Carlos Andreazza: O ar do vírus e do golpismo

Bolsonaro quer o choque e investe na desordem.
Foto: El País/AFP
Foto: El País/AFP

Bolsonaro quer o choque e investe na desordem

Bolsonarismo aula zero: técnica desviante. Apertou aqui, abre-se outro pasto para o gado mugir ali. O presidente é mestre em lançar o que se chama de cortina de fumaça. Sob forte pressão, acuado pelas consequências de suas escolhas irresponsáveis ante a peste, informado de que seu comportamento sociopata no curso de crise sem precedentes lhe esvazia a base social, Jair Bolsonaro reage cultivando modalidade de conflito que o coloque em zona de conforto e atraia a atenção da sociedade a um ponto distante daquele em que se dá seu grotesco chamamento a que o povo vá às ruas respirar o vírus.

Bolsonaro é um girassol publicitário cujo sol é o pulso das redes. Esse é o termômetro do populista do século XXI. Ele decerto se baliza em pesquisas. Não apenas as que apontam perda de apoio em decorrência de haver se referido à Covid-19 como gripezinha; mas também as que lhe indicam o remédio para minimizar o estrago: o discurso lavajatista de combate à corrupção, de criminalização da atividade política e de luta contra o sistema “patife”.

O lavajatismo é o mais eficaz agente aglutinador que atua no país. É o próprio espírito do tempo. A melhor materialização da mentalidade autoritária a que vamos submetidos sem nem sequer perceber — a mesma que concorreu decisivamente para a eleição de Bolsonaro. Ele sabe que a sociedade tem raiva da figura do político e aversão à ideia de elite política. De modo que, quando ante a mais mínima desmobilização de sua militância, logo sopra o apito lavajatista. Opera assim com maestria.

Não é, portanto, que seja o popular, o amado, centro irradiador de popularidade e atração. Não. Com rara capacidade para identificar oportunidades e com extraordinária vocação para interpretar, Bolsonaro se associa a demandas populares, aquelas que disparam o gatilho da comoção,e as incorpora. Faz isso há décadas — e, sob todos os holofotes, diariamente, há 16 meses.

Fico perplexo com a constatação de que haja alguém ainda surpreso com o comportamento revolucionário — palavra que, registro, tenho na pior conta — do presidente no último domingo. O sujeito procede dessa maneira desde que assumiu, líder escancarado de um fenômeno reacionário de ímpeto para a ruptura. Alegoricamente, está sobre um carro (poderia ser boleia de caminhão), diante de quartel, projetando discurso autocrático a uma plateia que pede intervenção militar e ostenta pregações por fechamento do Congresso e do Supremo, desde que assumiu.

A fala de domingo expõe — novamente — a noção precária e inconformada do bolsonarismo sobre o que seja a democracia liberal. Vontade popular, para Bolsonaro, é a vontade de seus apoiadores — e a isto se reduz o povo: a seus apoiadores. Essa vontade popular compreende o fato de o sujeito haver sido eleito como ordem, mandato mesmo, para que os demais Poderes se submetam aos desejos do que seria, pois, um imperador.

O bolsonarismo é campanha permanente — campanha no sentido de guerra. Campanha para submissão.

Sob essa lógica totalitária, num mecanismo de espantosa inversão de valores, o exercício garantidor dos freios e dos contrapesos — símbolo da ponderação republicana que controla a força excessiva — torna-se uma espécie de traição, de conspiração do sistema contra o presidente; o presidente, que se confunde com a vontade popular até se converter mesmo na vontade popular. O presidente: o povo no poder. O presidente: eu sou a Constituição.

Por isso Bolsonaro (diz que) não negocia. Não negocia (é mentira) porque se impõe. Essa é a fantasia do populista autoritário.

O bolsonarismo aposta pesadamente no estabelecimento de uma cultura plebiscitária entre nós. Puro chavismo. O objetivo é minar o edifício da democracia representativa para tornar descartável a ideia de Parlamento. Qual seria a necessidade desse tipo de intermediação, se o líder pode falar diretamente a seu povo?

Bolsonaro é forja de inimigos, usina de conflitos — o gerador de instabilidades. Era assim antes da peste, em tempos de paz. Se o tempo vira e é de crise, será a crise dentro da crise. Nunca houve dúvida de que radicalizaria. Quer o choque e investe na desordem.

Não me surpreenderei se, instalada a depressão econômica, afundado o Brasil enfim na ingovernabilidade que ele próprio forja, de resto propagando teorias conspiratórias e acusando até a Corte Máxima de tramar golpe contra si, Bolsonaro decretar medida extrema, como estado de sítio. Uma provocação para que o Congresso reaja, derrube o decreto, promova o que seria choque institucional violento — daí irrompendo o caos social, a desobediência civil, a anomia em meio à pandemia. O golpismo está no ar tanto quanto o vírus.

Aliás, tendo falado sobre chavismo, alerto para a possibilidade de o apoio armado com que conta o bolsonarismo não ser o militar; mas o de milícias como aquelas que se amotinaram, contra o Estado, no Ceará. Atenção a isso.

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