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Maria Cristina Fernandes: Uma eleição sem povo que define rumos

Disputa no Congresso definirá futuro do governo Bolsonaro

O comando da Câmara e do Senado será definido numa eleição que, apesar de não ser determinada pela vida real dos brasileiros, moldará, em grande parte, seu futuro. Não se trata de um confronto entre esquerda e direita nem de governo versus oposição, mas de uma disputa entre partidos por espaços dentro e fora do Congresso.

É claro que os mantos com os quais os candidatos se apresentam têm mais purpurina. Na Câmara, o líder do PP, o deputado Arthur Lira (AL) se mostra como o candidato capaz de substituir o atual ocupante do cargo como o fiador da responsabilidade fiscal. É nesta condição que gostaria de manter a Câmara como o palco de articulações para 2022, apesar do fiapo jurídico que sustenta seu mandato.

Como se considera herdeiro natural do posto de fiador, o deputado Baleia Rossi (MDB-SP) se permite falar na continuidade do auxílio emergencial. Somado à menção ao impeachment pelo presidente da Câmara e principal apoiador de Baleia, Rodrigo Maia (DEM-RJ), está formatado o discurso com o qual a chapa espera atrair os 130 votos da esquerda na Casa. Visto que nem a continuidade do auxílio nem o impeachment prosperaram com Maia, o manto dourado se reveste de tardio oportunismo.

Como na tessitura desses mantos vale tudo, o avanço do projeto que pretende dar autonomia às PMs em detrimento da autoridade dos governadores é propagado como a decorrência natural da opção do presidente Jair Bolsonaro por Lira. Com Lira e sem auxílio emergencial, o presidente, que também já cuidou de liberalizar compra de armas e munições, estaria reforçando sua retaguarda contra o caos social decorrente da miséria.

Depois da invasão do Capitólio não dá para duvidar de mais nada na província, mas a hipótese despreza a capacidade de Lira perceber que, mais fácil do que lidar com os danos do caos para sua carreira, seria convencer Bolsonaro a dar um cavalo de pau na Economia. O presidente chegou a dizer que a culpa da não renovação do auxílio é do Congresso. E muita gente acreditou.

No preto e branco, Lira joga para ganhar votos de partidos como o PT, com a ideia de que foi ele que negociou o ‘petrolão’ no Congresso. Seria, portanto, um parceiro mais confiável do que o MDB de Baleia que articulou a posse de Michel Temer no Palácio do Planalto. Joga também para dividir o PSB a partir das alianças firmadas nas eleições municipais.

Junto aos demais partidos, Lira, que enfrenta insatisfações de emendas não empenhadas até 31 de dezembro, ainda se vende como mais capaz de arrancar benesses governamentais.

Baleia tem buscado cativar público para a ideia de que o STF não freia Bolsonaro sozinho e, por isso, a aliança da Corte com a Câmara tem que continuar, sob seu comando. Sobre Lira, Baleia ainda tem a vantagem de poder se mostrar mais independente. Não do governo, onde sua chapa tem mais cargos do que aquela do adversário, mas de Bolsonaro. Temer, seu padrinho político, tem rechaçado, por exemplo, sondagens para o Itamaraty.

A importância de Lira para Bolsonaro, no entanto, não se resume a uma experiência maior que a de Baleia. A própria fragilidade jurídica do líder do PP pode ser um trunfo para o presidente. Lira foi condenado pelo mesmo crime (“rachadinha”) pelo qual o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) é acusado.

O deputado obteve uma anulação de provas na primeira instância no dia em que o processo se tornou público, mas enfrenta um recurso do Ministério Público de Alagoas contra a absolvição. Bolsonaro pode ter sido convencido, pelo próprio PP, de que um presidente da Câmara nas cordas seria o melhor aliado contra um impeachment. A ideia encontra guarida na Procuradoria Geral da República, mas não necessariamente no STF.

Em 2011 a Câmara também elegeu um presidente nas cordas, o ex-deputado Eduardo Cunha, cassado depois de derrubar a presidente da República. A diferença é que Dilma Rousseff caiu por ter tentado conter o mesmo Centrão com o qual Bolsonaro casou em comunhão total de bens.

A resistência de Lira a uma votação aberta, proposta por Maia, sugere que o candidato do PP depende mais da rebeldia de deputados em relação à direção partidária do que Baleia. Se os líderes dos partidos que anunciaram apoio a um e outro forem capazes de garantir seus votos, Baleia está eleito, mas a matemática da disputa é outra. Na contagem da Eurasia, é Lira quem está eleito por uma margem que vai de 263 a 332 votos, amealhados até no DEM, MDB, PT e PCdoB.

Ex-deputado que assistiu a 22 disputas pela Câmara, nos 11 mandatos que exerceu, Miro Teixeira vê a eleição montada sobre duas pilastras, as traições de última hora e a flutuação de votos dos demais candidatos, hoje ainda incipiente.

É o candidato que, na véspera da eleição, se sentir mais inseguro em relação à liquidação da fatura do primeiro turno, diz, que tratará de incentivar a votação nos demais: o melhor anfitrião do leilão à pururuca em Brasília, Fábio Ramalho (MDB-MG), e o autor do projeto que turbina as PMs, Capitão Augusto (PL-SP).

No Senado, o lançamento da senadora Simone Tebet (MDB-MS) mostrou o acerto do presidente Davi Alcolumbre em pinçar o senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG). Presidente da CCJ e uma das senadoras mais respeitadas da Casa, Simone seria favorita se enfrentasse uma réplica de Lira no Senado, mas terá dificuldades contra Pacheco, senador sem prontuário policial.

O lançamento de Simone, num momento em que Baleia já está consolidado, é vista como uma manobra do senador Eduardo Braga (MDB-AM) para tirá-la da disputa pela liderança do partido, cargo que pretende manter. O MDB dificilmente seria capaz de emplacar a Presidência das duas Casas como fez o DEM. A disputa, porém, é imponderável. Nem Alcolumbre era o favorito em 2019, nem Severino Cavalcanti aparecia com chances na Câmara em 2015. O primeiro se elegeu porque o senador Renan Calheiros (MDB-AL) menosprezou a rejeição, tirou Simone do páreo e insistiu na derrota e o segundo porque o PT exportou a luta interna do partido para suas alianças.

Parece tudo muito entediante num país marcado pela emoção da perda diária de mais de mil vidas pela covid-19. É só depois dessa eleição, no entanto, que vão ficar claras as saídas para o país ou a ausência delas.


Sergio Lamucci: Problemas à vista na relação com os EUA

Governo brasileiro não fez nenhum gesto para se aproximar de Biden

A menos de dez dias da posse de Joe Biden como presidente dos EUA, o governo de Jair Bolsonaro segue distante da nova administração americana. Não construiu pontes com o novo líder americano, fazendo questão de reafirmar os seus laços com Donald Trump, que se recusa a reconhecer a derrota nas eleições e termina o governo apostando ainda mais na divisão do país, ao ter incitado a invasão do Congresso.

Essas atitudes de Bolsonaro vão dificultar a relação do Brasil com os EUA, por mais que Biden seja visto como um político pragmático. O Brasil ficará ainda mais isolado no cenário externo, enfrentando problemas especialmente por causa da atitude do governo Bolsonaro em relação ao ambiente, que será uma das prioridades do novo presidente americano.

Na semana passada, Bolsonaro voltou a questionar o processo eleitoral dos EUA, afirmando que a causa da crise americana é “basicamente a falta de confiança no voto”. Segundo ele, “lá, o pessoal votou e potencializaram o voto pelos correios por causa da tal da pandemia, e houve gente lá que votou três, quatro vezes, mortos que votaram. Foi uma festa lá. Ninguém pode negar isso daí.” A apoiadores, o presidente disse ainda o Brasil terá “um problema maior que os EUA” em 2022, caso não haja uma mudança no sistema eleitoral por aqui, com o voto impresso.

Bolsonaro usa o exemplo do pleito americano para mais uma vez colocar em xeque a credibilidade das eleições brasileiras, indicando que poderá repetir a estratégia de Trump no ano que vem, se o resultado for desfavorável a ele. O presidente já disse várias vezes que houve fraudes nas eleições de 2018, em que venceu Fernando Haddad (PT) com grande folga. Com essa estratégia, Bolsonaro subordina os interesses do país aos seus interesses pessoais.

Por mais que seja próximo de Trump, já passou da hora de Bolsonaro buscar uma aproximação com Biden. O brasileiro só foi cumprimentar o presidente eleito americano 38 dias após as eleições, sendo o último líder dos países que integram o G-20 a reconhecer a vitória do candidato democrata.

Em entrevista ao Valor em outubro, Thomas Shannon, ex-embaixador americano no Brasil entre 2010 e 2013, destacava que “a agenda do Partido Democrata não é favorável ao presidente Bolsonaro”, citando temas ambientais, por exemplo, embora tenha afirmado que Biden entende o valor estratégico do Brasil para os EUA.

Ex-subscretário de Estado dos EUA para Assuntos Políticos, Shannon conhece profundamente a política do Partido Democrata para a América Latina. Já em artigo para a revista “Crusoé”, publicado em 1º de janeiro, Shannon deixou claro o impacto que podem ter para as relações entre Brasil e EUA as declarações de Bolsonaro sobre o resultado das eleições americanas - e isso antes de o brasileiro repetir, na semana passada, as insinuações de fraude no pleito americano.

