Luiz Sérgio Henriques: O ‘desvio bolchevique’ da extrema direita

Socialistas de hoje deveriam rever as relações com o extraordinariamente complexo mundo do liberalismo político

Luiz Sérgio Henriques / O Estado de S. Paulo

Não é bem o caso de nos sentirmos irremediavelmente condenados ou nos imaginarmos como em território ocupado, vivendo passivamente o programa de destruição nada criativa que nos foi imposto a partir das últimas eleições presidenciais. Sabemos, desde a “resistível ascensão” de Donald Trump em 2016, que nenhuma democracia moderna, nem mesmo a mais antiga delas, está a salvo da investida de demagogos que pareceriam inverossímeis há apenas uma geração ou até menos.

Não se trata de autocomplacência, mas sim da percepção de estar em meio a um fenômeno que nos ultrapassa. Párias, certamente, mas entre pares, bastando mencionar o nutrido grupo de autoritários que, um pouco por toda parte, venceram eleições e, a seguir, passaram a minar instituições do Estado e a simplificar em proveito próprio a riqueza e a pluralidade da sociedade civil.

Sem querer desviar minimamente o foco do drama principal, é preciso lembrar ações e consignas que balizaram há pouco mais de duas décadas o chamado “socialismo do século 21”. Lideranças populares ou militares de patentes intermediárias lançaram-se à política em diferentes contextos nacionais, marcados, todos eles, por um liberalismo restrito ou oligárquico. A promessa era a de varrer “tudo o que está aí” e inaugurar o imaginado poder popular direto.

De fato, num país após o outro, em sequência inquietante, à primeira vitória presidencial seguiram-se assembleias constituintes que consagraram tanto o novo capo providencial quanto seu partido, o qual, se não era único, passaria a controlar paulatinamente as alavancas de comando político e econômico. Por certo, uma contrafação do espírito bolchevique original supostamente aggiornato para o novo século.

Com as adaptações que cada caso requer e que a algaravia nas redes sociais exige, a estratégia revolucionarista viria a mudar de lado, a ponto de agora se poder apontar a existência de bizarros “bolcheviques de direita”, seguindo uma pista dada por Anne Applebaum. Os novos atores revolucionários, algozes do que chamam de establishment, têm sido capazes, entre outros “feitos”, de contestar ferozmente as eleições americanas e o “regime de Biden” ou levar a efeito contundentes ofensivas subversivas, como a que, no Brasil, culminou no 7 de setembro passado. Sem falar nos casos exemplares – do ponto de vista de tais subversivos – de Polônia ou Hungria, realidades em que se instalaram com aparente solidez e em que ditam regras práticas de dominação e imposturas conceituais, como a da “democracia iliberal”.

Há fraturas curiosas na variedade destes “leninistas” de novo tipo. Uma delas, a tensão entre a evidente vocação minoritária, que só um golpe da fortuna, em atmosfera plebiscitária, pode transformar em vitória eleitoral, e a certeza dogmática de encarnar o espírito do tempo, que os faz singularmente audaciosos. Outra, aquela entre a crueza material dos objetivos perseguidos, condensados na restauração dos instintos animais do capitalismo, e a manipulação obscena de sentimentos religiosos, colocando-os a serviço de forças avessas não só ao socialismo, seja qual for o sentido que se dê ao termo, como também ao liberalismo clássico e, em geral, aos processos característicos da modernidade. Um anticomunismo caricato completa o baú de ossos: caricato, pois sem razão de ser nem objeto definido, a menos que se considere Cuba como potência ameaçadora ou a China como líder de uma revolução mundial em andamento.

Significativa a contraposição frontal que volta a se dar entre, por um lado, a extrema direita e, por outro, duas correntes essenciais da modernidade ocidental, a saber, o liberalismo e o socialismo, na diversidade das suas manifestações. Em condições diferentes, há quase cem anos estas duas últimas tendências, com inclusão dos comunistas no grupo socialista, traçaram um complicado percurso até se juntarem na grande frente antifascista para combater a extrema direita de então. A bravura dos comunistas na luta antifascista constituiu um fator relevantíssimo na recriação do mundo no pós-guerra, ainda que não os pudesse redimir da incapacidade de renovarem a própria cultura política e de se afastarem das realidades nada atraentes – muito pelo contrário! – do que viria a se chamar socialismo real.

Os socialistas de hoje, particularmente no Brasil, ao examinar este passado e ao avaliar as possibilidades do presente, deveriam rever as relações com o mundo extraordinariamente complexo do liberalismo político. A bem da verdade, os social-democratas, na generalidade dos países ocidentais, há muito fizeram a transição para o universo democrático, afastando-se de tentações autoritárias e tornando-se um sólido pilar dos regimes constitucionais.

Seria tolice ignorar as pulsões autoritárias da esquerda terceiro-mundista, as mesmas que, como dissemos, envenenaram o termo “socialismo” no início do século. Mais tolice, ainda, deixar-se dominar por elas, renunciando ao papel essencial de defesa da República e do próprio País, talvez na sua hora mais difícil.

*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das obras de Gramsci no Brasil


Foto: Beto Barata\PR

Conheça as ideias dos conselheiros econômicos dos presidenciáveis

Pré-candidatos às eleições formam time de conselheiros com ideias para ampliar a renda e reduzir a inflação no País

Adriana Fernandes / O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA - Fazer o Brasil crescer mais e combater a pobreza são os dois temas que estão no topo das preocupações dos conselheiros econômicos dos presidenciáveis. O Estadão foi atrás do que pensam os economistas que estão auxiliando os presidenciáveis de 2022 com o presidente Jair BolsonaroCiro GomesSérgio Moro, Luiz Inácio Lula da Silva, além dos dois pré-candidatos do PSDBJoão Doria e Eduardo Leite, que disputam neste domingo, 21, as prévias do partido.

Enquanto Bolsonaro e seus auxiliares apostam nas medidas de aumento de gastos (Auxílio Brasil, vale-gás e bolsa caminhoneiro) para a recuperação mais rápida da economia, seus adversários reforçam os pontos fracos do seu governo: inflação e desemprego. Com a antecipação da corrida eleitoral para o Palácio do Planalto em 2022, o debate econômico, ainda marcado por proposições muito genéricas, deve ganhar espaço maior daqui em diante.

Veja, a seguir, a agenda que deve ser seguida por cada um dos presidenciáveis, a partir de conselhos de economistas: 

Bolsonaro

Na cadeira da Presidência da República, Bolsonaro tem a caneta na mão para lançar “bondades” na tentativa de melhorar sua popularidade para chegar competitivo em 2022. A aprovação da PEC dos precatórios para os seus planos é essencial e o seu posto Ipiranga, o ministro da EconomiaPaulo Guedes, não tem lhe dito não. Nem mesmo para a quebra do teto de gastos, a regra que impede que as despesas cresçam em ritmo superior à inflação.

Pelo contrário: Guedes já declarou que agora que “vem a eleição, vai para o ataque” com Bolsonaro.  Apoiou a decisão do presidente de subir o Auxílio Brasil (programa substituto do Bolsa Família) de R$ 300 para R$ 400, posição em que os ministros políticos acabaram se transformando em “conselheiros econômicos do presidente”. O mais aguerrido deles: Onyx Lorenzoni (Trabalho e Previdência).

Eles avisaram que, sem subir o valor, ficaria mais difícil para o presidente se reeleger num cenário de inflação alta e perda de renda da população. Bolsonaro assumiu o risco, apesar do conselho de Guedes de que poderia se tornar o Macri brasileiro, numa referência ao ex-presidente da Argentina que perdeu na tentativa de se reeleger.

Como estratégia de campanha, Guedes passou a adotar o discurso do social para afastar a marca de que trabalha a serviço do mercado financeiro, reforçada por declarações polêmicas, como a de que as empregadas domésticas estavam indo para a Disney com o dólar baixo, “uma festa danada”.

Defendeu um abraço social um pouco mais longo e um ajuste fiscal menos intenso:  "A solução de R$ 600 era nota 4 na economia, fura teto. A solução de R$ 300 estava nota 10 na técnica, mas 5 na política".  Mas continua  alvo da fritura e do fogo amigo, enquanto Bolsonaro foi até o Ministério da Economia para dizer que fica com ele até o fim do governo.

Na fila para o seu lugar, está o presidente da Caixa, Pedro Guimarães, o PG2, outro conselheiro do presidente, que vai viajar com Bolsonaro na campanha. 


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Entrevista ao apresentador Sikêra Júnior. Foto: Alan Santos/PR
Motociata Acelera pra Jesus. Foto: Alan Santos/PR
Motociata Acelera pra Jesus. Foto: Alan Santos/PR
Bolsonaro cumprimenta o general Eduardo Villas Boas, em cerimônia no Planalto. Foto: Alan Santos/PR
Entrega de espadim aos cadetes na Aman. Marcos Corrêa/PR
Entrega de espadim aos cadetes na Aman. Marcos Corrêa/PR
Presidente visita estátua de Padre Cícero em Juazeiro do Norte. Foto: Marcos Côrrea/PR
Cerimônia de entrega de residenciais no Cariri. Foto: Marcos Corrêa/PR
Entrega da "Ordem da Machadinha" em Joinville (SC). Foto: Alan Santos/PR
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Ciro

Ex-secretário de Fazenda do Ceará, o deputado federal Mauro Benevides segue como um dos principais conselheiros econômicos de Ciro Gomes. Os dois estiveram juntos nas eleições de 2018, quando um dos motes da campanha do pedetista foi “Ciro vai tirar seu nome do SPC”

Segundo Benevides, o foco continua o mesmo: trazer de volta o crescimento com a ampliação da capacidade de consumo das famílias (via redução do endividamento) e dos investimentos públicos. Sem essas medidas, diz, o Brasil continuará sem crescer. Esses dois componentes representam 80% do PIB quando analisado pelo lado da demanda.

“O investimento público está no chão. Eram R$ 100 bilhões em 2010 e estão agora em R$ 20 bilhões. E ninguém diz nada”, afirma o pedetista, que defende a retirada dos investimentos do teto de gastos.

Benevides diz que a estratégia para 2022 continua a mesma porque nada do que foi proposto avançou, entre eles, o corte de 15% das desonerações tributárias e a volta da cobrança do Imposto de Renda dos dividendos. Com essas duas medidas, Benevides diz que é possível conseguir “fácil” R$ 96 bilhões por ano para melhorar as contas públicas.

Ele atesta que, com Ciro, a redução das renúncias – política que não se conseguiu fazer até agora – vingaria: “Você não acha que o Ciro presidente não sustenta isso? Ele abriu a economia quando era ministro sob protesto da indústria”. Para Benevides, Ciro é o único candidato que teve coragem de colocar no papel o seu plano para o Brasil com o livro que escreveu, “Projeto Nacional: O dever da Esperança”.


