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Erasmo Carlos morreu nesta terça-feira (22) aos 81 anos no Rio de Janeiro | Foto: Divulgação

Erasmo Carlos morre aos 81 anos no Rio de Janeiro

CNN Brasil*

Morreu no Rio de Janeiro na tarde desta terça-feira (22) o cantor, compositor e ator Erasmo Carlos, aos 81 anos. Ele estava internado no Hospital Barra D’Or, na zona oeste do Rio de Janeiro, desde a segunda-feira (21) com um quadro de síndrome edemigênica, doença que retém líquidos na corrente sanguínea.

No dia 2 deste mês o artista teve alta hospitalar após 17 dias de internação no mesmo hospital. Ele realizou uma bateria de exames e readequação dos medicamentos de uso contínuo, segundo sua assessoria de imprensa.

Após a saída, Erasmo comemorou nas redes sociais a alta hospitalar e agradeceu a todos que torceram por sua recuperação.

“Bem simbólico… depois de me matarem no dia 30, ressuscitei no Dia de Finados e tive alta do hospital!!!!”, escreveu Erasmo, fazendo uma referência a notícias falsas que foram veiculadas reportando que ele havia morrido.

O artista trabalhava ativamente e no fim de semana foi um dos vencedores do Grammy Latino de Melhor Álbum de Rock ou de Música Alternativa em Língua Portuguesa com “O Futuro Pertence À… Jovem Guarda”. Ele também usou seu perfil no Instagram para comemorar.

Ao longo de mais de 60 anos de carreira, foram mais de 680 músicas e 640 gravações. O artista era casado e deixa três filhos.

Pioneiro no rock brasileiro, Erasmo fez parte da Jovem Guarda, movimento cultural brasileiro da década de 1960, ao lado de Roberto Carlos e outros grandes nomes da música que marcou gerações e a história da música brasileira.

Sua carreira começou ainda na adolescência, na década de 1950, ao integrar a banda The Sputniks, ao lado de Tim Maia, Roberto Carlos, Arlênio Lívio, Edson Trindade e Wellington Oliveira.
Após o desentendimento entre Tim Maia e Robertos Carlos, Erasmo e outros amigos da Tijuca, na zona norte do Rio, onde o artista cresceu, formaram o The Boys of The Rock, que posteriormente passou a se chamar The Snakes. O grupo acompanhou os dois cantores em seus respectivos shows.

Após o fim do grupo em 1961, poucos anos depois, o músico voltou a acompanhar Roberto Carlos. Dessa vez na gravação de “Splish Splash”, numa versão para o português feita por Erasmo. O sucesso do disco foi o nascimento da lendária parceria entre Roberto e Erasmo.

Nessa época, ele começou a compor versos para diversos artistas.

Em 1965, ao lado de Robertos Carlos e Wanderléa, Erasmo estreou o programa Jovem Guarda, na Record TV, que deu nome ao movimento musical influenciado pelo pop britânico que introduziu o rock no Brasil. O programa foi ao durante três anos e colocou o trio como os principais nomes do rock brasileiro.

Nos anos 1970, o músico teve suas raízes influenciadas pelo MPB, que geraram diversos álbum mesclando o rock com a música popular brasileira.

Ao longo de 60 anos de carreira, o músico lançou 29 álbuns e 5 discos ao vivo. Erasmo acumula diversas parcerias de sucesso com artistas como Renato Russo, Leo Jaime, Kid Abelha, Tim Maia e, claro, Roberto Carlos.

Como ator, ele participou de seis filmes. Sua última aparição foi em “Modo Avião”, da Netflix.

Amigos, como Boninho, diretor artístico da TV Globo, lamentaram a perda do artista.

Texto publicado originalmente na CNN Brasil.


José Saramago, escritor português ganhador do prêmio Nobel | Foto: GROSBY GROUP

100 anos de José Saramago: Vida e obra inspiram livros e homenagens

r7 Entretenimento*

José Saramago nasceu na pequena aldeia portuguesa de Azinhaga, no dia 16 de novembro de 1922, filho de pais camponeses sem terra que dois anos depois decidiram se mudar para Lisboa. A dificuldade financeira os acompanhou na capital, onde José, bom aluno, seguiu os estudos, formou-se serralheiro mecânico, trabalhou em oficina de automóveis, metalúrgica e escritório até ingressar numa editora, nos anos 1950, para trabalhar na área de produção. Àquela altura, ele já tinha tentado, sem sucesso, escrever algumas coisas - ele descobriu a literatura cursando a escola técnica.

Depois da editora, o rumo da história muda para Saramago. Ele começa a traduzir e a fazer críticas literárias, publica seus poemas e passa a escrever mais. Muito mais. Levantado do ChãoMemorial do ConventoA Jangada de PedraO Evangelho Segundo Jesus CristoEnsaio Sobre a CegueiraAs Intermitências da MorteA Viagem do Elefante. A lista é longa e lhe valeria reconhecimento internacional, o Prêmio Camões em 1995 e o Nobel de Literatura em 1998. Hoje, no dia do seu centenário, Saramago é celebrado com novos livros.

As ideias, de um novo livro, de uma mudança de rumo, surgiam para José Saramago com um 'e se'. Em 1992, Pilar Del Río, sua mulher, foi surpreendida com um "E se fôssemos morar em Lanzarote?" Saramago estava aborrecido com o governo português, que tinha tirado O Evangelho Segundo Jesus Cristo de uma lista de livros que representariam a nova literatura portuguesa na Europa. Lançado no ano anterior, ele vinha causando polêmica, mas o gesto arbitrário do governo de Cavaco Silva foi decisivo para Saramago se afastar. E recomeçar.

Essa história é contada por Pilar na crônica A Polêmica Que Acelerou o Tempo, uma das primeiras de A Intuição da Ilha: Os Dias de José Saramago em Lanzarote. O volume traz passagens marcantes dos 18 anos que o Nobel de Literatura viveu na ilha vulcânica do arquipélago espanhol das Canárias.

Um livro de histórias, de memórias e um livro que mostra, sobretudo, como a mudança para um lugar isolado permitiu que Saramago se voltasse ao que era realmente essencial, reconhecesse o céu da Azinhaga da sua infância e produzisse alguns dos seus melhores livros.

"A ilha permite ver sem ser contaminado por modas, modos, interesses de um ou de outro. À ilha chegam vozes, mas não chegam barulhos. Por isso Saramago pôde escrever tantos livros na última fase de sua vida", comenta Pilar em entrevista ao Estadão.

A ideia de reunir essas lembranças não foi dela. Com saudades de Saramago, os funcionários da Casa, o museu no qual sua residência foi transformada em 2011, começaram a pedir, na pandemia, que ela compartilhasse passagens e curiosidades. História vai, história vem, pelo Zoom, pelo WhatsApp, e Alba, uma dessas funcionárias, dona de uma editora na ilha, pede para publicá-las em livro.

"Foi um trabalho gostoso de recuperação da memória - mas, ao começar a escrever achei que precisava de algo mais. E esse algo é por que surgem os livros escritos em Lanzarote. Por que Ensaio Sobre a Cegueira, por que A Viagem do ElefanteAs Intermitências da Morte?", comenta. "Então revelo coisas que ninguém sabia. Ninguém sabia que Saramago recebe um prognóstico médico e em vez de ficar 'oh, que horror, tenho leucemia' ele escreve As Intermitências da Morte. Isso está contado no livro."

Há ainda lembranças dos inúmeros amigos que visitaram o escritor na ilha, o cotidiano, a incumbência dele de comprar pão, o dia do Nobel e muitas outras histórias que aproximam leitor e escritor em seu centenário de nascimento - e nos 12 anos de sua morte (lembrados no dia 18 - e tema também de um dos textos).

Legado

Tem sido um ano de boas notícias acerca de seu legado, incluindo eventos e até livros infantis. Aos lançamentos recentes, soma-se agora As Artemages de Saramago, com ensaios escritos ao longo do tempo, e reescritos agora, por Leyla Perrone-Moisés. "Uma coletânea de admiração e afeto. Admiração pelo escritor, afeto pela pessoa", como ela diz na apresentação. E também uma edição especial, em capa dura e com nova apresentação de Andréa Del Fuego, de O Evangelho Segundo Jesus Cristo, que chega às livrarias em dezembro - todos pela Companhia das Letras.

Já a Rua do Sabão lança, nos próximos dias, De Memórias Nos Fazemos, escrito pela única filha de José Saramago, Violante, com suas histórias e reproduções de correspondências.

