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Daniel Rittner: Dá para esperar algo do novo chanceler?

França ensaia ‘revolução da normalidade’

Carlos França, o novo chanceler, deu sinais de ter entendido direitinho onde está e por que está. Tal como fora combinado por suas assessorias, a senadora Kátia Abreu (PP-TO) esperava uma reunião virtual com o ministro nos próximos dias. Presidente da Comissão de Relações Exteriores e protagonista do capítulo final da queda de Ernesto Araújo no Itamaraty, ela tem evitado sair de sua fazenda nos arredores de Palmas e prefere videoconferências desde que passou uma semana hospitalizada com covid, no fim do ano passado. Diz que ainda sente falta moderada de ar, às vezes fica sem olfato. Com tato, França se voluntariou: “A senhora não se incomodaria se eu pegar um voo e for ao Tocantins para conversarmos pessoalmente?”, questionou, prometendo seguir os cuidados sanitários. Política e diplomacia são feitas, também, de pequenos gestos. Kátia Abreu aprovou esse movimento. Sinal de alguém que se esforça para ouvir e dialogar, comentou a senadora.

Diálogo, canais abertos e construção de pontes foram justamente as expressões sublinhadas por França em seu discurso de posse. Cinco anos atrás teria sido anódino. Ontem ganhou ares de revolução da normalidade. Foi uma espécie de funeral da retórica empolada do ernestismo. Um resgate da diplomacia tradicional. No lugar de saudações a altezas imaginárias, um afago real e objetivo na Argentina, parceira de sempre e que não pode ser arrancada do mapa. Saem de cena verbetes como covidismo e comunavírus. Termos em desuso no Itamaraty desde janeiro de 2019, como “multilateralismo” e “urgência climática”, voltaram a aparecer em fala oficial. E o melhor: nada de messianismo, não teve citação em grego arcaico nem proclamação de Ave Maria em tupi guarani.

Ainda sem densidade política, no entanto, França precisará se mover em meio às sombras do assessor internacional Filipe Martins, que passou incólume pelas mudanças na cúpula do governo, e do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), que usa o acesso de “03” quando lhe convém e se esconde sob a desculpa de “só mais um entre 513” quando arruma encrenca.

Se alguém acha que Eduardo anda muito quieto, sem criar confusão, é porque não anda acompanhando os trabalhos da Comissão de Relações Exteriores da Câmara. Por pouco não foi votada, na semana passada, uma moção de repúdio ao Hezbollah por considerá-lo grupo terrorista e responsável por atentados em Buenos Aires, nos anos 1990. Apresentado pelo deputado, o texto falava em ligações com o PCC no Brasil e presença na Tríplice Fronteira. Errado não está, mas o “timing” da proposta - foi no dia do depoimento de Ernesto Araújo - evidencia o tumulto potencial.

Com um novo ministro, mas Eduardo e Martins atuando nos bastidores, será que tudo mudou apenas para tudo continuar do mesmo jeito? O desafio de França no Itamaraty é fazer Jair Bolsonaro não ser Jair Bolsonaro em política externa: foi ele, não seu ex-chanceler, quem tirou sarro da esposa de Emmanuel Macron e desdenhou do dinheiro de Angela Merkel para combater o desmatamento na Amazônia, colocou em dúvida a eficácia da vacina chinesa, quem começou as hostilidades com o argentino Alberto Fernández e terminou como penúltimo chefe de Estado a cumprimentar Joe Biden pela vitória nas eleições presidenciais.

O bom legado da gestão Ernesto é que o Senado, onde sabatinas de embaixadores sempre foram um passeio de domingo no parque, resolveu assumir o papel de contrapeso e mostrou que imporá limites. Um veterano diplomata já teve sua indicação barrada para assumir posto na ONU em Genebra. E a própria Kátia Abreu deixou claro, no “Roda Viva” de segunda-feira, que sequer pautaria uma sabatina de Araújo na comissão - porque hoje o risco de bomba, segundo admitiu a senadora, é alto demais.

