Quando se mobilizam retoricamente as paixões, sempre se coloca sob suspeição a civilidade e se constitui uma ameaça à democracia | Foto: Shutterstock

Revista online | Editorial: O problema e suas raízes

Editorial da revista Política Democrática online (53ª edição)

Assistimos todos, neste fim de março, ao retorno ao Brasil do candidato derrotado nas eleições presidenciais de 2022. Foram quase três meses de ausência, passados na Flórida, estado norte-americano governado pelos Republicanos, que vem se constituindo em refúgio de próceres da extrema direita latino-americana.

O desembarque, projetado para ser um ato político expressivo em seu apoio, reuniu poucos partidários, frustrados pelas medidas de segurança tomadas pelas autoridades, que, ao proteger o viajante, impediram, simultaneamente, qualquer manifestação política dos presentes. Não houve discursos nem carreatas, apenas a dispersão dos presentes.

O evento foi, contudo, revelador da estratégia adotada pelo comando político da direita autoritária, após sua derrota nas urnas. Manifestações, marchas, motociatas e carreatas serão organizadas, o contraponto presencial necessário aos comandos de agitação permanente, lançados nas redes sociais. O propósito desses chamados, nas redes e nas ruas, é manter aceso o ânimo dos correligionários e simpatizantes, o apoio a seu líder e sua hostilidade profunda ao conjunto de inimigos imaginários que alimentam a adesão ao movimento: globalistas, comunistas, ambientalistas, ideologia de gênero, entre outros. Além de, claro, prosseguir nesse rumo até as eleições de 2024, momento em que um bom resultado eleitoral, ao menos similar ao conseguido nas eleições legislativas do ano passado, é esperado.

O chamado às ruas dificilmente terá respostas positivas, dado que as mobilizações presenciais chamadas pela extrema direita deveram, como sabemos agora, muito do seu sucesso relativo ao investimento pesado de recursos públicos. No entanto, trazer periodicamente um punhado de militantes às ruas pode ser o contraponto suficiente para a agitação permanente divulgada nos diversos grupos de partidários organizados nas redes sociais.

A estratégia pode ter sucesso, se considerarmos principalmente o percentual de eleitores convencidos pelas notícias falsas despejadas todos os dias, ao longo de mais de quatro anos, nas redes sociais. Pesquisa recente revelou, por exemplo, que quase metade dos eleitores considera a transformação do Brasil num país comunista uma possibilidade real, ao longo do atual governo.

Compete aos democratas de todos os matizes, socialistas, social-democratas, liberais e conservadores, trabalhar, de forma coordenada e permanente, contra a situação de desinformação que assola hoje parte importante do eleitorado. Repetir os argumentos em favor da ciência e da democracia, contra as teorias da conspiração, os diversos negacionismos, as soluções violentas e autoritárias de problemas políticos.

Dizer, sempre, que não há maquinações globalistas, mas problemas globais; que nas democracias a definição dos culpados de corrupção é monopólio da Justiça; que a mudança climática já é uma ameaça que pesa sobre todos; que não existe um perigo comunista que nos aflige; que ideologia de gênero é o nome de um fantasma criado há pouco tempo para assustar os cidadãos; que pobreza, desigualdade e exclusão social são os verdadeiros problemas deste país, cuja solução é premente e indispensável para todos nós; finalmente que racismo, sexismo e homofobia são também problemas reais, responsáveis por uma extensa gama de violências praticadas contra seus alvos, violências que chegam, em muitos casos, à morte das vítimas.

Esse é o debate de fundo, que deve ser travado por todos os democratas contra os temores que alimentam a adesão à extrema direita no país.

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Imagem do filme Uma odisseia no espaço - Reprodução

Revista online | Clássicos da ficção científica, meio século depois, remetem a dilemas do nosso tempo 

Henrique Brandão*, jornalista, especial para a revista Política Democrática online (53ª edição)

Dois filmes emblemáticos de ficção científica completam este ano 55 anos de suas estreias no cinema e são referências até hoje, não apenas para os admiradores de sci-fi – uma enorme legião de aficionados! – mas para os amantes de cinema, em geral.  Estou me referindo a 2001 – Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick (1928-1999), e Planeta dos Macacos, de Franklin J. Schaffner (1920-1989), ambos lançados em 1968. 

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Depois deles, o gênero foi elevado a outros parâmetros. Cada qual à sua maneira, tornaram-se modelos, que hoje em dia rendem fortunas em bilheterias.

Para além das questões técnicas e inovações que trouxeram, uma característica que faz esses filmes serem lembrados é, acima de tudo, as histórias que contam e as questões, atualíssimas, que levantam quanto ao futuro da humanidade.

À primeira vista, pelo enredo que apresenta, O Planeta dos Macacos aparenta ser uma bobagem: um grupo de astronautas aterrissa em um planeta que é dominado por símios e no qual os humanos são tratados e caçados como animais.

Mas o filme, adaptação do livro do escritor francês Pierre Boulle (1912-1994), marcou época, graças ao roteiro inventivo, à competente direção de Schaffner, à ótima atuação dos atores e à uma maquiagem excepcional, que levou um prêmio especial na premiação do Oscar – a categoria não existia até então. A produção custou U$$ 5,8 milhões, e a bilheteria americana rendeu US$ 32,5 milhões. O sucesso foi tamanho que gerou continuações, séries e rebbot que se desdobram até os dias atuais. 

2001 – Uma Odisseia no Espaço teve sua estreia em dois de abril de 1968. O roteiro, livremente inspirado no conto A Sentinela (The Sentinel), de Artur C. Clarke (1917-2008), foi escrito a quatro mãos por Kubrick, já considerado um dos melhores cineastas de sua geração, e Clarke, considerado um dos maiores escritores de ficção científica de todos os tempos. 

A reunião dessas duas figuras gerou uma das obras mais idolatradas da história do cinema. Reza a lenda que Clarke não gostou do que viu na première. Alegou que o filme tinha poucos diálogos. A versão que chegou às salas de cinema (149 minutos) tem menos 19 minutos do que a vista por Clarke, em razão de cortes feitos pelo próprio Kubrick. 

De fato, 2001 é carregado de “calmarias”. Os primeiros 25 minutos e os últimos 23 não têm diálogos, só trilha sonora. Contando esses momentos de mudez e outros que acontecem ao longo do filme, o total é de 88 minutos sem conversas. Sobram 61 para os diálogos, grande parte deles travada no embate entre o Hall 9000, uma máquina de Inteligência Artificial (IA) de última geração, com sua fala monocórdia, e o comandante da espaçonave Discovery One. Passado mais de meio século da estreia da fita, o uso cada vez maior da IA no cotidiano humano gera indagações importantes, como a feita pelo historiador Yuval Noah Harari em artigo publicado em O Globo (28/03): Precisamos aprender a dominar a inteligência artificial antes que ela nos domine.

2001 está carregado de cenas de grande beleza visual. A sequência inicial, em que o hominídeo descobre que o osso de um animal pode servir de arma para subjugar outros grupos rivais na pré-história e, para comemorar o fato, lança o osso para cima, virou um dos momentos mais sublimes do cinema. O osso sai girando no ar, em câmera lenta, ao som de Assim Falou Zaratrusta, de Richard Strauss (1864-1949). Em seguida, há um corte para o ano de 2001, com satélites a “navegar” o espaço sideral, ao som da valsa Danúbio Azul. Só música, a destacar a ligação do homem pré-histórico com o astronauta do futuro.

Kubrick não viu problema nesses “silêncios”. Suas produções anteriores tinham diálogos e narrações em off. Mas este foi intencionalmente quieto. Para ele, o importante era proporcionar uma experiência intensamente subjetiva.  "Se o filme conseguir atingir pessoas que nunca pararam para pensar no destino do Homem, terá tido sucesso", afirmou à época.

O Planeta dos Macacos vai em outra linha. Ao despertar de uma hibernação induzida, o comandante Taylor – interpretado por Charles Heston – descobre que está no ano de 3971, dois milênios à frente de seu tempo. 

A princípio, estaria em um planeta desconhecido. Aos poucos, constata-se que os animais deste planeta são humanos que não falam e são “domesticados” e caçados por macacos. Aparentemente, a evolução se inverteu: agora os macacos é que são a espécie dominante, inteligentes, enquanto os humanos são “animais” irracionais. 

Ao descobrir que os visitantes vindos do espaço falam, os chimpanzés, cientistas, se interessam em pesquisar sua história, desconfiados de que os macacos evoluíram dos humanos. No entanto, são impedidos pelo chefe político e líder de uma seita religiosa, um orangotango que tem uma versão diferente para o surgimento dos símios. Os militares, gorilas, têm uma aliança com o religioso e mantêm a ordem e os humanos sobre o poder das armas.  Alguma semelhança com o mundo atual?

A cena icônica de O Planeta dos Macacos é o seu fim. Após tanto tempo da estreia, não há problema de spoiler. Fugindo dos gorilas, o personagem de Heston se depara com a Estátua da Liberdade em uma praia deserta e árida, devorada pelo tempo, semicoberta. Mensagem clara: o homem destruiu a Terra. Provavelmente em uma guerra nuclear, já que a Guerra Fria era um dos maiores temores da época em que o filme foi realizado.

No entanto, o recado serve também de sinal para o perigo da devastação dos nossos recursos naturais, que pode condenar a humanidade a um futuro no qual o deserto e as chuvas torrenciais predominem.  Estão aí as mudanças climáticas batendo às portas.

Dois grandes filmes, com mensagens que ainda nos fazem refletir sobre qual modelo de civilização queremos.

Sobre o autor

*Henrique Brandão é jornalista e escritor

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de março de 2023 (53ª edição), editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não refletem, necessariamente, as opiniões da revista nem da FAP.

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Filme Entre Mulheres - Imagem: reprodução

Revista online | Entre Mulheres - Perdoar, brigar ou fugir?