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Foto: Fernando Bizerra Jr./EFE
Lula participa do Festival “Democracia Para Siempre” na Argentina. Foto: Ricardo Stuckert
Lula participa do Festival “Democracia Para Siempre” na Argentina. Foto: Ricardo Stuckert
Lula participa do Festival “Democracia Para Siempre” na Argentina. Foto: Ricardo Stuckert
Lula participa do Festival “Democracia Para Siempre” na Argentina. Foto: Ricardo Stuckert
Viagem Lula à Europa. Foto: Ricardo Stuckert
Viagem Lula à Europa. Foto: Ricardo Stuckert
Viagem Lula à Europa. Foto: Ricardo Stuckert
Viagem Lula à Europa. Foto: Ricardo Stuckert
Viagem Lula à Europa. Foto: Ricardo Stuckert
Viagem Lula à Europa. Foto: Ricardo Stuckert
Viagem Lula à Europa. Foto: Ricardo Stuckert
Viagem Lula à Europa. Foto: Ricardo Stuckert
Viagem Lula à Europa. Foto: Ricardo Stuckert
Viagem Lula à Europa. Foto: Ricardo Stuckert
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Lula

Líder nas pesquisas, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva não tem conselheiro econômico, apesar de economistas ligados ao PT – como Guilherme Mello, da Unicamp, e o ex-ministro da Fazenda, Nelson Barbosa – estarem apresentando propostas para a recuperação econômica e o crescimento do País em 2023.  “Ele é o porta-voz dele mesmo”, diz a presidente do PT, Gleisi Hoffmann (PR).

Segundo ela, Lula não acha necessário ter um porta-voz para falar sobre economia e tem o que mostrar com uma "gestão orçamentária responsável" nos oito anos em que foi presidente da República (2003-2010).

Na semana passada, durante viagem internacional a países da Europa, Lula se encontrou com líderes políticos, entre eles, o presidente da França, Emmanuel Macron, quando reforçou em discurso pontos da sua gestão em contraste com o governo de Jair Bolsonaro, o que deve dar a tônica da sua campanha: controle da inflação,  elevação do salário-mínimo e a criação do Bolsa Família, programa que acabou no governo atual e foi substituído pelo Auxílio Brasil. “Tiramos 36 milhões de pessoas da miséria”, disse Lula.

Na estratégia de se contrapor aos pontos fracos do seu principal adversário, Lula destacou que trabalhadores perderam direitos com a explosão do desemprego e custo de vida. “A fome voltou ao cotidiano das famílias”, afirmou ressaltando que Brasil tinha saído do Mapa da Fome da ONU e interrompido um ciclo de políticas econômicas neoliberais, de encolhimento do estado e privatização sem critério.

Nas suas redes sociais, o ex-presidente também vem destacando outros dois pontos fracos de Bolsonaro: a preservação do meio ambiente e as mudanças climáticas e o isolamento internacional.

Moro

Ex-presidente do BC, Affonso Celso Pastore surpreendeu quando aceitou se juntar ao ex-ministro Sérgio Moro para desenhar o programa econômico. É uma das lideranças do Centro de Debates de Políticas Públicas (CDPP), um think tank nacional voltado a desenvolver estudos com propostas para os principais desafios nacionais.

Outros economistas estão ao seu lado na elaboração do programa. Mas, por enquanto, ele e Moro preferem manter os nomes dos colaboradores em sigilo. Tem sido um dos críticos mais ácidos do ministro da Economia, Paulo Guedes, apontando erros de política que vão custar, segundo ele, a desaceleração econômica em 2022.

Em resposta, Guedes tem feito contra-ataques, sempre atribuindo às críticas ao embate político e ideológico contra Bolsonaro. “Não fez nada”, disparou recentemente o ministro. Pastore escolheu como foco de política o combate à pobreza, crescimento com distribuição de renda e a retomada da responsabilidade fiscal.

Para o economista, um ponto importante da agenda é dar a correta dimensão sobre qual é o tamanho do Estado na economia. “Privatizações são importantes, mas há aqui um conflito entre o Estado mínimo, liberal no qual se privatiza todas as empresas, e o Estado que é eficiente e privatiza aquilo que for privatizável para fazer ações como reduzir o nível de pobreza”.

Ele cita, como exemplo, a Petrobras. Diz que não vê razões para que a empresa faça o refino de petróleo e nem atue na distribuição, mas pondera que ela tem vantagens no negócio de achar petróleo. Na sua visão, para investir, a companhia precisa ter acionistas privados e não pode sofrer intervenções do governo para fixação de preços.


Foto: Podemos/Divulgação
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Foto: Podemos/Divulgação
Foto: Podemos/Divulgação
Coletiva de imprensa de Sergio Moro. Foto: Waldemir Barreto/Agência Senado
Foto: Lula Marques / AGPT
Coletiva de imprensa de Sergio Moro. Foto: Waldemir Barreto/Agência Senado
Coletiva de imprensa de Sergio Moro. Foto: Waldemir Barreto/Agência Senado
Coletiva de imprensa de Sergio Moro. Foto: Waldemir Barreto/Agência Senado
Coletiva de imprensa de Sergio Moro. Foto: Waldemir Barreto/Agência Senado
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PSDB

Como secretário de Fazenda de São Paulo, Henrique Meirelles é hoje o economista mais próximo do governador do Estado, João Doria, que disputa nesse domingo com o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, as prévias do PSDB.

Meirelles será candidato ao Senado pelo seu Estado natal, Goiás, o que automaticamente lhe coloca fora de uma eventual campanha do governador, mas assessores de Doria afirmam que seguirá influenciando.

A exemplo de outros presidenciáveis, os nomes de outros economistas que podem aderir à campanha não foram ainda revelados. Para Meirelles, o que deve marcar o debate eleitoral em 2022  é o cenário econômico atual muito difícil com inflação elevada, juro alto, crescimento baixo e falta de emprego. 

Ele diz que Doria tem o que mostrar: crescimento maior do que o restante do País, responsabilidade fiscal, reformas econômicas que abriram espaço de R$ 50 bilhões para investimentos e concessões. 

Ex-secretário de Fazenda do Rio Grande do Sul, Aod Cunha é o homem da economia da campanha de Leite O programa do governador gaúcho terá uma grande preocupação com o tema da desigualdade social  e foco de erradicação da pobreza infantil, um contingente de 17 milhões de crianças até 14 anos.

Outro eixo é de ações que façam com que o País cresça mais, porém, de forma estrutural. “Achamos que o nível de desigualdade, não só de renda, mas de uma maneira geral é muito disfuncional, inclusive para o crescimento”, diz.

O Brasil, fora da África, é o País que tem a maior concentração de renda.  “Achamos que um País que está no final do seu bônus demográfico (maior proporção de pessoas em idade de trabalhar em relação à população dependente, crianças e idosos) não tem outro jeito do que aumentar a produtividade”, diz o conselheiro.

Fonte: O Estado de S. Paulo
https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,conheca-as-ideias-dos-conselheiros-economicos-dos-presidenciaveis,70003904135


PSDB faz prévias em meio a tentativa de recuperar relevância para 2022

Na manhã deste domingo (21/11), milhares de filiados ao PSDB participarão das prévias do partido

Leandro Prazeres / BBC News Brasil

Mas o partido que vai às urnas neste final de semana parece distante daquele que comandou o país por oito anos e foi a principal força de oposição aos governos do PT.

Segundo especialistas ouvidos pela BBC News Brasil e o presidente da legenda, Bruno Araújo, as prévias do PSDB fazem parte de uma tentativa do partido de recuperar relevância e protagonismo no cenário político brasileiro.

O PSDB foi fundado em 1988 a partir de uma cisão do antigo PMDB (atual MDB) com uma inspiração na chamada social-democracia europeia. O partido venceu duas eleições presidenciais consecutivas (1994 e 1998), com Fernando Henrique Cardoso.

A partir de então, perdeu quatro disputas nacionais seguidas para o PT: 2002, 2006, 2010 e 2014. Apesar disso, manteve sua dominância em estados considerados poderosos como São Paulo e Minas Gerais e se consolidou, neste período, como a principal força de oposição aos governos petistas.

Após o impeachment de Dilma Rousseff (PT) em 2016, o PSDB se aliou ao então presidente Michel Temer (MDB) e passou a integrar diversos ministérios. Em 2018, com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) preso como resultado da Operação Lava Jato, a expectativa era de que o partido pudesse voltar ao poder.

No entanto, seu candidato na época, o ex-governador de São Paulo Geraldo Alckmin, ficou em quarto lugar com apenas 4,76% dos votos. Além disso, o partido viu sua participação na Câmara dos Deputados despencar. Em 2014, o PSDB elegeu 54 deputados e era a terceira maior bancada da Casa.

Quatro anos depois, o partido elegeu apenas 29, ficando em em nono lugar. E enquanto tudo isso acontecia, o PT, até então principal adversário dos tucanos, também perdeu deputados, mas conseguiu se manter como a maior bancada na Câmara e ainda levou seu candidato, Fernando Haddad, ao segundo turno das eleições de 2018.

Geraldo Alckmin em discurso pelo PSDB
Em 2018, Alckmin ficou em quarto lugar na disputa presidencial, com apenas 4,76% dos votos. Foto: AFP

Nesse cenário descendente, o governador de São Paulo, João Doria, passou a tentar emplacar o seu nome como candidato à Presidência em 2022, mas encontrou resistência de diferentes grupos na legenda.

Três nomes disputam a chance de representar o partido nas eleições presidenciais de 2022: Doria; o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite; e o ex-prefeito de Manaus e ex-senador pelo Amazonas Arthur Virgílio.

A disputa está polarizada em torno de Doria e Leite. As eleições acontecerão em todo o Brasil por meio de votos eletrônicos e poderão participar todos os filiados ao partido até o dia 31 de maio deste ano.

A expectativa é de que o resultado seja divulgado no domingo (21/11). Se nenhum dos três candidatos atingir a maioria absoluta dos votos, haverá segundo turno, previsto para o dia 28 de novembro.

O desafio do vencedor em 2022 será grande uma vez que os dois principais candidatos do partido, Doria e Leite, não aparecem entre os primeiros colocados nas pesquisas de intenção de voto realizadas até o momento e que colocam o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o atual presidente Jair Bolsonaro nas duas primeiras posições.

Nesse contexto, uma das perguntas a serem respondidas é: a realização das prévias pode ajudar o PSDB a recuperar a relevância que teve no passado?

Perda de relevância

Para o professor de ciência política na Fundação Getúlio Vargas (FGV) Cláudio Couto, a resposta é: não. Ele afirma que antes de avaliar os impactos das prévias, é preciso entender o que levou o partido a perder o prestígio e o protagonismo que teve durante quase 20 anos.

Segundo ele, isso se deve a dois fatores: a perda consecutiva de eleições presidenciais e a diluição da sua identidade.