Por outro lado, enquanto a agenda ambiental volta ao Itamaraty às vésperas da cúpula organizada por Biden e da CoP- 26, partem justamente do Congresso Nacional ameaças importantes à imagem externa do país. Estão à espera de votação o projeto de lei para regularização fundiária, mais conhecido na Europa como “PL da Grilagem”, e a proposta que regulamenta atividades econômicas em terras indígenas, incluindo até garimpo e exploração de petróleo. Pode haver méritos nas propostas, nem se discute aqui, mas nada mais descalibrado com os planos de destravar o acordo comercial UE- Mercosul ou obter financiamento internacional para a Amazônia.

O mundo do pós-pandemia é um terreno minado e com vazio de poder. Nas palavras de Ian Bremmer, o paparicado fundador da Eurasia Group, assiste-se ao fim da liderança americana - e, de forma mais ampla, da liderança ocidental - nas relações internacionais. “Estamos despreparados para o que isso significa sobre vários aspectos de como o mundo conduz seus negócios: do sistema econômico às normas sociais, do equilíbrio militar aos padrões tecnológicos”, escreveu o consultor, em relatório enviado anteontem para clientes.

No mesmo texto, Bremmer tenta explicar aos seus leitores endinheirados o que esperar do Brasil. Não é bom de se ler. Entre os riscos detectados, segundo ele, um vai ganhando força: a possibilidade de processo de impeachment e de crise política “no estilo 6 de janeiro” - uma referência ao dia em que extremistas de direita invadiram o Capitólio na expectativa de assassinar Nancy Pelosi ou Mike Pence. “Com potencial para violência nas ruas e instabilidade, que podem incluir defecções significativas de policiais e militares de baixo escalão, dispostos a ficar do lado de Bolsonaro”, resume. Quanto mais a pandemia se arrastar, sem freio na escalada de mortes, mais o risco de concretização de um cenário radical, alerta Bremmer.

Tendo uma situação tão desafiadora pela frente, mas boa vontade dos parlamentares se o desejo de mudança na política externa for genuíno, França só não tem o tempo jogando a seu favor. “Cargo de chanceler não é para aprender. Para aprender, já tem o Instituto Rio Branco”, disse Kátia Abreu. Depois do discurso que gerou no Itamaraty e fora dele, o novo ministro desabafou para amigos: “Agora acabou a trégua, vai começar o tiroteio”.

Araújo

Ernesto Araújo deve ir para a missão do Brasil na OCDE, em Paris, posto que não requer sabatina. O destino mais provável de Otávio Brandelli, ex-número dois do Itamaraty, é como embaixador na Organização dos Estados Americanos, em Washington.


Cristiano Romero: Subestimar Jair Bolsonaro é um erro

Negacionismo do presidente tem cálculo político

Jair Messias Bolsonaro não é o primeiro presidente brasileiro cuja habilidade política é subestimada pela maioria dos analistas. Durante um bom tempo, duvidou-se da capacidade de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) de governar o país. Antes do petista, era quase unânime a opinião de que Itamar Franco, o vice que assumiu o cargo em decorrência do primeiro impeachment da história do país _ de Fernando Collor de Mello, em 1992 _, de tão “incompetente”, “tolo” e “turrão” acabaria de afundar a nação no caos iniciado por seu antecessor.

Bolsonaro passou 28 anos na Câmara dos Deputados com apenas uma preocupação: reeleger-se a cada quatro anos. Não foi difícil, afinal, sua bandeira, única, sempre foi defender privilégios e vantagens das corporações militares, o que, evidentemente, significou apoiar, de um modo geral, os interesses da burocracia estatal, o Estado dentro do Estado, o poder autóctone deste país, patrimonialista por definição.

