Day: abril 21, 2020

Igor Gielow: Ala militar nega golpismo, mas apoia Bolsonaro no embate com Poderes

Presidentes de Legislativo e Judiciário conversaram com ministro da Defesa após ato do domingo

A ala militar do governo negou às cúpulas do Congresso e do Judiciário haver qualquer risco de ruptura democrática por parte de Jair Bolsonaro, mas também fez questão de dizer que considera que os Poderes têm agido de forma a cercear o presidente na crise do coronavírus.

A impressão foi registrada pelos presidentes da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), e do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli. Os três conversaram com o ministro da Defesa, Fernando Azevedo, ao longo do domingo (19).

Naquele dia, Bolsonaro decidiu após almoçar com os filhos ir encontrar manifestantes pedindo intervenção militar e edição de "um AI-5" em frente ao quartel-general do Exército, em Brasília.

A cena foi desenhada para chocar o mundo político e supor o apoio dos militares ao governo e a eventuais arroubos autoritários do presidente. Ato contínuo, Toffoli procurou Azevedo, que já foi seu assessor e com quem mantém interlocução frequente.

Tanto o ministro do Supremo como os presidentes das Casas do Congresso, em telefonemas separados, cobraram um posicionamento das Forças Armadas. Azevedo é um ponto de contato tanto com os militares dentro do governo quanto com o oficialato da ativa, de quem é superior hierárquico.

Ouviram a negativa de intenções golpistas e a promessa de que Bolsonaro iria baixar o tom, o que de fato aconteceu na manhã seguinte.

Além disso, o próprio general Azevedo divulgou nota reiterando o comprometimento das Forças Armadas com a Constituição e priorizando o combate ao coronavírus "e suas consequências sociais" —uma deixa não casual, alinhada à ênfase que Bolsonaro faz do impacto econômico da pandemia.

Os interlocutores do ministro da Defesa compreenderam que a ala militar do governo não reprova a irritação de Bolsonaro, ao contrário. Isso alarmou atores políticos em Brasília, que passaram a segunda trocando impressões sobre quais podem ser os próximos passos da crise.

Na avaliação dos fardados do governo, o Congresso tem agido sistematicamente contra Bolsonaro, tolhendo suas iniciativas. O Supremo também colabora com o clima de cerco ao Planalto com suas decisões em prol dos governadores e prefeitos na emergência sanitária.

A visão do presidente na crise vai além: o mandatário máximo acha que estados, liderados por São Paulo do rival João Doria (PSDB), estão aliados a Maia e a setores do Supremo para buscar seu impedimento. Isso o fez subir o tom no domingo, como de resto já previam adversários políticos ao analisar seu isolamento na crise.

Se a ala militar foi compreensiva com o gesto do chefe, o mesmo não se pode dizer da ativa das Forças Armadas. Alguns membros do Alto Comando do Exército, usualmente simpáticos a Bolsonaro, se disseram chocados com o uso simbólico do QG da Força para o proselitismo do presidente.

Assim, é possível dizer que o delicado equilíbrio entre um governo loteado por militares e os fardados da ativa sofreu um abalo significativo. A defesa constitucional feita por Azevedo foi pactuada para acalmar ânimos, mas as fissuras devem continuar.

Do lado dos Poderes, há diferenças de tons. Na romaria de políticos à casa de Maia na noite de domingo, depois negada pelo presidente da Câmara, mais de um dos presentes observou que o deputado estava mais incomodado do que Alcolumbre com a escalada da crise.

Isso se explica porque Maia foi eleito o alvo preferencial das redes bolsonaristas em seu protestos. Mas também há, subjacente, a intenção presumida de Alcolumbre de sair da sombra do politicamente mais denso colega da Câmara.

Já Toffoli, que viu outros ministros se manifestarem contra Bolsonaro no domingo, só fez uma fala sobre o episódio na segunda, quando a situação estava mais clara. Marcou posição, mas como é o árbitro final de muitos conflitos que ainda podem surgir, deverá manter o perfil mais discreto.

Para um participante das tratativas do domingo, a inflexão da ala militar precisa ser acompanhada de perto. Desde que recuperou prestígio no governo, no começo do ano, ela servia mais de anteparo ao radicalismo de Bolsonaro do que de amplificador de crises.

Do ponto de vista institucional, todos parecem convencidos de que não há riscos reais de ruptura, até porque o presidente não tem força para isso —não há amplo apoio social, empresarial ou de militares a quaisquer aventuras.

Mas também é claro o método de Bolsonaro em seus flertes autoritários. O presidente faz um gesto, é repreendido e modera o tom no dia seguinte. Mas a corda foi esticada mais alguns centímetros.

Na opinião desse político, se o presidente se sentir amparado pelos militares do governo, novos episódios são inescapáveis. Com o agravante de que os elementos de mediação evaporam aos poucos.


El País: A pandemia e a luta indígena em um planeta que tem febre

A história dos povos indígenas mostra que a pandemia mata, a fome mata e a ausência do Estado mata. Matam em velocidades diferentes

No território Xakriabá, na região norte de Minas Gerais, os estudos começam com os mais jovens ouvindo os anciãos e lideranças do povo. Com eles, nunca se aprende que em 1500 o Brasil foi descoberto por Pedro Álvares Cabral. O achamento do país foi uma conquista que ainda perdura.

O antropólogo Darcy Ribeiro, no livro O povo brasileiro, observou que a chegada da branquitude desencadeou, “desde a primeira hora, uma guerra biológica implacável. De um lado, povos peneirados, nos séculos e milênios, por pestes a que sobreviveram e para as quais desenvolveram resistência. Do outro lado, povos indefesos, que começavam a morrer aos magotes. Assim é que a civilização se impõe, primeiro, como uma epidemia de pestes mortais.”

Essa história perpassa o presente. Em 04 de abril de 2020, patrulhas e guinchos da Polícia Militar adentraram a terra indígena Xacriabá para verificar a documentação de motos e carros de membros daquele povo. Estavam em seu território, em quarentena, como milhões de brasileiros que, procurando resguardar-se da pandemia, ficaram em suas casas. Cenas de violência simbólica.

Enquanto o presidente Jair Bolsonaro dizia que a pandemia que assusta o mundo é uma “gripezinha”, mais sábia (e antenada com as recomendações da Organização Mundial da Saúde) foi a decisão do povo Xacriabá, que desde o dia 19 de março, como medida de proteção, havia fechado seu território, onde o isolamento social é para cuidar da morada coletiva (para não adoecer a morada interior).