Shannon escreve que Biden “conhece a importância do Brasil e tem um conhecimento bem desenvolvido da trajetória histórica de nossa cooperação”, sendo ainda um político que “verá a relação com o Brasil não em termos pessoais, mas em termos dos interesses e valores que ligam nossas duas nações”.

Depois de apontar essas características de Biden, Shannon afirma que, “dito isso, o governo Bolsonaro tem feito quase todo o possível para complicar a transição na relação bilateral”, lembrando que o presidente e membros de sua administração expressaram preferência por Trump. Ele destaca ainda que Bolsonaro criticou Biden após comentários do então candidato democrata durante um debate, pedindo uma ação mais orquestrada do Brasil sobre o desmatamento”. Na ocasião, o americano disse que pretendia reunir outros países para garantir US$ 20 bilhões para preservar a Amazônia - caso contrário, o Brasil enfrentaria “consequências econômicas significativas”.

Segundo Shannon, “essa gafe, no entanto, perde relevância quando é comparada com a disposição do presidente Bolsonaro de repetir as alegações infundadas de fraude” feitas por Trump sobre as eleições dos EUA. “A preferência partidária baseada na amizade pessoal é perdoável, assim como a defesa da soberania nacional. No entanto, atacar a integridade e a credibilidade do processo eleitoral americano é um ataque à legitimidade da democracia americana e à Presidência de Joe Biden. É algo que não será facilmente perdoado e não será esquecido.”

Nesse cenário, “o tom da parceria única entre Brasil e Estados Unidos agora depende em grande parte do Brasil”. Pelo que se vê até o momento, porém, o governo Bolsonaro não está disposto a fazer gestos de boa vontade para a nova administração americana. Não foi apenas o presidente brasileiro que questionou as eleições americanas. No Twitter, o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, disse na semana passada que “há que reconhecer que grande parte do povo americano se sente agredida e traída por sua classe política e desconfia do processo eleitoral”. O líder da diplomacia brasileira também levanta dúvidas sobre o pleito que levou à vitória do novo presidente americano.

Nessa toada, o Brasil não deverá ter vida fácil com o governo de Biden. Na semana passada, o novo presidente indicou Juan Gonzalez para o cargo de diretor-sênior para o Hemisfério Ocidental do Conselho de Segurança Nacional. Em outubro, Gonzalez afirmou que “qualquer um, no Brasil ou em outro lugar, que pensa que pode avançar numa relação ambiciosa com os EUA enquanto ignora assuntos importantes como mudança climática, democracia e direitos humanos claramente não está ouvindo Joe Biden em sua campanha”.

O foco do americano em políticas ambientais, atuando possivelmente em conjunto com a União Europeia (UE), colocará mais pressão sobre o Brasil nesse campo. Isso poderá afetar as exportações brasileiras, assim como atrapalhar o fluxo de investimentos estrangeiros para o país. O governo Bolsonaro, porém, não parece preocupado em ter bom um relacionamento com Biden, como já não tem com boa parte dos países da UE e com a China. Sem aliados importantes no cenário internacional, o Brasil caminha em 2021 para ficar ainda mais isolado.


Fernando Abrucio: O que está em jogo é o silêncio da Câmara

 Eleição para a Mesa da Câmara definirá se teremos efetiva separação entre os Poderes ou cooptação de um dos pilares da democracia pelo bolsonarismo

Dois mil e vinte e um já começou, mas o ano político se inicia em 1º de fevereiro, quando forem eleitos os presidentes da Câmara e do Senado. Ambas as Casas são muito importantes para o equilíbrio democrático do país, realizando a dupla tarefa de tomar as decisões últimas sobre as legislações nacionais e de gerar contrapesos ao Executivo. Mas a disputa entre os deputados terá um efeito mais forte no cenário político porque é na Câmara se reside a esperança tanto do presidente Bolsonaro como daqueles que desejam um Congresso mais independente. O resultado desse pleito definirá se haverá uma efetiva separação de Poderes ou a cooptação de um dos sustentáculos da democracia pelo Palácio do Planalto.

Cinco fatores explicam a maior relevância política da eleição para presidente da Câmara. A primeira é que o Senado, mesmo que eleja alguém razoavelmente alinhado ao Executivo, tem uma configuração que lhe garante maior independência. Algumas razões estruturais explicam esse comportamento senatorial. Os senadores, em geral, pretendem representar o conjunto de seus Estados, o que lhes leva a ter maior parcimônia decisória, tornando-os menos vinculados a uma temática ou à pressão de um único grupo de interesse.

Além disso, são menos suscetíveis ao fisiologismo do varejo que os deputados, porque normalmente têm uma posição política mais forte, advinda de sua trajetória com experiência em vários postos públicos - alguns são ex-governadores, foram ministros e até presidente da República -, o que se soma à aquisição de um mandato maior, de oito anos.

Há, ademais, questões conjunturais que afetam a configuração política do Senado. Se forem somados os integrantes o grupo intitulado Muda Senado com os membros dos partidos mais de centro-esquerda, chega-se a um número de cerca de 30 senadores, ou um pouco mais, contingente capaz de evitar qualquer agenda mais extremista do presidente Bolsonaro. Basta lembrar o caso do projeto de regulamentação do Fundeb que foi aprovado inicialmente pela Câmara, cujo objetivo era direcionar recursos da educação pública para igrejas, e que em apenas um dia foi rechaçado pelos senadores. Além desse episódio, a rejeição da indicação de um embaixador muito ligado ao ministro da Relações Exteriores, Ernesto Araújo, o mais ideológico do governo, realçou a independência da Casa.

Em resumo, no Senado não haverá espaço para a agenda populista de extrema-direita do bolsonarismo-raiz, bem como há um sentimento de autoproteção institucional mais forte. A Câmara é a arena legislativa onde o presidente Bolsonaro pode reduzir parte do contrapeso democrático que o Congresso Nacional deve, constitucionalmente, exercer sobre o Poder Executivo.

Desse modo, o que explica a relevância da eleição na Câmara é ela ser o ramo legislativo em que o Executivo tem mais capacidade de exercer seu poder sobre a carreira política de seus componentes. Os instrumentos de cooptação são variados: cargos, verbas, imagens junto com o presidente da República que demonstrem prestígio político, entre outros, são moedas de troca pelo apoio ao governo. Todos os deputados podem, em algum grau, ser seduzidos por esses agrados, mas há um grupo que se destaca nesta relação simbiótica: os vinculados historicamente ao chamado Centrão, nomenclatura criada ainda no período Sarney.

O Centrão não tem um tamanho único ao longo dos mandatos presidenciais, variando conforme a dança proposta pelo Executivo e de acordo com os humores da sociedade. Assim, esse grupo aceita apoiar o Executivo em troca de benesses, mas só fica fiel no relacionamento enquanto o presidente tiver popularidade suficiente para reduzir o desgaste derivado do fisiologismo desbragado. De todo modo, seu núcleo duro tem sido composto por cerca de 200 deputados, número insuficiente para aprovar uma ampla agenda legislativa, mas grande o bastante para proteger o presidente e para garantir que a agenda presidencial seja no mínimo discutida pela Câmara. É nesse time que Bolsonaro hoje se apoia, embora no passado o chamasse, pejorativamente, de “velha política”.

Para Bolsonaro, ganhar a eleição na Câmara é fortalecer o Centrão e, consequentemente, dar poder ao grupo que mais depende das benesses do Executivo para sobreviver. Eis aí, em síntese, o segundo fator que explica a relevância desta disputa pelo comando dos deputados: está em jogo se haverá uma Câmara mais ou menos subserviente ao Executivo. Negar isso é como acreditar que a Terra é plana e que as vacinas contra a Covid-19 vão transformar pessoas em jacaré.

Muitos podem retrucar dizendo que vários deputados que não apoiam Arthur Lira, o candidato oficial de Bolsonaro, têm cargos no governo, tiveram a execução acelerada de suas emendas parlamentares e votaram muitas vezes com o Executivo, em especial em agendas econômicas mais liberais, embora o presidente tenha comemorado mais a aprovação do novo Código Nacional de Trânsito do que qualquer reforma econômica. Mas há uma sutileza aqui que define o aspecto central da gestão de Rodrigo Maia na Câmara, presente agora na candidatura oposta ao bolsonarismo: o Legislativo foi ciente de sua independência, o que gerou uma postura aberta ao diálogo com a sociedade em sua pluralidade.

É isto que, como terceiro motivo, está em jogo na eleição da Câmara: a sua abertura para ouvir e levar em conta as demandas de diversos atores sociais. O grande Ulysses Guimarães, um dos principais responsáveis pela volta do Brasil à democracia, defendia que o Parlamento deveria ser uma caixa de ressonância da sociedade. Foi isso que aconteceu quando a Câmara aprovou um auxílio emergencial maior do que o proposto pelo presidente da República, ao definir ações na saúde mais condizentes com as prescrições científicas e ao defender a federação nas brigas de Bolsonaro com os governadores.

A eleição de um candidato vinculado a Bolsonaro vai ter o efeito inverso. Os cooptados pelo Executivo governarão a Câmara, de modo que, condizente com o jogo fisiológico, estarão mais preocupados em beneficiar seus currais eleitorais do que em ouvir, por exemplo, a comunidade científica ou instituições de defesa dos direitos humanos. Quando esse grupo do Centrão faz acenos ao mercado ou a outras instâncias mais gerais, trata-se de puro jogo de cena. A prova dos nove é que só receberam o apoio do Executivo, com a consequente promessa de mais cargos e verbas, porque se ganharem deixarão de fiscalizar as políticas públicas, facilitando o caminho das medidas atuais, como o Plano Nacional de Imunização, que está mais para um “Plano Nacional de Improvisação”.