"Não acho que as prévias, em si, podem fazer o partido recuperar a sua relevância. O PSDB perdeu protagonismo porque perdeu muitas eleições seguidas e isso tem um impacto direto no partido. Além disso, especialmente depois de 2014, o PSDB teve sua identidade diluída. Desde sua fundação, ele se propunha a ser uma legenda progressista, mas isso se perdeu quando o partido deu uma guinada para o centro-direita e está indo cada vez mais à direita", afirmou.

O cientista político Fernando Bizzarro faz doutorado na Universidade de Harvard e estuda partidos há quase 10 anos. Ele diz que as prévias têm um ponto positivo que é o de produzir atenção em direção ao PSDB.

"Se não fosse pelas prévias, não estaríamos falando do PSDB agora. E isso é bom. Traz mídia e coloca o partido em evidência", explica.

Bizzarro aponta dois outros fatores para explicar a perda de protagonismo do PSDB. Um deles foi a mudança de prioridade do eleitorado a partir de 2014.

"Até 2014, a principal preocupação do eleitorado era a economia. Depois, passou a ser a corrupção. No campo da economia, o PSDB ia bem, tinha repertório. Mas no campo do combate à corrupção, isso mudou, especialmente quando algumas figuras do partido como Aécio Neves passaram a ser alvos da Lava Jato", afirmou.

"O PSDB não tinha a mesma capacidade de incorporar essa pauta como outros partidos ou nomes como Jair Bolsonaro. O PSDB acabou perdendo o bonde da história", afirma.

O outro fator apontado por ele é a incapacidade de o partido criar uma base sólida e militante em torno dele. Dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) mostram que, entre 2011 e 2021, o número de filiados do PSDB caiu 1,6%, saindo de 1,370 milhão para 1,354 milhão. No mesmo período, o total de filiados ao PT aumentou 5,4%, saindo de 1,524 milhão para 1,607 milhão.

"No período em que esteve no poder, o PSDB não foi capaz de transformar seus eleitores em partidários. O antipetismo nunca foi uma posição de adesão ao PSDB e isso se tornou uma fraqueza quando o ambiente mudou e outros atores passaram a ocupar o espaço deixado pelo partido", explica.

Aécio Neves e Michel Temer se cumprimentam; Aécio sorri
Aécio Neves e Michel Temer em foto de 2016; após o impeachment de Dilma Rousseff (PT), PSDB se aliou ao governo do emedebista. Foto: Agência Brasil

À BBC News Brasil, o presidente do PSDB, Bruno Araújo, admite que o partido perdeu protagonismo e disse que as prévias são uma tentativa de recuperar essa liderança.

"O PSDB teve, sim, enorme protagonismo nas últimas décadas. Em 2018, tivemos um tropeço, mas já estamos nos recuperando. As prévias são, sim, um movimento para devolver um certo protagonismo ao partido. Agora, ganhar ou vencer a eleição será o resultado de uma série de variáveis e de trabalho a ser feito", disse.

Riscos das prévias

Cláudio Couto aponta que, ao contrário do que sustenta Bruno Araújo, o PSDB pode sair das prévias mais fraco do que entrou. Isso aconteceria, segundo ele, porque o processo de escolha interna suscita disputas entre grupos que poderiam levar o partido ao "esfacelamento".

"O problema que eu vejo é a possibilidade de esfacelamento do partido. Em vez de resolver o problema da indicação de um candidato, você acaba criando um ponto de atrito incontornável. Pelo andar da carruagem é pouco provável que o partido se una inteiro em torno do nome que vencer", afirmou Couto.

Atualmente, os dois principais candidatos das prévias tucanas são João Doria e Eduardo Leite. Apesar de se tratarem com cordialidade sob os holofotes, os dois disputam acirradamente a indicação.

Em outubro, um grupo de apoiadores de Leite acusou Doria de ter fraudado os registros de filiações no diretório do partido em São Paulo para ampliar a base eleitoral do governador de São Paulo. Doria negou as alegações.

Colagem de fotos de Eduardo Leite e João Doria
Eduardo Leite e João Doria são os principais nomes em disputa nas prévias do PSDB. Foto: Agência Brasil

"Duvido que se Doria for o vencedor, o partido vai se unir como fazem os partidos Democrata ou Republicano nos Estados Unidos. No Brasil, essa disputa interna deixa marcas, fere sensibilidades e acaba produzindo um estrago muito grande", afirmou o cientista político.

"O risco é o PSDB sair mais fraco do que se tivesse conseguido manter um mínimo de unanimidade. E isso pode acontecer especialmente agora que aumenta a competição na chamada terceira via com a possível candidatura do ex-juiz Sergio Moro", afirmou Couto em referência à filiação de Moro ao Podemos.

Fernando Bizzarro discorda da possibilidade de que o partido possa sair das prévias pior do que entrou.

"Se o PSDB sair pior, então é melhor fechar o partido. Dada a posição do partido, não tem como isso acontecer. Acho que vai sair ou na mesma posição ou em posição relativamente melhor", afirmou.

O cientista político ressaltou que além do acirramento das tensões internas citado por Cláudio Couto, as prévias geram um risco externo ao expor as fraquezas do partido ao público exterior.

"As prévias expõem à sociedade as divisões internas do partido e cria a possibilidade de que candidatos adversários explorem isso ao longo das eleições. Acaba gerando um fogo amigo que pode ser usado mais adiante", explicou.

Bruno Araújo admite que o processo de escolha interna pode causar "rusgas", mas ele diz acreditar que essas "feridas" precisam da liderança do vencedor para serem curadas.

"Eu não convoquei uma confraria. Convocamos uma eleição e eleições deixam rusgas. Essas rugas deixam feridas abertas no tempo e precisam da liderança do vencedor pra serem curadas. Depois do resultado, há meses até agosto do ano que vem para as costuras e as feridas serem cicatrizadas", afirmou.

Mudança no vento

Apesar dos riscos da realização de prévias em temperatura alta, Fernando Bizzarro diz que o partido pode se aproveitar de uma mudança de prioridades do eleitorado em 2022.

Ele explica que com a possível piora do ambiente econômico e recrudescimento da inflação e do desemprego, a economia pode voltar a ser a principal preocupação do eleitorado nas próximas eleições. Se isso acontecer, o PSDB pode voltar a ser relevante no debate político do ano que vem, diz Bizzarro.

"Se o foco sair da corrupção para a situação econômica, aí o PSDB voltará a navegar em um terreno no qual se sente confortável. Isso pode representar uma oportunidade para o partido retomar algum protagonismo nas próximas eleições", afirmou.

Fonte: BBC Brasil
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-59355549


Luiz Carlos Azedo: Guerra ideológica no Enem mira a reeleição de Bolsonaro

O exame ocorre em meio ao caos na instituição, porque 37 técnicos do órgão pediram demissão e denunciaram a interferência indevida do ministro da Educação

Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense

Um dos momentos de maior angústia nas vidas dos nossos jovens é o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), que funciona como uma espécie de portal para a vida adulta, porque seus desempenhos serão determinantes para o acesso ao ensino superior. Hoje, 3,1 milhões de jovens em todo o país prestarão a primeira prova do Enem, em meio a uma guerra ideológica aberta por pressão do presidente Jair Bolsonaro sobre os técnicos do órgão responsável pela elaboração das provas, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), para que as provas fossem politicamente alinhadas com a suas ideias sobre os costumes e a história. Detalhe: é o menor número de inscritos desde 2005.

O exame ocorre em meio ao caos na instituição, porque 37 técnicos do órgão pediram demissão e denunciaram a interferência indevida do ministro da Educação, Milton Ribeiro, na elaboração das provas. Ex-reitor da Universidade Mackenzie, de São Paulo, pastor presbiteriano, advogado e teólogo, seu prestígio junto ao presidente Jair Bolsonaro foi à Lua graças à confusão que arrumou. O diretor nomeado por ele para o Inep, Danilo Dupas Ribeiro, é acusado de assédio moral e manipulação das provas, com censura a determinadas questões. Há denúncias de tentativa de nomeações indevidas para cargos e funções no órgão, com pessoal não qualificado, inclusive policiais federais.

Tudo isso fez com que Bolsonaro comemorasse a crise quando estava em viagem no Oriente Médio: “Agora o Enem tem a cara do meu governo”. Naturalmente, a oposição foi para cima do ministro da Educação no Congresso, mas isso somente o fortaleceu junto àquele que o nomeou. Uma das características do governo Bolsonaro é o seu reacionarismo cultural, associado a ideias políticas autoritárias, que idealizam o passado relativamente recente, principalmente o “regime militar”, expressão que o presidente da República gostaria que fosse substituída por “revolução”.

Eleito com uma agenda regressiva, Bolsonaro não conseguiu implementá-la integralmente no Congresso, seja porque não teve apoio parlamentar suficiente, seja por causa do papel constitucional do Supremo Tribunal Federal (STF) em defesa do Estado Democrático de Direito. Entretanto, nos ministérios, essa agenda avançou até onde foi possível, com consequências que hoje respondem por muitos fracassos no seu governo. Há, de fato, uma estratégia bem-sucedida de desmonte de políticas públicas construídas ao longo de décadas. Seu fracasso está em não conseguir implementar nada no lugar, devido à resistência de técnicos e gestores públicos de carreira.

Hegemonia cultural
Na área da cultura, a estratégia foi implementada de forma radical. Quanto mais estapafúrdio, histriônico e reacionário o sujeito, mais prestigiado fica com o presidente da República. Se espinafrar jornalistas e a imprensa, então, nem se fala. Por isso, quem imagina a demissão do presidente do Inep ou do ministro da Educação, pode desistir. Apesar das denúncias de que órgão vive uma “crise sem precedentes, com perseguição aos servidores, assédio moral, uso político-ideológico da instituição pelo MEC, e falta de comando técnico no planejamento dos seus principais exames, avaliações e censos”. A guerra ideológica contra o chamado “marxismo cultural” é música para Bolsonaro, porque mobiliza sua base conservadora e evangélica.

Olavo de Carvalho, o ideólogo bolsonarista que se mandou do país na semana passada, temendo ser preso, fez a cabeça do presidente quanto à necessidade de erradicar as ideias progressistas da educação, o que vem sendo um fator de crise nessa área desde o começo do governo. Seu livro O mínimo que você precisa saber para não se tornar um idiota (Record) é a segunda bíblia de milhares de pastores evangélicos, que lutam contra um inimigo imaginário cujos objetivos seriam destruir a família e corromper a juventude.