Nesse contexto pandêmico, o mês de abril, que tradicionalmente é marcado pelas rememorações da história indígena no país, pela realização do acampamento Terra Livre e por marchas públicas, evoca de maneira forte o momento inicial da conquista e as constantes violações a direitos dos povos originários. Este ano, os povos indígenas decidiram ficar em suas moradas. A sua história mostra que a pandemia mata, a fome mata, as armas de fogo e a violência matam, a injustiça mata, a colonização mata, o racismo mata, o veneno mata, a mineração mata, a ausência do Estado mata. Matam em velocidades diferentes.

A Constituição de 1988 reconhece a organização social, costumes, línguas, crenças e tradições dos índios e seus direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Quando a Constituição se refere ao patrimônio cultural, ela fala de identidade, de ação, da memória de diferentes grupos que formam a sociedade brasileira. Ela protege formas de expressão, modos de criar, fazer e viver. As manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional também encontram proteção em um Estado que, portanto, é pluriétnico e multicultural. Mas nem todos compreendem toda essa diversidade e riqueza, como se elas caminhassem inelutavelmente para se tornarem homogêneas, ou seja, como se a tradicionalidade tivesse de se modernizar.

Para o presidente da República, por exemplo, “o índio mudou, tá evoluindo. Cada vez mais o índio é um ser humano igual a nós...” A fala, que não esconde o preconceito, expõe um projeto governamental assimilacionista. Uma das facetas da aculturação imaginada é o que se pode chamar de “agriculturação”, a imposição de um modo de pensar a ocupação dos territórios indígenas, que violenta a identidade dos povos originários e tenta fazer nova catequese, a de uma visão de mundo e de modos de produção vindos de fora.

Para o projeto de agriculturação, os povos indígenas têm muita terra, mesmo que estejamos atrasados (há mais de 26 anos) em concluir a demarcação das terras indígenas, que a Constituição estabeleceu deveria ser concluída no prazo de cinco anos a partir de 1988. A fala de Jair Bolsonaro, de que, se eleito, não haveria “um centímetro a mais para demarcação” de terras indígenas, é expressão desse projeto.

A desterritorialização é uma das marcas da ditadura implantada no país em 1964, que via os indígenas como um obstáculo ao modelo de desenvolvimento proposto pelos militares. A Comissão Nacional da Verdade estima que pelo menos 8.350 indígenas tenham sido mortos no período de suas investigações. A não implementação de reparação e de medidas de não repetição, como as que foram recomendadas pela comissão, mantém pulsante o agir de violência da história brasileira. Segundo dados preliminares divulgados pela Comissão Pastoral da Terra, sete lideranças indígenas foram mortas em conflitos no campo no ano passado, maior número da década.

A “agriculturação” se manifesta em várias frentes, como no projeto de lei nº 191, apresentado este ano à Câmara dos Deputados, para, a pretexto de regulamentar a Constituição, permitir a mineração em terras indígenas, propondo um modelo etnocêntrico apartado da cosmovisão indígena.

Felizmente, as marchas e contramarchas da história deixam também avanços, como o fortalecimento do movimento indígena. São travas em períodos de retrocessos. É o caso também da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, promulgada no país em 2004, que estabelece a obrigação de que os povos indígenas sejam consultados previamente sobre proposições legislativas que os afetem diretamente, como o acima mencionado projeto de lei nº 191/2020.

A esse panorama de tensões, violações e ameaças a direitos se soma agora o enorme desafio trazido pelo novo coronavírus. A chegada da pandemia encontra um Poder Executivo federal em constante conflito com os demais Poderes, incapaz de com eles se relacionar em harmonia, como propugnado na Constituição. A nota positiva é que o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional vêm estabelecendo limitações importantes à atuação do Governo federal. O sistema federativo, de sua parte, está fortalecido e permite que governadores e prefeitos ocupem o aparente vazio de poder que decorre, na verdade, da particular visão de mundo presidencial.

A pandemia que hoje todos vivemos cria um mundo que ainda não se mostrou, cujas bases estão em reconstrução. A sociedade busca urgentemente a cura e precisa não apenas do princípio ativo do remédio a ser encontrado, mas também de ativar nossos princípios de humanidade.

Como tem dito a primeira autora deste artigo, a humanidade tem fome de “ressentimentalizar” a coletividade e a solidariedade, de respeitar o luto e as cicatrizes do planeta (um planeta que há um bom tempo está com febre), de curar a casa interior, para não perder a esperança. É ela que move o reencantamento pela vida.

Célia Xakriabá é cientista Social, mestra em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília e doutoranda em Antropologia pela UFMG. Edmundo Antonio Dias Netto Junior é procurador da República em Belo Horizonte, é representante do Ministério Público Federal no Conselho Nacional dos Povos e Comunidades.


El País: Drenado por crise forjada por Bolsonaro, Brasil fica no escuro quanto ao coronavírus

Um dia após atos pedindo intervenção militar, presidente recua de respaldo e diz não apoiar fechamento do Congresso e STF. Enquanto isso, Ministério da Saúde erra cifras sobre aumento de óbitos

Felipe Betim, do El País

Em meio a uma crise política forjada pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido), que participou neste fim de semana de atos que pediam o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal e defendiam uma intervenção militar, o Brasil dá sinais de caminhar no escuro com relação ao real avanço de casos e mortes por coronavírus. Na tarde desta segunda-feira, o Ministério da Saúde divulgou um balanço em que confirmava 383 novas mortes pela covid-19 em 24 horas, mas cerca de uma hora depois corrigiu a informação e assegurou tratar-se de 113 novos óbitos registrados no período. O motivo do equívoco era um erro de digitação. Na tabela com o balanço diário, a pasta afirmou inicialmente que o Estado de São Paulo somava 1.307 mortes, mas o correto era 1.037. Assim, o balanço foi corrigido de 2.845 óbitos (7% de mortalidade) para 2.575 (6,3% de letalidade). O número total de novos casos confirmados ficou em 40.581, isto é, 1.927 a mais que o dia anterior.