Lilia Lustosa*, crítica de cinema, especial para a revista Política Democrática online (53ª edição: março de 2023)

Um dos filmes que mais me chamou a atenção nesta temporada de premiações foi o Entre Mulheres (2022), da canadense Sarah Polley, que também assina o roteiro, premiado neste último Oscar na categoria Melhor Roteiro Adaptado. 

O longa-metragem, quarto da carreira da diretora, foi produzido pela grande Frances McDormand, que também atua no filme (com uma parte pequena), e toca em temas universais e superatuais, embora vividos em um mundo que parece tão distante no espaço e no tempo. Violência contra a mulher, patriarcado, religião, cegueira, culpa, perdão… está tudo ali na tela. Uma história baseada no livro homônimo da também canadense Miriam Toews, publicado em 2018, que foi, por sua vez, inspirado em fatos reais. Acredite se quiser!

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Na trama, vemos um grupo de mulheres que mora em uma colônia (não identificada no filme, mas que é inspirada na Colônia menonita Manitoba, na Bolívia) que segue dogmas religiosos bastante ortodoxos. Uma sociedade patriarcal, em que as mulheres não frequentam a escola, não aprendem a ler e não são autorizadas a sair das áreas “protegidas”. Coisa que quase todas aceitam “pacificamente”, já que é Deus quem está no comando. Prisioneiras do século 21, guiadas pela fé e pela covardia dos homens.

Acontece que todas as mulheres dali, incluindo crianças e idosas, são vítimas frequentes de atos de violência sexual, sendo, para isso, dopadas com químicos usados na agricultura. As consequências macabras de despertarem com hematomas, sêmen ou sangue no corpo são, em um primeiro momento, atribuídas a seres demoníacos, vindos de outra dimensão e, portanto, impossíveis de ser combatidos.  Até o dia em que duas adolescentes revelam ter visto um homem da própria Colônia fugindo na mesma noite em que uma criança fora violentada. Os suspeitos são levados à delegacia.

Diante das evidências e da ausência dos homens, que correm em defesa dos acusados, oito mulheres - brilhantemente interpretadas por Rooney Mara, Claire Foy, Jessie Buckley, Sheila McCarthy, Judith Ivay, entre outras - aproveitam para pensar em alternativas para a situação: 1) perdoar; 2) ficar e brigar; ou 3) fugir. As discussões são devidamente registradas em ata pelo professor dos meninos da Colônia, o sensível August (Ben Wishaw), cuja mãe havia sido excomungada por haver questionado as regras ali estabelecidas. O objetivo de todo esse “falatório" e de seu respectivo registro é ter insumos suficientes para exercer a democracia e fazer valer suas vozes, mesmo que para isso tenham que recorrer a desenhos e/ou símbolos na hora da votação. 

Com essa premissa, o filme se desenvolve em torno de muitos diálogos e reflexões (brilhantes, por sinal), muitas trocas de olhares e muitas expressões faciais e gestuais que não escapam à câmara atenta de Luc Montpellier. Aliás, a fotografia é outro ponto forte do filme, belíssima, com o predomínio de cores dessaturadas, frias, escuras, que refletem com maestria a ausência de alegria que parece ditar as regras da vida daquela gente. O formato widescreen (ou panorâmico) ajuda a expor a solidão e o isolamento daquelas mulheres que nunca viram um mapa em suas vidas. Ao mesmo tempo, os planos super abertos do campo contrastam fortemente com o ambiente claustrofóbico do celeiro que lhes serve de congresso para as discussões e votações. 

A trilha, assinada pela islandesa Hildur Guonadóttir, também merece destaque, já que alterna momentos sombrios com outros bem iluminados, representando com precisão a esperança daquelas mulheres ali enquadradas.

Entre Mulheres é um filme sobre o valor do diálogo e da democracia, sobre a coragem de enfrentar algozes em nome da liberdade, sobre a união como arma para lutar por uma causa maior, sobre educação de meninos e sobre tantos outros temas de plena relevância em tempos atuais. Lições aparentemente banais para nós, que vivemos em uma democracia e que desconhecemos a vida em cativeiro, mas de extremo valor para aqueles que, tão perto de nós, ainda têm de conviver com a ignorância das sociedades ditatoriais.

Entre Mulheres é também uma história sobre aquele sonho de justiça que insiste em morar em cada um de nós. Sonhos que podem parecer utopias descabidas, fantasias femininas ou até histerias, mas que se colocados em prática têm grandes chances de virar realidade. Sabiamente e, com um certo toque de ironia (já que na vida real as coisas não aconteceram bem assim…), Sarah Polley decidiu abrir seu longa com a frase: "Esta história é fruto da fértil imaginação feminina”. Que assim seja!

Sobre a autora

*Lilia Lustosa é crítica de cinema e doutora em História e Estética do Cinema pela Universidad de Lausanne (UNIL), Suíça.

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de março de 2023 (53ª edição), editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não refletem, necessariamente, as opiniões da revista nem da FAP.

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Os fundadores do PCB em março de 1922, na cidade de Niterói (RJ) | Reprodução: Cidadania23

Revista online | A longa jornada de um partido em busca da democracia

* Daniel Costa, historiador e pesquisador, especial para a revista Política Democrática online (53ª edição: março de 2023) 

No apagar de 2022, entre o alívio do encerramento de mais uma página triste de nossa história e a esperança trazida pelos ventos do novo ano, a Fundação Astrojildo Pereira (FAP) ofereceu nova contribuição para a compreensão dos nem sempre claros meandros da nossa política. Com o lançamento de Longa Jornada até a Democracia, obra do jornalista Carlos Marchi, o leitor terá a oportunidade de acompanhar o tortuoso caminho do PCB em busca de uma sociedade igualitária e democrática. 

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Biblioteca Salomão Malina oferece empréstimo gratuito de 68 livros sobre PCB

100 anos do PCB: evento resgata memória e aponta desafios em Niterói (RJ)

O volume cobre parte da trajetória do partido, que acabou de completar 100 anos de existência. Partindo do momento anterior à fundação, Marchi traz o caldo político predominante nos círculos operários, onde o discurso e a prática política eram marcados pelo amálgama entre o anarquismo e o marxismo. Sua narrativa é encerrada em 1968, momento em que a ditadura civil militar edita o AI-5. A esquerda mundial é tomada pelos ventos do maio francês, e o PCB luta para consolidar a política definida em seu VI Congresso.

Livro Longa Jornada até a Democracia, de Carlos Marchi | Foto: Cleomar Almeida/FAP
Livro Longa Jornada até a Democracia, de Carlos Marchi | Foto: Cleomar Almeida/FAP

Realizado de forma clandestina, o encontro iria reafirmar as diretrizes da Declaração de 1958 e sua linha de atuação em torno da construção de uma oposição democrática. No momento em que grupos adotaram a estratégia da luta armada, o PCB optou pela luta dentro da institucionalidade, medida que fora muito criticada, porém, o tempo mostraria quem tomou a melhor decisão. O segundo volume dessa história, escrito pelo jornalista Eumano Silva, abordará a trajetória do partido do pós 1968 até sua transformação no Cidadania 23 e tem previsão de lançamento ainda para 2023.

O historiador Paul Ricoeur, em uma de suas obras, lembra que a memória é uma construção. Já para o também historiador Jacques Le Goff, assim como a memória, o esquecimento surge enquanto momento significativo da narrativa histórica, pois seria baliza de grande relevância no estabelecimento e consolidação de hierarquias entre grupos e indivíduos. Abro esse parêntese para trazer ao leitor que o centenário do partido vem sendo contado por diversos atores, desde intelectuais vinculados ao PCdoB (partido fundado em 1962), ao PCB (fundado em 1994) e ao Cidadania 23 (o legítimo portador do legado do partido fundado em 1922).

A seguir, veja fotos de lançamento do livro:

Escritor Carlos Marchi autografando obra para leitor
A obra Longa Jornada até a Democracia foi editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP)
Sessão de autógrafos em São Paulo
Evento foi presencial, no São Cristóvão Bar e Restaurante, na Vila Madalena
A obra relata a história do Partido Comunista Brasileiro
Livro foi lançado segunda - feira (12/12)
 Longa Jornada até a Democracia é o primeiro de dois volumes que abordam os 100 anos do Partido Comunista Brasileiro
Sessão de autógrafos permitiu que muitos leitores conhecessem o grande escritor e jornalista Carlos Marchi
Escritor Carlos Marchi autografando obra para leitor
A obra Longa Jornada até a Democracia foi editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP)
Sessão de autógrafos em São Paulo
Evento foi presencial, no São Cristóvão Bar e Restaurante, na Vila Madalena
A obra relata a história do Partido Comunista Brasileiro
Livro foi lançado segunda - feira (12/12)
Longa Jornada até a Democracia é o primeiro de dois volumes que abordam os 100 anos do Partido Comunista Brasileiro
Sessão de autógrafos permitiu que muitos leitores conhecessem o grande escritor e jornalista Carlos Marchi
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Escritor Carlos Marchi autografando obra para leitor
A obra Longa Jornada até a Democracia foi editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP)
Sessão de autógrafos em São Paulo
Evento foi presencial, no São Cristóvão Bar e Restaurante, na Vila Madalena
A obra relata a história do Partido Comunista Brasileiro
Livro foi lançado segunda - feira (12/12)
 Longa Jornada até a Democracia é o primeiro de dois volumes que abordam os 100 anos do Partido Comunista Brasileiro
Sessão de autógrafos permitiu que muitos leitores conhecessem o grande escritor e jornalista Carlos Marchi
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O livro de Marchi insere-se nesse terceiro grupo, porém, como lembra o sociólogo Caetano Araújo, a perspectiva do autor é interna ao partido, fato que contribui para a construção de uma narrativa factual que consegue apontar os erros e acertos, fugindo de uma construção hagiográfica. Para o historiador Vinicius Muller, "um dos embates mais interessantes entre os que tentam reconstruir a História é aquele que opõe os que a entendem como ruptura aos que a entendem por ajustes".