Texto publicado originalmente no portal r7 Entretenimento.


Alberto Aggio: Vida e pensamento de Gramsci

Vida e pensamento de Gramsci, de Giuseppe Vacca, segue esta pista e daí emerge a primeira biografia política de Antonio Gramsci desde a prisão até sua morte

Alberto aggio / Horizontes Democráticos

Antonio Gramsci nunca publicou um livro em vida. Sua condição de autor se deve aos esforços sucessivos de seus editores, particularmente aqueles que deram publicidade aos famosos Cadernos do cárcere, escritos na prisão fascista entre as décadas de 1920 e 1930. Considerado um “clássico da política” e um dos mais profícuos pensadores do marxismo no século XX, o estudo de suas ideias passou por muitas reformulações no curso de sua progressiva difusão desde o segundo pós-guerra. Mesmo com as conhecidas lacunas, a chamada “edição temática” (1948-1951) e, depois, a consistente “edição crítica” dos Cadernos (1975) acabaram por fornecer elementos essenciais para a construção de variadas interpretações a respeito de seu pensamento.

Ilustração da edição brasileira dos Cadernos do Cárcere

Gramsci foi visto inicialmente como o “teórico da cultura nacional-popular” e, depois “da revolução nos países avançados do capitalismo”, de cuja obra se extraíam conceitos que o tornaram um pensador assimilado em grande escala. Recentemente, a partir de uma “historicização integral”, aliada à recepção e ao tratamento de fontes inéditas ou até ignoradas, vem emergindo uma nova inserção de Gramsci na política do século XX. Referida aos dramáticos acontecimentos que abarcam a chamada “grande guerra civil europeia” (1914-1945), esta perspectiva analítica tem permitido a gradativa superação dos diversos enigmas que marcaram por longos anos os estudos gramscianos, originados da fratura entre sua vida e seu pensamento.

Vida e pensamento de Gramsci, de Giuseppe Vacca, segue esta pista e daí emerge a primeira biografia política de Antonio Gramsci desde a prisão até sua morte. O livro de Vacca supera a cisão entre trajetória pessoal e reflexão teórica ao trabalhar a um só tempo os dramas individuais e os dilemas políticos daquele prisioneiro especial do fascismo, cercado e atormentado pela angústia de ter sido “esquecido” pela mulher e “posto de lado” politicamente, o que aumentava suas suspeitas de que a direção do PCI havia sabotado sua libertação.

Há um pressuposto no livro: antes e depois de sua detenção, Gramsci foi, sobretudo, um homem de ação. Nas circunstâncias da prisão, tudo que Gramsci escreveu, de suas anotações nos Cadernos à correspondência com familiares e amigos, indica que ele permaneceu atuando como um dirigente. Nessa condição, por meio de um exercício extraordinário de codificação da linguagem, Gramsci procurava fazer chegar à direção do PCI, em especial a Palmiro Togliatti, avaliações do cenário italiano e mundial, bem questionamentos sobre orientações do PCI e da Internacional Comunista que lhe pareciam equivocadas. É deste permanente comprometimento que vão emergir os termos da “teoria nova” que, inúmeras vezes e incansavelmente, ele próprio anota e reescreve nas folhas dos cadernos escolares que pôde usar na prisão.

Alberto Aggio com Giuseppe Vacca, em Roma, em 25 de fevereiro de 2013

Nos Cadernos do Cárcere sedimenta-se um novo pensamento que resultaria numa revisão profunda do bolchevismo, notadamente em relação à concepção do Estado, à análise da situação mundial, à teoria das crises e à doutrina da guerra. Vacca sugere, com audácia teórica, que a formulação que revela definitivamente essa ultrapassagem estaria na proposição de luta pela conquista de uma Assembleia Constituinte contra o fascismo, desde 1929.

Esta proposta expressa um ponto de ruptura. Gramsci passaria a delinear uma visão da política como luta pela hegemonia, o que representa, na conjuntura dos primeiros anos da década de 1930, a adoção de um programa reformista de combate ao fascismo. A luta imediata do PCI deveria se deslocar da preparação da revolução proletária para a conquista da Constituinte: em outras palavras, a luta pela democracia deixava de ser pensada apenas como fase de transição para o socialismo. Para Gramsci, o núcleo da nova orientação dos comunistas italianos significaria a possibilidade de reconstrução da nação italiana. Vida e pensamento de Gramsci carrega a marca do ineditismo e da inovação em muitas dimensões. Os resultados não são de pouca monta.

O Gramsci que daqui emerge foi composto a partir de uma investigação histórica que acabou por estabelecer a passagem do bolchevismo para uma estratégia de ação com marcas claramente democráticas e reformistas. Localizar criticamente Gramsci na história de seu tempo permitiu essa grande descoberta.

(Este texto é a “orelha” do livro Vida e pensamento de Antonio Gramsci, 1926-1937, editado pela Contraponto/Fundação Astrojildo Pereira e Fundação Instituto Gramsci de Roma, em 2012, com tradução de Luiz Sérgio Henriques. O prefácio do livro, escrito por Maria Alice Rezende de Carvalho pode ser lido em https://www.acessa.com/gramsci/?page=visualizar&id=1548).

Fonte: Horizontes Democráticos
https://horizontesdemocraticos.com.br/vida-e-pensamento-de-gramsci/


George Gurgel de Oliveira: José Carlos Capinan - Vida e poesia

A recente entrevista realizada online pela Fundação Astrojildo Pereira, em homenagem a José Carlos Capinan, deu uma boa dimensão do ser humano, médico, jornalista, escritor e poeta que completou 80 anos em 19 de fevereiro deste ano.

Capinan conversou com antigos e novos companheiros sobre a sua vida, o Brasil dos anos 60 até à atualidade. A emoção foi grande em rever antigos companheiros que abrilhantaram a entrevista como o cineasta Vladimir de Carvalho (contemporâneo de Universidade e do CPC na Bahia), o jornalista Francisco Almeida, o ator Stepan Nercessian, o historiador Ivan Alves Filho,  a ativista social e gestora pública Rachel Dias, o professor Martin Cezar Feijó, o escritor e ensaísta Luis Sérgio Henriques, o advogado Roberto Freire (presidente do Cidadania), o jornalista Renato Ferraz e  o diretor geral da FAP Caetano Araújo. Ainda destacamos a participação dos parceiros Tomzé, Roberto Mendes, Carlinhos Cor das Aguas, Lula Gazineu e dos amigos Angela Fraga, Armandinho, Targino, Marcelo Gentil e Antônio Rizério  homenageando os 80 do poeta Capinan .

Toda a entrevista está sendo editada e vai ser disponibilizada nas mídias sociais da Fundação Astrojildo Pereira.  Desde o seu nascimento no Arraial de Três Rios e o seu registro no município de Esplanada, na Bahia, e até hoje vivendo em Salvador, Capinan é e foi um viramundo. Construiu um repertório literário, poético e musical como poucos da sua geração; enfrentou e continua enfrentando as dificuldades de um criador da área de cultura, querendo e lutando por um Brasil brasileiro e universal que seja contemporâneo, democrático, comprometido com as transformações políticas, econômicas e sociais necessárias, ainda a serem realizadas pela sociedade brasileira.

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Capinan é um abolicionista do século XX, avançando pelo século XXI na melhor tradição libertária e humanista do século XIX. De Esplanada veio para Salvador estudar Direito na Universidade Federal da Bahia (UFBa), em 1960, aos 19 anos. Desde então começou a sua produção intelectual e um ativismo cultural que o levou a participar de importantes movimentos políticos, sociais, ambientalistas e culturais acontecidos no Brasil desde a década de 60.

O Brasil da época estudantil de Capinan em Salvador apontava para um futuro que prometia ser melhor: a industrialização avançava, tínhamos o samba e a bossa nova, éramos bicampeões mundiais com Pelé e Garrincha e o mundo nos olhava com curiosidade e admiração.  Brasília estava sendo construída de uma maneira vertiginosa tendo à frente a liderança do presidente Juscelino Kubitschek e as genialidades de Oscar Niemeyer e Lúcio Costa.  A Universidade de Brasília tinha Anísio Teixeira e Darci Ribeiro, entre outros, destacando a importância da educação, apontando novos horizontes e possibilidades de integração e modernização do Brasil, a partir do planalto central.