Desde que o Governo trocou o comando do Ministério da Saúde, na quinta-feira da semana passada, os dados sobre o avanço da covid-19 são atualizados sem que ocorra a coletiva de imprensa com a equipe técnica da pasta, prática que era comum durante a gestão de Luiz Henrique Mandetta (DEM-MS). Nestas entrevistas, o informe diário sobre a crise era acompanhado de anúncios sobre decisões do Executivo federal para frear a pandemia no Brasil, além de explicações sobre a curva de crescimento de casos, os gargalos do SUS, o avanço ou atraso em relação aos desafios do Governo ante a crise, além das respostas às perguntas dos jornalistas. A ausência de explicações técnicas dificulta entender o comportamento do vírus no Brasil, como saber se a expansão de casos se deve à ampliação dos testes ou à queda da adesão do isolamento social, por exemplo.

O novo ministro, Nelson Teich, que assumiu em 16 de abril a pasta, defendeu a transparência das ações do ministério ao tomar posse, mas ainda não deixou claro se retomará a rotina das explicações técnicas. No sábado, sem agenda oficial, Teich viajou ao Rio de Janeiro (onde ele mora). Na tarde desta segunda-feira, sem que o compromisso constasse na agenda do ministro, ele se reuniu com o presidente Bolsonaro no Palácio do Planalto. Nesta segunda-feira, o único membro do primeiro escalão do Governo a participar da coletiva imprensa diária foi o ministro da Cidadania, Onyx Lorenzoni, para falar sobre o pagamento da renda básica emergencial.

Teich, por sua vez, limitou-se a divulgar um vídeo de pouco mais de três minutos em que informava que o Governo estava adquirindo testes de coronavírus, que passariam de 24 milhões para 46 milhões de kits. O objetivo, explicou Teich, era realizar a testagem em massa da população, como fez a Coreia do Sul, para “entender a doença e sua evolução”, e assim “fazer um planejamento para revisão do distanciamento social”. O ministro ainda participou nesta segunda de uma reunião no Palácio do Planalto que estava fora da agenda oficial e deve ainda nomear pessoas para sua equipe ―o presidente chegou a dizer que também faria indicações.

Tensão política

O afrouxamento das medidas de distanciamento social decretadas por Estados e Municípios é uma das obsessões de Bolsonaro. Houve uma escalada da tensão política no país no último fim de semana, em que um número expressivo de bolsonaristas se juntaram em atos e carreatas com buzinaços em cidades como Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro.

Além dos pedidos pela reabertura dos comércios e retomada da atividade econômica, muitos manifestantes pediam o afastamento do governador de São Paulo, João Doria (PSDB), e do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM), além de uma intervenção militar ou um novo AI-5 —decreto de 1968 da ditadura que permitia o fechamento do Congresso e a suspensão dos direitos políticos dos cidadãos. No domingo, Bolsonaro foi até a sede do Exército em Brasília, se aproximou de manifestantes —sem máscara e tossindo, conforme mostram imagens— e fez um inflamado discurso de confronto com os demais Poderes da República. “Nós não queremos negociar nada. Nós queremos ação pelo Brasil”, afirmou o presidente, sob aplausos.

Nesta segunda-feira, o procurador-geral da República, Augusto Aras, indicado por Bolsonaro para o posto, pediu que o Supremo Tribunal Federal (STF) abrisse um inquérito para investigar as manifestações de domingo. Aras quer apurar se houve violação da Lei de Segurança Nacional por conta de “atos contra o regime da democracia brasileira por vários cidadãos, inclusive deputados federais, o que justifica a competência do STF”. As manifestações também geraram repúdio de ministros do STF, de Maia e outras autoridades. O presidente acabou recuando nesta segunda-feira: na saída do Palácio da Alvorada, ao se dirigir a jornalistas, afirmou não ser a favor de um AI-5 ou do fechamento do Congresso. “O pessoal geralmente conspira para chegar ao poder. Eu já estou no poder. Eu já sou o presidente da República", afirmou. Em seguida, falou: “Eu sou, realmente, a Constituição”.

Em outro momento, minimizou mais uma vez a pandemia de coronavírus no Brasil, assim como as mortes que estão ocorrendo: “Aproximadamente 70% da população vai ser infectada. Não adianta querer correr disso. É uma verdade. Estão com medo da verdade?”, disse. “Levaram o pavor para o público, histeria. E não é verdade. Estamos vendo que não é verdade. Lamentamos as mortes, e é a vida. Vai morrer”, acrescentou. E completou: “Essa é uma realidade, o vírus tá aí. Vamos ter que enfrentá-lo, mas enfrentar como homem, porra. Não como um moleque. Vamos enfrentar o vírus com a realidade. É a vida. Todos nós iremos morrer um dia.”


Nelson de Sá: De NYT a La Stampa, atenção para o apoio a 'golpe militar'

Chinês Xin Jing Bao vê governo dividido e avalia que 'perspectivas do Brasil na pandemia não são otimistas'

Sem chamada em home page, New York Times, o alemão Süddeutsche Zeitung e o italiano La Stampa (reproduzidos abaixo), entre vários outros, trazem enunciados e fotos sublinhando o apelo às Forças Armadas na manifestação de domingo. Pela ordem:

"Presidente do Brasil dá vivas a protesto que pedia governo militar."
"Apoiadores do governo no Brasil conclamam intervenção militar."
"No Brasil, Bolsonaro discursa a militares que louvam golpe militar."

Em Pequim, o Xin Jing Bao já traz extensa análise de Yanran Xu, professora de relações internacionais da Universidade Renmin da China. Ela escreve que, "antes de mais nada, a atitude de Bolsonaro contra o isolamento tem motivação ideológica: quer estar perto dos EUA, pode-se dizer que 'veste as calças de Trump'".

No trecho mais significativo:
"A matriz de poder do governo Bolsonaro é composta de cinco forças, os militares, ruralistas, economistas liberais, evangélicos e participantes da 'Lava Jato'. As cinco têm opiniões diferentes em questões específicas. A maior contradição agora vem dos militares e dos evangélicos. No ato, Bolsonaro gritou slogans, se opõs às medidas de isolamento sustentadas pelo Supremo e por membros do Congresso —e também apoiou intervenção militar. Isso causou forte preocupação. Há também a opinião de que suas declarações inflamatórias, feitas do lado de fora do quartel-general do Exército, não queriam instigar golpe, mas mais manter a 'positividade' de seus seguidores."

Ela conclui dizendo, quanto ao isolamento, que "a maioria não concorda com Bolsonaro, cuja taxa de apoio continua caindo". Que "o governo está seriamente dividido e as perspectivas do Brasil no combate à pandemia não são otimistas".