Professores da rede pública e privada são vistos como ameaça por adotarem uma suposta “pedagogia comunista”, cujo símbolo seria o educador Paulo Freire. Olavo faz uma interpretação distorcida do conceito de “hegemonia”, de Antônio Gramsci, descrito nos Cadernos do Cárcere (Civilização Brasileira), escrito na prisão, de 1926 a 1937, durante o regime fascista de Benito Mussolini. Grosso modo, segundo o pensador marxista italiano, no Ocidente o poder político não depende apenas da força do Estado, mas também da cultura social, ou seja, do consentimento da sociedade civil. Nesse aspecto, a construção da “hegemonia” dar-se-ia também no âmbito de instituições como a igreja e o sistema de ensino.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-a-guerra-ideologica-no-enem-mira-a-reeleicao-de-bolsonaro/

Cristovam Buarque: Vigília responsável e solidária

Os políticos optaram pela velha tradição brasileira de liberar despesas maiores do que a receita. Agora miram o teto de gastos

Cristovam Buarque /Blog do Noblat / Metrópoles

Nossa geração de brasileiros foi condenada a pagar dívidas com brasileiros que não receberam no passado pagamentos a que tinham direito. Os precatórios surgiram de irresponsabilidades e incompetências cometidas por governos anteriores, que o atual governo deve pagar. Se não fizer, além de represálias jurídicas que sofrerá, estará adiando o problema para brasileiros do futuro, e cometendo injustiça com aqueles que têm direito de receber os créditos que a lei já reconheceu. Esta situação é simples se não for confrontada com a realidade aritmética, comparando o valor da dívida que vem do passado com a disponibilidade de dinheiro no presente. O setor público brasileiro não dispõe dos bilhões de reais necessários para pagar a dívida, salvo se os políticos fizessem uma reforma fiscal para retirar dinheiro de empresas e pessoas para financiar estes gastos; ou se rompesse as amarras da responsabilidade fiscal e permitisse ao governo gastar mais do que dispõe, pagando com moeda desvalorizada pela inflação, o que não deixa de ser uma reforma fiscal em que todos pagariam pela redução do valor da moeda que têm em mãos. A alternativa de emitir títulos em vez de moeda é uma forma de trocar precatório hoje por pagamento da dívida no futuro acrescida de juros, com o agravante de que para trocar os títulos por dinheiro seria necessário aumentar a taxa de juros a ser paga aos que emprestam o dinheiro, assustados com risco de futuros calotes, provocando nefastas consequências sobre a economia, tais como desemprego e recessão.

Os políticos optaram pela velha tradição brasileira de liberar despesas maiores do que a receita, como sempre fizeram para atender ao apetite por gastos em privilégios, emendas, ostentação, subsídios, obras necessárias ou não, e até por gastos sociais necessários. Para isto eles precisam romper a PEC do Teto que, sendo determinação constitucional, precisa de um quórum qualificado. Embora a maioria de nossos políticos sejam, historicamente, populistas e irresponsáveis nos gastos públicos, o fato de estar na Constituição faz com que a liberação para gastar exige uma maioria expressiva. Com isto, uma minoria dos parlamentares pode barrar a volta do casamento entre economistas negacionistas da aritmética e populistas de direita e de esquerda que conduziram as finanças públicas brasileiras, ao longo de grande parte das últimas seis a sete décadas.

Para vencer esta minoria que deseja manter a responsabilidade fiscal do Teto, os defensores da irresponsabilidade encontraram dois argumentos: não se deve dar calote em dívida e é preciso atender aos pobres que passam fome. De repente, políticos de esquerda que defendiam calote ou renegociação da dívida pública agora ae tornam radicais opositores do calote e de renegociação dos “precatórios”, e políticos insensíveis ao sofrimento do povo passam a defender os brasileiros que passam fome. Além do imediatismo eleitoral, estão usando a fome e os “precatórios” para voltar ao negacionismo da aritmética que permite tratar com irresponsabilidade as finanças públicas. Tomando carona na fome e nos “precatórios”, políticos de esquerda e de direita querem voltar ao tempo de gastos sem limites para suas emendas, privilégios, subsídios, ostentação, desperdícios, fundo partidário, fundo eleitoral, e certos gastos sociais, sem tocar nos privilégios e na concentração de renda, nem na tributação regressiva que isenta os ricos e penaliza aos pobres..

A derrubada da PEC do Teto é uma contrarrevolução feita em nome de atender aos esfomeados e cumprir ordem judicial. Mais uma vez a política nacional beneficia aos ricos com a ilusão de beneficiar aos pobres, jogando para estes pagarem o que recebem com a carestia que roubará o que recebem. Em um país com o potencial para a produção agrícola e com a capacidade de distribuição de alimentos a ocorrência de fome só se explica pela maldade e cegueira da política. Se quisessem de fato enfrentar a fome genocida que acontece sob nossos olhos, o Congresso deveria se reunir em vigília, responsável e solidária, contra a fome, dia e noite, sábado e domingo, com a pauta exclusiva de como resolver o problema da fome, definir um programa emergencial, estimado quanto será preciso tirar dos que comem para os que não comem, sem roubar ao povo com inflação. Em um país com o potencial.

*Cristovam Buarque foi senador, ministro e governador

Fonte: Blog do Noblat / Metrópoles
https://www.metropoles.com/blog-do-noblat/artigos/vigilia-responsavel-e-solidaria-por-cristovam-buarque


Alessandro Vieira: Precisamos falar do Orçamento

Quadro atual traz dilemas que persistem desde a redemocratização

Alessandro Vieira / O Globo

Às vésperas da votação da PEC dos Precatórios no Senado, precisamos falar sobre o verdadeiro problema que ela traz à tona. Não é a PEC, muito menos o auxílio social que ela — em tese — torna possível. Não é só o orçamento secreto, ou as emendas distribuídas a alguns parlamentares “coincidentemente” próximo a votações importantes. A verdade é que precisamos falar sobre o Orçamento federal.

O Orçamento no Brasil não tem passado de uma peça de ficção. Plano Plurianual (PPA), Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), Lei Orçamentária Anual (LOA), em tese, deveriam servir como norte para um planejamento de país: da Educação à Saúde, da Infraestrutura à Agricultura. No entanto o que temos visto governo após governo é um jogo de quebra-cabeça em que as peças não se encaixam e acabam por formar uma imagem turva do que gostaríamos de ser.

A ideia do ciclo de planejamento é bonita: começa com o PPA, quando o presidente eleito tem a missão de desenhar o país que pretende conduzir pelos próximos quatro anos. Ali, os ministérios descrevem suas diretrizes, objetivos e metas para aquele ciclo, que se inicia no segundo ano de cada mandato e se encerra no primeiro ano do mandato seguinte, trazendo o senso de continuidade. Seus programas e ações devem orientar a LDO, em que serão elencadas as políticas públicas a ser priorizadas para que as metas sejam cumpridas. A LOA completa o quadro. Ali se demonstra como o governo pretende pagar por aquilo que foi planejado para o ano seguinte.

O problema é que a teoria tem se mostrado ineficiente na prática, especialmente quando o governo se exime de qualquer responsabilidade sobre presente e futuro. Uma das principais alterações feitas por Bolsonaro na estrutura administrativa foi a incorporação do Ministério do Planejamento ao Ministério da Economia, uma estrutura que se tornou grande demais para a pequena capacidade de gestão deste governo. Em certa medida, perdeu-se a visão estratégica da economia e do próprio planejamento. Talvez tenha sido uma mostra do que se podia esperar.

No entanto o quadro atual traz dilemas que persistem desde a redemocratização. Por vezes, não é possível compreender os confusos Projetos de Lei do Congresso (PLNs) que buscam alterar a colcha de retalhos que virou o Orçamento público federal. A atenção de todos acaba se voltando mais para o não previsto, e o recurso discricionário (livre de definições prévias) se torna objeto principal, seja como RP2 (emendas discricionárias), RP9 (emendas de relator) ou a manobra orçamentária que surgir. Ocupam-se mais com o recurso que deveria apenas corrigir distorções do que com o que deveria balizar o funcionamento do país.

Então tem-se uma bola de neve: processos nada transparentes geram execuções obscuras, dificultam a fiscalização da execução e permitem o surgimento de esquemas que só mudam de nome, independentemente de qual partido esteja no poder. No passado, Anões do Orçamento, mensalão. Atualmente orçamento secreto (ou bolsolão). E nos atemos mais aos nomes que às soluções.

Especialmente no pós-pandemia, precisamos de governantes que compreendam a importância do ciclo: planejar, executar, fiscalizar. Precisamos nos concentrar no que é essencial para garantir um mínimo de dignidade à população mais carente e criar as condições necessárias para que a nossa economia seja reconstruída. Precisamos de processos transparentes, de um Orçamento que possa ser revisto, mas que sirva como norteador real, e não fictício, de um projeto de país.

Com parlamentares mirando na poupança eleitoral e um presidente preocupado em manter seu poder de compra sob o Centrão, dificilmente teremos o melhor resultado. Ou começamos quanto antes a construir um país em bases verdadeiramente sólidas, ou tudo que teremos será uma nação sempre prestes a ruir.

*Senador (Cidadania-SE)

Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/precisamos-falar-do-orcamento.html


Marcha em SP critica Bolsonaro e relembra vítimas da pandemia

Outras cidades também registraram atos, como Rio, Salvador, Maceió e Fortaleza

Isabela Palhares / Folha de S. Paulo

Milhares de pessoas ocupam na tarde deste sábado (20) quatro quadras da avenida Paulista, no centro de São Paulo, para a Marcha da Consciência Negra.

As falas das lideranças, cartazes e camisetas trazem principalmente críticas ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e à postura do governo federal durante a pandemia do coronavírus.

Os participantes carregam cartazes com frases como "cemitérios lotados, geladeiras vazias" e "fora, Bolsonaro racista". Há também muitas faixas em homenagem a pessoas que morreram de Covid.

A marcha foi organizada pelo movimento negro em parceria com a Campanha Fora Bolsonaro, coalização de movimentos, entidades e partidos que desde maio tem realizado atos contra o presidente.

Várias outras cidades também registraram atos organizados por movimentos sociais, sindicais e partidos políticos de oposição ao governo Bolsonaro. Eles tiveram como temas principais o racismo, a fome e críticas ao presidente.


Marcha da consciência negra de São Paulo. Foto: Roberto Parizotti
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Marcha da consciência negra de São Paulo. Foto: Roberto Parizotti
Marcha da consciência negra de São Paulo. Foto: Roberto Parizotti
Marcha da consciência negra de São Paulo. Foto: Roberto Parizotti
Marcha da consciência negra de São Paulo. Foto: Roberto Parizotti
Marcha da consciência negra de São Paulo. Foto: Roberto Parizotti
Marcha da consciência negra de São Paulo. Foto: Roberto Parizotti
Marcha da consciência negra de São Paulo. Foto: Roberto Parizotti
Salvador – 13ª Lavagem da Estátua de Zumbi dos Palmares. Foto: Elói Corrêa/GOVBA
Salvador – 13ª Lavagem da Estátua de Zumbi dos Palmares. Foto: Elói Corrêa/GOVBA
Marcha da consciência negra de São Paulo. Foto: Roberto Parizotti
Marcha da consciência negra de São Paulo. Foto: Roberto Parizotti
Marcha da consciência negra de São Paulo. Foto: Roberto Parizotti
Marcha da consciência negra de São Paulo. Foto: Roberto Parizotti
Marcha da consciência negra de São Paulo. Foto: Roberto Parizotti
Salvador – 13ª Lavagem da Estátua de Zumbi dos Palmares. Foto: Elói Corrêa/GOVBA
Salvador – 13ª Lavagem da Estátua de Zumbi dos Palmares. Foto: Elói Corrêa/GOVBA
Salvador – 13ª Lavagem da Estátua de Zumbi dos Palmares. Foto: Elói Corrêa/GOVBA
Salvador – 13ª Lavagem da Estátua de Zumbi dos Palmares. Foto: Elói Corrêa/GOVBA
Salvador – 13ª Lavagem da Estátua de Zumbi dos Palmares. Foto: Elói Corrêa/GOVBA
Marcha da consciência negra de São Paulo. Foto: Roberto Parizotti
Marcha da consciência negra de São Paulo. Foto: Roberto Parizotti
Marcha da consciência negra de São Paulo. Foto: Roberto Parizotti
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Entre elas estão Rio de Janeiro, Goiânia, Maceió, Belém, Salvador, Fortaleza, Campo Grande, Florianópolis e Londrina. As manifestações ocorreram perto de monumentos dedicados a Zumbi dos Palmares, líder da resistência negra no país, nas capitais fluminense e baiana, por exemplo, onde houve a tradicional lavagem da estátua.