Assim, a narrativa de Marchi acerta ao compreender as diversas viradas táticas e programáticas do PCB, enquanto ajustes dentro do processo de busca pela democracia. Ainda para Araújo, que assina a orelha da publicação, "visivelmente, o autor adotou no seu trabalho a diretriz de Salomão Malina, apresentada como epígrafe: afirmar a história do partido em sua inteireza, com seus acertos e equívocos. Só assim é possível resgatar o sentido dessa história, para os militantes do passado e do presente".

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No momento em que as redes sociais são povoadas de teses conspiratórias e fake news acerca da esquerda e mesmo da democracia, o livro de Marchi desmistifica fatos e personagens da história do PCB. Além de mostrar ampla bibliografia, que não fica devendo aos melhores trabalhos produzidos na universidade, o autor recorre a reconhecidos arquivos e a entrevistas com personagens relevantes na história do partido.

Outro mérito da obra é a análise do papel desempenhado por Luiz Carlos Prestes desde sua incorporação ao partido, ainda no começo da década de 1930. A adesão do líder da mítica Coluna foi o fermento para a tentativa de insurreição ocorrida em 1935. Marchi classifica o evento como "o mais trágico de todos os erros e de todas as quedas do Partido". A atuação política de Prestes, com seus erros e acertos, foi fundamental para a consolidação do PCB enquanto ator político de relevância  no país.

Algo comum entre historiadores é o fato de criticar obras de cunho histórico escritas por jornalistas. Algumas merecem tais observações, pois carecem de fontes, embasamento bibliográfico e, às vezes, até distorcem os acontecimentos em nome de uma suposta simplificação e maior "acessibilidade" ao leitor. No entanto, o volume escrito por Marchi encontra-se distante de tais defeitos, já que sua mais recente obra, desde o lançamento, pode figurar com tranquilidade na bibliografia de futuros estudos sobre o tema ou na estante daqueles interessados na política brasileira do século XX. 

O historiador Ivan Alves Filho, em seu livro Os nove de 22: O PCB na vida brasileira, também publicado pela FAP, diz que é “fundamental destacar na trajetória do PCB a sua capacidade  de vislumbrar o novo. E de apostar nele. Esse é um partido que se reinventa historicamente. Eu diria até que não tem medo de se reinventar historicamente". Essa ausência de medo em se reinventar fica nítida  ao longo da leitura dessa longa jornada até a democracia reconstituída com maestria por Carlos Marchi.*Daniel Costa é historiador pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e desenvolve pesquisa acerca da corrupção na América portuguesa, especialmente nas capitanias de Pernambuco e Minas ao longo do século XVIII.

Saiba mais sobre o autor

*Daniel Costa é historiador pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e desenvolve pesquisa acerca da corrupção na América portuguesa, especialmente nas capitanias de Pernambuco e Minas ao longo do século XVIII.

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online (53ª edição: março de 2023), editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não refletem, necessariamente, as opiniões da revista e da fundação.

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Marcelo Madureira | Fotos: acervo pessoal

Revista online | Marcelo Madureira: “Não tenho ilusão em relação ao governo Lula”

Comunicação FAP, especial para a revista Política Democrática online (52ª edição) 

O ator e humorista Marcelo Madureira, que ficou conhecido por integrar o programa Casseta & Planeta, diz que as “artes não têm componente ideológico de estímulo ao ódio” e afirma que o “humor é uma espécie de crítica humorada sobre fatos e pessoas”. Ele, que também  é empresário de comunicação digital, posiciona-se contra o Projeto de Lei 2630/2020, conhecido como PL das Fake News, que está em discussão no governo e no Congresso, e defende a autorregulação das mídias digitais.

“Regimes autoritários tendem a fazer esse tipo de controle, com o qual é preciso ter muito cuidado”, afirmou Madureira, em entrevista à 52ª edição da revista Política Democrática online, produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), em Brasília. A entidade é vinculada ao Cidadania. Ele acredita que o desenvolvimento da inteligência artificial e de várias ferramentas tecnológicas poderão reduzir o impacto das notícias falsas na sociedade.

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Apesar de ter declarado voto no presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Madureira diz ser favorável à formação de uma ampla frente democrática. “Sou contra o autoritarismo de extrema direita ou de extrema esquerda. Não tenho qualquer ilusão em relação a esse governo, fora de que ele garanta a existência do regime democrático”, afirmou. A seguir, leia os principais trechos da entrevista.

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Política Democrática (PD): Existe um impasse entre pessoas que criticam o que chamam de “politicamente correto” e os que entendem que é preciso, sim, usar a linguagem de forma responsável em qualquer situação. Qual a sua opinião sobre a crítica ao que parte da sociedade classifica como politicamente correto no Brasil?

Marcelo Madureira (MM): Acho que existe um certo exagero com relação a essa política do politicamente correto, que acaba criando uma espécie de censura não institucionalizada sobre os conteúdos das pessoas, porque, muitas vezes, certas colocações, certas coisas gravadas, ditas ou escritas, são colocadas fora de contexto e acabam gerando uma enorme distorção, como as políticas de cancelamento, junto a essas políticas identitárias que existem hoje em dia. Não que eu seja contra política identitária, mas acho que elas tendem a ser mais políticas autoritárias que identitárias. Então, as pessoas defensoras do politicamente correto partem do pressuposto – por exemplo, no nosso caso dos humoristas – de como se não tivéssemos nenhum princípio de ética e profissional, o que faz [pensar] que a gente fala qualquer coisa ou ofenda qualquer tipo de pessoa ou de conjunto de pessoas que se possa imaginar – étnicos, políticos, religiosos – gratuitamente. Na verdade, o humor não quer ofender ninguém; ele quer fazer as pessoas rirem. O humor é uma coisa que o ser humano inventou para rir de si mesmo, rir das nossas idiossincrasias, das nossas limitações, da nossa arrogância, da nossa hipocrisia. O humor sempre teve uma certa. Aqueles que são objeto do riso, do humor, da piada se dizem ofendidos, quando, na verdade, você apontou que o rei está nu, uma realidade que todo mundo vê, mas não tem os canais - digamos assim, um canal humorístico - para falar sobre aquilo. Não digo nem denunciar, mas comentar aquilo, e aquilo tem um impacto na sociedade, uma repercussão. O humor é uma espécie de crítica humorada sobre fatos e pessoas, e isso só tem sentido se essas coisas, de fato, acontecerem. Por isso, eu, pelo menos, como humorista, sempre tive o cuidado de fazer piadas e não criar fatos falsos – fazer piadas sobre coisas que não são verdade, que não estão acontecendo. A grande preocupação que a gente tem é saber o que as pessoas estão falando, comentando, e fazer piada sobre isso.

Sempre tive o cuidado de fazer piadas e não criar fatos falsos

PD: Então, o senhor não considera que parte de humoristas – ou de pessoas que se dizem humoristas –, de alguma maneira, pode reforçar, por exemplo, questões contra a comunidade LGBTQIA+ e pessoas negras? O senhor fez uma ressalva, dizendo que não é contra as políticas identitárias, mas, considerando esse mercado, algumas pessoas que se apresentam como humoristas não se atropelam?

MM: Já que você falou em termos de mercado, vamos tratar a questão economicamente. Achei muito correta essa sua colocação. Do lado da oferta, hoje você tem, de fato, uma quantidade de humoristas – de pessoas que se dizem humoristas, se dizem engraçadas – que falam as maiores barbaridades, inclusive de forma chula, uma coisa gratuita, com uma agressividade. Não sou moralista, muito pelo contrário, mas, usando palavras chulas, inadequadas, achando que são engraçadas. Não que você não deva usar, eventualmente, palavrão. O que consagra o humorista é a qualidade do trabalho dele. Qualquer um pode se autointitular humorista, falar coisas que lhe pareçam engraçadas ou mesmo usá-las de má-fé, em um pretenso humor para ofender, ridicularizar e avacalhar pessoas, instituições, grupos. Isso ocorre. Não é que não possa ocorrer, mas acho que o grande filtro para isso é justamente a opinião pública. Confio muito no receptor, na chamada opinião pública. Temos uma visão muito soberba do público, achamos que o nosso público, de maneira geral, não sabe distinguir as coisas. No humor, se sabe quem são os grandes humoristas, que são realmente bons, e aqueles que são apenas ofensivos ou que estão a soldo, por receberem dinheiro de A, B ou C, para fazer humor chapa branca, humor oficial, que não tem nada a ver com humor. Isso está do lado da oferta. Do lado da demanda, existem muitas pessoas que se acham ofendidas, se acham ridicularizadas, mas isso fica a critério de cada um. Por exemplo, posso chegar para você e falar "bom dia", e você ficar ofendido com isso, achando que estou sendo irônico, zombando da sua cara, porque sei que você teve um péssimo dia ou está atravessando um momento difícil. Então, tem má-fé também. Estou tentando relativizar as coisas para não cair, justamente, na polarização, já que, no Brasil e no mundo, tudo é polarizado, de maneira geral. Existem questões e reivindicações que são pertinentes, e outras que são absolutamente impertinentes, que não têm nada a ver. Por isso, acredito no bom senso do público. Então, o politicamente correto me parece um exagero porque eu, pelo menos, no meu trabalho de humorista, tomo cuidado de tentar ser engraçado. Jamais tive a intenção de ofender qualquer segmento da sociedade – políticos, antropólogos ou feministas, por exemplo –, com o objetivo de apenas ofender. Isso não tem, isso é discurso de ódio, discurso ofensivo. Isso não é trabalho de humorista. Isso é uma atitude indigna. Eu tento fazer graça. 