*Nelson de Sá é jornalista, cobre mídia e política na Folha desde a eleição de 1989.


Breno Altman: Fora Bolsonaro e Mourão

Governo representa o perigo maior na guerra contra a pandemia e na reconstrução nacional

O Brasil atravessa a hora mais decisiva de sua história recente. A expansão do coronavírus desmascarou o governo como inimigo do povo, da pátria e da vida. Constituem provas de sua pérfida natureza a sabotagem contra o isolamento social e a fragilidade do socorro à imensa maioria da população, ao mesmo tempo em que recursos praticamente ilimitados são ofertados aos grandes bancos. Outro dos delitos cometidos é a permanente ameaça de solapar o que resta da institucionalidade, estabelecendo um regime ditatorial escancarado.

O senhor Jair Bolsonaro, de fato, sintetiza a fusão entre neofascismo e neoliberalismo. As elites brasileiras, incapazes de impor seu plano econômico através das velhas legendas partidárias da burguesia, abriram alas para que a extrema-direita fizesse o serviço sujo.

Ao bolsonarismo caberia concluir a transição para um Estado policial, travestido de democracia formal, que eliminasse o protagonismo das correntes de esquerda, destruindo ou aleijando partidos, sindicatos e organizações desse campo político.

O ponto de largada desse percurso foi o golpe contra a ex-presidente Dilma Rousseff (PT). A pavimentação da estrada esteve a cargo dos bandos que conduziram a Operação Lava Jato, até que se lograsse a prisão e a interdição do ex-presidente Lula (PT). Estavam postas, assim, as condições fraudulentas para a eleição do ex-capitão.

Forjou-se uma aliança entre grandes capitalistas, chefes das Forças Armadas e setores do sistema de Justiça, abençoada pelas frações mais reacionárias dos neopentecostais e tutelada pelos interesses geopolíticos da Casa Branca. Essa coalizão tem como meta a redução drástica dos custos diretos e indiretos das grandes corporações. Salários, direitos sociais e previdenciários, regulamentações estatais, serviços públicos e impostos patronais deveriam ser arrochados para a prosperidade dos mais ricos ser a locomotiva de uma falaciosa prosperidade.

Tal lógica tem impulsionado, desde 2016, a desidratação financeira do Sistema Único de Saúde, condenado a ser ofertado como carniça aos abutres da medicina empresarial, desonerando o Estado e transferindo verbas orçamentárias para o cassino do rentismo.

O atual governo radicalizou essa política. Tornou o país vulnerável à pandemia em curso. A leniência de Bolsonaro frente ao vírus mortal é apenas um dos crimes de responsabilidade que cometeu. Servil aos objetivos capitalistas mais nefastos, o líder neofascista representa o maior dos perigos para a guerra contra a pandemia e a reconstrução nacional.

Ele tem que ser colocado para fora, o mais rápido possível. Mas não se trata de substituí-lo por alguém que represente a mesma política, como é o caso de seu vice. Ou de colocar os rumos da nação sob as manobras de um Parlamento oligárquico, pilotando infindável processo de impeachment.

Apenas haverá saída democrática se o povo exercer sua soberania, com a derrocada do governo Bolsonaro-Mourão e a antecipação das eleições presidenciais, precedidas do cancelamento das farsas judiciais que impedem a participação de Lula.

Não há tempo a perder. Só uma ruptura com o processo que nos trouxe à beira do precipício pode impedir que um desastre irreparável seja o nosso destino.

*Breno Altman é jornalista e fundador do site Opera Mundi


Hélio Schwartsman: É ético torcer para que Bolsonaro adoeça?

Ele continua a atrapalhar o trabalho das autoridades sanitárias
 
Ele fez de novo. Em plena pandemia, participou de um protesto com pauta golpista e provocou aglomeração. Ao final de seu discurso, apareceu uma tossezinha suspeita. A pergunta que se impõe é se é ético torcer para que Bolsonaro contraia uma forma grave de Covid-19 e deixe de atrapalhar o trabalho das autoridades sanitárias.

A resposta depende do tipo de ética que você abraça. Para o consequencialista, que valora as ações pelos resultados que elas produzem, até a morte de um líder inepto pode ser classificada como positiva, se ela, por exemplo, acarretar mais vidas poupadas do que perdidas. O bonito das éticas consequencialistas é que elas são perfeitamente igualitárias. A vida do presidente vale o mesmo que a de um mendigo viciado em crack.

Assim, aqueles que estão convencidos de que a atitude de Bolsonaro, ao fragilizar o isolamento, resultará em mais doença e mais mortes estão filosoficamente legitimados a torcer para que ele experimente o seu "resfriadinho".

Embora eu creia que o consequencialismo é mais consistente do que os sistemas éticos rivais, é fato que ele não é inteiramente satisfatório. Poucos julgarão ética a conduta do médico que sacrifica um paciente saudável para, transplantando seus órgãos, salvar cinco vidas.

E isso abre o flanco para éticas deontológicas, que são aquelas que definem princípios fundamentais, como os de não matar ou não fazer nem desejar mal ao próximo, e os convertem em regras fortes. Nessa matriz, acalentar mesmo secretamente um pensamento de morte envolvendo o presidente já cheira a pecado.

Como disse, meus instintos são consequencialistas, mas tenho um lado, que podemos chamar de humanista ou até de carola, que faz com que me repugne a ideia de torcer pelo sofrimento ou a morte de alguém, por mais desprezível que seja essa pessoa. É claro que, se Bolsonaro insistir, meu lado nerd acabará dobrando o humanista.

*Hélio Schwartsman é jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…".


Ivan Marsiglia: No Twitter, bolhas disputam lugar de vírus e anticorpos do golpismo

Governistas e oposicionistas acusam-se mutuamente após Bolsonaro participar de ato pró-ditadura 

Após @jairbolsonaro chegar –no melhor estilo Hugo Chávez– de camisa vermelha e montado numa picape num ato pró-ditadura neste domingo (19) em frente ao QG do Exército em Brasília, o barulho nas redes foi tal que até o procurador-geral da República acordou.

Manifestações de repúdio por parte de parlamentares, governadores, ex-presidentes e ministros do Supremo parecem enfim ter perturbado o sono do indicado do presidente à PGR, Augusto Aras, que pediu, na segunda-feira (20), abertura de inquérito ao STF.