Este sábado marca os 50 anos da instituição do Dia da Consciência Negra, marcado em homenagem ao dia da morte de Zumbi dos Palmares. O ato em São Paulo começou com a apresentação dos blocos Eureca e Ilú Oba de Min.

"Acho importante que meu filho veja uma manifestação forte como essa do povo negro nas ruas, mostrando a sua música, a sua força", disse a percussionista e cantora Fabiane Ramos, 32, que levou o filho Aniel, 7, para o ato.

O menino usava a fantasia do Pantera Negra, super-herói negro. Ele também segurava nos braços um boneco de pano de Zumbi dos Palmares. "Quero que meu filho se sinta representado, se reconheça na sociedade. Ainda temos uma luta longa para que isso ocorra da forma como deve ser."

Luís Guilherme Santos, 37, também levou a filha Luara, 6, para acompanhar a marcha. Com um turbante nos cabelos, a menina segurava um cartaz com a frase "respeita as minas pretas".

"A população negra está ainda mais ameaçada com o governo federal atual, mais uma vez fomos mais vítimas da pandemia, da crise financeira. Temos que estar cada vez mais fortes, o ato é importante para nos lembrar da força da nossa união", disse Santos, que é professor.

Algumas faixas e camisetas também fazem homenagens a vereadora Marielle Franco, assassinada em 2018, e João Alberto Freitas, homem negro assassinado por seguranças do supermercado Carrefour em Porto Alegre em 19 de novembro do ano passado.

Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2021/11/marcha-da-consciencia-negra-em-sp-critica-bolsonaro-e-relembra-vitimas-da-pandemia.shtml


“Tenho que voltar para recuperar o Brasil, e que o povo coma 3 vezes por dia”

Ex-presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, em turnê pela Europa, afirma que seu país pode voltar ao cenário internacional a partir das eleições do próximo ano

Pepa Buenolucía Abellán / El País

Ele entra como um ciclone na sala onde fazemos a entrevista. Ao longo da conversa, o ex-presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva repete várias vezes sua idade, 76 anos —uma idade na qual um homem não pode odiar, nos dirá—, mas afirma estar com a energia de alguém muito mais jovem. E de fato, vem de uma jornada exaustiva em Madri e de uma esgotadora viagem pela Europa, que antes o levou a Berlim, Bruxelas e Paris. Apesar de toda essa agitação, responde desde a primeira pergunta com a paixão de quem quer proclamar ao mundo que o Brasil pode estar de volta à cena internacional a partir das eleições que do ano que vem. Essa é a mensagem que deseja transmitir em sua visita à Europa: o Brasil não é Bolsonaro.

Pergunta. Nós o vimos em sua viagem pela Europa com muita energia, com muita vontade de política.

Resposta. Isso é o que eu sinto. Quando eu deixei a presidência, em 2010, o Brasil estava numa situação de crescimento econômico e de respeitabilidade. O que nós estamos vendo hoje é que o Brasil está quebrado. Temos mais desemprego e inflação. E a fome, que tinha acabado no Brasil em 2014, voltou com muita força. O Brasil era um protagonista internacional. E tudo isso foi desmontado. Em nome do quê? Em nome de apagar a imagem do Lula, de apagar a imagem do PT. Portanto, estou com muita disposição de fazer política. Minha causa é a luta contra a desigualdade no Brasil e no mundo. Não posso admitir que o mundo produza mais alimentos do que a humanidade pode comer, e que tenhamos 800 milhões de pessoas com fome no mundo. Nem que no Brasil, que é o terceiro produtor de alimento do mundo, as pessoas estejam passando fome. Quero aproveitar, enquanto Deus me dê vida, enquanto eu tenho energia, força na minha garganta e nas minhas pernas, para lutar por um mundo mais humano, onde todo mundo tenha o seu elementar. É isso que me dá vontade de brigar. É isso que me faz ser jovem. Parece que tenho 76 anos, mas tenho energia de 30 anos. O mundo não pode continuar assim. Por isso estou com vontade de fazer política.MAIS INFORMAÇÕESBolsonaro pede investimentos no Oriente Médio, enquanto Lula faz giro pela Europa

P. E por que reluta em confirmar que será candidato nas eleições brasileiras?

R. Porque não depende de uma vontade pessoal, não depende de mim. Eu tenho que construir com outras pessoas e com outros partidos um programa para o Brasil. Tenho que fazer uma aliança, porque o importante não é apenas ganhar as eleições, é você governar. Tenho uma responsabilidade dobrada. Porque todas as pesquisas mostram que o meu Governo é considerado o melhor Governo que já aconteceu no Brasil, foi o melhor momento de inclusão social, de inclusão nas universidades, de aumento de salário e geração de emprego. Os pobres e mais humildes também conquistaram a cidadania. Se eu voltar para a presidência, não posso fazer menos do que fiz. Por isso tenho um temor: não posso voltar para fracassar. Tenho que voltar para fazer o Brasil recuperar o seu prestígio internacional e que o povo possa comer três vezes ao dia.

P. Qual seria a versão 2021 do programa Fome Zero [Bolsa Família] com o qual tirou milhões de brasileiros da pobreza?

R. Esse programa teria que melhorar. Mas nós tivemos um conjunto de políticas públicas, e em 2018 o Brasil chegou a ser a sexta economia mundial. Hoje é a 13ª. Andamos para trás —destruíram-se a empresa de engenharia, as empresas de água e gás, a indústria naval. Deixamos de ser um sonho para os investidores estrangeiros e passamos a ser um pesadelo. Os empresários espanhóis sabem do que estou falando, porque a Espanha é o segundo investidor do Brasil. O Brasil pode ser melhor, o Brasil não é o Governo atual. O Governo atual, de fato, não representa a alma do povo brasileiro.

Lula da Silva posa depois da entrevista no hotel Wellington, na rua Velázquez.
Lula da Silva posa depois da entrevista no hotel Wellington, na rua Velázquez. Foto: LUIS SEVILLANO

P. O senhor faz um retrato demolidor do Brasil que Bolsonaro deixa. Mas os brasileiros votaram nele. Por que acha que o fizeram?

R. Vivemos um momento de anomalia na política mundial. O eleitor brasileiro votou em Bolsonaro pelas mesmas razões que o eleitor americano votou no Trump. Foi um momento de desajuste emocional de uma parte da humanidade. Como com o Vox aqui. Aconteceu no mundo todo. A mentira prevalece sobre a verdade. Bolsonaro é mentiroso, não entende a economia, não entende os problemas sociais. Se eu não tivesse um envolvimento com o movimento sindical, com a sociedade mais pobre do Brasil, se o PT não fosse um partido organizado, eu teria sido destruído. Eu fui preso. E cá estou eu de cabeça erguida, com a mesma disposição, porque, como sou católico, como eu creio em Deus, acho que o que aconteceu comigo foi um teste que Deus estava fazendo comigo, e eu tive que provar que estava preparado para enfrentar a adversidade.

P. Então não tem sentimento de vingança nem de remorso depois das experiências que viveu?

R. Ninguém pode querer governar para se vingar. Minha obrigação é tentar resolver os problemas do povo brasileiro. Quero contar uma coisa: eu comi pão pela primeira vez quando tinha sete anos. Minha mãe saiu de Pernambuco, andamos de caminhão durante 13 dias, 2.000 quilômetros até chegar a São Paulo para tentar vencer a fome, e eu consegui vencer. Então agora a única razão pela qual posso ser candidato e agradeço a Deus estar vivo e com saúde é porque tenho consciência de que posso ajudar o povo pobre do país. Posso ajudá-lo a trabalhar, a comer e a ir para a universidade. Já fizemos isso.

Aprendi que um pouco dinheiro na mão de muitos faz milagres. Quando você dá 10 euros a um pobre e 1.000 a um rico, os 1.000 irão para uma conta bancária, para especulação. O pobre vai comer, vai comprar sapatos, roupa, um caderno, e a economia começa a funcionar. Esse foi o milagre brasileiro.

P. Acredita que a derrota de Trump marca uma fase descendente dos fenômenos populistas no mundo, ou eles ainda têm um caminho pela frente?

R. O populismo, o radicalismo de direita e o fascismo não estão numa fase descendente. Estão cada vez mais agressivos e crescem em vários pontos.

P. Nesta semana, o Barômetro das Américas forneceu um dado preocupante: um em cada quatro cidadãos do continente considera que a democracia não é o melhor sistema de governo possível. Em que a democracia está falhando para esses cidadãos que duvidam do sistema e que optam por esse tipo de formações trumpistas?

R. Os democratas precisam aprender que a democracia é uma coisa séria. O povo não quer uma democracia para gritar que está desempregado; ele quer trabalho. Não quer democracia para gritar que está com fome; quer comer. O povo não gosta da democracia para dizer que não tem possibilidade de estudar; ele tem que estudar. E a democracia precisa garantir esses direitos. Na verdade, a democracia falhou em muitos lugares. Nos Estados Unidos, desde 1980, quando se decidiu aplicar o Consenso de Washington, os trabalhadores começaram a perder direitos. Aí Trump ganhou as eleições porque muitos eleitores já não acreditavam no discurso dos democratas. Precisamos cumprir aquilo com que nos comprometemos com o povo.

Lula da Silva conversa com Pepa Bueno (centro) e Lucía Abellán na sexta-feira, em Madri.
Lula da Silva conversa com Pepa Bueno (centro) e Lucía Abellán na sexta-feira, em Madri.Foto: LUIS SEVILLANO

P. Com um Brasil em crescimento anêmico, a inflação em alta, uma dívida pública de 80% do PIB, como se pode redistribuir riqueza agora, no mundo pós-pandemia?