Para os que se preocupam com o futuro da economia, das empresas e do emprego no Brasil, passar o comando da Câmara a “estadistas de província” é o primeiro passo para que o desgoverno reinante vigore sem contrapesos até 2022.

Uma possível vitória de Arthur Lira, na verdade, corresponde à contraposição entre a agenda bolsonarista, que ignora aspectos técnicos das políticas públicas e está mais preocupada em defender valores do que em produzir resultados, e uma agenda que possa sofrer a interferência da sociedade. Nos dois últimos anos, a propostas legislativas mais importantes foram aprovadas com pouquíssima influência positiva do Poder Executivo, inclusive a reforma da Previdência, que só foi piorada pela interferência do Palácio do Planalto, em nome da defesa de interesses corporativos. Embora o Ministério da Economia tenha enviado algumas PECs ao Congresso Nacional, a mobilização pessoal do presidente da República em torno delas é quase zero. Alguém acredita que Arthur Lira o convencerá a participar mais ativamente da mobilização da base governista em prol dessas mudanças legislativas reformistas?

É preciso deixar bem claro que o centro das preocupações legislativas de Bolsonaro está em duas questões: a discussão de projetos vinculados à defesa de valores do conservadorismo bolsonarista, como o “homeschooling” ou o porte de armas, e a autoproteção do presidente e de sua família. Todo o restante da agenda é para enganar a plateia. Isso porque Bolsonaro só pensa na eleição de 2022, por meio de uma estratégia eleitoral que evita qualquer desgaste por meio de reformas. Suas metas são barrar qualquer tentativa de impeachment ou punição aos filhos e estabelecer-se como o defensor do conservadorismo moral brasileiro.

Portanto, a importância da eleição da Câmara está, em quarto lugar, vinculada à seguinte pergunta: os deputados vão se pautar pela agenda legislativa que se combina com a estratégia eleitoral e de sobrevivência política dos Bolsonaro, ou vão se guiar por um programa de atuação autônoma que pense em como garantir que o país não afunde mais nos próximos dois anos?

Dessa pergunta deriva um último fator que realça a importância da votação entre os deputados e que deveria estar na cabeça de cada um deles na hora de sua escolha: votem pensando nos 200 mil mortos pela Covid-19, naqueles milhões que estão sem emprego, nas empresas que fecharam, na enorme desigualdade social do país. Isso será muito mais relevante para suas reeleições e para o futuro do Brasil do que seguir um presidente negacionista e isolado pelo mundo que lhes dará cargos e benesses estatais em nome do silêncio.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.


César Felício: Sinais de alerta

Ao se olhar para o futuro, é bom recordar as lições de 1984

Poucos homens públicos personificaram a elite nacional como Jorge Bornhausen. Aos 83 anos, o ex-governador de Santa Catarina, ex-presidente do PDS, partido de sustentação do regime militar, ex-ministro nos governos Sarney e Collor e dirigente máximo do PFL até o início dos anos 2000 continua frequentando círculos políticos e empresariais em São Paulo. Tenta, na medida de suas forças, lançar um alerta em relação a 2022: para se articular uma alternativa a Bolsonaro fora do espectro da esquerda, é preciso conversar sem pretensões presidenciais colocadas.

Bornhausen votou em Bolsonaro no segundo turno das eleições presidenciais de 2018, movido por sua repulsa ao PT, nada mais do que isso. Afirma que não tinha ilusão alguma. “Não podia esperar muito de alguém que fez a apologia do coronel Ustra ao votar o impeachment de Dilma Rousseff”, afirmou, se referindo ao militar que comandou o DOI-Codi paulista nos anos 70 e se envolveu em diversos episódios de tortura a presos políticos.

Ele é taxativo: o presidente da República não tem equilíbrio mental, nem capacidade e nem competência para o cargo. Suas declarações recentes sobre o processo político nos Estados Unidos e seu comportamento relacionado à covid-19 reforçaram esta impressão. O saldo administrativo lhe parece desastroso.

No entanto, nada leva a crer que Bolsonaro não conclua o mandato, mesmo com a incapacidade do governo de governar. A pandemia, que ultrapassou ontem a marca dos 200 mil mortos, conspira a favor da permanência. “Política não se faz sem reunir as pessoas”, comenta Bornhausen, referindo-se tanto às ruas quanto aos gabinetes em Brasília. O agravamento da doença constrange a mobilização dos opositores do presidente, mas não a de seus aliados.

A possível vitória do deputado Arthur Lira à presidência da Câmara poderá ter efeito análogo à de Aldo Rebelo contra José Thomaz Nonô em 2005, ocasião em que, com aquela escolha, ficou sepultada a possibilidade de um impeachment contra o presidente da República de então, Luiz Inácio Lula da Silva. “A aliança do Bolsonaro no Congresso ocorreu na prisão de seu comparsa, Fabrício Queiroz. Bolsonaro quer evitar as possibilidades de impedimento futuro e a eleição na Câmara vai ser um fator explicativo para a sociedade. Trata-se de uma união entre especialistas em rachadinha”, comenta.

Neste quadro, a maior liderança da oposição fora da esquerda, o governador de São Paulo João Doria, não tem tido respostas na opinião pública ao seu sucesso no combate à emergência na saúde. Doria tem 10,8 milhões de doses disponíveis ou para envase da vacina contra a covid. Bolsonaro, de seu lado, tem zero. Desdenha da vacina como a raposa das uvas. A impopularidade do governador tucano, contudo, é um fato.

“O momento exige romper a tradição personalista que marca o Brasil. A experiência da Aliança Democrática de 1984 poderia ser aproveitada. Ali partiu-se primeiro de um princípio, depois dos nomes”, diz, relembrando um instante em que foi protagonista.

Em 1984, no processo de sucessão indireta do então presidente João Figueiredo, a dissidência do PDS, à qual Bornhausen veio a se somar, tinha presidenciáveis fortes, como o então vice-presidente Aureliano Chaves. O PMDB, maior sigla da oposição, tinha como referência política o presidente da sigla, Ulysses Guimarães, e como referência eleitoral o governador de São Paulo, Franco Montoro. Os dois lados se uniram, contudo, para forjar a eleição do governador mineiro Tancredo Neves, o nome que mais compunha.

“O governador Doria parece aceitar a ideia de reunir agremiações em torno de um projeto, disposto a concorrer e disposto a abrir mão. O nome, pode ser Luciano Huck. Ou o governador gaúcho Eduardo Leite. Ou o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta”, comenta Bornhausen.

Ciro Gomes, que foi seu candidato a presidente em 2002, também entraria no jogo se assumir compromissos em comum com este campo. Moro não, na visão de Bornhausen, por não demonstrar apetite para a política. Ele vê um arco partidário possível para essa reedição da Aliança Democrática que abarca PSDB, MDB, DEM, Cidadania, Podemos, PSD e Republicanos. Os dois últimos, curiosamente, hoje estão muito associados ao bolsonarismo.

O fio condutor entre Donald Trump e Jair Bolsonaro não é a conduta lunática de seus adoradores, o fanatismo religioso de conveniência, o anticomunismo e a construção de narrativas mentirosas nas redes sociais, ao sabor dos ressentimentos provocados pelas transformações sociais.

O que une os dois líderes, nesse momento, é o populismo, em um dos traços mais marcantes já catalogados por esse modo de se fazer política: o anti-institucionalismo. Trata-se do apelo às massas para que sejam rompidos todos os mecanismos formais de mediação social. Nem Congresso, nem o Judiciário, nem partidos, nem entidades de classe, imprensa, nem absolutamente nada resta em pé no caminho.

De um lado estará o povo, movido pelo seu único intérprete, e também o impulsionando: o formidável demagogo, que incorpora em si o sentimento legítimo da nação, que é o que emana das ruas. Do outro lado, estão os inimigos. Não são adversários, são inimigos. São as instituições, o establishment, os que não carregam a pátria no coração, os que não pertencem, os que não são.

Parece fascismo? Parece. Mas é populismo. Ao arengar as massas, antes da invasão do Capitólio, Trump se desnudou de maneira didática. Não é razoável pensar que ele tencionasse impedir a posse de Biden com o desvario de anteontem. A mensagem é para 2024. Será acima das instituições que tentará se manter no jogo. “Trump se enfraquece dentro do Partido Republicano, mas não como movimento. Neste sentido, pode ser que se reorganize fora do partido”, comentou Carlos Poggio, professor de relações internacionais da PUC-SP.

Desde os quartéis, Bolsonaro escarneceu da autoridade, jogou para a plateia e estabeleceu divisões irreconciliáveis. Poggio frisa que Bolsonaro foi o único líder a bancar a narrativa de Trump de que houve fraude na eleição dos EUA. “Não há outro sentido nessa postura que não seja o de fortalecer uma posição doméstica”, disse. Bolsonaro há tempos desacredita o processo democrático, inclusive a própria eleição que venceu. A literatura sugere que estrondo e fúria não garantem permanência de populistas, como o exemplo de Trump sugere. Mas a institucionalidade é mais fluida no Brasil. Cabe o sinal de alerta.


Ribamar Oliveira: Cai gasto com pessoal civil; sobe com militares

Técnicos creem que gasto com pessoal tenha caído em 2020

Um fato pouco comum merece ser registrado. De janeiro a novembro do ano passado, a despesa da União com os seus servidores civis ativos foi 0,5% menor do que aquela registrada no mesmo período de 2019, em termos nominais, de acordo com dados do Tesouro Nacional. Em compensação, o gasto com os militares ativos aumentou 12%, na mesma comparação.