O artista de verdade nunca se deixa intimidar, principalmente em regimes totalitários, em ditaduras

PD: O senhor citou trabalho de humorista. Qual é o papel de um profissional que trabalha com arte do humor em uma democracia e em relação aos governos? Como o humor sobrevive mesmo em casos de governos autoritários de extrema-direita, como ocorreu durante o mandato do ex-presidente Jair Bolsonaro?

MM: O papel de todo artista, primeiro, é realizar a sua arte, avançar em relação aos limites estéticos e éticos da sociedade, propor novidades, surpreender. O artista é aquele que surpreende a sua plateia, de maneira agradável, lúdica, divertida ou crítica, no caso do humor. Isso é muito importante em todos os regimes. Eu mesmo e vários outros humoristas, durante o regime militar, jamais abrimos mão do papel crítico, aliás, com muita coragem e risco físico. Muitos foram presos, espancados, tiveram limitação ao realizar seu trabalho e fazer seu ganha-pão, mas o artista de verdade nunca se deixa intimidar, principalmente em regimes totalitários, em ditaduras. Sempre os humoristas nunca se intimidaram. É óbvio que existe o medo, como disse Millôr Fernandes. O medo sempre existe, mas também existe aquela necessidade de você, por meio de sua arte, mostrar o que você pensa, o que está errado. Não só em uma democracia, mas em qualquer tipo de regime, sobretudo nos regimes autoritários, é fundamental o exercício das artes. Em uma democracia, é preciso realmente entender o que é liberdade de expressão, mas, ao mesmo tempo, como criador, tem que saber que a própria liberdade de expressão tem limites. Artista não faz apologia de genocídio ou de perseguições raciais, preconceitos de maneira geral, de qualquer natureza, ou mesmo declarações que estimulem o ódio. Isso não é a ideia das artes. As artes não têm esse componente ideológico de estímulo ao ódio, bem pelo contrário. Há estímulo às liberdades, mas por meio da criatividade, para agregar massa crítica, conteúdo relevante para o conjunto da sociedade, e isso vale para todo tipo de artista, do palhaço de circo ao diretor de cinema. Em uma democracia, isso é muito bom e só estimula o ambiente democrático. 

PD: Considerando justamente esse ambiente democrático e que o senhor tem empresa de comunicação digital, qual a sua avaliação sobre a proposta batizada como PL das Fake News? Qual é o limite entre o combate à desinformação, praticada por meio de mentiras ou informações fora de seu contexto, e o cerceamento à liberdade de expressão? 

MM: Nós precisamos, em qualquer tipo de regime, ter muito cuidado com as legislações, porque elas podem virar não um instrumento de Estado, e, sim, um instrumento de governo. Usa-se legislação para perseguir A, B ou C, enquadrando essas pessoas na legislação que estabelece as normas de registro do que é aceitável e do que não é. Regimes autoritários tendem a fazer esse tipo de controle, com o qual é preciso ter muito cuidado. A princípio, sou contrário a esse tipo de proposta. Acredito muito no bom senso e no caráter das pessoas. Por outro lado, as fake news sempre existiram, antes como boato, mentira. Com a revolução tecnológica, em nosso mundo, todo digitalmente conectado, as notícias falsas correm muito mais rápido do que as verdadeiras. Esse é um dos grandes desafios. Como a sociedade pode ficar protegida da difusão de notícias falsas? Não tenho resposta ainda. Acredito que, com o desenvolvimento da inteligência artificial e de várias ferramentas ao longo do tempo, conseguiremos não acabar com fake news, mentiras, mas fazer com que elas não afetem tanto a opinião pública, nem sejam aceitas de forma gratuita. Com o avanço da tecnologia e acesso cada vez maior, as pessoas ficam sujeitas a fake news, mas também à educação, ao aprendizado. Elas tendem a ter um preparo intelectual maior, capaz de distinguir o falso do verdadeiro - aquilo que é crível daquilo que não é crível. Sempre desconfio das coisas. O interesse do conjunto da sociedade é que a internet seja um meio de troca de ideias, e não de ataques e mentiras. Acredito que, com o tempo, isso vai melhorar. Não vai acabar, mas vai melhorar bastante. 

Acredito muito na autorregulação das mídias digitais.

PD: Parte da sociedade diz que haverá risco de retrocesso se a proposta for discutida em comissão especial, como defendem as empresas do setor de publicidade digital. O senhor acredita que o caminho é a autorregulação das plataformas de mídias digitais, que também já foi sinalizada pelo presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Alexandre de Moraes?

MM: Acredito muito na autorregulação das mídias digitais. No próprio escopo da publicidade no Brasil, há órgãos que não são de Estado, mas que são autorregulatórios, assim como há os conselhos de medicina, a OAB e vários conselhos profissionais que, de certa forma, protegem e regulam a atividade dos respectivos trabalhadores e, eventualmente, punem. Na área da publicidade, por exemplo, existem várias limitações. O Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) age com muita ênfase e tem muita credibilidade. Praticamente, anúncios de tabaco não existem mais. Anúncios de bebidas alcoólicas são extremamente controlados. É autorregulação. São os profissionais de cada área, sérios e de boa-fé, que têm muito cuidado naquilo que estão fazendo. Por isso, prefiro realmente acreditar nesse caminho, na autorregulação, porque quando um negócio vem de cima para baixo, de fora para dentro, há o risco de ser transformado em instrumento de governo, instrumento de política, inclusive, de política econômica, de competição, que pode ser muito danoso, por favorecer os grandes.

PD: Caso o Estado regule as mídias digitais no Brasil, o senhor também vê risco de essa prática se estender para a regulação dos meios de comunicação?

MM: Exatamente. A princípio, a autorregulação é o melhor caminho, porque pressupõe que o cidadão tem direitos e deveres. Aqui no Brasil, as pessoas, quando se fala de cidadania, ficam muito preocupadas com a questão dos seus direitos, mas se esquecem um pouco dos seus deveres. Um cidadão tem que ser responsável, deve ter consciência de seus deveres para com o conjunto da sociedade, inclusive deveres no exercício da sua profissão, do seu trabalho. Acredito muito que, a princípio, a maior parte das pessoas têm senso de responsabilidade. 

Os desafios da miséria do povo brasileiro, da falta de educação, da falta de saúde, da falta de infraestrutura, da falta de transporte, da falta de segurança, são imensos, e não tem soluções fáceis ou triviais

PD: Na avaliação do senhor, neste momento, qual é o principal desafio do país, que derrotou nas urnas um candidato de extrema direita e que elegeu um presidente que promete ser mais progressista? Até que ponto o novo governo, na sua avaliação, de fato já está conseguindo governar?

MM: O meu medo é as pessoas ficarem decepcionadas ao verem entrevista com um humorista falando de coisas muito sérias e importantíssimas. Sou cria do antigo Partidão, do glorioso PCB, e isso muito me orgulha. Fui educado politicamente pelo Partidão e, por isso, tenho muito sintonia com o Cidadania, porque o vejo como o herdeiro político do antigo Partidão, com todos os seus defeitos e virtudes. Somos todos humanos. Tenho muitos amigos. Hoje sou liberal de esquerda, ou um social-democrata de esquerda, para ser mais claro - de que costumo ter uma visão da história como um todo. No Brasil, 5% da população vive parasitariamente de 95% do resto dos brasileiros, que sobrevivem em condições cada vez mais difíceis. Isso é uma questão histórica que precisa ser rompida. Desses 5%, inclusive não é uma questão ideológica, dois terços deles são funcionários públicos municipais, estaduais ou federais. Para se ter uma ideia, grande parte do empresariado brasileiro é dependente do Estado. No total, 40% do PIB brasileiro vêm do Estado. Esse sistema, que no Brasil já é secular, precisa ser rompido, porque é uma sociedade que não vai dar certo, principalmente dadas as mudanças que o mundo vem atravessando. Hoje o ser humano se confronta com uma questão fundamental, que se retroalimenta. É a questão da concentração de renda, cada vez maior e mais aguda. Outra questão preocupante é o desequilíbrio ambiental. A concentração de renda e o desequilíbrio ambiental se alimentam, e isso está colocando em risco, agora, a humanidade. É preciso romper com isso e inventar uma nova forma de viver, um novo modus vivendi, que eu não sei qual é. O socialismo real se mostrou disfuncional, o capitalismo também não responde às demandas da sociedade. Não tenho resposta para essa pergunta hoje. Essa é a pergunta que se coloca para a humanidade. O Brasil está inserido nesse contexto. Só que, como tudo no Brasil, as coisas são mais arraigadas. O Brasil é um dos países que têm a maior concentração de renda do mundo. Tem uma população enorme, imensa, que cada vez mais vive à margem da economia, à margem de tudo, e sobrevive com grande dificuldade. Em um país como o nosso, que tem dimensão continental, com recursos naturais enormes, isso é um despautério, um contrassenso. É preciso que a gente entenda e compreenda a necessidade de mudança, de modernização do Brasil. Cito sempre a obra de Raymundo Faoro, Os Donos do Poder, escrita em 1958. É um livro enfadonho, difícil de ler, mas quem consegue ler consegue realmente compreender o Brasil de hoje em dia. Porque o Brasil de hoje não tem nenhuma diferença do Brasil do Império, da República Velha ou de Getúlio Vargas. É um país injusto e excludente, onde a miséria de grande parte da população é cada vez maior. Se continuar a se repetir esse modelo, esse estado de coisas, não consigo ver nenhum final feliz para essa história. Pelo contrário, vejo possibilidade de desmantelamento, de colapso geral muito grande, haja vista, por exemplo, as manifestações de 2013. Chega-se à anomia, que é o desmantelamento, a ruptura, o tecido social se desmancha, mergulhando a sociedade num caos, e caos começa e não tem data para acabar. Lembro o exemplo do Haiti, que é o único país em que aconteceu exatamente isso no século 18 e até hoje, no século 21, não conseguiu se recuperar do caos social. Evidentemente, o Brasil é um país enorme, de dimensões continentais, e tem papel extremamente importante no mundo, mas isso não nos salva dessa perspectiva. O problema do Brasil é justamente isso. Brasileiros mais privilegiados têm que pensar sobre isso, meditar sobre isso profundamente e, como digo, é a obrigação do cidadão participar da vida política, da vida social, da vida comunitária, e perceber que, se a gente não fizer mudanças estruturais relevantes no país, isso tudo pode inviabilizar a própria nação brasileira. Isso é um problema grave. E é preciso que se debata isso, se examine esse assunto, porque eles não se limitam só às fronteiras brasileiras. Essas questões se impõem hoje para o mundo inteiro, para os povos da África, da Ásia, da Europa, do resto das Américas. A humanidade hoje tem desafios imensos, e a impressão que tenho do Brasil, principalmente da nossa classe dirigente, política, é que ela tem postura meio alienada dessas questões. Eles não conseguem, ou não querem, ver a complexidade e a profundidade dessas questões e ficam nas questões cotidianas menores, que não são nada frente aos desafios que temos que enfrentar. Os desafios da miséria do povo brasileiro, da falta de educação, da falta de saúde, da falta de infraestrutura, da falta de transporte, da falta de segurança, são imensos, e não tem soluções fáceis ou triviais. No Executivo, no Legislativo e no Judiciário, vejo limitação intelectual e falta de visão, de perspectiva histórica. Há um despreparo mesmo para enfrentar. Nem sequer passa pela cabeça deles. Não tenho ilusão em relação ao governo Lula - e votei no Lula. Mais que isso: fiz campanha para o Lula, apesar de ser um severo crítico de Lula e do PT. No entanto, sei compreender o movimento histórico. Nas últimas eleições, o que estava em jogo era a democracia. Fora da democracia, não temos salvação. Então, por isso, não só votei no Lula, como fiz campanha para o Lula. A batalha pelas instituições democráticas não é jogo jogado, não é caso encerrado. Ela se coloca ainda, na medida em que há hoje, no Brasil, uma extrema-direita muito maior do que imaginávamos, organizada, estruturada, que é muito maior do que a família Bolsonaro, infelizmente. Por isso, sou favorável à formação de uma ampla frente democrática. Sou contra o autoritarismo de extrema direita ou de extrema esquerda. Não tenho qualquer ilusão com relação a esse governo, fora de que ele garanta a existência do regime democrático. Do ponto de vista tático e estratégico, a luta pela democracia só vai ser feita por meio de uma ampla frente que abranja o maior número possível de pessoas, com diferentes pensamentos, mas que sejam efetivamente a favor do regime democrático. Meu grande temor é que o Brasil fique oscilando entre um governo não de esquerda, mas esquerdista, e um regime de extrema direita, fascista, totalitário, como o de Bolsonaro. Percebo que o caminho está no centro, a virtude está no centro, no equilíbrio, em romper essa polarização que existe não só no Brasil, mas no mundo inteiro, com ódio recíproco muito grande, e isso não é solução para nada. 