O atual presidente defendeu os soldos dos militares durante o período, provavelmente, de maior arrocho salarial do funcionalismo na história _ os primeiros anos de estabilização da economia, após o lançamento do Plano Real, em 1994. Com a queda abrupta dos índices de preços de cerca de 2.800% para 50% ao ano, o enorme desequilíbrio das contas públicas apareceu instantaneamente nos orçamentos, uma vez que, antes, a inflação crônica corroía o valor real da despesa, criando a ilusão de que o setor público não gastava mais do que arrecadava.

Entre outras providências, coube ao primeiro primeiro presidente eleito no pós-Real _ Fernando Henrique Cardoso (PSDB) _ segurar a evolução dos salários do funcionalismo civil e dos militares para conter, minimamente, o déficit público. Ainda no primeiro mandato de FHC (1995-1998), o déficit nominal _ conceito que inclui todas as despesas, inclusive, os juros da dívida _ chegou a 7% do Produto Interno Bruto (PIB).

Para o deputado Jair Bolsonaro, gritar contra o arrocho salarial de FHC e conquistar votos na família militar foi mais fácil que decorar a tabuada do número 1. Isto explica o ódio devotado por militares bolsonaristas ao ex-presidente. Em entrevista ao Valor em 2019, o general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), um dos mais próximos do presidente da República, disse que "Lula é terrível, mas o Fernando Henrique era pior, hein?”, uma óbvia referência ao principal alvo de Bolsonaro nos anos em que era visto apenas como uma figura folclórica da direita brasileira.

Talvez, nem em sonho Bolsonaro tivesse acreditado que, um dia, haveria a chance de sair do folclore para tornar-se o primeiro mandatário do país com a 6a. maior população do planeta, a quarta extensão territorial e a 12a. Maior economia (há poucos anos, caminhava para ser a 5a. Maior, mas esta é outra história). Mas, a tragédia inacreditável do governo da presidente Dilma Rousseff (PT) criou oportunidade única para Bolsonaro ambicionar seu salto inesperado na política nacional.

Em 2015, quando o país já ingressara no segundo ano da mais profunda e longa recessão de sua história, provocada por sucessão inacreditável de equívocos de política econômica cometidos pelo governo Dilma, Bolsonaro e seus seguidores montaram estratégia nas redes sociais para fazer do então deputado o candidato anti-PT, anti-Dilma, “anti-também-tudo-isso-daí”. Com a Operação Lava-Jato fazendo estragos nas hostes tanto do PT quanto do PSDB, a economia atolada numa recessão e o maior líder popular da história do país, Lula, encarcerado, o atual presidente tornou-se rapidamente um fenômeno nas redes sociais, ignorado por alguns, subestimado por muitos, entre os quais, o titular desta coluna.

“Quando a campanha oficial começar, em agosto de 2018, o tempo diminuto de horário eleitoral gratuito frente a outros candidatos fará de Bolsonaro o Celso Russomano da disputa presidencial _ sempre larga na frente, mas nunca chega em primeiro. Vai desidratar nas pesquisas”, dizia-se sobre as perspectivas eleitorais de Bolsonaro. A cada previsão frustrada, analistas experientes da cena política nacional faziam novas projeções, segundo as quais, o então candidato do PSL naufragaria.

Nos livros de História do Brasil, provavelmente na maioria deles, será dito que o presidente ganhara a eleição de 2018 porque, a menos de um mês, sofreu um atentado a faca que o afastou dos debates, de entrevistas e de eventos de campanha com grande potencial de desgastar a imagem do candidato. Depois de errar mais de uma vez em seus prognósticos sobre o destino político-eleitoral de Bolsonaro, o titular desta coluna acredita que atribuir sua vitória à facada é “brigar com a notícia”, como costuma dizer o nobre colega e escritor Sérgio Leo, ex-colunista do Valor.

Bolsonaro ganharia com ou sem facada. Ponto. Seu sucesso deveria ter convencido, senã0 a todos, pelo menos à maioria, de que ninguém chega à presidência de uma das maiores democracias do planeta, eleito pelo voto popular, destituído de inteligência, astúcia, sagacidade política. Para as elites pensantes do país, é mais simples manifestar o quão Bolsonaro é diferente _ para pior _ do que nós somos e desejamos para o projeto de construção de uma nação nestas plagas.