Anísio Teixeira tem que ser sempre lembrado como um dos pioneiros da educação moderna brasileira: fez muito pela educação com a Escola Pública em tempo integral; a Escola Parque, sistema implantado quando foi secretario de educação e saúde da Bahia, no final dos anos 40. Essa experiência educacional pioneira de Anísio foi - nunca é demais lembrar -, um fundamento importante para as transformações que iriam ali ocorrer nos anos 50, na própria Universidade, na reitoria do professor Edgar Santos.  Assim, quando Capinan chegou para estudar Direito na UFBa, a Bahia vivia um caldeirão cultural.  A Universidade colaborou para a construção de uma cultura baiana cosmopolita, recebendo intelectuais, professores, escritores e artistas de todo o mundo. Ainda, a contribuição primordial de Dorival Caymmi, Jorge Amado e João Gilberto que colocavam a cultura baiana no cenário do país e do mundo.

Portanto, a UFBa, a partir dos anos 50, começou a ser protagonista de movimentos culturais no cinema, no teatro, na pintura, na dança e na música, formando novas gerações e lideranças de vanguarda da cultura baiana e nacional. O cinema de Glauber Rocha e o tropicalismo de Gilberto Gil, Caetano Veloso, Tomzé e o próprio Capinan, entre outros, se destacam pelo impacto causado à cultura brasileira e os seus desdobramentos posteriores, até à atualidade.

Vivia-se na Bahia, no início dos anos 60, quando Capinam chegou a Salvador, todas essas possibilidades de mudanças nos movimentos políticos, culturais e sociais. Ele é parte integrante e ator privilegiado desse processo. Além de estudar Direito, ele também foi aluno da Escola de Teatro da UFBA, participou do Centro Popular de Cultura (CPC), movimento cultural nacional liderado pela UNE e com forte influência política do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Na Universidade, conheceu Gilberto Gil e Caetano Veloso, e juntos compuseram a trilha sonora do filme de Geraldo Sarno, Viramundo, o qual mostrava o fluxo migratório nordestino para São Paulo.

À época, fez com Tomzé a encenação de um Bumba meu Boi, em Salvador, e em algumas capitais nordestinas, espetáculo que era, na verdade, uma denúncia contra a presença do imperialismo americano no Brasil, o que rendeu a Capinan um inquérito policial militar. Em 1964, depois do golpe de 1º de abril, ele teve que sair de Salvador, retornou à casa dos pais, por um breve período, e, em seguida, foi para o Rio de Janeiro e posteriormente para São Paulo, onde passou a viver. Na viagem de trem rumo ao Rio, no caminho, ainda em território baiano, teve o primeiro encontro com o futuro parceiro Moraes Moreira. Ao chegar à capital paulista, começou a trabalhar como publicitário e incorporou-se na vida cultural paulistana. Em seguida, foi para o Rio de Janeiro, onde participou de festivais de música popular brasileira, os quais acabaram se tornando um espaço de resistência à ditadura.

Além do Brasil, os militares chegaram ao poder, via ditadura militar, na maioria dos países da América Latina: em plena Guerra Fria, apoiados pelos Estados Unidos, em resposta à revolução que avançava em Cuba sob a liderança de Fidel e Che Guevara, idolatrados por uma boa parte da juventude mundial.

A morte do Che, em La Higuera, escondido em plena selva da Bolívia pelo exército boliviano, com apoio da CIA, sensibilizou mentes e corações em todo o mundo. No dia da morte de Che Guevara (9 de outubro de 1967), Capinan fez Soy Louco por ti América, em parceria com Gilberto Gil. A música tornou-se um hino brasileiro-latino americano a favor da integração americana, em homenagem ao líder guerrilheiro. Embora, como todos sabem e, dito pelo próprio poeta, ele era contra a luta armada. Eram tempos sombrios, de resistência, prisões, mortes e exílios no Brasil e em toda a América Latina.

Depois de um breve período em São Paulo, ele foi para o Rio de Janeiro onde ficou até o final dos anos 70. Então, Capinan se tornou um dos compositores mais vitoriosos da sua geração nos festivais de música popular brasileira em parcerias com Edu Lobo, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Paulinho da Viola e Jards Macalé. Inicialmente fez uma poesia crítica e social, com os valores da cultura nordestina, dos violeiros e cantadores, como fonte de inspiração. Foi, com o passar do tempo, transformando seus versos, incorporando um lirismo humanista brasileiro e universal. A partir das parcerias com Paulinho da Viola, ainda nos anos 60, incorporou as mudanças que são refletidas na sua produção poética e literária.

No Rio de Janeiro, já conhecido como poeta e compositor, fez a opção de estudar Medicina: iniciou o curso no Rio de Janeiro e terminou-o na Bahia, na Universidade Federal. A Medicina, podemos pensar, muito serviu ao poeta para um melhor conhecimento do ser humano nas possibilidades de cura corporal, psíquica e emocional. Porém, a poesia falou mais alto, para a felicidade da cultura brasileira.   

Os trabalhos conjuntos com Geraldo Azevedo, Moraes Moreira, Robertinho do Recife, Fagner, Batatinha, Edil Pacheco, Ederaldo Gentil, Carlinhos Cor das Aguas, Lula Gazineo, Roberto Mendes, entre outros artistas brasileiros e da Bahia, totalizam mais de 200 parcerias do poeta Capinan. Assim, o poeta tornou-se um dos maiores letristas da música popular brasileira com sucessos reconhecidos como o já destacado “Soy louco por ti América”, com Gilberto Gil; “Clarice”, com Caetano Veloso; “Ponteio”, com Edu Lobo; “Gotham City”, com Jards Macalé; “Coração Imprudente”, com Paulinho da Viola; “Moça Bonita”, com Geraldo Azevedo,  “Papel Marchê”, com João Bosco;  “Cidadão”, com Moraes Moreira; “Yáyá Massemba”, com Roberto Mendes, entre outras dezenas de composições conhecidas de Capinan.

 No entanto, como o próprio Capinan sempre lembra, ele não consegue viver de seus direitos autorais. É um problema de todos os compositores, particularmente os que não cantam as suas próprias canções. O Capinan e a sua geração foram pioneiros nessa luta por direitos autorais no Brasil. Ainda hoje há muito por fazer para o devido reconhecimento da produção cultural e dos compositores brasileiros em relação aos seus direitos autorais.

A poética de Capinan está registrada nos seus livros publicados e em antologias de poetas brasileiros, como Inquisitorial (1995); Poemas: Antologia e Inéditos (1996); Vinte Canções de Amor e Um Poema (2014); Balança mas Hai-Kai (2011) e o recente 26 Poetas Hoje, organizado por Heloisa Buarque de Holanda, são as principais publicações a serem destacadas.

Ainda nos anos 80, Capinan foi Secretário de Cultura do Estado da Bahia no Governo Waldir Pires, quando a Cultura tornou-se Secretaria de Governo. Na área ambiental, teve protagonismo na criação do ECODRAMAS, movimento que, já nos anos 80, destacava a importância da questão ambiental no dia a dia da sociedade: chamando a atenção da importância das manifestações culturais e religiosas nesse contexto. Eram encontros sócio-ambientais e culturais anuais que premiavam as melhores práticas e as lideranças culturais e ambientalistas da Bahia.

A cultura afro-brasileira continua marcando a produção e a vida do poeta Capinan. A travessia do sertão para Salvador e o recôncavo coloca-o como um dos importantes intérpretes da cultura afrobrasileira no Brasil. Ele tem ensaios, artigos, poesias e composições que falam de questões históricas e atuais, fez viagens à África, é um permanente interlocutor na cooperação cultural entre o continente africano e o Brasil.  Desde a fundação em 2004, ele está à frente do Museu AfroBrasil, que teve como diretor curador Emanuel Araújo e o apoio permanente da Associação de Amigos da Cultura Afrobrasileira (AMAFRO), que tem como objetivo o ensino, a pesquisa, a cooperação e o intercambio voltados à recuperação e à preservação do patrimônio, da memória e da cultura afro-brasileira, dos quais Capinan hoje é um dos seus mais destacados guardiões na Bahia.

Somos testemunhas, há anos, do empenho, do compromisso e das dificuldades passadas pela AMAFRO e do trabalho de Capinan e de toda uma equipe, na maioria de voluntários, para manter o museu funcionando, cujo desafio maior continua sendo a federalização ou a estadualização deste importante espaço cultural.

Em 2006, o teatrólogo, publicitário, poeta, médico, jornalista e escritor José Carlos Capinan entrou para a Academia Baiana de Letras, sendo o primeiro compositor de música popular brasileira a fazer parte dela.