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Imagem: Maurenilso Freire

Nas entrelinhas: o fantasma do comunismo renasceu com o bolsonarismo

Luiz Carlos Azedo/Entrelinhas/Correio Braziliense

“Um fantasma ronda a Europa — o fantasma do comunismo. Todas as potências da velha Europa se aliaram numa caçada santa a esse fantasma: o papa e o czar, Metternich e Guizot, radicais franceses e policiais alemães. Que partido oposicionista não é acusado de comunista por seus adversários no governo?”

As primeiras palavras do Manifesto Comunista de 1848 publicado por Karl Marx e Friedrich Engels em Londres, em inglês, francês, alemão, flamengo e dinamarquês, parecem saltar das estantes empoeiradas para a pesquisa Ipec divulgada no domingo pelo jornal O Globo.

Para 44% dos brasileiros, o Brasil corre o risco de “virar um país comunista” sob o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Segundo a pesquisa, 33% concordam totalmente com a afirmação de que um novo regime poderia ser implantado no país; 13% concordam parcialmente com a tese. Discordam total ou parcialmente da ideia 48% dos entrevistados.

A pesquisa mostra que a essência do bolsonarismo é o anticomunismo. O ex-presidente Jair Bolsonaro trata toda a esquerda e mesmo setores liberais como uma “ameaça comunista”. Na campanha eleitoral de 2022, teve nome e sobrenome: Luiz Inácio Lula da Silva. Continua sendo um divisor de águas da política brasileira: 81% dos que afirmam que a gestão Lula é “ruim ou péssima” concordam com o risco de comunismo. Já 71% dos que consideram o governo Lula “bom ou ótimo” rejeitam a afirmação.

A “ameaça comunista” é um tema recorrente na política brasileira, corroborado pela história do Brasil. Fundado por anarquistas, sob a liderança do jornalista e crítico literário Astrojildo Pereira, o Partido Comunista surgiu em 1922. Colheu lideranças da primeira grande onda de greves operárias no Brasil, que ocorreu em 1917, o “ano vermelho”, pois coincidiu com a Revolução Russa.

O Partido Comunista logo foi posto na ilegalidade. Em janeiro de 1927, reconquistou a legalidade, com a eleição de Azevedo Lima para a Câmara de Deputados. Em agosto, foi posto novamente na ilegalidade, pela “Lei Celerada” (Decreto n° 5.221) do governo de Washington Luís. Com o trabalho assalariado e a crescente urbanização, a questão social havia emergido nas grandes cidades e se tornara um caso de polícia.

Naufrágio no passado

A lei limitava a atuação da oposição ao governo e a direito de reunião, pois permitia ao governo fechar por tempo determinado sindicatos, clubes ou sociedades que convocassem ou apoiassem publicamente greves ou protestos. Também proibia a propaganda desses temas e impedia a distribuição de panfletos ou jornais que apoiassem ou incitassem greves e manifestações. A imprensa foi amordaçada. Os sindicatos foram duramente reprimidos, trabalhadores estrangeiros socialistas e anarquistas foram deportados do país.

Com a entrada no Partido Comunista do líder tenentista Luiz Carlos Prestes, comandante da famosa coluna que leva seu nome e o do general Miguel Costa, o comunismo deixou de ser um fantasma. Com o levante comunista em quartéis do Rio de Janeiro, de Recife e de Natal, em novembro de 1935, durante a ditadura de Getúlio Vargas, passou a ser tratado como uma ameaça real. Com o fracasso da chamada Intentona Comunista, Prestes passou nove anos na cadeia.

Entretanto, o fantasma voltou a rondar o Brasil em 1964, durante o governo João Goulart, que assumiu o poder com a renúncia de Jânio Quadros e propôs um programa de reformas de base, entre as quais a agrária. Um discurso de Prestes na Associação Brasileira de Imprensa (ABI), no qual exagerava a influência comunista no governo, seria um dos pretextos para a destituição de Jango pelos militares, em março de 1964.

No livro A Mente Naufragada, o cientista político norte-americano Mark Lilla explica que o espírito reacionário difere muito do conservador. Trata-se de invocar o passado para nele viver sem transformações, o que é muito diferente da atitude do conservador, que tem o passado e suas tradições como referência para agir no presente e construir o futuro.

Lilla conclui que mente reacionária naufragou, “porque olha para os destroços de um passado que lhe parece ameaçado, e luta para salvá-lo, porque não sabe conviver com as mudanças”. Ironicamente, porém, isso faz do reacionarismo um fenômeno “moderno” no mundo da globalização e do multiculturalismo.

No Brasil, o grande porta-voz do pensamento reacionário é o ex-presidente Jair Bolsonaro, que não conseguiu se reeleger. Esgrime o fantasma do comunismo contra toda a esquerda, principalmente o PT, um partido de base operária e social-democrata, que retroalimenta o fantasma do comunismo pela sua narrativa classista e, principalmente, devido às boas relações com Cuba, Venezuela, Nicarágua e, agora, a China.


Imagem: Site JoeFino

A Era da Desinformação Infinita, nas asas da Inteligência Artificial?

Por Gary Marcus* em The Atlantic | Tradução: Maurício Ayer

Novos sistemas de inteligência artificial (IA), como o ChatGPT, o mecanismo de pesquisa revisado do Microsoft Bing e o GPT-4, que segundo anunciado está prestes a chegar, capturaram totalmente a imaginação pública. O ChatGPT é o aplicativo on-line que cresceu mais rápido em todos os tempos, e não é de se admirar. Digite algum texto e, em vez de links da internet, você receberá respostas bem elaboradas, como em uma conversa, sobre qualquer tópico selecionado – a proposta é inegavelmente sedutora.

Mas não são apenas o público e os gigantes da tecnologia que ficaram encantados com essa tecnologia baseada em Big Data, conhecida como “modelo de linguagem grande”. Os delinquentes também tomaram conhecimento da tecnologia. No extremo, está Andrew Torba, CEO da rede social de extrema-direita Gab, que disse recentemente que sua empresa está desenvolvendo ativamente ferramentas de IA para “defender uma visão de mundo cristã” e combater “as ferramentas de censura do Regime”. Mas mesmo os usuários que não são motivados por uma ideologia sofrerão o impacto. A Clarkesworld, uma editora de contos de ficção científica, parou temporariamente de aceitar envios no mês passado, porque estava sendo alvo de spam de histórias geradas por IA – resultado de influenciadores que passaram a sugerir maneiras de usar a tecnologia para “ficar rico rapidamente”, conforme contou o editor da revista para The Guardian.