Um jornalista da Revista Fórum resumiu a solicitação num tuíte: @GeorgMarques “Aras suspeita que congressistas patrocinaram a manifestação deste domingo em defesa do AI-5. Ele aponta violação à Lei de Segurança Nacional (7.170/1983). Se se confirmado patrocínio político para confecção de faixas ou do trio, caberia fácil cassação do mandato, no mínimo.”

O fato, porém, de o pedido do procurador omitir a participação do presidente da República também foi notado na plataforma. Para o deputado federal Alexandre Frota (PSDB-SP), @alefrota77, “O Aras foi a única pessoa no Brasil que não viu o Bolsonaro na caçamba da pick up.”

Ainda assim, o presidente parece ter sentido –com perdão do trocadilho– o golpe.

Se no dia anterior fizera questão de reforçar, compartilhando em sua conta no Twitter, e marcando inclusive o perfil do Exército, um vídeo em que brada, diante de faixas padronizadas pedindo intervenção militar e um novo AI-5, “eu estou aqui porque acredito em vocês”, na segunda (20) mudou o discurso.

Na saída do Alvorada, repreendeu um apoiador que gritou pedindo o fechamento do STF. No registro do portal de notícias @Metropoles “‘Aqui não tem essa conversa de fechar nada, dá licença aí. Aqui é democracia, aqui é respeito à Constituição brasileira, e aqui é a minha casa e tua casa. Então, eu peço, por favor, que não fale isso aqui. Nós estamos no governo, não vamos aceitar provocações baixas’, irritou-se.”

Cientista político e professor da FGV-SP, @claudio_couto viu no suposto recuo a confirmação de um modus operandi: “BolsoNero segue a toada que é a forma mais constante de sua longa trajetória: morde-assopra. Num dia, diz ou perpetra absurdos, que empolgam seus seguidores e ultrajam os demais; noutro dia, desdiz o que disse, fala algo invertido, faz um gesto oposto. Sempre sai pela tangente”.

Entre as bolhas do Twitter, ao menos, o sopro presidencial não foi suficiente para aplacar a mordida.

Ao longo do dia, governistas e oposicionistas acusavam-se mutuamente de golpismo. No meio da tarde, enquanto 399 mil menções à palavra “democracia” protestavam, em sua esmagadora maioria, contra as ações do presidente no domingo, duas hashtags, #FechadosComBolsonaro, com 234 mil tuítes, e #EuApoioBolsonaro, com 54,7 mil, foram levantadas para denunciar uma suposta conspiração do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, para derrubar o “mito”.

A jornalista carioca Hildegard Angel, fundadora do Instituto Zuzu Angel, exasperou-se: @hilde_angel “O que mais esperam para votar o impedimento desse celerado? Que saia em cima do Trio Elétrico pedindo a intervenção militar, como já fez diante do Palácio? Metralhe e prédio do Congresso? Não há democracia que sobreviva sem coragem. Congresso, STF, tudo decorativo? É isso?”

Já o publicitário e autor do manifesto do partido Aliança pelo Brasil, Felipe Cruz Pedri, olavista recentemente exonerado da Casa Civil pelo general Braga Netto, viu golpe em outro lugar: a live em que um certo ex-deputado do PTB alega haver um plano para derrubar Bolsonaro.

@FelipePedri “As denúncias gravíssimas de Roberto Jefferson não podem ficar impunes. O mais espantoso é que a trama é facilmente percebida por qualquer um que tente ligar os pontos. Rodrigo Maia merece no mínimo uma comissão de ética ou uma CPI do Golpe que investigue seus crimes contra a nação.”

Em resposta a um seguidor inconformado, o deputado oposicionista @MarceloFreixo (PSOL-RJ) deu números ao impasse: “Em resposta a @MarioCesarMR e @psolnacamara Há pedidos de impeachment com Maia. Mas a oposição é só 1/3 do Congresso, fazemos barulho, mas somos minoria. E Bolsonaro negocia cargos pra ter o centrão. O presidente ainda tem apoio de 38%. Collor e Dilma quando caíram não tinham nem 10%. O cenário não é simples como você imagina.”

Embora autoridades militares tenham assegurado, em conversas reservadas com jornalistas, seu “compromisso com as instituições democráticas”, a falta de um posicionamento claro deu margem a dúvidas. Um dos raros que se manifestou pelo Twitter, o general Santos Cruz, demitido do governo após bater de frente com Carlos Bolsonaro, tampouco foi assertivo.

@GenSantosCruz “O Exército é instituição do Estado. Não participa das disputas de rotina. Democracia se faz com disputas civilizadas, equilíbrio de Poderes e aperfeiçoamento das instituições o EB (@exercitooficial) tem prestígio porque é exemplar, honrado e um dos pilares da democracia.”

O ex-Secretário Nacional de Justiça de Dilma Rousseff e diretor da ONG Open Society, @pedroabramovay, lembrou outra ocasião em que os fardados não se furtaram a participar das tais “disputas de rotina”: “Militares dizem em ‘off’ que estão incomodados com o Presidente por ter, no dia do Exército, em frente ao QG do Exército, participado de manifestação contra a democracia. Menos incomodados do que no julgamento de Lula. Naquela vez sentiram que precisaram ameaçar.”

Das voltas que a história dá às diferenças que ocultam semelhanças, coube a outro professor da FGV-SP, o pesquisador de relações internacionais alemão @OliverStuenkel, compartilhar a capa –desconfortável a muita gente de ambos os lados da dicotomia no Twitter– do livro do jornalista britânico especializado em América Latina Will Grant:

“Nem os bolsonaristas nem os chavistas gostarão da capa deste novo livro de @will_grant. Mas é importante que os apoiadores do governo brasileiro e venezuelano entendam que um número crescente de observadores internacionais coloca os dois na mesma categoria.”

O OUTRO VÍRUS
Enquanto o Brasil perdia tempo tentando imunizar-se contra o autoritarismo, uma entrevista do médico Drauzio Varella à BBC escalava os trending topics do Twitter.

A editora da @BBCNewsBrasil Ligia Guimarães foi uma das que compartilhou a conversa: "@laigous Todos nós vamos perder amigos, muitos vão perder pessoas da família, e isso vai nos ensinar que não é possível viver como nós vivíamos até aqui. Drauzio Varella prevê ‘tragédia nacional’ por #coronavirusbrasil. ‘Brasil vai pagar o preço da desigualdade”.