R. Quando a União Europeia cria, de forma muito corajosa, um fundo de 760 bilhões de euros, quando nos EUA o presidente Biden aprova planos de trilhões de dólares, isso significa que nós temos uma chance de resolver os problemas do país. Se for necessário, o Estado tem que ser o indutor desse movimento, tem que colocar o dinheiro para que a economia cresça. Na crise de 2008 fizemos isso. O problema é que os pobres não são levados a sério na grande maioria dos países. São tratados como se não valessem nada.

P. E para poder fazer isso, o senhor se aliaria à centro-direita?

R. Vemos alianças entre partidos na Espanha, na Alemanha... O ideal seria que o eu ganhasse as eleições e que o meu partido elegesse a maioria de senadores e deputados. Como isso não é possível, é preciso negociar com quem ganhar. A política é assim. A gente negocia com quem é eleito.

P. Como acha que a desinformação pode interferir na campanha eleitoral?

R. Estamos preocupados porque existe uma indústria, às vezes financiada de fora do Brasil, contando inverdades para o povo brasileiro. Mas não é fácil pegar uma mentira contra mim. Se eu decidir ser candidato, tentarei fazer uma campanha para que o povo brasileiro não aceite mentiras, para que saiba quem diz a verdade.

P. Todas as pesquisas o situam na liderança e, no entanto, isso não livrou nem o senhor nem o seu partido do ódio. Teme por sua segurança?

R. Sou um homem católico. Sou um homem que acredita que só chegou aonde chegou porque tem a mão de Deus em cima. Confesso que não quero morrer. Quero viver bem, estar sempre alegre, acordar todos os dias rindo. Obviamente que nós temos uma questão de segurança. Faz 30 anos que não vou a um restaurante, nunca fui a um shopping, não entro em bar. Minha vida é minha casa e meu trabalho. Sempre com muito cuidado para me precaver.

P. O que o ser humano Lula aprendeu com a experiência dramática que vivenciou, dos processos judiciais e da prisão?

R. Tomei a decisão de ir para a prisão quando muitos me diziam que deveria sair do Brasil. Eu não quis. Tinha tanta consciência de minha inocência, tanta segurança de que o juiz Moro e os procuradores haviam formado uma quadrilha político-econômica para me destruir, que decidi ir à polícia para provar minha inocência. E acredito que consegui. Fui para a cadeia, eu li muito, refleti e pensei: “Não posso sair daqui com raiva. Preciso sair mais maduro, mais consciente, mais preparado”. Eu estava dizendo a verdade e eles estavam mentindo.

P. O juiz Sergio Moro, que o prendeu e que depois teve suas ações contra o senhor declaradas como parciais pelo Supremo Tribunal Federal, também concorrerá às eleições de 2022. O que o senhor pensa de competir com ele?

R. Não estou preocupado. É ele que precisa ficar preocupado. Sem a proteção da toga de juiz e sem a proteção do Código Penal, será candidato como eu, como cidadão comum. E, nesse caso, é muito mais fácil.

P. Falemos da América Latina e, concretamente, de países que experimentaram deteriorações democráticas. No caso da Nicarágua, que teve eleições recentes não reconhecidas pela comunidade internacional, qual é seu diagnóstico?

R. Quando governei tentaram me convencer de que fosse a um terceiro mandato, e eu disse não, porque sou favorável ao rodízio de poder. Disse em uma entrevista que todo político começa a acreditar que é imprescindível e insubstituível e começa a virar um pequeno ditador. Eu era contra a candidatura de Daniel Ortega mais uma vez. A Frente Sandinista tem muita gente para se candidatar. Também fui contra Evo Morales ser candidato —ele já havia feito dois mandatos extraordinários. E o mesmo com Chávez. Posso ser contra, mas não posso interferir nas decisões de um povo. Por que Angela Merkel pode ficar 16 anos no poder, e Daniel Ortega não? Por que Margaret Thatcher pode ficar 12 anos no poder, e Chávez não? Por que Felipe González pôde ficar 14 anos no poder?

P. Mas Merkel e González não prenderam seus opositores.

R. Não posso julgar o que aconteceu na Nicarágua. Eu fui preso no Brasil. Não sei o que essas pessoas fizeram. Só sei que eu não fiz nada. Na Venezuela espero que se Maduro ganhar [nas eleições regionais e locais realizadas no sábado] se acate o resultado, e se perder também.

P. Outro caso de limitação de direitos na América Latina foi a proibição de manifestações nesta semana em Cuba.

R. Essas coisas não acontecem só em Cuba, mas no mundo inteiro. A polícia bate em muita gente, é violenta. É engraçado porque a gente reclama de uma decisão que evitou os protestos em Cuba, mas não reclama que os cubanos estavam preparados para dar a vacina e não tinham seringas, e os americanos não permitiam a entrada de seringas. Eu acho que as pessoas têm o direito de protestar, da mesma forma que no Brasil. Mas precisamos parar de condenar Cuba e condenar um pouco mais o bloqueio dos Estados Unidos.

P. Mas, presidente Lula, é possível fazer as duas coisas: condenar o bloqueio e pedir liberdade nas ruas aos opositores.

R. Quem decide a liberdade de Cuba se não o povo cubano? O problema da democracia em Cuba não será resolvido instigando os opositores a criar problemas para o Governo. Será conquistada quando o bloqueio acabar.

P. Vemos em todo o mundo, particularmente na América Latina, a vitalidade do movimento feminista. Que prioridade o senhor daria, se voltasse a governar, à igualdade de gênero?

R. O PT tem igualdade de gênero na direção do partido e na disputa para a Câmara dos Deputados. As mulheres ocupam um espaço extraordinário no trabalho, na política, mas essa conquista não foi acompanhada da participação dos homens no trabalho doméstico. E elas vão conquistar cada vez mais espaço porque são maioria. Talvez o mundo se torne mais justo caso as mulheres exerçam o poder. Mas o machismo ainda prevalece em muitos lugares. É questão de tempo.

Fonte: El País
https://brasil.elpais.com/internacional/2021-11-20/tenho-que-voltar-a-recuperar-o-prestigio-do-brasil-e-que-o-povo-coma-tres-vezes-por-dia.html


Zumbi dos Palmares portrait1 | Foto: Reprodução

O movimento que idealizou feriado de Zumbi dos Palmares, há 50 anos

História do encontro no clube começara em julho de 1971, quando intelectuais e ativistas do movimento negro gaúcho fundaram o Grupo Palmares

O Globo / Acervo

Não havia mais que 20 pessoas reunidas no Clube Náutico Marcílio Dias, em Porto Alegre, naquele sábado à noite, 20 de novembro de 1971. Sentados em carteiras organizadas na forma de retângulo em uma sala, os presentes estavam ali para homenagear Zumbi dos Palmares. Na época, o líder quilombola morto em 1695 ainda era desconhecido fora dos meios acadêmicos. Mas a tal reunião na capital gaúcha, há 50 anos, se tornaria o marco zero da ação de resgate de sua memória, que culminou com a criação do Dia da Consciência Negra, hoje celebrado em todo o país anualmente, sempre na data em que Zumbi foi assassinado.

Consciência Negra: Eventos marcam feriado de Zumbi dos Palmares no Rio

A história do encontro no clube começara em julho de 1971, quando intelectuais e ativistas do movimento negro gaúcho fundaram o Grupo Palmares para "promover estudos sobre história, artes e outros aspectos culturais, particularmente em relação ao negro e ao mestiço de origem negra", segundo o estatuto da entidade. Em plena ditadura militar, quando vigorava o mito da democracia racial brasileira e não havia espaço para contestação, a proposta era realizar atividades públicas para exaltar personagens negros que não recebiam a devida atenção nas narrativas históricas. 

Dia da Consciência Negra. Reunião do Grupo Palmares em 1971
Dia da Consciência Negra. Reunião do Grupo Palmares em 1971 | Foto do acervo Oliveira Silveira

Entre os fundadores do Grupo Palmares, estavam militantes como Ilmo da Silva, Vilmar Nunes, Antonio Carlos Cortes e o poeta e professor Oliveira Silveira. Partiu de Silveira a ideia de estabelecer o 20 de novembro, dia da morte de Zumbi, como novo marco para celebrar a história do povo negro, em oposição ao então inquestionável 13 de maio, data da assinatura da Lei Áurea pela Princesa Isabel, em 1888.

Princesa Isabel: Uma aristocrata sem envolvimento com a causa abolicionista

Um dos membros mais atuantes do grupo, professor de português e literatura no ensino médio, Silveira publicou dez livros de poesia ao longo de sua vida, entre eles, "Banzo, saudade negra" (1970), que rendeu menção honrosa da União Brasileira dos Escritores. O autor também escreveu artigos e crônicas na imprensa e participou de diferentes coletâneas. Seu trabalho esteve ligado à causa negra até sua morte, em 2009, devido a um câncer. Em 2011, o acervo literário da Fundação Palmares foi batizado de Biblioteca Oliveira Silveira. E, no início deste mês, a Universidade Federal do Pampa, no Rio Grande do Sul, concedeu a ele o título Doutor Honoris Causa. 

Dia da Consciência Negra. O poeta Oliveira Silveira, fundador do Grupo Palmares
Dia da Consciência Negra. O poeta Oliveira Silveira, fundador do Grupo Palmares | Foto de reprodução/UFRGS

Desde o início, os integrantes do Grupo Palmares aproveitaram as efemérides para celebrar nomes da história afro-brasileira. Em agosto de 1971, por exemplo, eles realizaram um ato para marcar os 89 anos da morte do abolicionista Luiz Gama. O jornalista José do Patrocínio, outra voz contra a escravidão no século XIX, foi homenageado no dia 9 de outubro, data de seu nascimento, em 1853.

Luiz Gama: Cinebiografia e relançamento das obras do herói abolicionista

O desconforto com a celebração do 13 de maio, centrado na Princesa Isabel, estava no cerne do grupo. Eles achavam que o marco ignorava a história de luta do povo negro por liberdade e glorificava uma artistocrata que, hoje sabemos, não tinha envolvimento com a causa abolicionista. Foi nesse contexto que surgiu a ideia de festejar a memória de Zumbi, último líder do Quilombo dos Palmares.

Bastião de resistência negra do Brasil Colônia, situado na Capitânia de Pernambuco, numa ára hoje localizada no território de Alagoas, Palmares era, na verdade, um  reino com diversos quilombos formados por ex-escravizados que fugiram de fazendas e senzalas e buscaram abrigo na Serra da Barriga. Estima-se que, em meados do século XVII, sua população tenha alcançado a marca de 30 mil pessoas.

Palmares. Carta topográfica mostra local do quilombo, na Capitania de Pernambuco
Palmares. Carta topográfica mostra local do quilombo, na Capitania de Pernambuco | Reprodução/UFF

Para entender quem foi Zumbi, Silveira se debruçou em livros como "Quilombo dos Palmares", de Edson Carneiro, e "As guerras nos Palmares", de Ernesto Ennes, que narram a posição do líder quilombola de não se dobrar à Coroa Portuguesa. O poeta percebeu que a historiografia não sabia precisar o dia do nascimento do herói, mas encontrou dados sólidos para confirmar que, no dia 20 de novembro de 1695, após anos de batalha, ele foi morto e decapitado por cerca de 20 soldados do então governador de Pernambuco, Caetano de Melo e Castro. Sua cabeça foi exibida em praça pública no Recife, para desfazer a lenda da imortalidade de Zumbi.