 Assim o poeta chega aos 80 anos, com uma impressionante capacidade de escrever e de continuar a liderar a construção do Museu Afro Brasil na Bahia. As parcerias continuam.  Quem não quer ser parceiro musical de Capinan? A lista continua extensa.  Artesão da palavra faz com naturalidade a escrita poética. Para ele, escrever é como se alimentar, como dormir, acordar, ler, ouvir música, conversar e todas as outras rotinas diárias na sua casa do Rio Vermelho, refletindo a vida e o mundo em que vivemos. Continua trabalhando, traduzindo na sua poesia as alegrias, as belezas, as angústias, as incertezas e os desafios existenciais do ser humano, da realidade brasileira e mundial do que somos e que poderemos ser como humanidade durante e pós pandemia.

O poeta José Carlos Capinan merece todas as homenagens e o reconhecimento da sua produção social e cultural. Continua a jornada defendendo os valores de toda a vida, valores universais de igualdade, liberdade e fraternidade.

Nestes tempos sombrios que atormentam a todos nós, a cultura é fundamental para a nossa sanidade emocional. A poesia de Capinan nos acolhe e nos vitaliza ajudando a enfrentar estas tormentas, na busca de novos caminhos e horizontes que possam nos levar às novas relações com a nossa humanidade e a própria natureza.

Que assim seja!

Juntos com a poesia de Capinan, somos e seremos melhores.

Viva a Cultura!

Viva Capinan!  

*George Gurgel de Oliveira, professor da UFBa, dirigente da Fundação Astrojildo Pereira e da AMAFRO


Luís Costa Pinto: De saída, Rodrigo Maia está destinado a confrontar sua sombra

O presidente da Câmara consolidou a imagem de seriedade, se contrapôs à abjeta agenda reacionária de Bolsonaro, e focou nas reformas liberais. Mas a vitória de seu sucessor, Baleia Rossi, parece improvável, e a partir daí Maia terá de se perguntar: Quem e o quê fui? Aonde errei?

O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, construiu em pouco tempo uma das mais promissoras carreiras da história parlamentar do Brasil. Contrariando prognósticos de quem se dizia especialista em eleições congressuais, em 14 de julho de 2016 se elegeu presidente da Câmara dos Deputados para exercer um mandato-tampão de sete meses em razão da prisão do antecessor Eduardo Cunha. Cunha havia sido o dínamo que deu energia, oxigênio e musculatura aos movimentos inicialmente desconexos de setores recalcados da sociedade brasileira que começaram a reivindicar o impeachment da presidente Dilma Rousseff tão logo foram fechadas as urnas de 2014. Para se safar da escalada de investigações contra si e, ao mesmo, converter-se em alternativa de poder real, Cunha inventou o processo de impedimento presidencial sem a existência de um crime de responsabilidade.

Executada a missão do golpe parlamentar imposta pelo andar de cima da sociedade, deposta Dilma, Cunha caiu em desgraça e foi preso semanas depois. O establishment político e empresarial entrou em parafuso —quem articularia a aprovação da agenda liberal-conservadora urdidas nos convescotes do mercado financeiro e nos cafés-com-algo-mais das torres de vidro da Faria Lima? “Maia” era a resposta e parecia mesmo uma solução.

Dono de um diferencial competitivo raro entre políticos de primeira linha, o deputado do Democratas sempre soube ouvir os interlocutores. Tenha-se claro que ouvir não é sinônimo de escutar. Em política, quando um cacique o ouve é porque ele concede a você a deferência de prestar atenção no que é falado em meio a uma conversa. Maia sempre soube compreender o que lhe era dito e, em rotina ordinária, jamais deixou de dar respostas diretas: sim ou não, segue ou não segue tal ou qual articulação. Parece óbvio, mas agir assim é comportamento escasso em Brasília. Na capital da República, dissimulações e tergiversações são regra e não conduzem a soluções. Problemas sem soluções redundam, em geral, em taxímetros que permanecem ligados e a registrar o custo do acesso a alguém que abra portas no coração do poder.

Cunha liderava uma bancada outrora estimada em 300 almas penadas prontas a depenar quem para elas encomendasse reza. Tinha para tal a destreza dos velhos donos de frota de táxi. Os taxímetros estavam sempre ligados — e na bandeira 2! Muitas vezes, havia a cobrança de taxa extra como, por exemplo, aquelas que muitos aceitam pagar aos frotistas que carregam malas. Sentado na cadeira do antecessor, Rodrigo Maia desligou os taxímetros, extinguiu os pontos de cobrança de frete e de extras e ordenou o extermínio da plantação de jabutis. Na Câmara de Eduardo Cunha os quelônios davam safra em árvores e se reproduziam nas entrelinhas dos textos legais semeados, em geral, a partir de escritórios de advocacia ou de centrais de lobby regiamente remunerados para a faina.

Avesso ao adjetivo “liberal”, uma implicância boba, posto que ele é uma das maiores lideranças da direita liberal do País, depois de tocar fogo no estoque de taxímetros das comissões da Câmara dos Deputados, Maia ganhou fôlego para alçar voo rumo a outro patamar de altitude. Convenceu Michel Temer, o artífice da deposição de Dilma e que herdou a cadeira presidencial, a estabelecer um teto para os gastos públicos e a enviar para o Congresso propostas de reformas das leis trabalhistas, tributárias e previdenciárias.

Convertido em segundo na linha sucessória de Temer, o presidente da Câmara usou os dois olhos, os dois ouvidos e a inteligência rápida para virar o grande polo de soluções de Brasília. Enquanto corria com a tramitação das reformas, cuidou de se aproximar com habilidade de ministros dos tribunais superiores e conseguiu — por meio de vistas grossas — a permissão para pleitear uma reeleição em fevereiro de 2017 que poderia ter sido considerada ilegal. Mas, à guisa de nomes melhores no Parlamento e porque se tentava reunificar uma nação fraturada pelo impeachment sem crime de responsabilidade, Maia foi reeleito e turbinou a aprovação de reformas constitucionais de vezo liberal.

A primeira delas a passar foi a sindical, e desmontou o funcionamento dos sindicatos no Brasil. A segunda, a trabalhista. Alterando mais de uma centena de artigos e dispositivos constitucionais e da Consolidação das Leis do Trabalho, a reforma trabalhista teve o condão de desorganizar a rede de proteção do Estado aos trabalhadores formais brasileiros. Foi um efeito colateral perverso agravado pela peculiaridade de o “capitalismo” brasileiro ser tocado por executivos e investidores com imensa aversão a risco: põe todo o custo social do capitalismo no Estado e só investem quando têm certeza de que receberão benesses e beneplácitos na forma de renúncias fiscais, prazos paternais para devolver empréstimos a bancos públicos e certeza de que inadimplências tributárias serão perdoadas. Interlocutores advertiram Maia de que o tiro sairia pela culatra, com ampliação do desemprego e redução da Rede de Proteção Social — além de redução na arrecadação da Previdência Social. O presidente da Câmara ouviu-os, porém não os escutou daquela vez.

Em maio de 2017, Rodrigo Maia precisou vestir às pressas o uniforme resistente a fogo dos bombeiros e correr para salvar Michel Temer do incêndio gerado a partir de uma célula de autocombustão no subsolo do Palácio do Jaburu. Num diálogo tão sórdido quanto grotesco, enquanto fazia as vezes de “Presidente da República”, cargo que tomara de Dilma Rousseff, Temer pedia ajuda ao empresário Joesley Batista e ouvia dele que estava na corrente no mínimo pragmática criada para dar tranquilidade a Eduardo Cunha. O ex-presidente da Câmara, prócer do impeachment sem crime de responsabilidade de 2016, sempre foi amigo e correligionário de Temer e estava vivendo as agonias do xilindró graças a acusações de corrupção, peculato e advocacia administrativa.

Divulgados os diálogos impróprios do subsolo do Jaburu, Temer cogitou renunciar ao cargo ao qual ascendera depois de uma bem-sucedida conspiração parlamentar, jurídica e classista. Estava decidido a fazê-lo quando recebeu um recado de Maia: a conversa com Joesley Batista fora um erro injustificável, mas a renúncia naquele momento jogaria o País num limbo constitucional indigesto e desconhecido.