A expectativa na área técnica é que esse quadro tenha se mantido no período janeiro a dezembro. Os técnicos trabalham com a previsão de que a despesa da União com pessoal ativo e inativo, civil e militar, tenha caído em 2020, em termos reais (descontada a inflação), na comparação com 2019.

O efetivo controle do gasto com pessoal civil no ano passado decorreu da lei complementar 173, que proibiu a concessão de qualquer vantagem, aumento, reajuste ou adequação de remuneração a membros de Poder ou de órgão, servidores e empregados de estatais. A LC 173 proibiu também criar cargo, emprego ou função, alterar estrutura de carreira e instituir ou majorar auxílios, vantagens, bônus, abonos, verbas de representação ou benefícios de qualquer natureza.

No caso dos militares, no entanto, a situação foi diferente. O aumento das despesas no ano passado refletiu, principalmente, o impacto orçamentário decorrente da lei 13.954/2019, que reestruturou o Sistema de Proteção Social dos militares das Forças Armadas.

Na época em que o projeto de lei que trata do assunto foi encaminhado ao Congresso, o governo informou que a reestruturação traria uma economia de R$ 10,5 bilhões em dez anos, com um ganho fiscal de R$ 97,3 bilhões e com elevação das despesas em R$ 86,6 bilhões.

Não foram apenas os militares que tiveram aumentos em 2020. A União foi obrigada, por emendas constitucionais aprovadas pelo Congresso, a incorporar no seu quadro de pessoal os servidores civis e militares dos extintos territórios de Rondônia, Roraima e Amapá. Houve também a anualização do aumento remuneratório concedido aos docentes do Ministério da Educação.

As proibições previstas na LC 173 valem até 31 de dezembro de 2021. Por isso, o governo continuará mantendo controle sobre a despesa com o pessoal ativo civil durante todo este ano. Para eles, não haverá reajuste ou qualquer outro tipo de vantagem. Os militares, no entanto, continuarão tendo aumento, em decorrência da lei 13.954/2019.

Haverá também elevação da despesa com pessoal decorrente da medida provisória 971/2020, que aumentou a remuneração da polícia Militar, do Corpo de Bombeiros Militar e da Polícia Civil do Distrito e dos extintos territórios. Mesmo com todos esses aumentos, a expectativa da área técnica é de que a despesa da União com pessoal civil e militar, ativo e inativo, continue sob controle neste ano.

Outro gasto da União que surpreendeu favoravelmente em 2020 foi com benefícios previdenciários. O Orçamento do ano passado previa uma despesa de R$ 677,69 bilhões, mas ela deve ter ficado ao menos R$ 8 bilhões menor, de acordo com estimativa de técnicos ouvidos pelo Valor

Ainda não é possível saber as razões para a forte queda do gasto previdenciário em 2020. Evidentemente, a despesa caiu em decorrência das mudanças nas regras de acesso aos benefícios, previstas na reforma da Previdência. Mas, o próprio governo projetou uma economia muito pequena nos primeiros anos da reforma. Ela irá crescer ao longo dos próximos anos.

A despesa previdenciária pode ter caído também por conta da não concessão de benefícios em função da pandemia da covid 19, que provocou, no ano passado, a suspensão do atendimento presencial nos postos do INSS. O estoque de pedido de benefícios não analisados, que já era alto no fim de 2019, deve ter aumentado durante o ano passado por causa da crise sanitária.

Para este ano, o governo terá que reprogramar as despesas com benefícios previdenciários que constam da proposta orçamentária, enviada ao Congresso Nacional no fim de agosto. A principal razão é que o Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), que é utilizado para corrigir o salário mínimo e todos os benefícios previdenciários e assistenciais, ficou muito acima do imaginado.

A proposta orçamentária foi elaborada com a previsão de um INPC de 2,09% em 2020, mas o governo agora estima que o índice ficou em 5,22% - mais do que o dobro do previsto inicialmente. Isto significa que o acréscimo da despesa, em relação a este ano, também será o dobro da projetada.

Um fato surpreendente foi o aumento exponencial do chamado “empoçamento” das dotações orçamentárias no ano passado. O “empoçamento” ocorre quando o Tesouro Nacional libera o dinheiro para um determinado ministério ou órgão público e ele não consegue gastar. O dinheiro fica parado, pois o governo, na maioria dos casos, não tem liberdade para usar os recursos para pagar outras despesas.

De janeiro a novembro, o “empoçamento” estava em R$ 34,8 bilhões. Para se ter uma ideia do que isso significa, em 2019 o “empoçamento” foi de R$ 17,4 bilhões. O forte aumento decorreu, principamente, da sobra de recursos destinados ao pagamento de benefícios do Bolsa Família, de acordo com fontes ouvidas pelo Valor. As pessoas optaram pelo auxílio emergencial, em vez do Bolsa Família. E a sobra de recursos ficou parada, com o governo não podendo usá-la em outras despesas.


Bruno Carazza: Na surdina

Surpresas no fim de ano de Bolsonaro

Nos oito dias compreendidos entre a véspera do Natal e a virada do ano o Congresso Nacional está em recesso, as redações dos jornais funcionam em regime de rodízio e a população em geral, mesmo em tempos de segunda onda da pandemia, está concentrada nas festas ou em viagens de férias. Em Brasília, é a época perfeita para aprontar.

Em edição extra do “Diário Oficial da União” (DOU), publicada no dia 31 de dezembro, Bolsonaro concedeu benefícios para alguns e desalento para milhões, além de desafiar mais uma vez o Congresso Nacional.

De um lado, medidas provisórias estenderam o regime especial para reembolso de passagens pelas empresas aéreas (de 31/12/2020 para 31/10/2021) e ampliaram em mais dois anos o prazo para os cinemas se adaptarem às regras de acessibilidade para pessoas com deficiência - providências que deveriam ter sido implantadas em 2019; ou seja, antes do novo coronavírus.

Mais grave, Bolsonaro rompeu um pacto com deputados e senadores e, na surdina, determinou a manutenção da restrição de acesso ao benefício de prestação continuada (BPC) somente para idosos e pessoas com deficiência cuja família tenha renda per capita inferior a ¼ do salário-mínimo. É bom lembrar que desde o início da pandemia o Congresso trava uma queda de braço com o Palácio do Planalto tentando ampliar a cobertura do BPC para aqueles que recebem até meio salário-mínimo.

A MP nº 1.023 dá um tempo maior para Paulo Guedes encontrar recursos para uma política assistencial pós auxílio emergencial, mas aliada a dezenas de vetos à Lei de Diretrizes Orçamentárias, também anunciados nos últimos minutos de 2020, representa uma nova afronta ao Congresso.

Mas não foi só no 31 de dezembro que a Imprensa Nacional anunciou novidades. Na véspera do Natal, outra edição extra do DOU veio repleta de presentes em forma de decretos, entre eles a concessão de indulto natalino para militares condenados por crimes praticados em serviço, a criação de uma nova estatal para cuidar da navegação aérea e novas regras para a regularização fundiária em terras da União e na Amazônia.

Aproveitar períodos de baixa atenção do Congresso e da opinião pública para editar medidas impopulares não é incomum na experiência internacional. Em 1994, enquanto todos os olhos dos italianos estavam concentrados no jogo que daria ao país a chance de disputar a final da Copa do Mundo contra o Brasil, o primeiro-ministro Silvio Berlusconi editou um decreto beneficiando centenas de políticos envolvidos na Operação Mãos Limpas. Para continuar no campo futebolístico, Vladimir Putin valeu-se da abertura da Copa da Rússia, em 2018, para, numa canetada, elevar a idade mínima para aposentadoria no país.

Os exemplos acima foram citados por Milena Djourelova e Ruben Durante para justificar sua pesquisa sobre estratégia e timing de atos presidenciais. Com foco dos Estados Unidos, eles analisaram as datas e os contextos das ordens executivas (similares aos nossos decretos) emitidas pelos presidentes americanos entre 1979 e 2016, confrontando-os com dados sobre audiência de notícias na TV.

Assim como no Brasil, os ocupantes da Casa Branca são constantemente criticados por avançar sobre a competência do Congresso ao emitir normas que, sob a desculpa de regulamentar leis, acabam extrapolando e criando direitos e deveres.

A pesquisa de Djourelova e Durante revelou que as ordens executivas dos presidentes americanos têm maior probabilidade de serem emitidas quando a cobertura da mídia está concentrada em outros assuntos, que não a política. Foi o caso, por exemplo, quando Donald Trump perdoou um xerife acusado de injúria racial e baniu soldados transgêneros das Forças Armadas enquanto o país se mobilizava para enfrentar o furacão Harvey, em 2017.

Os dados também indicam que o aproveitamento estratégico da distração pública é mais frequente quando o Congresso é dominado pelo partido rival e quando a medida trata de assuntos não relacionados ao dia-a-dia da administração (como a reestruturação de órgãos ou a execução orçamentária, por exemplo) ou não vinha sendo discutida publicamente nas semanas anteriores - o famoso “efeito surpresa”.

Por aqui isso não é nenhuma novidade. Muito antes de Bolsonaro, todos os últimos presidentes brasileiros aguardaram o período entre o Natal e o réveillon para surpreender.