Em um trecho, o maior comunicador da área médica no Brasil explica o que deveria estar claro na mensagem pró-isolamento social: “Quando você ouve dizer que na Itália os médicos têm que decidir quais são os que vão para a UTI, quem vai ter entubação ou não, quer dizer que os outros morrem de falta de ar. Essa é a situação real e é isso que tem que ser colocado para a população. Não é que vai morrer gente. Vai morrer gente com um enorme sofrimento. Por isso que os médicos defendem: vamos segurar, para que as pessoas não tenham que morrer desse jeito, que é um jeito inaceitável.”

Ivan Marsiglia é jornalista e bacharel em ciências sociais, Ivan Marsiglia é autor de “A Poeira dos Outros”.


Manuela Cantuária: O Mito e a Morte

Em sua homenagem, o presidente estuda lançar a campanha Morre que Passa

Circula no Planalto a informação de que Nelson Teich não era a primeira opção de Jair Bolsonaro para substituir Mandetta no Ministério da Saúde. O presidente vinha negociando com uma importante aliada de seu governo: a Morte. A candidata tinha o apoio da ala militar e de uma pequena parte da população, que vem fazendo carreatas em sua defesa.

Ilustração Silvia Rodrigues publicada na ilustrada na coluna da Manuela Cantuaria, nela um presidente Bolsonaro aperta a mão da morte.
Silvia Rodrigues/Folhapress
Apesar do clima amistoso e cordial entre ambos, a Morte não pôde aceitar o convite para fazer parte do governo. A pandemia tem ocupado a maior parte de seu tempo.

Onde os outros enxergam uma crise, a Morte vê uma oportunidade, assim como Jorge Paulo Lemann, Jeff Bezos e Gabriela Pugliesi. Mas ninguém no planeta está lucrando como a ceifadora. Nem os fabricantes de álcool em gel tiveram tanta sorte nos negócios.

Talvez não durasse muito no cargo. A Morte roubaria os holofotes ainda mais do que Mandetta. Já estampa jornais no mundo inteiro, circula entre celebridades e em comunidades carentes. Seu nome está na boca do povo. É respeitada e temida como Bolsonaro gostaria de ser. Nem o torturador Brilhante Ustra é digno de tamanha admiração pelo presidente.

Auxiliares palacianos disseram que a última reunião dos dois foi realizada por videoconferência, na semana passada. O encontro entre Bolsonaro e a Morte foi marcado por uma intensa troca de elogios. Desde 2018, os dois têm formado uma dupla e tanto.

A Morte agradeceu a Bolsonaro mais uma vez pela reforma da Previdência, pela flexibilização do uso de cadeirinhas de bebê nos carros, pela liberação de agrotóxicos proibidos, pela suspensão do uso de radares nas estradas, por revogar o sistema de fiscalização de armas e facilitar sua posse, por todas as medidas contra a população indígena, pela agenda brutal de segurança pública e outros mimos que tanto beneficiam seu trabalho.

Bolsonaro também pediu conselhos para a gestão da crise atual. A Morte sempre lhe pareceu a melhor saída para essa “cuestão” do coronavírus. Um remédio até mais eficiente do que a cloroquina. Em sua homenagem, o presidente estuda lançar a campanha Morre que Passa, uma colaboração inédita entre os ministérios da Saúde e da Economia.

A rasgação de seda não parou por aí. A Morte exaltou a demissão de Mandetta e acredita que o novo ministro fará um ótimo trabalho.

Reforçou a importância de continuar combatendo o isolamento social, furando a quarentena, participando de manifestações e defendendo a reabertura do comércio.

A parceria entre o “Mito” e a Morte promete ir ainda mais longe.

*Manuela Cantuária é roteirista e escritora, faz parte da equipe do canal Porta dos Fundos


Carlos Andreazza: O ar do vírus e do golpismo

Bolsonaro quer o choque e investe na desordem

Bolsonarismo aula zero: técnica desviante. Apertou aqui, abre-se outro pasto para o gado mugir ali. O presidente é mestre em lançar o que se chama de cortina de fumaça. Sob forte pressão, acuado pelas consequências de suas escolhas irresponsáveis ante a peste, informado de que seu comportamento sociopata no curso de crise sem precedentes lhe esvazia a base social, Jair Bolsonaro reage cultivando modalidade de conflito que o coloque em zona de conforto e atraia a atenção da sociedade a um ponto distante daquele em que se dá seu grotesco chamamento a que o povo vá às ruas respirar o vírus.

Bolsonaro é um girassol publicitário cujo sol é o pulso das redes. Esse é o termômetro do populista do século XXI. Ele decerto se baliza em pesquisas. Não apenas as que apontam perda de apoio em decorrência de haver se referido à Covid-19 como gripezinha; mas também as que lhe indicam o remédio para minimizar o estrago: o discurso lavajatista de combate à corrupção, de criminalização da atividade política e de luta contra o sistema “patife”.

O lavajatismo é o mais eficaz agente aglutinador que atua no país. É o próprio espírito do tempo. A melhor materialização da mentalidade autoritária a que vamos submetidos sem nem sequer perceber — a mesma que concorreu decisivamente para a eleição de Bolsonaro. Ele sabe que a sociedade tem raiva da figura do político e aversão à ideia de elite política. De modo que, quando ante a mais mínima desmobilização de sua militância, logo sopra o apito lavajatista. Opera assim com maestria.

Não é, portanto, que seja o popular, o amado, centro irradiador de popularidade e atração. Não. Com rara capacidade para identificar oportunidades e com extraordinária vocação para interpretar, Bolsonaro se associa a demandas populares, aquelas que disparam o gatilho da comoção,e as incorpora. Faz isso há décadas — e, sob todos os holofotes, diariamente, há 16 meses.

Fico perplexo com a constatação de que haja alguém ainda surpreso com o comportamento revolucionário — palavra que, registro, tenho na pior conta — do presidente no último domingo. O sujeito procede dessa maneira desde que assumiu, líder escancarado de um fenômeno reacionário de ímpeto para a ruptura. Alegoricamente, está sobre um carro (poderia ser boleia de caminhão), diante de quartel, projetando discurso autocrático a uma plateia que pede intervenção militar e ostenta pregações por fechamento do Congresso e do Supremo, desde que assumiu.