Assustado com o protagonismo que passaria a ter — caso Temer renunciasse mesmo, seria nomeado Presidente da República e teria de convocar uma eleição no prazo de 60 dias —, Maia deu um salto gigantesco de maturidade política ao mesmo tempo em que cometeu o que alguns consideram seu primeiro grande erro no acerto de contas com a História. Temer refugou, ficou no cargo, decidiu enfrentar a oposição e Rodrigo Janot, o atrapalhado (para dizer o mínimo) Procurador Geral da República. Janot podia ser considerado atrapalhado, mas tinha agenda. E, pela agenda dele, passava a desmoralização da política e dos políticos, tarefa à qual se dedicou com denodo junto com a “Força Tarefa” montada em Curitiba pelo Ministério Público e chefiada por trás dos panos da farsa da Lava Jato pelo então juiz Sérgio Moro.

Na esteira do “fico” de Temer, Rodrigo Maia virou uma espécie de líder do Governo e primeiro-ministro ao mesmo tempo em que chefiava a Câmara dos Deputados. Ministros de Estado, integrantes dos tribunais superiores, plutocratas da Faria Lima e executivos do mercado financeiro passaram a enxergar nele a encarnação do poder, de todo o poder que se é capaz de reunir em Brasília. Não era assim, o próprio Rodrigo Maia tinha a consciência de que as coisas não se davam assim. Entretanto, o figurino era-lhe confortável. Na capital do Brasil, as aparências contam mais que as essências. E ter um infinito poder aparente resolve muitos problemas. Quem conhece os meandros brasilienses, porém, sabe que são glórias transitórias. Tudo passa.

Por duas vezes mais, Maia pôde flertar com a possibilidade de virar presidente-tampão da República e até disputar no cargo uma eventual reeleição em 2018. Tais oportunidades surgiram quando o plenário da Câmara rejeitou duas vezes dar prosseguimento à investigação de denúncias feitas pela PGR contra Temer. Em agosto de 2017 a primeira denúncia foi arquivada por 263 votos contra ela e 227 a favor. Outubro daquele mesmo ano, por 251 votos contra e 233 a favor, num placar mais apertado que refletia o desgaste do governo em virtude do colapso gerencial de Michel Temer, os deputados voltaram a recusar a ação do Ministério Público contra o homem que exercia a Presidência. Se Rodrigo Maia tivesse cedido os dedos de apenas uma das mãos a favor dos mapas de caminhos conspiratórios que lhe foram oferecidos à época daquelas votações, Temer teria caído e a história de 2018 seria bem outra. O presidente da Câmara conservou-se leal ao conjunto ora desconexo de políticos e de interesses que levara o grupo ao poder embora fosse já um crítico contumaz dos erros do Palácio do Planalto e tivesse assentada a certeza de que o diálogo de Michel Temer com Joesley Batista no subsolo do Jaburu inviabilizara a agenda econômica que haviam planejado. Tanto foi assim que a reforma da Previdência precisou esperar a eleição de 2018 para ser debatida a sério e aprovada no Congresso. A reforma tributária, contudo, segue parada e a proposta urdida por Maia com economistas dos mais variados matizes e por amplo espectro partidário, não é prioridade do atual Governo.

Empossado Jair Bolsonaro, um político pérfido, de discurso perverso, e que sempre fez oposição pela extrema-direita a Rodrigo Maia e ao pai dele, César Maia, ex-prefeito do Rio, o presidente da Câmara disputou nova reeleição para presidir a Câmara dos Deputados. Em fevereiro de 2019, foi reeleito com folga. Os papéis distribuídos pelo destino, entretanto, eram já diversos. Ao contrário de Temer e apesar de entabular um discurso repulsivo contra a política, os políticos e as instituições, Bolsonaro tinha consigo a legitimidade do voto popular — recebeu mais de 57 milhões de votos no segundo turno de 2018 — e um vice-presidente também eleito em sua chapa. Maia não poderia mais protagonizar a personagem de líder do governo e primeiro-ministro enquanto vestia o terno (e as camisas polo) de presidente da Câmara.

Ao se contrapor à abjeta agenda reacionária “de costumes” de Bolsonaro, e também porque conferia organicidade e inteligência à agenda econômica do governo eleito, Rodrigo Maia paulatinamente foi atraindo a intolerância e a ojeriza do presidente da República e do ministro da Economia, Paulo Guedes. Ignorante dos hábitos e dos ritos da política, Guedes dinamitou as pontes que poderiam ligá-lo a Maia e deixou que se tornasse caudaloso o rio de ódio entre eles. Bolsonaro, por sua vez, agindo por instintos animais, portou-se como chefe da matilha de lobos famintos integrada por seus filhos — 01, 02 e 03 — e nunca perdeu oportunidade de tentar humilhar Maia.

Bolsonaro, uma vez mais, foi desmentido pelos fatos: foi na Câmara dos Deputados, a partir de debates e projetos legislativos liderados por Rodrigo Maia, que o Estado brasileiro conseguiu exibir uma estratégia mínima de combate efetivo à propagação letal do coronavírus covid-19 durante a pandemia. O auxílio emergencial de 600 reais, entregue diretamente a 38 milhões de brasileiros alocados nos estratos inferiores da pirâmide social, salvou vidas, a economia popular e ao menos retardou a discussão à vera do impeachment de Jair Bolsonaro porque lhe deu sobrevida de popularidade. Sob protestos da equipe econômica de Guedes e por insistência da Câmara, o auxílio foi aprovado pelo Congresso. Toda a estrutura de comunicação e trocas logísticas entre os estados da federação, cujos governadores se revelaram muito mais maduros e preparados que o presidente, foi estimulada e, muitas vezes, formatada pela Câmara.

O presidente da Câmara consolidou a imagem de seriedade e de desprendimento perante parte da sociedade — a parte que sempre o incensou e interessou. Até se ganha eleição sem eles, ou contra eles, mas não se governa o Brasil prescindindo deles. Collor e Dilma sentiram na pele a desconexão que tinham com esse “andar de cima”, produzida no curso de seus mandatos. Fernando Henrique e Lula, eleitos e reeleitos, que governaram oito anos, regozijam-se com méritos de nunca terem cruzado o rubicão ou dinamitado as pontes que existem para tal travessia. E Rodrigo Maia é um exímio construtor dessas pontes.

Mas, os sinais de hostilidade a Maia dados por Bolsonaro foram captados no Congresso e não deixaram de tirar força política do presidente da Câmara. Vem dessa trajetória tortuosa o patente enfraquecimento institucional do político que melhor encarnou a possibilidade de a sua geração chegar efetivamente ao poder à frente dos próprios sonhos e bandeiras, esgrimindo projetos singulares e modernos para o País.

Convencido de que nenhum dos 61 pedidos de impeachment presidencial que foram endereçados à Presidência da Câmara seria aprovado no plenário da Casa, Maia guardou todos na gaveta do reservado de sua sala. Quem o suceder, os herdará; posto que ele tampouco irá arquivá-los. Ante os arreganhos bolsonaristas contra a Constituição, contra o Parlamento e contra si, Maia não os fez andar por um cálculo tão frio quanto controverso: não passariam porque o presidente conta ainda apoio consistente no Congresso e, uma vez rejeitado, o impeachment fortaleceria o presidente da República.

Agir friamente à luz da tragédia sanitária e humanitária do País e ante o cotejamento das ações que podiam ter sido levadas a cabo para arrefecer e frear o contágio e a mortandade provocados pela covid-19, e não o foram, por um Jair Bolsonaro colérico e obscurantista, resultou no recrudescimento das críticas por equívoco dos cálculos políticos. A lealdade devida a Temer não estava posta em cena para justificar o bloqueio ao andamento de ao menos um dos pedidos. Compilação efetuada pelo jornal Folha de S. Paulo levantou a existência de ao menos 23 crimes de responsabilidade passíveis de impeachment em atos e omissões de Bolsonaro, no exercício do mandato, e que foram decisivos para recrudescer a dispersão do vírus e as mortes em decorrência do coronavírus.

Cautela é ferramenta essencial na construção da trajetória de qualquer estadista. Ao driblar uma derrota patente que poderia se converter em fortalecimento de seu adversário político, Maia talvez tenha errado no uso equilibrado da ousadia que, por sua vez, também é atributo necessário a quem está na estrada e dando o norte — como ele. Mas, se o impeachment não teve início por meio de sua caneta, a construção da maioria necessária a aprová-lo passará, necessariamente, pelo espectro de canais de diálogo de largo diapasão que abriu nos diversos setores da sociedade e em todos os partidos políticos.