Sarney aumentou o capital de empresas estatais e concedeu benefícios para seus funcionários, enquanto Collor instituiu uma generosa política de preços mínimos para os usineiros do Nordeste, seu reduto eleitoral. Com o Plano Real em gestação, Itamar Franco lançou um pacotaço de aumento de impostos no último dia útil do ano, prática que foi seguida por seu sucessor Fernando Henrique quando a vaca parecia ir para o brejo no apagar das luzes de 1998.

Mas nem só de medidas amargas foram os finais de ano do governo FHC. Houve também a concessão de benefícios e subsídios para setores específicos, prática intensificada durante a gestão de Lula e Dilma com inúmeros programas de tratamento tributário especial criados ou prorrogados aos 45 minutos do segundo tempo. Sob a administração petista, aliás, também foram frequentes os aumentos salariais para diversas carreiras - sempre por medida provisória e no período entre 24 e 31 de dezembro.

Para fechar o ciclo pré-Bolsonaro, Temer inovou aproveitando as festas de fim de ano para reformular marcos regulatórios, mexendo sem aviso prévio nas regras do jogo aplicáveis aos setores de petróleo, saneamento, imigração, energia elétrica, segurança pública e ambiental.

“Dormientibus non ducurrit ius” é uma antiga regra do direito romano. A experiência brasileira com normas emitidas nos estertores do ano mostra que, quando a mídia e os cidadãos baixam a guarda, os presidentes se aproveitam para conceder benesses ou tungar os contribuintes. Depois não adianta reclamar, pois “o direito não socorre aos que dormem”.

É preciso ficar vigilante o ano todo. Lembremos disso no fim de 2021. Um bom ano a todos!

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


Pedro Cafardo: Nobres que aqui legislam não legislam como lá

A omissão do governo federal deixou na mão de prefeitos e governadores a tarefa de tentar socorrer os brasileiros sem emprego e renda a partir deste mês

Nossos nobres deputados e senadores saíram para suas merecidas férias deixando para trás a discussão do prolongamento do auxílio emergencial, necessário enquanto não passa a pandemia da covid-19. Observem que não foram colocadas aspas, na frase acima, nem em “nobres” nem em “merecidas”. Mesmo assim, talvez o leitor veja ironia no emprego desses dois adjetivos.

Seja por culpa do Executivo ou do Legislativo, deixar para depois do recesso uma discussão tão importante é, no mínimo, um desrespeito à população atingida pela crise. O auxílio emergencial, que começou em abril com R$ 600 por mês e acabou em dezembro com R$ 300, foi responsável pela relativa estabilidade do país durante a pandemia, até agora. Desculpem o catastrofismo, mas sem essa ajuda seria impossível prever o que teria ocorrido nas ruas e nos supermercados, diante do desespero e da fome.

O auxílio foi um sucesso porque reduziu a miséria e estimulou o consumo. Mas aumentou a popularidade do presidente, lamentam críticos. Dane-se a popularidade do presidente, embora ele não a mereça, porque atrapalhou e ainda atrapalha o país no combate à doença. Importante é socorrer pessoas que ficaram sem renda, seja lá qual for a consequência política dessa iniciativa.

Ao adiar sem remorsos a discussão do auxílio para 2021, prevaleceu a tese da austeridade fiscal, segundo a qual o país não tem recursos para isso. Entendem teóricos que seria uma irresponsabilidade gastar mais dinheiro com o auxílio porque estaríamos transferindo às gerações futuras o ônus do enfrentamento da crise de hoje. Seria bom perguntar a esses teóricos quais serão os reflexos nas próximas gerações se as atuais forem assoladas pela extrema pobreza.

Os gastos com o auxílio, dizem os teóricos, teriam impacto na dívida pública, porque o governo seria obrigado a fazer emissões de moeda e títulos. No meio do ano passado, esses “falcões fiscais” - expressão usada nos EUA por J. Bradford DeLong, ex-secretário adjunto do Tesouro - previam que o Brasil terminaria 2020 com a dívida interna próxima de 100% do PIB. Isso seria um desastre, porque desestimularia os investimentos estrangeiros no país. Mas a previsão falhou. A relação deve ficar abaixo de 90% do PIB, mesmo depois de o governo ter gastado mais de R$ 600 bilhões com a pandemia, sendo R$ 300 bilhões com o auxílio.

Sim, é um erro buscar no gasto público a salvação para a atual crise. Mas tampouco se pode buscá-la no corte de despesas. Trata-se de uma situação excepcionalíssima que, aqui e em qualquer outro lugar, exige decisões excepcionais. É inegável que o auxílio emergencial teve e terá, se for prorrogado, impacto positivo no consumo e na produção, o que tende a melhorar a relação dívida/PIB, preocupação-mor dos falcões. Segundo DeLong, “a lição mais importante [da atual crise] que ainda não foi absorvida é que, em uma economia profundamente deprimida, os empréstimos e gastos do governo aumentam a prosperidade de curto e longo prazo do país”. Por isso, esses gastos mais expandem a capacidade fiscal do que aumentam o peso da dívida.

A continuidade do auxílio emergencial, no Brasil, esbarraria em limitações constitucionais relativas a gastos da União e isso obrigaria o Congresso a votar a extensão do Orçamento de Guerra, que vigorou até 31 de dezembro. E daí? Que seja votada. Afinal, a ameaça de calamidade pública continua, porque os índices de infecção e morte pela covid-19 crescem de forma assustadora e a vacina, por causa de incompetências, ainda é um sonho no país. E, segundo o líder do Governo na Câmara, deputado Ricardo Barros (PP-PR), não houve “nenhuma iniciativa, de qualquer parte [antes do recesso] para que se prorrogasse ou se renovasse o Orçamento de Guerra”.

Lá no norte, porém, num dos países mais ricos do mundo, os parlamentares dos Estados Unidos fizeram a lição de casa antes do fim de ano. Aprovaram um pacote de ajuda equivalente a R$ 4,7 trilhões (US$ 900 bilhões) para o combate à pandemia. Embora tenha recursos de apenas 40% do pacote anterior, baixado no início da pandemia, o novo conjunto de medidas atende a variados setores da economia. Dá um bônus de US$ 600, que ainda pode ser aumentado para US$ 2 mil, a quem ganha até US$ 75 mil por ano; US$ 300 adicionais por semana durante 11 semanas aos desempregados; US$ 325 bilhões em empréstimos para pequenas empresas, sendo US$ 284 bilhões “perdoáveis” se o dinheiro for empregado para pagar salários, aluguéis e outros gastos primordiais; US$ 100 por semana a empreendedores individuais; US$ 69 bilhões para a distribuição de vacinas contra o coronavírus; US$ 22 bilhões para programas de testagem nos Estados; US$ 13 bilhões para assistência nutricional; US$ 7 bilhões para acesso à banda larga; US$ 45 bilhões para agências de transporte e trânsito; e US$ 25 bilhões em ajuda para aluguel.

Um pacote desse é de dar água na boca. Inclui bilhões em crédito direcionado a empresas, em especial a pequenas, apoio também suspenso aqui pelo BC desde o dia 1º. A omissão do governo federal deixou na mão de prefeitos e governadores a tarefa de tentar socorrer os brasileiros sem emprego e renda a partir deste mês.

Claro que um pacote brasileiro similar ao americano não teria tamanha dimensão. Mas a pergunta que fica no ar é: por que os americanos já têm e o Brasil ainda não tem medidas para combater os estragos sociais da segunda onda da covid-19 e iniciamos 2021 sem sequer discutir o tema nas áreas oficiais?

Para a resposta, vale pedir ajuda aos universitários, ou melhor, aos pré-universitários que vão fazer o Enem. Escolham uma das opções: a) o povo americano é, de fato, mais necessitado que o nosso e não tem como atravessar a pandemia sem ajuda do governo; b) as autoridades americanas são mais irresponsáveis do que as nossas e põem em risco as gerações futuras gastando trilhões para atender e tentar salvar a geração presente; c) os EUA podem gastar com o auxílio porque têm uma situação fiscal mais confortável do que a nossa (relação dívida/PIB é de 106% e a do Brasil, de 89%); d) nossos teóricos são mais competentes que os deles para evitar desastres fiscais; e) nossas autoridades são mais realistas; f) nenhuma das anteriores.


Cristiano Romero: Por que o Brasil não é uma nação?

Fim do auxílio é demonstração de que não há contrato social

O jornalista e escritor Nelson Rodrigues escreveu que o Fla-Flu, o clássico dos clássicos, começou 40 minutos antes do nada. A hipérbole rodrigueana, usada para definir o caráter épico da rivalidade entre dois times de futebol, acabou sendo incorporada como síntese do antagonismo de ideias que caracteriza o debate dos problemas nacionais. Se a discussão de um tema relevante vira um Fla-Flu, é porque não há racionalidade, ou melhor, honestidade intelectual de uma ou das duas partes, uma forma de impedir mudanças que reduzam ou eliminem seus privilégios.

Numa sociedade profundamente desigual, marcada pela prática da escravidão (oficial, fator de acumulação de capital durante quase 400 anos, e dissimulada desde a abolição, em 1888), há poucos consensos, logo, não existe contrato social. Não há pacto social num país onde a maioria negra (56% da população) é discriminada pela minoria não negra.

Não há entendimento social se pouco menos de um quarto da população (50 milhões de pessoas) vive abaixo da linha de pobreza (com menos de dois dólares por dia), e todos conhecemos essa realidade há pelo menos quase 20 anos, afinal, graças a um dos poucos consensos de nossa história, criou-se nesse período um programa de transferência de renda para lidar com o problema - o Bolsa Família é excelente, cuida das consequências de políticas equivocadas que seguem provocando tanta miséria e desequilíbrio entre nós, brasileiros.