A fala de domingo expõe — novamente — a noção precária e inconformada do bolsonarismo sobre o que seja a democracia liberal. Vontade popular, para Bolsonaro, é a vontade de seus apoiadores — e a isto se reduz o povo: a seus apoiadores. Essa vontade popular compreende o fato de o sujeito haver sido eleito como ordem, mandato mesmo, para que os demais Poderes se submetam aos desejos do que seria, pois, um imperador.

O bolsonarismo é campanha permanente — campanha no sentido de guerra. Campanha para submissão.

Sob essa lógica totalitária, num mecanismo de espantosa inversão de valores, o exercício garantidor dos freios e dos contrapesos — símbolo da ponderação republicana que controla a força excessiva — torna-se uma espécie de traição, de conspiração do sistema contra o presidente; o presidente, que se confunde com a vontade popular até se converter mesmo na vontade popular. O presidente: o povo no poder. O presidente: eu sou a Constituição.

Por isso Bolsonaro (diz que) não negocia. Não negocia (é mentira) porque se impõe. Essa é a fantasia do populista autoritário.

O bolsonarismo aposta pesadamente no estabelecimento de uma cultura plebiscitária entre nós. Puro chavismo. O objetivo é minar o edifício da democracia representativa para tornar descartável a ideia de Parlamento. Qual seria a necessidade desse tipo de intermediação, se o líder pode falar diretamente a seu povo?

Bolsonaro é forja de inimigos, usina de conflitos — o gerador de instabilidades. Era assim antes da peste, em tempos de paz. Se o tempo vira e é de crise, será a crise dentro da crise. Nunca houve dúvida de que radicalizaria. Quer o choque e investe na desordem.

Não me surpreenderei se, instalada a depressão econômica, afundado o Brasil enfim na ingovernabilidade que ele próprio forja, de resto propagando teorias conspiratórias e acusando até a Corte Máxima de tramar golpe contra si, Bolsonaro decretar medida extrema, como estado de sítio. Uma provocação para que o Congresso reaja, derrube o decreto, promova o que seria choque institucional violento — daí irrompendo o caos social, a desobediência civil, a anomia em meio à pandemia. O golpismo está no ar tanto quanto o vírus.

Aliás, tendo falado sobre chavismo, alerto para a possibilidade de o apoio armado com que conta o bolsonarismo não ser o militar; mas o de milícias como aquelas que se amotinaram, contra o Estado, no Ceará. Atenção a isso.


José Casado: Os novos sócios de Bolsonaro

O negro gato desfilou diante das lentes do fotógrafo Orlando Brito e buscou abrigo do sol de domingo embaixo do automóvel presidencial, estacionado numa quadra da Asa Norte, em Brasília. No apartamento em frente, Jair Bolsonaro e filhos degustavam milho com ketchup, ao lado de uma metralhadora na parede.

O negro gato fugiu antes de o presidente subir no carro preto e seguir para o QG do Exército. Ativistas o aguardavam, como vivandeiras mascaradas, temerosas da morte pelo vírus, invisível e democrático na contaminação. Apelavam para uma ditadura liderada, claro, por Bolsonaro.

Na cena havia algo fora da ordem institucional. O comandante em chefe das Forças Armadas usava a portaria do QG do Exército para um comício planejado, com coro contra o “bando de ladrões no STF, Senado e Câmara”. Presidia um ato de potencial desqualificação do poder militar, inédito também porque jamais se permitiu comício no portão do Forte Apache, como é conhecido o Setor Militar de Brasília. Bolsonaro sorria e, frequentemente, tossia.

Foi para casa, vestiu camiseta amarela, bermuda e chinelos pretos e sentou-se para assistir a críticas de Roberto Jefferson, seu antigo líder no PTB, ao deputado Rodrigo Maia (DEM). Outro jogo combinado.

Bolsonaro quer eleger o sucessor de Maia na Câmara. Sonha com novos sócios no bloco de centro direita, o Centrão, para dominar a pauta legislativa na campanha eleitoral em crise econômica, marcada pelo número de vítimas da “gripezinha”.

Em público diz que não pretende “negociar nada. Mas atravessou os últimos 15 dias em acertos com líderes do Centrão, entre eles Roberto Jefferson (PTB), Valdemar Costa Neto (Progressistas, antigo PP), Gilberto Kassab (PSD) e Marcos Pereira (Republicano/Igreja Universal). Alguns são personagens do mensalão e da corrupção na Petrobras. Todos, como Bolsonaro, tentam garantir a sobrevivência política na crise pós-coronavírus, se possível culpando outros pela imprevidência — o número de mortos já é o dobro da semana passada.


Estevão Ciavatta: Covid-19, desmatamento e Amazônia

Há muitos exemplos de doenças com origem na vida selvagem das florestas

A Covid-19 é chamada de uma doença zoonótica porque, assim como outras, ela tem sua origem em vírus de animais não humanos, até então desconhecidos, que passam para nós, humanos. Uma das razões pelas quais elas são tão devastadoras é justamente a nossa ignorância sobre elas: nós não temos vacinas, não temos tratamentos para estas doenças. Existem muitos exemplos de doenças que têm sua origem na vida selvagem das florestas, como zika, chicungunha, dengue, ebola e o HIV. Todos estes vírus estavam inicialmente contidos em ambientes florestais num ciclo zoonótico muito limitado. Eles viveram ali, sem serem notados, ao longo de milhões anos, sem causar qualquer mal aos seus hospedeiros. Até que, de repente, passam para a espécie humana.

Esse processo não é novo. Começou há milhares de anos quando a humanidade resolveu derrubar florestas para fazer campos agrícolas e a domesticar animais selvagens para seu consumo: das vacas recebemos o sarampo e a tuberculose; dos porcos, a coqueluche; dos patos, a gripe. Mais recentemente, durante a expansão europeia sobre o planeta, a construção de cidades e vias férreas pelos colonos belgas no Congo possibilitou a passagem de um vírus dos macacos para os humanos, o que deu origem ao HIV. Em Bangladesh, a destruição de uma imensa zona úmida pelos britânicos para o cultivo de arroz nos brindou com a cólera. Já no final dos anos 1990, na Indonésia, as queimadas forçaram uma população de morcegos frugívoros a voar para outros locais em busca de alimento, levando consigo o vírus Nipah e uma doença mortal.