Este é um momento tremendamente perigoso: as empresas de tecnologia estão correndo para lançar novos produtos de IA, mesmo depois dos problemas com esses produtos terem sido tão bem documentados por anos a fio. Sou um cientista cognitivo e tenho como foco aplicar o que aprendo sobre a mente humana ao estudo da inteligência artificial. Também fundei algumas empresas de IA e estou pensando em fundar outra. Em 2001, escrevi um livro chamado The Algebraic Mind [A mente algébrica] no qual analiso em detalhe como as redes neurais – um tipo de tecnologia vagamente semelhante ao cérebro sobre a qual se assentam alguns produtos de IA – tendiam a generalizar demais, aplicando características de indivíduos a grupos maiores. Se eu contasse a uma IA naquela época que minha tia Esther havia ganhado na loteria, ela poderia concluir que todas as tias, ou todas as Esthers, também haviam ganhado na loteria.

A tecnologia avançou bastante desde então, mas o problema de base persiste. Na verdade, a integração da tecnologia e a escala dos dados que ela utiliza a tornaram pior em muitos sentidos. Esqueça a tia Esther: em novembro, Galactica, um modelo de linguagem grande lançado pela Meta – e rapidamente colocado offline – teria falado que Elon Musk morreu em um acidente de carro da Tesla em 2018. Mais uma vez, a IA parece ter generalizado demais um conceito que era verdadeiro em um nível individual (alguém morreu em um acidente de carro da Tesla em 2018) e o aplicou erroneamente a outro indivíduo que compartilha alguns atributos pessoais, como sexo, estado de residência na época e vínculo com a montadora.

Esse tipo de erro, que ficou conhecido como “alucinação”, ocorre desenfreadamente. Seja qual for o motivo pelo qual a IA cometeu esse erro específico, é uma demonstração clara da capacidade desses sistemas de escrever uma prosa fluente que está claramente em desacordo com a realidade. Você não precisa imaginar o que acontece quando tais associações falhas e problemáticas são desenhadas em cenários do mundo real: Meredith Broussard da NYU e Safiya Noble da UCLA estão entre os pesquisadores que têm repetidamente mostrado como diferentes tipos de IA replicam e reforçam preconceitos raciais em uma variedade de situações do mundo real, incluindo nos serviços de saúde. Modelos de linguagem grandes como o Chat GPT apresentaram vieses semelhantes em alguns casos.

No entanto, as empresas pressionam para desenvolver e lançar novos sistemas de IA sem muita transparência e, em muitos casos, sem verificação suficiente. Os pesquisadores que vasculham esses modelos mais novos descobriram todo tipo de coisas perturbadoras. Antes da Galactica ser tirada do ar, o jornalista Tristan Greene descobriu que dava para usá-la para criar minuciosos artigos em estilo científico sobre tópicos como os benefícios do antissemitismo e de comer vidro moído, inclusive com referências a estudos fabricados. Outros observaram que o programa gerou respostas racistas e imprecisas. (Yann LeCun, cientista-chefe de IA da Meta, argumentou que a Galactica não tornaria a disseminação online de desinformação mais fácil do que já é; em novembro, o porta-voz da Meta disse ao site CNET que a “Galactica não é uma fonte de verdade, é um experimento de pesquisa usando sistemas [de aprendizado de máquina] para aprender e resumir informações.”)

Mais recentemente, o professor da Wharton Ethan Mollick conseguiu que o novo Bing escrevesse cinco parágrafos detalhados e totalmente falsos sobre a “civilização avançada” dos dinossauros, cheios de fragmentos que soavam autoritários, incluindo: “Por exemplo, alguns pesquisadores afirmaram que as pirâmides do Egito, as linhas de Nazca do Peru, e as estátuas da Ilha de Páscoa do Chile foram realmente construídas por dinossauros, ou por seus descendentes ou aliados.” Apenas neste fim de semana, Dileep George, pesquisador de IA da DeepMind, disse que conseguiu fazer o Bing criar um parágrafo de texto falso afirmando que o OpenAI e um inexistente GPT-5 tiveram um papel no colapso do Silicon Valley Bank. Solicitada a comentar esses episódios, a Microsoft não respondeu imediatamente; no mês passado, um porta-voz da empresa disse que, “considerando que esta é uma prévia, [o novo Bing] às vezes pode apresentar respostas inesperadas ou imprecisas… estamos ajustando suas respostas para criar respostas coerentes, relevantes e positivas.”

Alguns observadores, como LeCun, dizem que esses exemplos isolados não são surpreendentes nem preocupantes: entre com um material ruim em uma máquina e ela produzirá um resultado ruim. Mas o exemplo do acidente de carro de Elon Musk deixa claro que esses sistemas podem criar alucinações que não aparecem em nenhum lugar nos dados de treinamento. Além disso, a potencial escala deste problema é motivo de preocupação. Podemos só começar a imaginar o que as fazendas de trolls patrocinadas pelo Estado, com grandes orçamentos e modelos de linguagem grandes personalizados podem produzir. Delinquentes poderiam facilmente usar essas ferramentas, ou outras parecidas, para gerar desinformação prejudicial, em escala gigantesca e sem precedentes. Em 2020, Renée DiResta, gerente de pesquisa do Stanford Internet Observatory, alertava que a “fornecimento de desinformação em breve será infinito”. Esse momento chegou.

Cada dia nos aproxima um pouco mais de um tipo de desastre na esfera da informação, no qual os delinquentes armam modelos de linguagem grandes, distribuindo seus ganhos ilícitos por meio de exércitos de bots cada vez mais sofisticados. O GPT-3 produz respostas mais plausíveis que o GPT-2, e o GPT-4 será mais poderoso que o GPT-3. E nenhum dos sistemas automatizados projetados para discriminar os textos gerados por humanos dos textos gerados por máquinas provou ser particularmente eficaz.

Já enfrentamos um problema assim com as câmaras de eco que polarizam nossas mentes. A produção automatizada em grande escala de desinformação ajudará na transformação dessas câmaras de eco em armas de guerra e provavelmente nos levará ainda mais longe nos extremos. O objetivo do modelo russo “Lança-chamas de falsidades” é criar uma atmosfera de desconfiança, favorecendo a entrada em cena de agentes autoritários; é nessa linha que o estrategista político Steve Bannon almejava, durante o governo Trump, “inundar a zona com merda”. É urgente descobrir como a democracia pode ser preservada em um mundo em que a desinformação pode ser criada tão rapidamente e em tal escala.

Uma sugestão, que vale a pena explorar, mesmo que provavelmente seja insuficiente, é colocar uma “marca d’água” ou rastrear o conteúdo produzido por modelos de linguagem grandes. O OpenAI pode, por exemplo, marcar qualquer coisa gerada pelo GPT-4, a próxima geração da tecnologia que alimenta o ChatGPT; o problema é que os delinquentes podem simplesmente usar outros modelos de linguagem grandes e criar o que quiserem, sem marcas d’água.

Uma segunda abordagem é penalizar a desinformação quando ela é produzida em larga escala. Atualmente, a maioria das pessoas é livre para mentir a maior parte do tempo sem consequências, a menos que estejam, por exemplo, falando sob juramento. Os fundadores dos EUA simplesmente não imaginaram um mundo em que alguém pudesse criar uma fazenda de trolls e divulgar um bilhão de inverdades em um único dia, disseminadas por um exército de bots pela Internet. Podemos precisar de novas leis para lidar com esse tipo de cenário.

Uma terceira abordagem seria construir uma nova forma de IA que pudesse detectar desinformação, em vez de simplesmente gerá-la. Modelos de linguagem grandes não são por si sós adequados para isso; eles não controlam bem as fontes de informação que usam e carecem de meios de validar diretamente o que dizem. Mesmo em um sistema como o do Bing, onde as informações são obtidas na internet, podem surgir inverdades quando os dados são alimentados pela máquina. Validar a saída de modelos de linguagem grandes exigirá o desenvolvimento de novas abordagens para a IA que centralizem o raciocínio e o conhecimento, ideias que já foram mais valorizadas, mas atualmente estão fora de moda.

A partir de agora, será uma corrida armamentista contínua de movimentos e contra-ataques. Assim como os spammers mudam suas táticas quando os anti-spammers mudam as suas, podemos esperar uma batalha constante entre os delinquentes que se esforçam para usar modelos de linguagem grandes para produzir grandes quantidades de desinformação e os governos e corporações privadas tentando contra-atacar. Se não começarmos a lutar agora, a democracia pode ser dominada pela desinformação e consequente polarização – e isso pode acontecer muito em breve. As eleições de 2024 podem ser diferentes de tudo o que já vimos.

*Gary Marcus é um cientista, escritor e empresário. Seu livro mais recente é Rebooting AI. Este texto foi publicado em português no portal Outras Palavras.


Nas entrelinhas: Volta de Ibaneis sinaliza esgotamento das medidas de exceção

Luiz Carlos Azedo/Entrelinhas/Correio Braziliense

Depois de 66 dias de afastamento, por determinação do Supremo Tribunal Federal (STF), Ibaneis Rocha (MDB) reassumiu ontem o cargo de governador do Distrito Federal, do qual havia sido afastado na tarde de 8 de janeiro, pelo ministro do STF Alexandre de Moraes, relator do processo que apura a tentativa de golpe de Estado. O motivo do afastamento foi a suspeita de que se omitiu em relação à ação das forças de segurança sob seu comando.

“Foram dias muito difíceis, mas esse afastamento que tivemos ao longo desse período foi necessário. A invasão dos prédios do Congresso, do STF e do Palácio do Planalto foram significativos para a história deste país”, admitiu Ibaneis, ao reassumir o cargo. Classificou como um “apagão” o comportamento das forças policiais sob seu comando, num cenário de inoperância generalizada. “Houve um relaxamento geral. A Força Nacional também não atuou”, disse.

Ibaneis defendeu seu ex-secretário de Segurança Anderson Torres, que está preso por envolvimento nas articulações do ex-presidente Jair Bolsonaro contra o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Em sua casa, foi encontrada a minuta do decreto de intervenção no TSE e afastamento de Moraes. “Acredito que o 8 de janeiro tem que ser lembrado, mas não foi culpa só do Anderson e tenho certeza de que a investigação vai apurar isso”, afirmou Ibaneis.