Não se pode falar em contrato social se metade dos adolescentes está fora do ensino secundário. Tampouco, é razoável afirmar que estejamos sob uma sociedade pactuada, uma vez que que 35 milhões de pessoas não possuem acesso à água tratada e 100 milhões (de uma população de 210 milhões) não têm coleta de esgotos. O pior: os números, compilados pelo Instituto Trata Brasil a partir de dados oficiais, referem-se apenas às cem maiores cidades.

Sem saneamento básico, não há saúde. Sem saúde, não há cidadania. Junte-se esta precariedade à outra (a baixa qualidade do ensino fundamental público), o que temos? Que futuro aguarda o país com a 5ª população do planeta, habitante do 4º maior território em terras contínuas?

Formadores de opinião espantam-se com a facilidade com que outras nações, não apenas as ricas, respondem prontamente a situações de emergência, como a enfrentada nesta pandemia. "Por que não conseguimos resolver rapidamente questões simples que afligem milhões de nossos compatriotas?", indagam-se os cidadãos de bem.

Não é preciso pensar muito para concluir que nossa dificuldade está no fato de o Brasil não ser uma nação - como a palavra "brasil" não significa coisa alguma (foi tirada de pau-brasil), seu significado depende da construção de uma nação, daí, a insistência do titular desta coluna em chamar este país de Ilha de Vera Cruz, a primeira denominação dada pelos invasores portugueses.

Numa nação, a distância entre ricos e pobres é muito menor, todos (ou quase todos) têm acesso às mesmas oportunidades, a maioria dos cidadãos compartilha dos mesmos valores culturais e aspirações, independentemente de sua renda e origem étnica.

Um exemplo do quão distante este território povoado por 210 milhões de viventes está de ser uma nação: o auxílio emergencial criado em abril para assegurar a sobrevivência de mais de 60 milhões de brasileiros, surpreendidos repentinamente pela parada súbita de seu ganha-pão nesta crise sanitária, expira em 31 de dezembro.

Amanhã, alguns milhões de brasileiros vão brindar a chegada de 2021 e da segunda década do século XXI com champagne e espumante, enquanto outros milhões dormirão sem saber como cuidar da família ou de si próprios no ano "novo". Para estes, 2020 não acaba nessa quinta-feira. Ademais, a segunda onda da covid-19, apesar do silêncio negligente das autoridades, já é uma realidade, cujos efeitos econômicos serão iguais ou piores que os do primeiro surto - não custa lembrar: por causa da pandemia, o Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro deve recuar algo em torno de 4,5%, segundo previsão da maioria dos analistas consultados pelo Banco Central.

Ora, virar o ano sem resolver esse grave problema é a prova inequívoca de que não só a classe política mas toda a sociedade não se importam com a crise humanitária que se avizinha. Onde estão os intelectuais das universidades públicas e fora dela, os sindicatos, as centrais sindicais sempre dispostas a parar o país em defesa os trabalhadores, as elites empresariais pensantes (das que só vivem às custas do Estado não se deve esperar nem cumprimento de “bom dia”), as lucrativas instituições financeiras que se "comoveram" tanto com o primeiro capítulo da tragédia pandêmica, os artistas que se mobilizaram para cuidar de seus pares em situação menos favorável, uma vez que o isolamento social lhes tirou a possibilidade de trabalhar? Cadê os manifestantes que foram às ruas em 2013 exigir educação e saúde públicas de qualidade?

No país onde não há carência de problemas a serem resolvidos, o tema mais controverso, o que inflama discursos, provoca cizânia, separa amigos de infância e resulta até em divórcio, não é o racismo estrutural, esta infâmia, ou a situação dos cidadãos sem-auxílio emergencial a partir de 1º de janeiro, mas a privatização, a venda de empresas estatais ao setor privado. Por que a classe média brasileira é tão suscetível à proposta de redução do Estado como produtor de bens e serviços?

Quando estourou o mega-escândalo de corrupção na Petrobras, em 2014, não demorou para que se promovesse um “abraço” na sede da estatal, no Rio. Não houve protesto contra as malfeitorias realizadas, responsáveis por desvio de recursos estimado em R$ 20 bilhões. Não houve sequer mobilização para que o acionista majoritário que nos representa na companhia - a União - melhorasse a governança da maior empresa do país. Por isso, leitor, duvide da palavra "estratégica" quando alguém defender as estatais.


Raphael Di Cunto: Os riscos da aposta de Bolsonaro na Câmara

Independentes” serão decisivos para votações pós-eleição

O presidente Jair Bolsonaro tem apostado alto ao mobilizar o governo para eleger o líder do PP, Arthur Lira (AL), presidente da Câmara. Há promessa - e entrega- de verbas orçamentárias, cargos e até ministérios para quem apoiar seu candidato. Não são poucos os aliados dele que alertam que tal aposta pode dificultar a governabilidade nos dois anos finais de seu mandato e esgarçar a relação com os deputados.

Como toda aposta de risco, o retorno, é claro, pode ser muito grande. Um aliado no comando da Câmara fará andar a agenda conservadora de costumes que o elegeu e com a qual ele pretende sustentar sua reeleição. Ao presidente interessa que o debate tome conta da sociedade, colocando em segundo plano a pandemia, a morte de milhares de pessoas e a economia capenga.

O atual presidente, Rodrigo Maia (DEM-RJ), barrou parte dessas propostas, mas menos do que seu contundente discurso para agradar os partidos de esquerda faz parecer. É verdade que ele segurou a reação à flexibilização do aborto pelo Supremo Tribunal Federal (STF), impediu o debate sobre o Escola Sem Partido e o ensino doméstico, defendeu a ciência e a vacina e segurou parte da agenda armamentista, mas, quando estava em busca de aproximação com Bolsonaro, Maia levou direto ao plenário o projeto que flexibiliza a lei de trânsito e o porte de arma na propriedade rural.

O acordo de Lira com Bolsonaro, segundo parlamentares ouviram do próprio presidente, é colocar para debate todos os projetos do governo e não deixar as medidas provisórias (MP) perderem a validade por falta de votação. Não significa necessariamente aprová-los, mas instalar as comissões especiais necessárias para que a discussão ocorra na Casa. Ao bolsonarismo, interessa mais o bate-boca na sociedade do que a aprovação de algumas pautas.

A proposta de emenda constitucional (PEC) do “voto impresso”, por exemplo, é uma dessas em que o debate renderá mais frutos ao presidente do que a implantação, já que a checagem comprovaria que, de fato, não existe a tão alardeada fraude no sistema de votação. O discurso bolsonarista em 2022 terá mais apelo se a PEC fracassar, com os partidos de oposição votando contra. Caberá a Lira dar vazão a esse e a outros debates, ao instalar as comissões especiais e pautar as propostas no plenário.

Essa é a visão otimista para os bolsonaristas, que viram na aliança de Maia com a esquerda a deixa que permitiu que perdessem a vergonha de assumir o voto em Lira, até então um dos mais claros representantes da “velha política” que Bolsonaro dizia combater. Mas, como toda aposta, há um risco embutido, e que nesse caso não é pequeno.

Primeiro, é óbvio, o presidente nacional do MDB, Baleia Rossi (SP), pode vencer. Ele está à frente de um dos partidos mais governistas da Câmara, seus correligionários acumulam cargos no governo e seu perfil não é, até hoje, o de partir para o embate. Mas Baleia faz um discurso externo de independência, com o objetivo de reposicionar o MDB, e deverá sua vitória muito aos partidos de oposição, que terão voz ativa nas decisões.

O outro risco é que MDB, DEM, PSDB, PSL, PV e Cidadania votam a favor dos projetos do governo relacionados à economia e estão se sentindo desprestigiados na distribuição de cargos e verbas. São cerca de 130 deputados (já descontando os “bolsonaristas raiz” do PSL) sem os quais será impossível aprovar PECs como as reformas administrativa e tributária e a PEC Emergencial.

Será difícil que esses partidos consigam se posicionar contra projetos que já defendiam antes da eleição, mas há temas muito polêmicos dentro dessas propostas com os quais eles ainda não se comprometeram (como o fim da estabilidade no serviço público) e não se trata de derrotar a agenda toda, mas se unir à oposição em pontos fundamentais para imprimir derrotas a Bolsonaro.

Foi o que ocorreu com a exclusão das escolas filantrópicas da distribuição de verbas do Fundeb e na proibição de que o governo possa exigir um termo de consentimento para quem tomar a vacina contra a covid-19, para dar dois exemplos da última semana de votações da Câmara. A própria ampliação do Fundeb, em agosto, ainda bem longe da eleição no Congresso, já foi um indicativo de como essa aliança funcionará. Podem também oferecer as 40 assinaturas que faltam à oposição para comissões parlamentares de inquérito (CPI), por exemplo.

A estratégia de condicionar cargos no governo e a liberação de verbas em troca do apoio a Lira tem resistências entre parte dos aliados do presidente e é vista com muitas ressalvas por articuladores políticos mais experientes. A fatura não acabará na eleição da Câmara e será preciso negociar nos projetos mais importantes.

Não vai dar para desprezar os que ficaram ao lado de Baleia e é fácil imaginar a reação dos “aliados de primeira hora” se o governo atender só os preteridos agora com novas verbas ou cargos quando for preciso votar projetos mais importantes. Um aliado do presidente também destaca que faz pouco sentido oferecer dinheiro numa eleição que é secreta. Pode-se até desconfiar da traição, mas quem pula a cerca não sai por aí anunciando.