As doenças infecciosas foram a principal causa de mortalidade até o início do século mas, com o aparecimento dos antibióticos, das vacinas e do saneamento, elas diminuíram seu grau de letalidade. Mas, a partir de 1980, essas doenças voltaram a preocupar. Segundo pesquisa apresentada no Fórum Econômico Mundial, em Davos, 31% dos 12.012 surtos epidêmicos entre 1980 a 2013 estão ligados a ambientes que foram degradados. E aqui chegamos ao Brasil e à Amazônia. Não é improvável que a próxima pandemia surja na Amazônia, afirmam cientistas. Nela encontramos a maior concentração de biodiversidade do planeta, com milhões de vírus e bactérias que viveram, até agora, em harmonia com seus hospedeiros naturais. Mas, como vimos, a degradação ambiental está diretamente ligada ao surto dessas epidemias, pois a fragmentação das florestas une pessoas e espécies animais que normalmente não estariam interagindo.

A malária é um exemplo bem conhecido do que a destruição da floresta por aqui é capaz. Apesar dos esforços para controlar a doença terem reduzido de 6 milhões de casos por ano na década de 1940 para apenas 50 mil na década de 1960, o desmatamento da Amazônia a partir de 1970 elevou para mais de 600 mil casos por ano na virada do século. A retirada de partes da mata para construção de estradas, garimpo, pastos e grilagem de terras cria um habitat ideal nas bordas da floresta para a proliferação do Anopheles darlingi — o mais importante transmissor de malária na Amazônia. Diante da crescente degradação do bioma amazônico, devemos nos perguntar que futuro queremos para nós?

Na Amazônia, o ano de 2019 — com a fiscalização do Ibama sendo desautorizada pelo governo federal e a edição da Medida Provisória 910, em tramitação na Câmara, que estimula e premia a invasão e o desmatamento de terras públicas — teve o maior

índice de desmatamento e queimadas dos últimos sete anos. Agora em 2020, mesmo antes da temporada seca, o desmatamento já é o dobro do ano passado para o mesmo período. Algo inadmissível. É hora do Brasil e dos brasileiros tomarem uma posição firme e definitiva contra o desmatamento. Não podemos continuar virando as costas para esse problema que coloca em risco a nossa vida, a dos nossos filhos e netos.

A perda da Floresta Amazônica comprometerá nossa identidade, nossa biodiversidade, nossa economia, nosso abastecimento de água, nossa agricultura, nossa cultura e, não menos importante, nossa saúde.

Estevão Ciavatta é autor e diretor de cinema


Eliane Catanhêde: Chance zero?

Além de recados, cúpula militar tem de manifestar claramente repúdio a golpes e AI-5

Enquanto Jair Bolsonaro fazia discurso inflamado em manifestação não só contra o Supremo e o Congresso, mas a favor de um golpe militar e a volta do famigerado AI-5, um de seus filhos divulgava o vídeo de uma fila de sujeitos praticando tiro, alguns metidos em camisetas pretas com o rosto do presidente e todos gritando: Bolsonaro!

No mesmo domingo, o presidente e seus três filhos mais velhos, um senador, um deputado federal e um vereador licenciado, postavam a foto do café da manhã familiar com uma curiosidade: o quadro na parede não era de uma natureza morta ou da tradicional Santa Ceia, tão comuns nos lares brasileiros, mas de uma metralhadora AK-47, deveras inspiradora.

No dia seguinte, circulava um vídeo em que várias dezenas de soldados corriam num calçadão da zona sul do Rio e no fim se aglomeravam, ainda na praia, à luz do dia, gritando “Bolsonaro” e “mito”. Fariam isso sem orientação de superiores? Esses superiores pediram autorização ao Comando Militar do Leste? O comandante consultou o Comando do Exército em Brasília? Afinal, pode?

O que mais impressionou civis e até militares, porém, foi o local onde Bolsonaro discursou para militantes pró-golpe e AI-5: o Setor Militar Urbano, com o Quartel-General do Exército ao fundo. Um oficial pergunta: e se os políticos decidirem fazer protesto ali? Eu acrescento: e se a CUT e o MST também?

Aboletado na carroceria de uma caminhonete, vestido e agindo como vereador em campanha para a prefeitura de Cabrobó e liderando um ato ostensivamente antidemocrático, Jair Bolsonaro esquecia-se de que, além de presidente da República, eleito por 57 milhões de brasileiros, ele é também comandante em chefe das Forças Armadas - ambas as funções exigem decoro e compostura.

O episódio - que estressou o domingo e que o ministro do STF Luís Roberto Barroso chamou de “assustador” - deixou uma dúvida perturbadora: os comandos militares compactuam com pedidos de golpe e AI-5? Acham normal o uso do SMU e do QG - ou seja, da imagem das FFAA - para atos golpistas? Na primeira reação, generais do governo demonstraram “desconforto”, depois falaram em “saia-justa” e no fim do dia passaram a admitir “irritação”, enquanto discutiam como “reduzir danos”.

E os danos são muitos. As Forças Armadas, instituições de Estado, não de governo, durante décadas mantiveram-se profissionais e imunes à política e a governos que vêm e vão. Consolidaram-se assim no primeiro lugar de prestígio junto à sociedade, sem concorrentes. Vão jogar tudo fora em favor de um presidente, e logo de um que só faz o que lhe dá na veneta?

Há, ainda, a questão da hierarquia. Bolsonaro expõe Exército, Marinha e Aeronáutica a um velho fantasma: as divisões internas. Como já me ensinava o general Ernesto Geisel, quando a política entra por uma porta nos quartéis, a hierarquia se vai pela outra. Tendo como fato que a cúpula militar realmente considerou “péssimo” o teatro antidemocrático de Bolsonaro no domingo, a pergunta seguinte é: e as bases, os capitães, majores, sargentos - e suas famílias - acharam o quê?

O vice Hamilton Mourão já disse marotamente que “está tudo sob controle, só não sabe de quem” e nós, meros mortais, ficamos sem entender nada. É uma grande enrascada e remete à entrevista do então comandante do Exército, general Eduardo Villas Boas, em dezembro de 2016, em que ele me relatou como respondia aos civis “tresloucados” que vinham bater à sua porta pedindo intervenção militar: “Chance zero!” Em nota, nesta segunda-feira, o Ministério da Defesa foi mais suave, mas disse que as FFAA trabalham pela “paz e a estabilidade”, “sempre obedientes à Constituição”. Logo, contra o golpe. É o que se espera dos líderes militares, diante não apenas da Nação, mas da história.