O inquérito das fake news, do qual Moraes é relator, não tem prazo para ser concluído e é muito criticado nos meios jurídicos, porque confere ao ministro do STF o poder de investigar, denunciar e julgar os envolvidos em atos antidemocráticos. Conduzido em sigilo por decisão da própria Corte, foi aberto em março de 2019 pelo então presidente do STF, ministro Dias Toffoli, sem provocação de outro órgão. Toffoli designou Moraes para conduzir o inquérito sem sorteio entre todos os ministros.

A primeira grande reação ao inquérito ocorreu quando 29 mandados de busca e apreensão foram expedidos por Moraes, tendo como alvo pessoas suspeitas de envolvimento na rede de fake news bolsonarista. Foram cumpridos em cinco estados — Rio de Janeiro, São Paulo, Mato Grosso, Paraná e Santa Catarina — e no Distrito Federal.

Bolsonaristas raiz eram os visados, como o empresário Luciano Hang, fundador da Havan, o deputado estadual Douglas Garcia (PSL-SP), a militante Sara Winter, o empresário Edgard Corona, presidente da rede de academias Smart Fit, os blogueiros Winston Lima e Allan dos Santos e o presidente nacional do PTB, o ex-deputado federal Roberto Jefferson.

Legítima defesa

O inquérito excluiu a participação do Ministério Público nas investigações e se tornou alvo de críticas de procuradores, membros do Executivo e do Legislativo, que temiam uma concentração excessiva de poder nas mãos do Supremo. A então procuradora-geral da República, Raquel Dodge, tentou impedir a continuidade dessa apuração, por considerá-la ilegal, mas seu argumento foi descartado por Moraes.

Seu sucessor na chefia da PGR, Augusto Aras, aliado de Bolsonaro, também esperneou, mas Moraes sustentou que só o STF tem prerrogativa para arquivar a investigação, já que ela é conduzida pelo próprio tribunal, não por promotores. A decisão de Toffoli fora premonitória diante da escalada golpista. O tempo corroborou sua decisão. Graças ao inquérito, os núcleos golpistas de extrema direita foram identificados, e os políticos que desafiaram o Supremo frontalmente, como os ex-deputados Roberto Jeferson e Daniel Silveira, ambos do Rio de Janeiro, acabaram presos.

O inquérito das fake news também blindou o TSE durante o processo eleitoral, inclusive no dia da votação do segundo turno, quando houve ostensiva atuação da Polícia Rodoviária Federal (PRF) para dificultar a movimentação de eleitores nas estradas, principalmente no Nordeste.

O Artigo 42 do regimento do Supremo estribou a existência do inquérito: “Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do tribunal, o presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro ministro”.

Segundo Toffoli, apesar de os crimes não terem sido praticados dentro do prédio do Supremo, os ministros “são o tribunal”. Sua tese se confirmou quando os vândalos invadiram e depredaram o plenário da Corte: fora do prédio ocupado pelos vândalos, os ministros usaram a espada da Justiça contra os golpistas. O ministro aposentado do STF Carlos Ayres Britto definiu as ações adotadas como um “ato de legítima defesa”.

“A democracia também tem o direito à legítima defesa. Se a sua vida, a minha vida, as nossas vidas são o bem jurídico maior, individualmente, o bem jurídico maior da coletividade, de personalidade coletiva, por definição é a democracia”, explicou. “Então, a democracia tem mesmo o poder de abater, por meios que ela prevê, de abater quem se arma para abatê-la”, concluiu Britto.


Luiz Inácio Lula da Silva | Foto: Isaac Fontana/Shutterstock

Revista online | Governabilidade do governo Lula no Congresso

Antônio Augusto de Queiroz*, mestre em Políticas Públicas e Governo, especial para a revista Política Democrática online (52ª edição)

A governabilidade, entendida como a existência de condições políticas para implementar um programa de governo, é um fenômeno multifacetado, que depende de vários fatores. Dentre esses fatores, o apoio no Poder Legislativo – lócus onde se forma a vontade normativa do Estado e foro legítimo e apropriado para a solução das demandas da sociedade – é crucial para qualquer governo.

Historicamente, são duas as formas de construção da base de apoio aos governantes: a) uma no processo eleitoral, por meio das alianças ou coligações eleitorais, e b) a outra após a eleição, mediante a coalizão. No Brasil, raramente os governantes elegem uma base de apoio suficiente para garantir a governabilidade, havendo a necessidade de formação de coalizão para assegurar votos suficientes para aprovar sua agenda legislativa ou seu programa de governo.

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Entretanto, a forma mais eficaz de identificar a correlação de forças no parlamento é classificando os partidos em três categorias: apoio consistente, apoio condicionado, ou independentes, e oposição.  De acordo com essa classificação: o apoio consistente reúne 139 deputados, sendo 81 da Frente Brasil (PT-68, PCdoB-7 e PV-6), 17 do PDT, 14 do PSB, 7 do Avante, 4 do Solidariedade, 2 do Pros e 14 da Federação PSol-Rede (PSol-13 e Rede-1); o apoio condicionado ou independentes, 223 deputados (Parcela do PP e até do PL pode migrar para esse grupo), sendo 59 do União, 42 do PSD, 42 do MDB, 42 do Republicanos, 18 da Federação (PSDB-14  e  Cidadania-4) 12 do PODE, 4 do  PSC, e 4 do Patriota;  e oposição 151 (PSDB – 14 deputados – pode migrar para esse grupo), sendo 99 do PL, 49 do PP e 3 do Novo. 

No Senado, por sua vez, estão 16 senadores no apoio consistente, sendo PT (8), PSB (4), PDT (3) e Rede (1); 35 no apoio condicionado/independente, sendo PSD (16), MDB (10), e União (9); e 30 na oposição, sendo PL (12), PP (6), Republicanos (4), Podemos (4), PSDB (3), e Novo (1). 

Um parâmetro para medir a base do atual governo é o resultado da eleição das mesas diretoras das Casas do Congresso. Na Câmara, a melhor referência é a votação dada à deputada Maria do Rosário (PT/RS) para o cargo de segundo secretário da mesa, e no Senado, a votação dada a Rodrigo Pacheco (PSD/MG).

A deputada Maria do Rosário, que integrava uma chapa com os três grupos (situação, independentes e oposição), expressa e representa o PT e o governo Lula. Ela recebeu 371 votos a favor e 134 votos em branco. Os votos a favor sinalizam o potencial de apoio ao governo na Casa e os votos brancos, a oposição radical ao governo ou o bolsonarismo.

Já a votação do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, que teve 49 votos, fica aquém do potencial da base de apoio do governo no Senado. Pelo menos dez dos 32 votos dados a Rogério Marinho (PL/RN) não foram de oposição ao governo, mas de rejeição à postura de Pacheco, contrário à investigação de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF).

A coligação Brasil da Esperança, formada pelas federações PT/PV/PCdoB, PSol/Rede e pelos partidos PSB, PROS, Solidariedade, Avante e Agir elegeu apenas 120 deputados federais e 12 senadores, mas com a coalizão a base poderá chegar até 346 deputados e 56 senadores, como decorrência: a) do modo como o governo se relaciona com o Congresso, b) do conteúdo das políticas públicas, e c) da vocação governista da atual oposição.

Nesse cenário, o desafio do presidente Lula na relação com o Congresso – classificado como liberal, do ponto de vista econômico; fiscalista, do ponto de vista de gestão; conservador, em relação aos valores; e à direita, do ponto de vista político – será assegurar governabilidade e puxar o pêndulo da atual legislatura para o centro. Para tanto, é preciso ter calibragem nas propostas e compromisso com a defesa da democracia, da justiça e da inclusão social. 

Saiba mais sobre o autor

*Antônio Augusto de Queiroz é jornalista, analista e consultor político, mestre em Políticas Públicas e Governo pela FGV, sócio-diretor da Consillium Soluções Institucionais e Governamentais. 

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de fevereiro de 2023 (52ª edição), editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da revista.

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Fernando Haddad

Nas entrelinhas: Haddad gera expectativas positivas sobre economia

Luiz Carlos Azedo/Entrelinhas/Correio Braziliense

Por enquanto é um segredo de Estado, mas o simples fato de o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, ter entregue a proposta de âncora fiscal ao vice-presidente Geraldo Alckmin, ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, e à ministra do Planejamento, Simone Tebet, para a devida apreciação, gerou expectativas positivas dos agentes econômicos. Haddad pretende ouvir os dois colegas antes de apresentar o projeto formalmente ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Com isso, quer unificar toda a equipe econômica do governo e neutralizar o “fogo amigo” dos petistas.

O anúncio foi feito ontem, com o claro objetivo de acalmar o mercado, ao oferecer uma alternativa ao teto de gastos, que morreu de morte morrida, ao ser ultrapassado sucessivas vezes durante o governo Bolsonaro, após a pandemia de covid-19. A última vez foi entre a eleição e a posse de Lula, para atender necessidades emergenciais do governo que se encerrava. O ambiente econômico não é favorável ao governo. O Boletim Focus, elaborado com base nas análises do mercado financeiro, aumenta a projeção da inflação de 5,90% para 5,96% em 2023, bem acima do teto da meta, de 4,75%. Essa elevação corrobora os argumentos do presidente do Banco Central (BC), Roberto Campos Neto, para manter a taxa de juros astronômica de 13,75%.

A proposta de âncora fiscal seria uma sinalização para o Copom, que fixa a taxa Selic e deve se reunir nos próximos dias 21 e 22, de que o governo está realmente preocupado com a crise fiscal, mas precisa da redução da taxa de juros para injetar otimismo nos agentes econômicos e evitar uma recessão. Até agora, todas as medidas anunciadas pelo governo implicam em mais gastos públicos. Algumas foram indispensáveis para atender promessas de campanha eleitoral e manter a base social do governo, formada por estreita maioria, como o novo Bolsa Família, o aumento real do salário mínimo e o reajuste dos servidores públicos federais de 9%, depois de sete anos sem aumento. São medidas justas, porém a inflação e a estagnação econômica continuam sendo uma ameaça.