Consciência Negra: Cinco personagens históricos para homenagear

A reunião no Clube Marcílio Dias foi anunciada em nota na imprensa da época, com o título "Zumbi – A homenagem dos negros do teatro", o que levou a Polícia Federal a intimar seus participantes a depor. Em 1971, o Brasil vivia o período mais duro da ditadura militar, sob a égide do AI-5, quando os órgãos de repressão fechavam o cerco contra grupos da luta armada. Há quem diga que eles foram intimados porque os agentes confundiram seu grupo com o VAR-Palmares, uma das principais organizações de guerrilheiros. Na delegacia, Oliveira e Carlos Côrtes foram obrigados a detalhar todo o roteiro do evento para convencer os policiais de que não se tratava de uma conferência de críticos do regime militar.

A realidade contestada ali era o velho racismo estrutural responsável por apagar a memória de protagonistas negros da nossa História. Graças ao movimento que começou em Porto Alegre, há meio século, a data da morte de Zumbi motivou manifestações, encontros, festas e shows ao longo dos anos, até ser dotada como o Dia da Consciência Negra, em 1995. Em 2003, o marco foi incluído no calendário nacional escolar, e, em 2011, a Lei nº 12 519 instituiu oficialmente o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra. Hoje, a data é considerada feriado em mais de mil dos cerca de 5,5 mil municípios brasileiros e nos estados de Alagoas, Amapá, Amazonas, Mato Grosso e Rio de Janeiro. Viva Zumbi.

Passeata no Dia da Consciência Negra em 1983, no Centro do Rio
Passeata no Dia da Consciência Negra em 1983, no Centro do Rio | Foto de Athayde dos Santos/Agência O GLOBO

Zumbi: acadêmicos negras e negros resgatam legado preto

Em artigos, historiadores negros refletem sobre eles

Flávia Barbosa / O Globo

RIO - Quando a Estação Primeira de Mangueira atravessou a Sapucaí em 2019 cantando os rostos, a força, a representatividade e o legado de Dandaras, Marias, Mahins, Marielles e malês, no arrebatador enredo “Histórias para ninar gente grande”, a escola de samba vestiu de arte o que para gerações de mulheres e homens é luta: a ressignificação da História do Brasil. De maioria negra, mas marcado profundamente pela escravidão e o racismo estrutural, o país, ao escrever a narrativa de sua construção como nação, negou olhar, voz e experiências aos pretos. Simbolicamente, à luz do grande público e em verde e rosa, naquele desfile o protagonismo foi devolvido.

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— Foi catártico. A abolição não era concessão da Princesa Isabel, tínhamos ali os abolicionistas negros, Luís Gama, José do Patrocínio. Quase morri com a ala da imprensa negra, ninguém sabe da atuação negra neste espaço. Mas eu mudaria o verso ‘histórias que a História não conta’ para ‘histórias que a nossa História já conta, escrita por pessoas negras do presente sobre pessoas negras do passado’ — afirma a historiadora Ana Flávia Magalhães, da Universidade de Brasília (UnB).

Ela é uma das fundadoras da Rede de Historiadoras Negras e Historiadores Negros, que mobiliza cerca de 300 pesquisadores de todas as regiões com o objetivo de mudar o olhar sobre o estudo do povo negro no Brasil. Sai a historiografia clássica, escrita por profissionais majoritariamente brancos e interessada na escravidão, e entra uma abordagem focada na construção da liberdade, no pós-abolição e nas trajetórias individuais e coletivas.

Ampliam-se também os espaços de diálogo. A pesquisa rompe os muros das universidades, de onde o povo negro era estudado com distanciamento, e ganha a internet, com a coluna semanal “Nossas Histórias” e o programa mensal “Pensar africanamente”.

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— A historiografia escrita por estudiosos negros faz da ancestralidade objeto de estudo, utilizando a subjetividade de quem vive o racismo. Esta experiência muda a perspectiva — reflete Ana Flávia.— Há também forte impacto das ações afirmativas e da presença de professores das escolas públicas nas universidades neste olhar. Há muito repertório mobilizado.

A ancestralidade é, aliás, a força motriz do movimento. Em 1971, o Grupo Palmares propôs o dia 20 de novembro, morte de Zumbi, como data de celebração da Consciência Negra e do povo como agente de sua história, em contraposição à passividade e “desumanidade” do 13 de maio, dia da Abolição. A ideia ganhou força com a criação do Movimento Negro Unificado (MNU), em 1978, e foi lapidada pelo surgimento de importantes historiadores negros (e dos negros) na década de 1980.

Mas como consolidar uma História que mostre um Brasil mais negro, e portanto mais real? A Rede ressalta três caminhos importantes: a Educação antirracista, a visibilidade de personagens e trajetórias e o reconhecimento do patrimônio público. Em artigos, historiadores negros refletem sobre eles.


'Nossas heranças: os patrimônios negros no Brasil'

Os bens culturais são cruciais porque ajudam a transformar a visão sobre a identidade do país

Francisco Phelipe Cunha Paz e Mônica lima

RIO - Você sabia que é possível traçar uma história dos patrimônios negros no Brasil desde 1938, quando ocorreu o tombamento do acervo Nosso Sagrado - antiga Coleção do Museu da Magia Negra e primeiro bem etnográfico reconhecido — até 2017, quando o Cais do Valongo se tornou Patrimônio Mundial? Nesses 79 anos, as práticas de patrimonialização, como uma das formas de “usos do passado” têm sido disputadas pelos movimentos sociais negros, populações negras, Estado, intelectuais, acadêmicos e instituições de memória.

Desde os anos 1980, pressões desses sujeitos políticos têm exigido do Estado brasileiro mudanças nos valores e práticas das políticas públicas de memória, por entender que cumprem função estratégica na conquista de direitos e na luta contra o racismo. O reconhecimento de bens culturais de matrizes não-hegemônicas, negras e indígenas, especialmente, é fruto dessa pressão. Trata-se de uma dinâmica que tem acelerado até mesmo um processo interno de reelaboração técnica dos paradigmas de representação da nacionalidade por vias oficiais.

Tal processo produziu diversos patrimônios negros que hoje figuram na lista de patrimônios culturais nacionais, sejam como bens materiais ou tangíveis, tais como os Terreiros de Candomblé, templos católicos de irmandades negras e, mais recentemente, as Docas Pedro II e o Sítio Arqueológico do Cais do Valongo. Há também os que foram reconhecidos como bens imateriais ou intangíveis, como as Celebrações: Bembé do Mercado (BA), Festa do Divino Espírito Santo de Paraty (RJ), o Complexo Cultural Bumba Meu Boi (MA); os Saberes: Mestres de capoeira, Baianas de acarajé, Sistema agrícola tradicional das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira (SP); e as Formas de expressão: Samba de roda (BA), Tambor de crioula (MA), Marabaixo (AP), Carimbó (PA), Maracatu (PE), Matrizes do samba do Rio de Janeiro (RJ) e o Jongo do Sudeste, para citar alguns. No reconhecimento desses patrimônios, mobilizam-se fontes variadas, mas, sobretudo, conhecimentos e informações dos detentores desses bens culturais, seus formuladores e guardiões.

Se há uma narrativa que busca aprisionar os sujeitos negros no silêncio ou mesmo os apagar da memória e da história da sociedade, há outro discurso em que, de forma vigorosa, seus criadores atualizam e ritualizam ancestralidades africanas numa luta contra o esquecimento. São esforços por direito à memória e a uma narrativa do passado mais justa. E, principalmente, a construir suas próprias maneiras de lembrar, narrar e fazer uso desses passados.

Para a historiadora Beatriz Nascimento (1942-1995), o negro não pode estar liberto enquanto ele não esquecer no gesto que ele não é mais um cativo. Os patrimônios negros, valorados como herança no presente, reconstroem esse gesto, para além da dor e do trauma da colonização e da escravidão, mas sem negar ou diminuir seu impacto sobre nossos corpos e vidas. Por isso, significam tanto para a discussão da consciência negra, porque reposicionam a visão sobre a identidade brasileira.

*Francisco Phelipe Cunha Paz, mestre em Preservação do Patrimônio Cultural (Iphan),
**Mônica Lima, professora de História da África e Coordenadora do Laboratório de Estudos Africanos (LEÁFRICA/UFRJ)



'O legado político das mulheres negras'

Marcha há seis anos foi singular por reivindicar atenção à tradição feminina em projetos emancipatórios

Mariléa de Almeida e Taina Silva Santos

CAMPINAS - Há seis anos, na antevéspera do Dia Nacional da Consciência Negra, mais de 50 mil mulheres negras marcharam até Brasília em protesto contra o racismo, a violência, a intolerância religiosa e pelo bem viver. Na frente do Congresso, a Marcha Nacional das Mulheres Negras questionou hierarquias construídas sob a dominação branca e patriarcal, reunindo trabalhadoras urbanas, camponesas, quilombolas, mulheres dos movimentos de luta pela moradia, religiosas de matriz africana e tantas outras.

O texto de abertura da carta do movimento deu o tom do debate: “Nós, mulheres negras do Brasil, irmanadas com as mulheres do mundo afetadas pelo racismo, sexismo, lesbofobia, transfobia e outras formas de discriminação, estamos em marcha inspiradas em nossa ancestralidade que nos fez portadoras de um legado capaz de ofertar concepções que inspirem a construção e consolidação de um novo pacto civilizatório”. Há séculos, mulheres negras têm dado respostas aos mecanismos de exclusão de uma sociedade marcada por sistemas violentos de discriminação.

O protagonismo político das mulheres negras é perceptível em diversos momentos da história do Brasil, por meio de articulações estabelecidas dentro e fora dos espaços de sociabilidade negra. Estudos históricos apontam a importância das mulheres africanas e afro-descendentes na sustentação de famílias negras na escravidão e na liberdade e na formação de linhagens longevas nos campos e nas cidades. Ademais, elas estabeleceram redes por meio dos ambientes de trabalho, de forma que a atuação no comércio proporcionou recursos para a compra de número considerável de alforrias e ocupação de espaços sociais no mundo livre.

Desse modo, os agenciamentos contemporâneos das mulheres negras em defesa da vida e da liberdade não representam uma novidade. O que torna o momento atual singular é que, coletivamente, elas reivindicam o reconhecimento público de uma tradição feminina negra na criação de projetos emancipatórios para suas comunidades e o próprio país. Tal atitude foi impulsionada pelos aportes oferecidos pelos feminismos negros, mulherismo africana e toda gama de conhecimento criado por mulheres negras de diferentes classes sociais. Ao valorizar dimensões da vida como o cuidado, o afeto e a transmissão das experiências negras, o pensamento feminino negro torna visível a radicalidade política do seu legado.

