha Oriental, mal qualificada como “democrática”. O ponto limite deste aspecto da história do comunismo se volta para a reflexão da sua incapacidade como inspirador de uma crença espiritual que envolvesse mais do que a realidade material da vida. No fundo, a revolução e o poder bolchevique não produziram efetivamente uma hegemonia cultural como “religião civil” (Gramsci falaria apenas e “hegemonia civil”) que pudesse lhe dar sustentação.

O fracasso do comunismo histórico deve ser visto na perspectiva que ele se assumiu, ou seja, como um movimento de caráter global. Não há como sustentar que sua perspectiva possa ainda fazer sentido aos homens e mulheres do século XXI. Ele não foi derrotado por forças superiores em termos materiais ou culturais. Ele entrou em colapso na antiga URSS e se despedaçou porque não foi capaz de construir o que prometeu: um novo mundo e um novo homem! Estamos, hoje, em uma nova fase da humanidade na qual o comunismo não é mais do que história.

 


Alberto Aggio: As múltiplas vigências do populismo

Foi Isaiah Berlin que, em maio de 1967, numa conferência proferida em Londres, chamou atenção para o fato de que o “complexo de Cinderela” rondava o conceito de populismo. Mobilizando os componentes da fábula, Berlin afirmava que a essência do populismo, seu núcleo fundamental, não se encontrava na realidade, mas no comportamento intelectual de se buscar, por toda a parte, o chamado “populismo puro, verdadeiro, perfeito”, tal como o príncipe que, naquela estória, sapato em punho, vagueava errante em busca do pé da donzela que o encantara. Mesmo que sua ocorrência se tivesse dado em um único lugar, não importando sua vigência no tempo, o que se buscava pelo nome de populismo era, na verdade, a realização de um “ideal platônico”. Por ser assim, o populismo “realmente existente” seria sempre uma versão incompleta ou uma perversão. Apesar desse imenso déficit analítico, o populismo continuou a ser, nas ciências sociais ou na linguagem política, uma referência conceitual para caracterizar lideranças, movimentos ou regimes políticos, da mesma forma que, sem assumir-se como tal, correntes políticas diferenciadas continuariam a expressar a perspectiva de sua realização por meio de estratégias variadas de ação política.

A pré-história do conceito registra que o neologismo nasceu da tradução para o inglês do movimento narodnik na Rússia da segunda metade do século XIX. No mesmo período, ele também seria utilizado, em menor escala, para identificar o movimento político de pequenos e médios produtores rurais no hinterland norte-americano. Depois da Rússia, a América Latina é a “grande pátria do populismo”, escreveu José Aricó. Foi nela que o conceito fincou raízes e se generalizou, a ponto de ser a denominação de um período da sua história.
Como conceito, o populismo resultou de um movimento reflexivo que visava explicar a inadaptação das camadas populares, advindas do campo, à vida urbana que se impunha de maneira irrefreável na América Latina desde a década de 1930. A teoria sociológica registrou uma conexão entre a atitude mental de reação à modernidade dessas camadas populares e os fenômenos de natureza pré-democrática que derivavam da inexperiência política do conjunto da sociedade latino-americana na transição da sociedade tradicional para a sociedade moderna. Os líderes que tiveram o respaldo político dessas camadas populares e se tornaram os principais protagonistas dos processos de superação da forma política de dominação oligárquica foram chamados de populistas, ainda que nenhum deles tenha assumido tal identidade.

O populismo emergiu num cenário de crise do liberalismo e de ascensão de massas, na América Latina e no mundo. Enquanto governos ou regimes, o populismo orientou sua política para a construção de uma sociedade industrial e moderna, politicamente orientada pelo Estado, ao mesmo tempo em que normatizou a “questão social”, incorporando as massas ao mundo dos direitos. Superou o liberalismo das oligarquias por meio de uma “fuga para frente” cujo objetivo foi o de realizar transformações sem rupturas violentas, evitando o que havia ocorrido nos processos capitalistas e socialistas de industrialização retardatária. O populismo promoveu a superação do atraso, sem revolução, garantindo, pela primeira vez, que o tema da cidadania fosse equacionado pela política nesta parte do Ocidente. Se aprofundarmos essa leitura, a “era do populismo” poderia ser compreendida por meio da categoria gramsciana da “revolução passiva”, abrindo novas perspectivas de interpretação.