Aos 50 anos, tendo sido presidente da Câmara dos Deputados por quase cinco anos, Rodrigo Maia teve todas as chances de entregar o cargo a um aliado e pedir que o sucessor cuidasse de seu legado. Sairia do posto muito maior do que entrou. Quando evitou conspirar contra Temer e fazer com que as denúncias da PGR contra o homem que derrubou Dilma Rousseff fossem consideradas procedentes pelo plenário da Casa, recusando as tentações de se tornar presidente da República pela via indireta, usou a favor da própria biografia a lei da lealdade.

A lei da lealdade é uma regra intangível e consuetudinária da arte de fazer política que torna maiores aqueles que são leais aos aliados e, sobretudo, aos adversários. Havia clareza e lógica nos argumentos das denúncias da Procuradoria da República que podiam levar à queda de Temer e à sua ascensão à Presidência. Rodrigo Maia conservou-se fiel ao grupo que derrubara Dilma, obra consumada em sociedade, e trabalhou para manter Temer na cadeira palaciana. A lealdade pregressa, entretanto, não foi respondida à altura pelos pares. Geddel Vieira Lima, ex-ministro de Temer preso quando 51 milhões de reais em espécie foram flagrados num apartamento dele em Salvador, dizia que era preciso sempre “estar sendo” alguma coisa em Brasília porque quando alguém bate à porta a pergunta que se faz é “quem é?” e não “quem foi?”.

A partir do dia 2 de fevereiro Rodrigo Maia terá de se confrontar com a própria sombra e perguntar: quem e o quê fui? Aonde errei? A vitória de Baleia Rossi, candidato dele, parece improvável neste momento nas calculadoras de votos de quem sabe contá-los nos processos legislativos. Arthur Lira, o nome escalado pelo Palácio do Planalto e pela família Bolsonaro para herdar a cadeira da presidência da Câmara, está ávido para religar os taxímetros da Praça Eduardo Cunha, localizada na esquina da Esplanada dos Ministérios com a cúpula do Plenário Ulysses Guimarães. Ali, há taxistas loucos por retomar o delivery legislativo cujo guichê foi fechado por Maia.

(*) Jornalista, autor de “Trapaça – Saga Política no Universo Paralelo Brasileiro” e editor do canal youtube.com/c/LuísCostaPintoPlataformaBrasilia


O Globo: Aliados de Bolsonaro, Lira e Pacheco chegam com vantagem para a eleição no Congresso

Após a saída do DEM do bloco de Baleia Rossi, ampliou-se a dianteira do candidato do PP na Câmara

Bruno Góes e Julia Lindner, O Globo

BRASÍLIA —  Com o apoio do presidente Jair Bolsonaro, o deputado Arthur Lira (PP-AL) e o senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG) chegam com amplo favoritismo para a eleição, hoje, que definirá os novos presidentes de Câmara e Senado. Na noite de ontem, a Executiva Nacional do DEM, partido do atual presidente da Câmara, Rodrigo Maia (RJ), anunciou a ruptura com o bloco de Baleia Rossi (MDB-SP) na Casa. Maia é o principal fiador da candidatura do emedebista.

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Com a mudança, ampliou-se a dianteira de Lira na composição partidária. Seu bloco reúne 11 siglas e 255 deputados. Já o de Baleia tem 10 legendas, totalizando 209 parlamentares. Os blocos são importantes porque balizam a divisão dos demais cargos na Mesa Diretora. Mas o voto é secreto, e os deputados não são obrigados a seguir a orientação partidária.A Flourish hierarchy chart

O líder do DEM, Efraim Filho (PB), afirmou que ele e o presidente da sigla, ACM Neto, fizeram uma “avaliação de cenário” e concluíram que a independência seria o melhor encaminhamento. Maia lamentou a decisão.

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— Prevaleceu a posição histórica de um partido de direita. Trabalhamos pra trazê-lo (para o) caminho de centro, mas a natureza de direita prevaleceu — reagiu Maia, que negou reflexo na candidatura de Baleia por considerar os votos “cristalizados”.

Lira e seu grupo, porém, trabalham ainda para trazer de volta o Solidariedade e estimulam dissidências no oposicionista PSB. O candidato do PP teve durante a campanha apoio efetivo do governo, com entrega e promessa de cargos e recursos. No campo governista, há uma força-tarefa para tentar decidir a eleição no primeiro turno.

Aposta no segundo turno

Aliados de Baleia reconhecem a situação como delicada, mas apostam que há chance de vitória, caso a eleição seja levada para o segundo turno. Em posição fragilizada, o candidato do MDB tentava recuperar o apoio do PSL, o que poderia lhe dar de volta o maior bloco.

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Baleia almoçou ontem com integrantes de oposição e recebeu parte da bancada feminina. Já Lira conversou com parlamentares de PL e Podemos, recebeu deputadas que o apoiam, e tinha jantar marcado com o governador do Rio, Cláudio Castro (PSC), e o presidente do PSD, Gilberto Kassab.

Os dois candidatos concederam também entrevistas à Globonews. Baleia afirmou não ser “de oposição", mas disse que não “fugirá” à responsabilidade de analisar pedidos de impeachment.

— É prerrogativa do presidente da Câmara a análise (do impeachment). Eu não fugirei às minhas responsabilidades de analisar. A análise será feita com todo o critério, à luz da Constituição — afirmou.

Lira, por sua vez, afirmou que é a pressão social que decide se há ou não a abertura.

— O impeachment é um processo político. Nenhum presidente pauta um impeachment, um impeachment pauta um presidente. Se tivermos inflação de 200%, protestos nas ruas, caos social, isso vem naturalmente — disse.

Senado: Apoio do PT

Rodrigo Pacheco recebeu uma declaração pública de “simpatia” de Bolsonaro e teve integrantes do governo articulando em seu favor, mas recebeu também o suporte da oposição. Sua liderança ficou tão folgada em relação a Simone Tebet (MDB-MS) que o partido dela decidiu na semana passada liberar a bancada para negociar cargos na Mesa Diretora.

Encabeçada pelo atual presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), a estratégia de campanha de Pacheco foi se antecipar aos movimentos dos adversários, tendo conseguido apoio do PSD e PT antes mesmo dos emedebistas decidirem seu candidato. Após Simone entrar na disputa, partidos que eram contados como aliados dela racharam, como Podemos e PSDB.

Com o embarque do MDB na campanha, mesmo que sem apoio oficial, Pacheco também passou os últimos dias buscando uma forma de acomodar a legenda na Mesa. O principal entrave é o PSD quer a mesma vaga desejada pelo MDB, a vice.

Sem respaldo nem em seu partido, Simone passou a direcionar a campanha para fora do Senado, em encontros com empresários e figuras políticas de fora da Casa, como Marta Suplicy.

Ontem, os dois mantiveram a postura da campanha. Pacheco esteve em um almoço com outros 30 parlamentares promovido pelo senador Weverton Rocha (MA), líder do oposicionista PDT. Simone, por sua vez, passou o tempo com a família, mais reclusa, e conversou com o ex-senador Pedro Simon (RS) por telefone. 


O Estado de S. Paulo: Maia ameaça com impeachment de Bolsonaro; PSDB e Solidariedade devem rifar Baleia

Ao ser informado pelo presidente do DEM, ACM Neto, de que a maioria dos deputados do partido apoiaria a candidatura de Lira para o comando da Câmara, Maia cogitou até mesmo deixar a sigla

Vera Rosa, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA - A decisão da Executiva do DEM de desembarcar do bloco de apoio à candidatura do deputado Baleia Rossi (MDB-SP) e a disposição do PSDB e do Solidariedade de seguir o mesmo caminho levaram o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), a ameaçar aceitar um pedido de impeachment contra o presidente Jair Bolsonaro. A eleição que vai escolher a nova cúpula da Câmara e do Senado está marcada para esta segunda-feira, 1.º.

Ao ser informado pelo presidente do DEM, ACM Neto, na noite deste domingo, 31, de que a maioria dos deputados do partido apoiaria a candidatura de Arthur Lira (Progressistas-AL) para o comando da Câmara, e não Baleia, Maia ficou irritado. O presidente da Câmara ameaçou até mesmo deixar o DEM. A reunião ocorreu na casa dele, onde  também  estavam líderes e dirigentes de partidos de oposição, como o PT, o PC do B e o PSB, além do próprio MDB.

Maia encerra o mandato à frente da Câmara nesta segunda-feira, 1º, e, segundo apurou o Estadão, afirmou que, se o DEM lhe impusesse uma derrota, poderia, sim, sair do partido e  autorizar um dos 59 pedidos de afastamento de Bolsonaro. Integrantes da oposição que estavam na reunião apoiaram o presidente da Câmara e chegaram a dizer que ele deveria aceitar até mais de um pedido contra Bolsonaro.