A marcha exprime continuidades e descontinuidades de um longo processo, tornando-se, portanto, um acontecimento incontornável para a compreensão do presente e a ampliação de repertório de sujeitos centrais da luta antirracista e do país. A esse respeito, sumarizou Luiza Bairros (1953-2016): “Não tem mais como você pensar o país desconsiderando a população negra, que é a maioria da população. Desconsiderando a mulher negra. Sem isso você não estaria fazendo nada, não estaria pensando nada. E a marcha está dizendo isso”.

Mariléa de Almeida, doutora em História (Unicamp)
Taina Silva Santos, mestranda em História (Unicamp)


'História do Brasil ensinada pelo Movimento Negro'

Amilcar Pereira e Stephane Ramos

Crianças e jovens de diferentes cores de pele precisam aprender sobre a trajetória de lideranças pretas brasileiras

RIO - Quando perguntados sobre personalidades do movimento negro em sala de aula, estudantes lembram de Martin Luther King, Malcolm X ou Panteras Negras. As referências para pensar o antirracismo são sempre as vindas dos Estados Unidos, como se não houvesse movimento negro com força no Brasil. O diagnóstico feito por Jéssika R. S. Silva, professora de História da rede estadual do Rio de Janeiro e doutora em Educação pela UFRJ, aponta para uma lacuna de toda a comunidade escolar.

O que muitos alunos, mães e pais não sabem é que o movimento negro no Brasil, a exemplo da Frente Negra Brasileira (FNB), maior organização política do tipo na primeira metade do século 20, foi fonte de inspiração para a luta dos negros americanos. Nessa mesma linha, a Lei 10.639, de 2003, que tornou obrigatório o ensino de História e Cultura Africana e Afro-Brasileira, foi uma conquista do movimento negro deste país. Algo que o movimento negro nos Estados Unidos nunca conseguiu alcançar.

Angela Davis, intelectual ativista americana de longa trajetória, já afirmou em diversos momentos o quanto ela aprende com as pautas e ações organizadas pelo movimento negro daqui. Em sua avaliação, Lélia Gonzalez (1935-1994), pensadora negra feminista brasileira, lhe ensinou muito mais do que ela teria a nos ensinar.

Embora ainda não reconheçamos amplamente as organizações e as lideranças do movimento negro brasileiro — por nome e sobrenome — nas escolas e na sociedade como um todo, temos lidado com os resultados de suas ações. A lei citada e as políticas de cotas para negros e negras nas universidades e serviços públicos são fortes expressões dessa agência histórica.

Como essas conquistas foram possíveis? As respostas demandam o nosso conhecimento das diversas trajetórias de luta da população negra brasileira, porque elas dão a medida do que nós somos como Nação, porque são parte incontornável da História do Brasil. As crianças e jovens nas escolas, negras em sua maioria, precisam saber que a luta antirracista aqui produziu lideranças e organizações negras como Lélia Gonzalez, Abdias Nascimento (1914-2011), Oliveira Silveira (1941-2009), Carlos de Assumpção (1927-), Lydia Garcia (1938-), Ana Célia da Silva (1940-), Edson Cardoso (1949-), Sueli Carneiro (1950-), Zélia Amador (1951-), a FNB, o Movimento Negro Unificado (MNU), entre tantos outros sujeitos individuais e coletivos que têm ajudado a mudar o Brasil por meio da luta antirracista.

A Rede de HistoriadorXs NegrXs tem se somado a esses esforços em suas ações internas e externas para aquilo que o MNU já reivindicava em sua Carta de Princípios de 1978: “a reavaliação do papel do negro na História do Brasil”. Isso significa que as vidas negras precisam ocupar os currículos, as escolas e qualquer espaço na proporção de sua real relevância! Estamos atuando para efetivamente fazer valer a máxima: Vidas Negras Importam!

Amilcar Pereira, doutor em História (UFF) e professor da Pós-Graduação em Educação e em Ensino de História (UFRJ)
Stephane Ramos, doutoranda em História (UnB) e mestre em História Comparada (UFRJ)


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Nossas heranças:'Nossas heranças: os patrimônios negros no Brasil', por Francisco Phelipe Cunha Paz e Mônica lima

Marcha histórica:'O legado político das mulheres negras', por Mariléa de Almeida e Taina Silva Santos

Na escola:'História do Brasil ensinada pelo Movimento Negro', por Amilcar Pereira e Stephane Ramos


Alon Feuerwerker: A zona de conforto e a gasolina

A zona de conforto e a gasolina

Alon Feuerwerker / Análise Política / Veja

Um aspecto menos abordado da influência das redes sociais é os políticos terem podido entrar numa zona de conforto. Manifestam-se sem muita possibilidade de questionamento, e suas manifestações são distribuídas em geral a seco pelos veículos. Pois estes precisam informar, e não podem se dar ao luxo de ignorar o que é dito por quem está no poder, ou quer estar.

No passado, para aparecer, o político precisava expor-se. Isso ainda não foi neutralizado de todo, mas ficou mais administrável. Claro que com a hegemonia das redes no debate público vem junto a possibilidade cada vez maior de políticos serem alvo de críticas. Mas há aí dois pontos. Os críticos e as suas críticas costumam trafegar preferencialmente dentro de bolhas. E “crítica” é muito diferente de “questionamento”.

Perguntas podem causar bem mais dano que afirmações.

Uma consequência do novo ecossistema é anabolizar o domínio dos políticos sobre a agenda. Eles tuítam alguma coisa, aí o tuíte é distribuído e passa-se à repercussão. Se políticos não precisam responder perguntas incômodas, o debate público tende a orbitar em torno de polêmicas criadas em laboratório. Arranca-rabos geneticamente modificados para causar o menor dano possível ao “projeto”.

E por falar em agenda, dois ensaios brilham por estes dias: se Geraldo Alckmin vai ser o vice de Luiz Inácio Lula da Silva e se Jair Bolsonaro vai ou não para o Partido Liberal (PL). Temas relevantes, mas talvez o distinto público esteja mais interessado em outros, que mais diretamente afetam a sobrevivência. Um: que medida concreta o eleito adotará para baixar o preço dos combustíveis?

O que será que os nossos presidenciáveis pensam a respeito?

Aguardam-se respostas concretas. Sem rolando lero. E o assunto abre muitas possibilidades. Como baratear os combustíveis fósseis ao mesmo tempo que, para salvar o planeta, assume-se o compromisso de reduzir a produção e o consumo de combustíveis fósseis? Como desatar o nó sem revogar a lei da oferta e da demanda?

Esse debate traz naturalmente a discussão sobre a Petrobras. A ideia de privatizar a estatal encontra estrada bem mais livre para trafegar do que no passado. Tem o efeito Lava Jato. E tem o efeito “deixa os preços flutuar”. Em geral para cima. Mas ninguém explicou ainda como e por que transformar o monopólio estatal em monopólio ou oligopólio privado melhoraria a vida do consumidor. Tampouco se explica como seria possível criar um ambiente de concorrência no ramo.

A privatização por enquanto, apesar de todo o buzz, é só uma miragem. A vida real exige dar prioridade aos problemas imediatos. As primeiras coisas primeiro, diz o ditado anglo-saxão. Como controlar o preço dos combustíveis em regime de monopólio da Petrobras sem ferir os direitos dos acionistas minoritários? Então, além de pensar em privatizar, não seria o caso de colocar na mesa a possibilidade de fechar o capital da empresa?

São algumas perguntas à espera de uma oportunidade de serem feitas. E talvez respondidas.

Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação

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Publicado na revista Veja de 24 de novembro de 2023, edição nº 2.765

Fonte: Veja e Blog Análise Política
http://www.alon.jor.br/2021/11/a-zona-de-conforto-e-gasolina.html


“Brasil precisa dar salto na educação”, afirma Cristovam Buarque

Ex-senador discutiu o assunto em nova aula do curso Jornada Cidadã 2022

Cleomar Almeida, da equipe da FAP

O ex-senador e ex-governador do Distrito Federal Cristovam Buarque diz que “o Brasil precisa do Sistema Nacional Único de Educação para dar um salto nessa área”. Ele, que também é ex-ministro, vai abordar o assunto, na segunda-feira (22/11), a partir das 19 horas, na nona aula do curso Jornada Cidadã 2022, disponível na plataforma Somos Cidadania.

Realizado pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília, em parceria com o Cidadania, o curso tem aulas telepresenciais e está disponível na plataforma Somos Cidadania, gratuitamente. O acesso é restrito a alunos matriculados filiados ao partido ou simpatizantes.

“A proposta é criar Sistema Nacional Único de Educação, que alguns chamam de federalização”, afirma Cristovam, que foi ministro da Educação nos anos de 2003 e 2004, no primeiro mandato do então governo Lula.

O palestrante sugeriu que os alunos leiam o artigo que ele escreveu sobre o assunto e foi publicado na revista Educação: Presente. E o futuro?, temática abordada na 57ª edição da Política Democrática impressa, editada pela FAP.

De acordo com Cristovam, a proposta é o caminho para o país enfrentar, sobretudo, as desigualdades no acesso à educação em diversas regiões do Brasil. “A única forma de garantir educação com a mesma qualidade para todas as cidades do Brasil é que seja feita pela União, pela federação”, destacou ele, que se autodefine como educacionista.

“Deixar a educação das crianças sob a responsabilidade das prefeituras é condená-las à educação desigual, porque as cidades são muito desiguais, na renda, nos recursos humanos, na capacidade de gestão, na vontade dos prefeitos. Essas diferenças também são vistas entre os estados”, observa ele.

Cristovam reconhece a necessidade de prévia alteração constitucional para implementação da proposta, caso houvesse vontade do Congresso Nacional. No entanto, por outro lado, ele acredita que o ideal seria os municípios, de forma voluntária, aderirem à proposta.

“A educação é estratégia de longo prazo. Outras medidas podem melhorar um pouco, mas dar um salto não. O que o Brasil vem fazendo é melhorar, mas defendo um salto. Para saltar, é necessária uma estratégia de longo prazo”, ressalta Cristovam.



O curso

As inscrições no curso podem ser feitas, diretamente, na plataforma de educação a distância Somos Cidadania, que é totalmente interativa, moderna, com design responsivo e tem acesso gratuito para matriculados. Nela, além das aulas, os alunos têm à disposição uma série de informações relevantes e atuais sobre o contexto político brasileiro e eventos contínuos realizados pela FAP.

Palestrantes do curso Jornada Cidadã 2022
Palestrantes do curso Jornada Cidadã 2022

O curso, segundo a coordenação, reúne uma série de professores altamente qualificados para abordar temas que afetam diretamente o dia a dia das pessoas e devem ser encarados por meio de políticas públicas eficazes, em meio a um cenário tomado pela pandemia da covid-19.

Vídeos de aulas anteriores



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