Lira é um político experiente. Em dez anos na Câmara, liderou seu partido em seis e presidiu as duas comissões mais importantes, a de Constituição e Justiça (CCJ) e a de Orçamento (CMO). Tem uma grande capacidade de articulação política e poderá driblar essas resistências para construir maiorias a favor do governo e dos projetos que achar relevantes. Mas não é o que ele tem prometido em público, ao refutar o papel de líder do governo, e, mesmo assim, não será algo fácil.

Rodrigo Maia venceu o “Centrão” liderado por Eduardo Cunha (MDB-RJ) na disputa da presidência da Câmara em 2016 e reaglutinou o grupo em torno do si meses depois para viabilizar sua reeleição, mas demorou para quebrar resistências. A eleição de 2022 batendo as portas e afetando fortemente a agenda da Câmara e do governo no segundo semestre dificultará mais esse realinhamento.


Sergio Lamucci: Os custos da falta de um plano para a vacinação

Um planejamento minimamente adequado conseguiria poupar muitas vidas, além de contribuir para a retomada da economia

Enquanto os EUA e vários países da Europa, da América Latina e do Oriente Médio já iniciaram a vacinação contra a covid-19, o Brasil fica para trás, sem um plano claro e definido para a imunização. Por aqui, o presidente Jair Bolsonaro se empenha numa campanha de desinformação contra a vacina. Diz que não vai se vacinar, lança dúvidas sobre a Coronavac, desenvolvida no Brasil pelo Instituto Butantan e pela chinesa Sinovac, e afirma não ter pressa em iniciar a vacinação, num país em que já morreram mais de 191 mil pessoas pela doença. Além da tragédia da perda de muitas vidas, a demora tende a prejudicar a retomada da economia, que já vai enfrentar outros ventos contrários em 2021.

A vacinação em massa é o caminho mais eficaz para deter a doença. Diante disso, a estratégia óbvia de grande parte dos países foi planejar com antecedência a aquisição de vacinas para imunizar uma parcela expressiva de sua população, começando o processo o mais rápido possível. Não foi o que fez o governo Bolsonaro. No sábado, o presidente disse que não se sentia pressionado pelo fato de outros países já terem iniciado a vacinação, afirmando não dar “bola para isso”. Em 19 de dezembro, havia dito que “a pressa pela vacina não se justifica”, no mesmo dia em que vaticinou que a “pandemia estava chegando ao fim”. Ontem, porém, afirmou ter “pressa em obter uma vacina, segura, eficaz e com qualidade, fabricada por laboratórios devidamente certificados”, mas que a questão da responsabilidade por reações adversas é “um tema de grande impacto e que precisa ser muito bem esclarecido”.

A coleção de disparates de Bolsonaro a respeito do tema é ampla. Alguns dos mais graves são as seguidas declarações de que não pretende se vacinar, as críticas à imunização obrigatória e as ironias sobre a Coronavac. O presidente, que assinou uma medida provisória (MP) destinando R$ 20 bilhões para a compra da vacina, contribui ativamente para a campanha de desinformação sobre o assunto, que corre solta nas redes sociais e em grupos de WhatsApp.

Pesquisa feita pelo Datafolha neste mês mostra que 22% dos entrevistados não pretendem se vacinar contra a covid-19, percentual que era de 9% em agosto. Um terço dos ouvidos pelo instituto que afirmam confiar sempre em Bolsonaro diz que não vai tomar o imunizante. Além disso, metade dos entrevistados informa que não tomará uma vacina da China. Se uma parcela expressiva da população resiste a se vacinar, é mais difícil evitar a disseminação da doença.

O atraso na vacinação deverá ter consequências negativas para a economia. O maior otimismo em relação à atividade econômica global em 2021, especialmente no segundo semestre, se deve à expectativa de que uma parte expressiva da população em muitos países será imunizada. Se o Brasil ficar para trás nessa corrida, a retomada por aqui vai enfrentar um obstáculo importante.

Na visão dos analistas, o recrudescimento da covid-19 é um dos fatores que podem atrapalhar a recuperação da economia em 2021, num cenário em que as incertezas em relação às contas públicas e o fim do auxílio emergencial tendem a afetar o ritmo de expansão da atividade.

O Itaú Unibanco, por exemplo, estima que a economia brasileira deverá crescer no segundo trimestre 0,2% em relação ao trimestre anterior, feito o ajuste sazonal, considerando uma média diária de 400 óbitos pela covid-19 no fim desse período. No entanto, se a média de mortes por dia no fim do primeiro trimestre ficar em 600, pode haver uma retração do PIB de 1,2% nos três primeiros meses do ano, calcula o banco.

Segundo o economista-chefe do Itaú Unibanco, Mario Mesquita, o que se observou é que “a mortalidade afeta a atividade diretamente, porque as pessoas passam a circular menos e usar menos serviços que implicam aglomeração, mesmo antes de qualquer restrição por parte das autoridades”. Além disso, “elas passam a poupar mais também, pelo efeito precaucional”, diz Mesquita. A média de mortes nos últimos sete dias ficou em 625, de acordo com o consórcio de veículos de imprensa.

Ainda que não se esperem restrições à mobilidade tão fortes como as adotadas no começo da pandemia, em março e abril, esse movimento deverá ter um impacto negativo sobre a economia brasileira.

Em relatório, o Itaú Unibanco nota que continua a haver “um aumento acelerado na curva de novos casos um pouco mais lento na curva de novas mortes”, com base em números disponíveis até 22 de dezembro. “A utilização de capacidade hospitalar no país segue aumentando. O Estado de São Paulo anunciou a adoção da ‘fase vermelha’ durante os feriados de fim de ano, buscando reduzir o contágio em encontros sociais. É provável que outras regiões do país tomem decisões similares”, afirma o banco.

Se o número de casos e mortes continuar a crescer ou se mantiver em níveis elevados, os segmentos de serviços que exigem maior interação social vão sofrer. É o caso dos setores de alojamento e alimentação, que incluem turismo, bares e restaurantes, e dos serviços prestados a famílias. São segmentos que empregam muita mão de obra.

Com o fim do auxílio emergencial, a recuperação do mercado de trabalho é fundamental para a economia não sofrer um baque muito forte. Desse modo, promover uma vacinação rápida e ampla é a melhor resposta também do ponto de vista econômico. Bolsonaro, porém, continua a tratar a pandemia com descaso. No caso das vacinas, também politizou ao máximo a discussão, por causa de sua disputa política com o governador João Doria (PSDB).

Em São Paulo, o plano do governo paulista é começar a vacinação em 25 de janeiro, mas o adiamento da divulgação do índice de eficácia da Coronavac, que teria ocorrido a pedido da Sinovac, levantou dúvidas a respeito da viabilidade do cronograma. Em entrevista à TV Brasil, o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, disse que até o fim de janeiro haverá “vacinas iniciais, algumas em caráter emergencial, e a vacinação em massa, já com registro, a partir de fevereiro”.

Como se vê, o Brasil começará a vacinação atrasado em relação a outros países, e não está claro qual fatia da população será atendida ao longo de 2021. Um planejamento minimamente adequado conseguiria poupar muitas vidas, além de contribuir para a retomada da economia.


Bruno Carazza: Nossas vidas nunca mais serão as mesmas

Em breve superaremos a gripe espanhola em número de mortes

14 de março de 2020. Nesse dia eu tive um pressentimento de que nossas vidas nunca mais seriam as mesmas.

É claro que, como a maior parte dos brasileiros, eu vinha acompanhando as notícias sobre o novo coronavírus. A doença havia chegado há algumas semanas por aqui, e o número de casos confirmados pelo Ministério da Saúde vinha subindo dia a dia - mas ainda eram apenas 362, sem nenhuma morte até então.

Àquela altura a covid-19 já avançava com força na Europa, a ponto de a Organização Mundial de Saúde ter declarado no dia 11 de março que se tratava de uma pandemia. Com quatro “circuit breakers”, a bolsa naquela semana caiu 15,6%, na pior semana desde a crise de 2008, e mesmo assim eu não me abalava.

A ficha caiu quando ouvi uma entrevista de Donald G. McNeil Jr., repórter de ciência do “The New York Times” que já havia feito coberturas sobre epidemias nos quatro cantos do mundo. Ao participar do podcast “The Daily”, o jornalista revelou que, pelo o que havia apurado junto a diversos cientistas, o novo coronavírus poderia ser tão letal quanto a gripe espanhola de 1918.

“Se nada for feito, todos nós perderemos pelo menos uma pessoa próxima por covid-19”, foi a frase que ficou na minha memória.

Naquele mesmo dia 14 de março em que ouvi o episódio com o jornalista do “NYT” compareci à festa de aniversário de um grande amigo - e aquela foi a última vez que fui a um bar. Lá, recebi uma mensagem por WhatsApp informando que a faculdade em que trabalho havia suspendido as aulas preventivamente. Daí pra frente minha vida nunca mais foi a mesma.

Num depoimento dado em 1977, no longínquo ano em que nasci, o artista plástico Abraham Palatnik parecia profetizar o que vivemos em 2020. “O ser humano representa um grande investimento em estudo e aprendizagem ao longo de dezenas de anos. Desprezar esta vantagem seria uma degradação da própria natureza do homem e um desperdício de suas potencialidades.”

O desdém pela ciência, expresso inúmeras vezes pelo presidente da República, cobrou seu preço. “Cenas de terror e tensão, fuga na terra, ira no céu”, cantavam ainda no início da carreira os Titãs, tendo entre eles o punk Ciro Pessoa. “Tomaram tudo o que tínhamos”, clamava o líder Aritana Yawalapati, um dos últimos falantes do idioma tradicional do seu povo, no Alto Xingu.