ACM Neto passou na casa de Maia antes da reunião da Executiva do DEM justamente para informar que, dos 31 deputados da legenda, mais da metade apoiava Lira. Pelos cálculos da ala dissidente, 22 integrantes da bancada estão com Lira, que é líder do Centrão.

O PSDB e o Solidariedade têm reuniões marcadas para esta segunda-feira, 1º e, diante da fragilidade da candidatura de Baleia, também ameaçam rifá-lo. “Ou mostramos força e independência apoiando claramente o Baleia ou adeus às expectativas de sermos capazes de obter alianças e ganhar as próximas eleições. Se há algo que ainda marca o PSDB é a confiança que ele é capaz de manter e expressar. Quem segue a vida política estará olhando, que ninguém se iluda", disse recentemente o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso em um grupo de WhatsApp da bancada tucana.

O ex-senador José Aníbal foi na mesma linha. “O PSDB assumiu compromisso com Baleia. Espero que cumpra. De outro modo, é adesão ao genocida”, afirmou Aníbal neste domingo, 31.

Maia lançou a candidatura de Baleia à sua sucessão em dezembro, com o respaldo de uma frente ampla, que incluiu  partidos de esquerda. Na ocasião, o líder do DEM, Efraim Filho (PB), assinou um documento no qual o partido avalizava o nome do MDB.

Diante do racha, ACM Neto atuou para amenizar a crise. Saiu da casa de Maia e foi direto para a sede do partido. Conduziu a reunião da Executiva pedindo para que o DEM ficasse oficialmente neutro. Além das ameaças de Maia, partidos de oposição afirmaram que, com o abandono de Baleia por parte do DEM, também a esquerda poderia desembarcar da candidatura de Rodrigo Pacheco (DEM-MG) ao comando do Senado. Até agora, Pacheco é o favorito para a cadeira de Davi Alcolumbre (DEM-AP).

O candidato do Progressistas chegou a anunciar em sua agenda que, nesta segunda, 1.º, receberia o apoio do DEM, às 9h30. A operação, porém, foi abortada por ACM Neto, que pediu aos correligionários para não humilharem Maia.

Nos bastidores, deputados comentavam neste domingo que o racha pode afastar o apresentador Luciano Huck do DEM. Huck planeja entrar na política para disputar a eleição para a Presidência, em 2022, e tem flertado tanto com o DEM como com o  Cidadania ao defender uma frente de centro para derrotar Bolsonaro.

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Histórico político das relações entre o Planalto e os presidentes das Casas oscila entre lealdade e traição

O empenho de Jair Bolsonaro nas eleições do Congresso nesta segunda (1º) é uma jogada de sobrevivência. Depois de ter usado o enfrentamento como arma política, o presidente mudou os cálculos: quer aliados nas presidências da Câmara e do Senado para construir uma agenda e permanecer no poder.

A história mostra que a relação entre os chefes do Congresso e o Palácio do Planalto pode mudar os rumos de um governo. O poder desses parlamentares determina se a plataforma de um presidente será implantada ou até se ele deve ser derrubado.

Dilma Rousseff (PT) soube que ter um rival no comando da Câmara pode ser fatal. Luiz Inácio Lula da Silva (PT) se protegeu graças à escolha de um nome para esse mesmo posto. E Fernando Collor (PRN) percebeu que até a indiferença dos chefes do Congresso pode ser um problema nas horas de fragilidade.

Todos eles, além de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e Michel Temer (MDB), também souberam que a fluidez política desses personagens define o tamanho do poder de um presidente da República.



COLLOR E IBSEN (1992)

Um presidente sem força no Congresso pode ter que governar no escuro, principalmente em tempos de crise. Foi o caso de Fernando Collor no caminho para o impeachment.

Na eleição para o comando da Câmara, em 1991, Collor não teve influência. Eleito pelo minúsculo PRN, ele só observou a escolha de Ibsen Pinheiro (MDB).

"O Collor não tinha condições de se intrometer", conta Renan Calheiros (MDB), que foi líder do governo no início do mandato.

A relação era protocolar, e a distância se tornou rivalidade nas semanas que antecederam a abertura do impeachment, em setembro de 1992. O presidente da Câmara frustrou o governo ao definir que aquela votação seria aberta --e não secreta.

"Não houve nenhuma tentativa de demover o Ibsen", diz Jorge Bornhausen, ministro de Collor.

Num pronunciamento na TV no fim de agosto, Collor atacou o Congresso e disse que os parlamentares não aprovavam os projetos do governo. O presidente da Câmara já concordava com o processo, mas os atritos o tornaram um entusiasta público.

Ibsen montou um palanque na Câmara e recebeu pessoalmente o pedido de impeachment apresentado no dia 1º de setembro. A Câmara aprovou o afastamento, e Collor renunciou antes do fim do processo no Senado.

FHC E ACM (2001)

Um presidente não dorme tranquilo nem quando há partidos aliados na cúpula do Congresso. Fernando Henrique Cardoso (PSDB) tinha uma coalizão larga, mas viveu uma relação terrível com Antônio Carlos Magalhães (PFL), que comandou o Senado (1997-2001).

O vínculo FHC-ACM refletiu o princípio político de que as ligações do poder variam de acordo com interesses de ocasião, como cargos e outras ferramentas de influência.

O PFL fazia parte da coalizão que elegeu o tucano. Quando estava satisfeito, ACM trabalhava a favor: ele foi personagem fundamental, por exemplo, nas articulações do Planalto para impedir a quebra de sigilo bancário do ex-chefe de campanha de FHC, numa investigação tocada pelo Congresso.

ACM também criou problemas para o governo como presidente do Senado. Usou o poder de pautar projetos para retardar a votação de medidas provisórias e acelerar a derrubada de vetos do Planalto. Era também um contumaz fabricante de dossiês que atingiam o governo.

"Antônio Carlos levou a vida inteira chantageando", escreveu FHC sobre o então senador, em seus diários. "Tem uma inveja infinita de mim e gostaria mesmo é de ser presidente."

LULA E ALDO (2005)

A disputa pela presidência da Câmara em setembro de 2005, na esteira do mensalão, é um exemplo acabado de como as escolhas no Congresso podem determinar os rumos de um governo.

"Aquela disputa tinha nível dez de importância", afirma Jaques Wagner (PT), que era o articulador político de Lula. "Havia um movimento para emparedar. Queriam infernizar a vida, fazer CPI, interditar o governo."
Naquela época, a oposição aproveitou a crise e deu força a José Thomaz Nonô (PFL) para chefiar a Câmara. Fragilizado, o governo Lula (PT) desarmou candidaturas do partido e apoiou Aldo Rebelo (PC do B).

"A ideia corrente era que a vitória da oposição significaria a abertura do processo de impedimento", diz Aldo. "Havia uma radicalização, era um ambiente tumultuado."

O Planalto temeu perder a disputa e ficar na mão de rivais. Nonô e Aldo empataram em 182 votos no primeiro turno. No segundo, o deputado do PC do B teve uma vitória apertada: 258 a 243.

"Lula se salvou de qualquer tentativa de impeachment porque elegeu o Aldo Rebelo", avalia Jorge Bornhausen, que em 2005 era senador pelo PFL e crítico do então presidente.

DILMA E CUNHA (2015)

O destino de Dilma Rousseff (PT) foi traçado exatamente a partir de uma disputa pela presidência da Câmara. A eleição de 2015 mostrou como as coalizões políticas podem ser volúveis.

No ano anterior, o MDB e o centrão haviam feito parte da chapa que reconduziu a petista ao Planalto. Um mês depois da posse, o governo rivalizava com esse mesmo grupo pelo comando da Câmara.

Eduardo Cunha (PMDB) reuniu o apoio do chamado baixo clero e de caciques de partidos que faziam parte da base de Dilma. Assim, ele derrotou o candidato do governo, Arlindo Chinaglia (PT).

"Aquela disputa foi um erro básico. Deveríamos ter construído uma candidatura alternativa", diz o deputado José Guimarães (PT), que se tornou líder do governo dias depois.

Primeiro, Cunha ativou o que os petistas chamavam de pauta-bomba, projetos de lei que aumentavam os gastos de um governo que tinha cofres vazios. "Ele começou o desgaste com a pauta-bomba, com o impeachment sempre acenando na gaveta", avalia Jaques Wagner, que foi ministro de Dilma.