Daí, os erros de avaliação que ajudam a fortalecer o presidente e que, em alguns casos, desvalorizam avanços institucionais na área econômica, notadamente, a aprovação da independência do BC e da PEC emergencial, que criou novo marco regulatório fiscal para todos os entes da Federação, fato que na prática diminui sua compreensão e, portanto, sua legitimação na sociedade.

Na pandemia, com a ajuda do Congresso, Bolsonaro acabou por instituir o maior programa de redução de pobreza da história do país. Seu negacionismo tem cálculo político. Ele esticou a corda na negação da gravidade do vírus e os governadores foram obrigados a adotar medidas rígidas de isolamento, cujo efeito tem sido afastá-los da popularidade. No fim, o presidente virá com a solução, a vacina, que só a União tem condições de comprar em grande quantidade. Não adianta brigar com notícia, Bolsonaro será no momento agudo, aos olhos da população, o pai da vacina.


Cristiano Romero: O espetáculo da corrupção

 Lava-Jato sofrerá novas perdas de reputação

Um famoso juiz federal perguntou certa vez a um jornalista sua opinião sobre vazamento de informações. Como todo repórter que vive da apuração de notícias, a resposta foi: “O vazamento me apraz”. Mas, para espanto e visível frustração do magistrado, o jornalista acrescentou: “Mas, como qualquer cidadão, não posso me coadunar com informações vazadas ilegalmente”.

A ética do jornalista, como ensinou o saudoso Claudio Abramo, não é nem deve ser diferente da ética do cidadão. “Sou jornalista, mas gosto mesmo é de marcenaria. Gosto de fazer móveis, cadeiras, e minha ética como marceneiro é igual à minha ética como jornalista - não tenho duas. Não existe uma ética específica do jornalista: sua ética é a mesma do cidadão”, escreveu Abramo no livro “A Regra do Jogo: O Jornalismo e a Ética do Marceneiro” (Companhia das Letras, 1988).

 “Suponho que não se vá esperar que, pelo fato de ser jornalista, o sujeito possa bater a carteira e não ir para a cadeia”, acrescentou Abramo, um dos responsáveis pela modernização nas décadas de 1970 e 1989 da “Folha de S.Paulo”.

A pergunta do juiz perturbou o repórter porque ele percebeu que o magistrado ficou desapontado com sua resposta. A lembrança imediata, como sempre lhe ocorre quando colegas de profissão defendem a ideia de que os fins justificam os meios, foi das palavras de Claudio Abramo sobre a ética no jornalismo. Ele pensou com seus botões: “Para o juiz, sua ética não é a mesma do cidadão”.

A confusão na cabeça do profissional de imprensa estava instalada porque juiz é funcionário do Estado, pago para julgar se um crime foi cometido ou não e, com base nisso, manifestar se o acusado pela promotoria é culpado ou não, e então, no caso de condenação, estabelecer a pena, tudo com base nos parâmetros estabelecidos em leis.

Naquele momento, ficou claro para o jornalista que este país estava diante do seguinte quadro:

1. Sim, foi desbaratado, em 2014, um enorme esquema de corrupção envolvendo a maior estatal do país (a Petrobras) e centenas de pessoas, nesta ordem de "entrada em cena”: funcionários daquela empresa pública (os responsáveis pela montagem do bilionário mecanismo de corrupção), políticos e seus partidos, doleiros, executivos de grandes empresas (especialmente, empreiteiras) e empresários donos das empresas; não há dúvida alguma de que os desvios de recursos da maior companhia da economia brasileira, estimados em R$ 20 bilhões, ocorreram, afinal, descobriram-se contas milionárias de empregados da estatal no exterior, executivos e empresários confessaram a realização de pagamentos de propina a funcionários públicos e políticos etc.