Seja como for, o populismo interditou a via de passagem “clássica” à modernidade, caracterizada pela integração autônoma das classes populares às estruturas políticas da democracia liberal de perfil europeu. Ao invés disso, conectou desenvolvimento econômico e espaços institucionalizados de integração político-social de massas, reservando ao Estado um papel central. Essa configuração foi compreendida pelas ciências sociais como a principal razão de a sociedade latino-americana expressar claros limites para vivenciar a modernidade. Um diagnóstico poderoso e de muitas implicações: mais do que um conceito, o populismo era, no fundo, uma teoria explicativa a respeito dos descaminhos da modernidade latino-americana. Esta visão acabou produzindo uma cristalização cognitiva, fazendo com que a palavra populismo se generalizasse como representação de um passivo insuperável.

A história tratou de questionar essa interpretação. A luta política contra os regimes autoritários, especialmente no Brasil, deslocou o populismo do centro da política latino-americana, recusou a centralidade do Estado e promoveu a autonomia da sociedade civil em sua dinâmica de expansão da cidadania. No plano mundial, a globalização alterou a relação entre política e mercados. Tudo isso parecia enterrar definitivamente o populismo como um constructo ideológico passível de ser mobilizável apenas na “era dos Estados Nacionais”, mas anacrônico no contexto de globalização. Nessas circunstâncias, a política democrática começava a agregar novos valores à “revolução passiva”, agora em registro positivo, invertendo os vetores de sua orientação, com a mudança dirigindo a conservação.

A trajetória do populismo no século XX foi, em certo sentido, democratizadora, ainda que, em geral, avessa ao constitucionalismo e ao liberalismo. Contudo, a partir do início do século XXI, a mesma conjuntura que viu o avanço das amplas liberdades, do pluralismo e da alternância de poder nas democracias latino-americanas recém-saídas do autoritarismo também produziu uma espécie de “revanche do populismo” que, hoje, se expressa na moldura do bolivarianismo. Nela se supõe a emergência de uma forma de política na qual a relação entre governantes e governados abriria passagem para a construção de uma democracia direta e participativa, superior à democracia representativa, entendida como obsoleta e ineficiente. O populismo do século XXI busca uma identidade integral entre a instituição do “povo-sujeito” e a política, anulando a ideia de representação bem como a noção de “governo do povo”, entendida como uma contradição em termos.

Para Laclau, a razão populista e a razão política são idênticas, o que desloca para o plano secundário a deliberação racional vigente nas democracias ocidentais. Essa radicalização contraposta à modernidade, avessa ao individuo e sua expressão autônoma, que dá sustentação ao populismo do século XXI, sintetizada por Félix Patzi, ex-ministro da educação da Bolívia, como “uma espécie de autoritarismo baseado no consenso”.

Laclau realiza uma simbiose entre a teoria do populismo e as expectativas decantadas pelo marxismo quanto a uma revolução promotora da unificação, como dissemos acima, entre a razão do povo e a razão política. Por isso, faz sentido ele afirmar que hoje “há um fantasma que assombra a América Latina: esse fantasma é o populismo”. A paráfrase de Marx é imediatamente reconhecível e pode-se deduzir que Laclau pensa em reservar ao “populismo atual” um lugar idêntico ou semelhante ao que Marx imaginava para o comunismo na Europa dos idos de 1848.

Mas, ao contrário de Laclau, pelo menos até agora, o que se pode anotar é que o populismo dos dias que correm é visivelmente uma força regressiva no político. Hoje, no interior da moldura do bolivarianismo, nele predominam o autoritarismo, a intolerância e o antipluralismo. Onde é possível, afronta os direitos humanos, suprime as liberdades, reprime opositores, persegue juízes e jornalistas. Onde a ordem constitucional democrática é mais legitimada, a resistência é maior.