O presidente da Câmara usou a caneta e autorizou o processo de afastamento da presidente no fim daquele ano. Foi uma retaliação ao PT, que decidiu votar a favor do prosseguimento da cassação do mandato de Cunha no Conselho de Ética da Câmara.

TEMER E MAIA (2017)

Michel Temer (PMDB) viveu uma relação peculiar com a Câmara. Os deputados salvaram seu governo, mas o presidente se enfraqueceu e viveu num parlamentarismo branco, em que o Congresso passou a dar as cartas.

A delação de executivos da JBS jogou tensão na praça dos Três Poderes. Se a Câmara desse aval à denúncia feita pela Procuradoria-Geral da República contra o presidente por corrupção, o emedebista seria afastado, e o poder cairia nas mãos de Rodrigo Maia (DEM) --chefe da Casa e nome seguinte na linha sucessória.

Maia não era adversário do Planalto, mas os canais entre os dois eram preenchidos de intrigas. Na noite em que a delação foi divulgada, ministros do governo foram à casa do presidente da Câmara para discutir a saída de Temer.

Em momentos delicados, a cúpula do Congresso se torna um polo de atração das disputas de poder. Maia, segundo seus aliados, poderia ter convencido os deputados a afastarem Temer do cargo, mas não se moveu.

"Essa relação tem muito a ver com temperança e personalidade. Nós não enxergávamos [em Maia] uma atitude que pudesse tangenciar a deslealdade", diz Antônio Imbassahy (PSDB), ministro da articulação política de Temer.


Francisco Inácio de Almeida: Uma homenagem merecida a Marcello Cerqueira

Na última segunda-feira, dia 28, na Livraria Travessa do Shopping Leblon, o Rio de Janeiro vivenciou um inesquecível evento que reuniu cerca de 300 pessoas. Foi a noite de lançamento do livro Fragmentos de Vida (Memória), de autoria do advogado, político, poeta e escritor Marcelo Cerqueira, obra que contou com a colaboração de Gustavo Barbosa, tendo em vista ele ter sido vítima, no ano passado, de uma violenta queda que lhe trouxe problemas físicos graves.

Por Francisco Inácio de Almeida 

A noitada reuniu figuras expressivas do país, com destaque para o senador José Serra, o ex-senador Pedro Simon, o deputado federal Roberto Freire; o ex-ministro Nelson Jobim e os ex-ministros do STF, Carlos Aires Brito e Carlos Veloso; os cineastas Cacá Diegues, Silvio Tendler e Zelito Viana, e a atriz Itala Nandi; as cientistas políticas Anita Leocádia Prestes, Cleia Schiavo e Marly Viana; o historiador Ivan Alves Filho; o médico Jacob Kligerman; assim como representantes da Academia Brasileira de Letras (como os jornalistas Merval Pereira e Zuenir Ventura), da Associação Brasileira de Imprensa (os jornalistas Ancelmo Goes e Sebastião Nery), do Clube de Engenharia (Sergio Augusto de Moraes) e da Ordem dos Advogados do Brasil.

O homenageado e autor da magnífica obra lançada tem rica trajetória na vida brasileira, não apenas como ativista político desde 1959, quando entrou para o Curso de Ciências Jurídicas e Sociais na Faculdade Nacional de Direito, da Universidade do Brasil, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Nesta época, já atuava no Partido Comunista Brasileiro (PCB). Ele foi um dos fundadores do Centro Popular de Cultura (CPC) e da revista Movimento, da União Nacional dos Estudantes. Trabalhou como repórter no Jornal Metropolitano, encarte do Diário de Notícias, com circulação aos domingos. Em 1963, foi eleito vice-presidente da União Nacional dos Estudantes, na chapa de José Serra, que ocuparia a presidência da UNE. Com o golpe de 1964, diante da perseguição dos militares, foi obrigado a deixar o país, com destino inicial na Bolívia, de lá seguindo para o Chile e depois para a antiga Checoslováquia. Retornou para o Brasil, em 1965, e viveu por um período em São Paulo, na clandestinidade. Meses depois, decidiu voltar para o Rio de Janeiro com a intenção de se legalizar e terminar os estudos. Após alguns dias, reassumiu sua identidade e foi concluir seu Curso de Direito.

Ditadura
Como profissional da advocacia, foi um dos que mais defendeu presos políticos naquele difícil período (entre os anos de 1968 e 1978, mais de mil pessoas acusadas com base na Lei de Segurança Nacional (LSN) e em casos de “desaparecidos políticos” tiveram sua defesa). Em 1969, foi novamente preso, num quartel da Marinha, devido à sua insistente militância contra a ditadura. Em 1976, distribuiu uma carta à imprensa para denunciar as torturas sofridas por seu ex-colega da UNE, Aldo Arantes, detido em São Paulo sob a acusação de ser dirigente do Partido Comunista do Brasil (PCdoB). A carta tornou-se um marco histórico por ser a primeira denúncia formal de tortura publicada em veículos de comunicação, em pleno período de arbítrio.

Em 1978, instigado por seus companheiros de luta, candidatou-se e se elegeu deputado federal, pela legenda do Movimento Democrático Brasileiro, cumprindo papel relevante na denúncia dos crimes contra a ditadura, tanto quanto na articulação política, via Frente Ampla, que nos conduziu a isolar e derrotar o governo civil-militar.

No início da década de 1980, uma série de sequestros e atentados à bomba afrontam a abertura política. Marcelo sofreu dois atentados: uma explosão destruiu seu carro e logo depois uma bomba explodiu em sua residência. Em depoimento à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), que investigava essa escalada do terrorismo, ele declarou sua convicção de que os crimes eram praticados pela ultradireita, com o objetivo de criar instabilidade aos que lutavam pela democratização do país. Com o término do mandato, em janeiro de 1983, voltou à advocacia e começou a lecionar no Curso de Direito, da Faculdade Cândido Mendes (UCAM).

No início do governo de José Sarney, em 1985, foi nomeado consultor jurídico do Ministério da Justiça, na gestão de Fernando Lira. Nesse mesmo ano, lançou sua candidatura à prefeitura do Rio de Janeiro, em chapa que tinha como vice o jornalista João Saldanha. Não se elegeu, mas deixou sua marca de afirmar valores e propor caminhos novos para a Cidade Maravilhosa.

Voltou a advogar e, em 1989, acompanhou a auditoria militar que indiciou 12 oficiais da Marinha por responsabilidade no naufragio do Bateau Mouche IV, acidente em que morreram 55 pessoas na noite de Ano Novo de 1989. Auxiliou a promotoria do caso também na justiça comum e no Tribunal Marítimo, como advogado de acusação, representando familiares de vítimas. Entre 1992 e 1993, ocupou o cargo de procurador-geral do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e, em seguida, assumiu a Procuradoria-Geral do Conselho Administrativo de Direito Econômico (Cade), cargo que ocupou até o fim do governo Itamar Franco (1992-1994).

IAB
Em abril de 2000, foi empossado na presidência do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) e até recentemente ocupou a Procuradoria-Geral da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj). Já em abril de 2010, lançou sua pré-candidatura ao Senado, pelo PPS do Rio de Janeiro, na chapa de José Serra para a Presidência da República, sem conseguir, contudo, se eleger.

Homem simples, fraterno, revelou-se também como um intelectual singular, não apenas como jurista e político, mas também como poeta ou cronista, e como escritor de nomeada. É autor sozinho e em trabalhos coletivos de mais de trinta obras, que fizeram sucesso no país e até no exterior. Dentre suas obras se destacam Legem non habitat necessitas – O risco do jurídico, Comissões parlamentares de inquérito – alcance e extensão dos poderes das CPI’s, Cartas constitucionais, império, República e autoritarismo, Controle do Judiciário, doutrina e controvérsia, A Constituição na história, origem e reforma, Quem não sabe rezar xinga a Deus, Reforma constitucional com quorum reduzido é golpe de Estado, Bateau Mouche: o naufrágio do processo, Chacina na serra, Em defesa dos presos políticos: por uma anistia ampla, geral e irrestrita, Recado ao tempo, Papéis avulsos, As cidades de Deus – violência, criminalidade & cidadania, Sistema de governo: presidencialismo ou parlamentarismo, Cidadania partida, O deus ferido, O sapato de Humphrey Bogart, Várias são as formas de luta. A Defesa da Constituição é uma delas, A Constituição: controles e controle externo do Poder Judiciário, Vinte anos não é nada, Marques Rebelo: a chave do romance e Onde morrem as estrelas.

* Francisco Inácio de Almeida é membro da Executiva Nacional do PPS e editor da revista Política Democrática