2. As investigações, conduzidas por uma força-tarefa integrada por representantes da Polícia Federal (PF), do Ministério Público Federal (MPF) e da Justiça Federal e amparadas por um sem-número de delações premiadas, expediente relativamente novo na realização de inquéritos na Ilha de Vera Cruz, logo revelaram um objetivo maior, de caráter político -_ provar que o ex-presidente Lula era o chefe daquele grande esquema de corrupção - ; não dá para afirmar taxativamente que a força-tarefa estivesse a cargo de um propósito político-eleitoral, com vistas ao pleito de 2018, mas, convenhamos, o resultado foi o que se viu;

3. Para a força-tarefa, não bastava investigar, recolher provas, indiciar e/ou prender, interrogar, processar e condenar; mais importante era promover o “espetáculo da corrupção”, uma forma de massificar o apoio da opinião pública à operação e, assim, tornar sumárias investigações e condenações de alguns acusados, principalmente de Lula;

4. Com o apoio incontestável da sociedade, “entusiasmada” com o fato de ver empresários (antes, em sua maioria, inimputáveis devido a seus laços com o poder) e políticos pela primeira vez na cadeia, a Lava-Jato cometeu abusos de todo tipo, como permitir delações inconsistentes para validar presunções com viés político; vazar informações ao arrepio da lei para criar fatos consumados, isto é, evitar que instâncias superiores da Justiça questionassem o trabalho que vinha sendo feito; indiciar dezenas de pessoas que, depois, comprovou-se não terem envolvimento algum com o esquema de corrupção; grampear conversa da então presidente da República, Dilma Rousseff, com o ex-presidente Lula, sem autorização do STF, com o objetivo de criminalizar ambos; vazar a íntegra do grampo poucas horas depois da gravação da conversa e, assim, jogar a opinião pública contra a chefe do governo e contra Lula, um ato político, desprovido, portanto, de caráter jurídico;

5. Como se viu, as instâncias superiores do Poder Judiciário foram constrangidas pela primeira instância da Justiça; a prova disso é que a segunda instância (TRFs) rejeitou quase sempre por unanimidade os recursos da defesa; a Lava-Jato tornou-se um grande BBB, em que o importante não é o comportamento real dos participantes da “casa”, seu caráter e suas atitudes, mas o julgamento que os expectadores fazem a partir de narrativas induzidas pelo próprio “reality show” e de pré-concepções esmagadoramente conservadoras dos concorrentes ao prêmio, o que torna o BBB perpetuador de nossas doenças seculares, como o racismo e o machismo.

Ora, se a Justiça usa de expedientes abusivos e ilegais para cumprir sua missão institucional, esta fica maculada, independentemente de quem seja o réu. Não pode haver dúvidas num processo que leva à prisão de um ex-presidente da República, no ano em que este, e de acordo com as leis vigentes, seria um dos candidatos do pleito.

Com seu método de atuação, a Lava-Jato, mesmo levando em conta os resultados alcançados no combate à corrupção, resultou claramente na criminalização da classe política. Foi nesse vácuo que emergiu o inesperado Jair Bolsonaro, com discurso anti-política, anti-Brasília, impulsionado por uma campanha de instituições do Estado (PF, Justiça e MPF) que deveria ter se limitado à legalidade. O diagrama que mostrava Lula no centro do esquema de corrupção já deveria ter sido suficiente para mostrar a impropriedade com que a operação se movimentava.


Fernando Exman: Fachin catalisa a eleição presidencial

Decisão do ministro coloca Lula no jogo e antecipa campanha

Edson Fachin, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) que recolocou Luiz Inácio Lula da Silva na lista de presidenciáveis com uma canetada, agiu olhando para o legado da Lava-Jato, mas as consequências de seu ato já se percebem no presente. Em relação ao futuro, será necessário aguardar para ver o quão determinante terá sido para o resultado das eleições a sua decisão de cancelar as condenações do ex-presidente.