Ontem, em reunião com seus ministros da área social, Lula criticou, sem citar nomes, o fato de medidas governamentais estarem sendo anunciadas sem sua prévia aprovação. Foi um freio de arrumação na equipe, que anda batendo cabeça e fugindo ao controle da Casa Civil, comandada por Rui Costa. Com ironia, Lula disse que todas as propostas devem ser encaminhadas ao Palácio do Planalto, antes de a “genialidade” ser anunciada. Foi um recado para o ministro dos Portos e Aeroportos, Márcio França, que havia anunciado um programa para oferecer passagens aéreas a R$ 200 para estudantes, idosos e funcionários públicos utilizando a capacidade ociosa das aeronaves. Lula foi pego de surpresa, bem como as companhias aéreas.

Reforma tributária

Haddad também aposta na reforma tributária para melhorar o ambiente econômico, com a substituição de cinco tributos por um imposto sobre valor agregado (IVA). Seriam substituídos o ICMS (estadual), o ISS (municipal), o PIS, o Cofins e o IPI (federais). Ontem, no encontro de prefeitos, ficou evidente a preocupação em relação ao impacto da extinção do ISS na economia dos municípios. A maioria arrecada pouco com esse imposto municipal, mas as cidades com mais dinamismo econômico e administração eficiente têm no ISS uma grande fonte de receita. Haddad tentou tranquilizar os prefeitos.

Todas as tentativas de aprovação de uma reforma tributária fracassaram, por falta de acordo com estados e municípios. Aprovado pela Constituinte de 1988, o atual sistema tributário resultou de um amplo acordo negociado pelo seu relator, o então deputado José Serra (PSDB-SP). Na ocasião, como todo o arcabouço constitucional estava sendo elaborado, havia moedas de troca para acomodar interesses contrariados, inclusive de caráter corporativo. Hoje, não, o novo sistema tributário está sendo debatido isoladamente.

Algumas dessas moedas deixaram de existir. Um exemplo: o Fundap era um incentivo financeiro para apoio a empresas com sede no Espírito Santo que realizavam operações de comércio exterior tributadas com ICMS; foi extinto no governo Dilma Rousseff. Outro: o ICMS é arrecadado pelos estados produtores das mercadorias, mas será substituído pelo IVA, que passará a ser recolhido no destino, como hoje acontece com os combustíveis.

Como ficará a situação da Zona Franca de Manaus, “uma área de livre comércio de importação e exportação e de incentivos fiscais especiais, estabelecida com a finalidade de criar no interior da Amazônia um centro industrial, comercial e agropecuário”? A reestruturação das cadeias globais de valor, em decorrência da disputa comercial entre os Estados Unidos e a China, abre uma nova janela de oportunidades para a Zona Franca, mas ela corre o risco de ser extinta.


Mulheres pretas na ciência e na política é tema de live da FAP

Comunicação FAP

No mês em que se comemora o Dia Internacional da Mulher, a Fundação Astrojildo Pereira (FAP) realizará, na terça-feira (14/3), das 18h às 19h, uma live para discutir a importância das mulheres pretas na ciência e na política. O evento terá transmissão em tempo real no site e nas mídias digitais da entidade.

https://www.youtube.com/watch?v=u2FdKwr4qAA

Diretora executiva da FAP, a professora Jane Monteiro Neves, que também é ativista da Rede Amazônia Antirracista, será responsável pela mediação do evento. O público poderá enviar perguntas por meio do canal da FAP no Youtube e da página da entidade no Facebook.

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Também participará da live a pesquisadora Creusa dos Santos Trindade, que atua no Grupo de Pesquisa, Saberes e Práticas Educativas de Populações Quilombolas (Eduq) da Universidade do Estado do Pará (Uepa). Ela também é ativista da Rede Amazônia Antirracista.

Outro nome confirmado é o da Maria Darlene Trindade Corrêa, que também é pesquisadora da Uepa. A primeira mulher negra eleita deputada estadual do Pará, Cristina Almeida, ex-vereadora, também participará da live.

Política

No início deste mês, a União Inter-Parlamentar (UIP), organização internacional dos parlamentos dos Estados soberanos, divulgou novo informe anual. O documento mostra que, no Brasil, a participação de mulheres nos processos eleitorais no Brasil aumentou em 2022.

No entanto, o país continua abaixo da média mundial e da média da presença de mulheres nos poderes legislativos latino-americanos. De acordo com a organização, o resultado da eleição brasileira de 2022 colocou um número recorde de mulheres no Legislativo, mas a taxa continua insuficiente até mesmo para equiparar o país à realidade de seus vizinhos.

Por outro lado, o estudo mostra que houve um número recorde de mulheres negras que se apresentaram para as eleições de 2022: 4,8 mil entre 26 mil candidatas, seguindo tendência identificada também nos Estados Unidos, Colômbia e França.

Segundo a organização, o Brasil continua bem abaixo da média mundial. De acordo com o levantamento, a participação de mulheres na Câmara de Deputados é de 17,7%, contra apenas 16% no Senado. A taxa brasileira é ainda próxima aos índices que existiam na Europa há quase 30 anos.

De 43 eleições avaliadas em 2022, o Brasil ocupou apenas a 30ª posição, abaixo da Somália, Guiné Equatorial, Bahrein ou Quênia. Dos 513 assentos na Câmara, apenas 91 estão ocupados por mulheres.

Nos 19 processos eleitorais em 2022 para senadores pelo mundo, o Brasil ficou apenas na 16ª posição, com apenas 13 senadoras entre 81 assentos. Chungong espera que a nova fase da política brasileira, com a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva, abra a possibilidade para que avanços possam ocorrer na representatividade de mulheres no poder.


Inteligência artificial Getty Images

Revista online | Inteligência artificial: o difícil desafio de enfrentar as ambiguidades

Dora Kaufman*, professora da PUC-SP, especial para a revista Política Democrática online (52ª edição) 

O hype do ChatGPT despertou a sociedade para o poder da inteligência artificial (IA), tecnologia que está no cerne dos modelos de negócio das plataformas e aplicativos tecnológicos que acessamos cotidianamente, na otimização de processos, nas decisões automatizadas como seleção e contratação de RH e concessão de crédito, além de diversas outras implementações. A adoção generalizada desses sistemas gera externalidades positivas com benefícios extraordinários em distintos setores, e externalidades negativas com potenciais danos ao usuário afetado, às instituições e à sociedade. Para enfrentar essas ambiguidades, é crítico regulamentar o desenvolvimento e uso da IA, pelo poder público, e estabelecer diretrizes de governança de IA, pelo setor privado e público.

Primeiramente, por que precisamos regulamentar a inteligência artificial, ou seja, conferir tratamento distinto das demais tecnologias digitais? A resposta está na natureza de propósito geral da IA, que como tal está reconfigurando a lógica de funcionamento da economia e da sociedade do século XXI. Estamos migrando de um mundo de máquinas programadas para um mundo de máquinas probabilísticas, expandindo a automação programada com a automação “inteligente” com impactos sobre o trabalho, sobre a percepção de controle e gestão de riscos; gradativamente, a IA torna-se protagonista em processos decisórios pela capacidade de gerar previsões com taxas relativamente altas de acurácia. O desafio, portanto, é garantir que a sociedade como um todo usufrua de seus benefícios e, simultaneamente, mitigar os malefícios particularmente às aplicações em domínios sensíveis (saúde, educação, segurança, justiça).

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O contra-argumento de que a regulação pode inibir o desenvolvimento da inteligência artificial é falacioso. Setores muito regulamentados, por exemplo, o farmacêutico e o bancário, preservam a inovação incremental e a inovação disruptiva. Ambiente de negócio com regras claras, ao gerar mais confiança, incentiva o próprio uso da tecnologia; ademais, a não observância de uma "IA ética" compromete um ativo estratégico: a reputação da organização. Estar em "compliance" com a lei implicará em custos extras, sem dúvida, mas esses custos representam percentuais relativamente pequenos dos ganhos de eficiência em adotar a IA para otimizar processos, produtos e serviços.

Regulamentar a inteligência artificial não é trivial, começando pela definição do que seja um sistema de IA, o que explica o fato de que não temos um marco regulatório em lugar algum do mundo, apenas propostas em debate como a da Comissão Europeia e o substitutivo da Comissão de Juristas do Senado. Nos EUA, intensifica-se a pressão por parte de parlamentares sobre as autoridade federais para empreenderem ações concretas para garantir sistemas de IA mais seguros e éticos, em paralelo à iniciativas positivas de Washington como a divulgação, em janeiro último, do relatório final da Força-Tarefa Nacional de Recursos de Pesquisa em IA (The National AI Research Resource -NAIRR), comitê consultivo federal estabelecido pela Lei de Iniciativa Nacional de IA de 2020, composto por membros do governo, da academia e de organizações privadas.

No Brasil, a expectativa é que o Relatório da Comissão de Juristas trâmite no Senado ao longo de 2023 e seja submetido à ampla consulta pública, permitindo aperfeiçoar seus 48 artigos e estabelecer um marco regulatório de referência mundial. O que temos no momento como alternativa é o projeto de lei aprovado no plenário da Câmara dos Deputados em 29 de setembro de 2021 (PL 21/2020) basicamente principiológico: generalista, inócuo como instrumento de proteção à sociedade, particularmente da pessoa afetada pelas decisões automatizadas com IA, além de não prever direitos aos afetados nem punições.

Saiba mais sobre a autora

*Dora Kaufman é professora do programa de Tecnologias da Inteligência e Design Digital (TIDD)  da Pontifícia Universidade de São Paulo (PUC-SP), pelo qual também é pós-doutora.

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de fevereiro de 2023 (52ª edição), editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da revista.

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