“Nós estamos órfãos de um projeto nacional. (...) Nós fomos achando que é possível tocar o futuro sem discutir o futuro”, criticou certa vez o ex-reitor da UFRJ e ex-presidente do BNDES Carlos Lessa.

Como o limpador de vidraças do conto “Um discurso sobre o método”, de Sérgio Sant’Anna, estamos suspensos no tempo, sem orientações claras sobre novas medidas de distanciamento social ou ações rápidas para a obtenção de vacinas. “Ele era um homem que vivia nas imediações do presente, pois o passado não lhe trazia nenhuma recordação agradável, em especial, e o futuro era melhor não prevê-lo, de tão previsível”.

Muitos sucumbiram diante da indefinição. Alguns de modo resignado, como na canção de Paulinho do Roupa Nova: “E a hora vai chegar; já não sei como evitar. Eu não vou mais fugir, é tempo de encarar”.

“Daqui dou o viver já por vivido”, sentenciou a poetisa Olga Savary na sua Sextilha Camoniana.

“Pela fresta, é possível ver o céu azul. Acho que atravessei esta porta”. Algodão-doce para você, inesquecível Daniel Azulay.

“Passei o bastão pra vocês, agora sigam e sejam felizes”, disse a atriz Nicette Bruno a seus filhos, mas o conselho serve a cada um de nós.

“Mas sei que uma dor assim pungente não há de ser inutilmente”, nos ensinou Aldir Blanc num hino de outros tempos, mais atual do que nunca. “A esperança dança na corda bamba de sombrinha, e em cada passo dessa linha pode se machucar”.

Enquanto escrevo esta coluna, o Brasil registra 190.795 mortes oficiais por covid-19. De acordo com a última pesquisa Datafolha, 8 em cada 10 brasileiros pegou ou conhece alguém próximo que foi contaminado pelo novo coronavírus.

Estudiosos estimam que as duas grandes ondas de gripe espanhola que atingiram o Brasil entre 1918 e 1919 mataram em torno de 35.000 pessoas. Segundo o IBGE, nesta mesma época o Brasil possuía em torno de 30 milhões de habitantes. Grosso modo, pouco mais de 0,1% dos brasileiros sucumbiram à doença.

Um século depois, o país possui pouco mais de 210 milhões. A continuar o ritmo atual de evolução, em breve a covid-19 terá matado o mesmo tanto que a gripe espanhola, em termos proporcionais.

O descaso com a saúde pública no atual governo jogou por terra todo o avanço de higiene, tecnologia e políticas públicas de um século.

As retrospectivas do ano de 2020, a serem veiculadas nos próximos dias, vão precisar de tempo e espaço extra para retratar tantas perdas inestimáveis - inclusive as dez personalidades que eu mencionei expressamente acima.

No meu caso, a profecia do repórter do “The New York Times” se cumpriu na noite do dia 25 de outubro. Sebastião Fernandes Pereira era um grande amigo da minha família, com o qual convivi desde os meus 10 anos de idade.

De riso fácil e conversa atenciosa, deixou órfãos milhares de pessoas que recorriam a ele para buscar conforto e conselho para suas dores da alma.

Tiãozinho virou estatística da covid, mas a falta que ele deixou não tem medida. Por meio dele homenageio as vítimas da doença que marcou este ano, seus familiares e amigos.

Até 2021.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


Cristiano Romero: Todos sabemos por que o Brasil não dá certo

Trata-se de questão ética: como ser feliz num país racista

Muitos brasileiros fazem a seguinte pergunta diante do espelho: "Por que o Brasil não dá certo?". Geralmente, quem faz a indagação não tem muito do que reclamar. Sua vida é melhor aqui, mais fácil, mais farta, com maior acesso ao que o país oferece de melhor a seus cidadãos, do que seria se ele vivesse em outra economia de renda média ou mesmo numa nação rica, ainda que sendo proporcionalmente detentor de renda equivalente. A péssima distribuição de renda explica parte dessa história.

Evidentemente, aqui, todos, pobres e ricos, reclamam da extrema violência que ceifa anualmente a vida de cerca de 60 mil pessoas - em 2018 (último dado disponível), foram 57.956, mas, como há algo de podre no reino das estatísticas dos Estados, visto que nos anos recentes houve aumento exponencial de mortes violentas sem causa determinada, o número de mortos está subestimado.

O contingente de pessoas que sai de casa num determinado dia para morrer parece uma espécie de maldição estatística, uma vez que, com poucas variações, se repete ano a ano. Maldição? Praga? Predestinação diabólica de um povo condenado à miséria e ao sofrimento? Não creia nisso. Não há nada intangível nas estatísticas da violência no país chamado Brasil.

Os dados oficiais da violência mostram que 75,7% dos brasileiros assassinados há dois anos eram negros - entre as mulheres, o percentual é 68%, informa o Atlas da Violência 2020, elaborado pelo Ipea com base nas ocorrências registradas pelas secretarias estaduais de segurança pública em 2018. Mais da metade (29.064) eram jovens com idade entre 15 a 29 anos.

Em 2018, uma mulher foi assassinada neste país a cada duas horas, somando 4.519 vítimas. Olhemos mais de perto os números e num período maior de tempo, para tentar achar uma pista que aponte alguma tendência desta terrível mazela nacional: entre 2008 e 2018, enquanto a taxa de homicídios de mulheres não negras caiu 11,7%, a taxa de mulheres negras assassinadas aumentou 12,4%.

O resumo da violência neste imenso território é o seguinte: os homicídios vitimizam, principalmente, homens (91,8% dos casos), jovens (53,5%), negros (75,7% dos casos), pessoas de baixa escolaridade (74,3% dos homens vitimados possuem apenas sete anos de estudo) e solteiros (80,4% do total de homens assassinados). O principal instrumento de agressão é a arma de fogo, usada em 77,1% dos casos de morte de homens e em 53,7%, no caso de mulheres.

Convenhamos: os números são de uma racionalidade espantosa, é desnecessário desenhar: a sociedade brasileira assiste, indiferente, a um verdadeiro genocídio de jovens, em sua maioria absoluta, negros e pobres, o que também se aplica às mulheres negras. Será que é difícil saber qual é a verdadeira monstruosidade que explica esta vilania que nos caracteriza como sociedade e que, em vez de diminuir, só tem aumentado?

Como o tema não é novo neste espaço, um leitor escreveu para dizer que, nesta guerra civil interminável, morrem mais negros porque estes são a maioria entre os pobres. Trata-se da tese de que quase 42 mil negros foram assassinados neste canto do mundo em 2018 não porque eram negros, mas porque eram pobres. Trata-se de uma falsa questão.

Na música "Haiti", Caetano Velloso e Gilberto Gil escrevem o seguinte, a respeito do massacre do Carandiru, ocorrido no dia 2 de outubro de 1992, quando 111 presidiários foram mortos e 37 ficaram feridos após ação da polícia - como não se tratava de um presídio, a maioria dos mortos ainda não havia sido julgada ou tido a sua sentença definida pela Justiça:

" (...) Cento e onze presos indefesos

Mas presos são quase todos pretos

Ou quase pretos

Ou quase brancos, quase pretos de tão pobres

E pobres são como podres

E todos sabem como se tratam os pretos (...)"

O poema afiado como navalha de barbeiro nos lembra que, nestes tristes trópicos, é tão ruim ser negro que, se você é pobre, muito pobre, é "quase preto".

Senhores, 56% das pessoas que habitam a quarta maior extensão de terra contínua do planeta se declararam pardos ou negros no último censo demográfico conduzido pelo IBGE. A maioria de nós, portanto, é negra. Nosso problema, acima de qualquer outro, é o racismo secular, estrutural, vicejado pela minoria branca, remediada, rica e mais educada, contra a maioria.

O Brasil não dá certo por essa razão. Como poderia suceder? A escravidão nos acompanha desde a chegada dos europeus. Quando a abolimos por meio de uma lei, quase 400 anos depois, não a abolimos de fato porque o mundo quase acabou - os barões do café exigiram compensação financeira do Estado pela perda de "propriedade", "demitiram" os negros, derrubaram a monarquia, implantaram uma República condominial (sem povo e com rodízio no comando entre dois dos três Estados mais ricos), forçaram o governo a importar mão de obra do Japão e de nações europeias para substituir a mão de obra escrava, impediram os negros de ter acesso a escolas...

Por que ainda há entre nós quem seja contrário a políticas de reparação à população negra, posta em desvantagem por séculos na história deste país? Nossa sociedade não é racista, ela é o próprio racismo. Este faz parte da paisagem nacional tanto quanto o samba, o futebol (onde, aliás, manifestações racistas são crescentes), o carnaval, mas, enquanto esses símbolos são projetados como parte de nossa identidade cultural, a discriminação aos negros é negada de forma vergonhosa e institucional.

Não é mais possível (nunca foi) olhar a realidade política, econômica, social, cultural, sem as lentes que corrijam a pior das miopias: a de que o racismo é apenas mais um problema a ser enfrentado, uma obrigação cidadã, uma determinação constitucional. Nada disso. Não é mais possível admirar nada neste país de 210 milhões de habitantes sem pensar, a cada segundo, que vivemos numa sociedade profundamente escravagista, onde a maioria é discriminada pela minoria. Trata-se de uma questão ética: como viver, como aceitar viver numa sociedade assim?