Fachin provocou uma catálise no processo de rearranjo político-partidário previsto para o início do segundo semestre. A campanha presidencial de 2022, que já vinha sendo caracterizada como uma das mais precoces da história contemporânea, tende a antecipar-se ainda mais.

O episódio dá dinamismo à pré-campanha. Mesmo sem um pré-candidato em campo, o PT já formulava um programa antagônico à agenda liberal da equipe econômica e ensaiava palavra de ordem capaz de contrapor o slogan do governo Jair Bolsonaro: “A vacina acima de tudo.” Lula deixará a função de titereiro para dominar o palco.

Bolsonaro, o maior interessado em reeditar o clima da disputa de 2018, ainda observa os eventuais desdobramentos da decisão do magistrado. Precisará equilibrar-se na tênue linha que divide o que seus apoiadores esperam ouvir e o que pode dizer o chefe do Executivo sem criar atritos com outro Poder.

O episódio também coloca sob pressão aqueles que esperam personificar uma terceira via. Entre eles, Ciro Gomes (PDT), que tem se mantido aquecido neste período de pré-campanha.

Meses atrás, esse espaço até poderia ser disputado pelo ex-ministro Sergio Moro, mas o ex-juiz da Lava-Jato é justamente o principal derrotado, do ponto de vista eleitoral, da decisão de Fachin. Sobra, portanto, cada vez menos tempo para que o apresentador Luciano Huck, o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), ou o ex-ministro da Saúde Henrique Mandetta (DEM) se posicionem no jogo. Os tucanos, para não ficarem a reboque, marcaram prévias para outubro.

Sob a condição de não ter seu nome revelado, um especialista que sabe das coisas assegurou: a decisão de Fachin não muda o pano de fundo que vinha sendo construído e a eleição de 2022 será um embate de “imaginários negativos”, ou seja, o antibolsonaro contra o antipetismo. Nesse contexto, ponderou o experiente consultor, Bolsonaro sai perdendo, pois quem vem agora para o embate é um Lula que o atual presidente da República não gostaria de enfrentar.

“Lula está renovado e cheio de gás”, explicou. “É outro Lula perante o Bolsonaro, mas não é outro Lula perante o Brasil”, acrescentou, referindo-se à grande popularidade do petista e à aprovação de suas administrações por parcela considerável da população.

Deve-se lembrar, também, que ele poderá dizer aos quatro cantos que, mesmo perseguido, não é mais um condenado. Seus adversários rebaterão afirmando que erros procedimentais do processo ou a conduta das partes não anulam o fato de que os governos do PT abrigaram diversos esquemas de corrupção. Com razão. O problema de Bolsonaro, porém, é que sua campanha terá dificuldades de sustentar o discurso anticorrupção de 2018.

“A mansão adquirida pelo seu filho é uma casa de horror, um bolo de chocolate para quem faz campanha política”, comentou essa fonte. “A questão ética não vai ser decisiva como foi na última eleição. Misturou tudo.”

Então, quem pode se beneficiar nessa conjuntura? Aquele que conseguir extrair o pior dos dois oponentes e surfar na onda antibolsonaro e antipetista. O momento do país também exige que os candidatos apresentem soluções para a crise. “Quem oferecer uma saída pode se deslocar. Isso quer dizer uma campanha positiva, um plano de governo e propostas para o país”, destacou. “É uma eleição de forças negativas, como foi a de 2018. Normalmente, quando isso acontece o natural é que se demonize a política. Agora, no entanto, é o contrário.”

Segundo essa visão, o momento exige uma liderança capaz de aglutinar forças, combater a pandemia e os efeitos da crise. Um cenário que pode ser desafiador para alguém de fora da política tradicional.

Precipitada a entrada de Lula na disputa, um dos principais desafios de Bolsonaro será acelerar a consolidação de sua imagem no Nordeste. Um fator que poderá dificultar essa entrada é a relação conflituosa que vem mantendo com governadores. Por outro lado, o presidente tenta capturar bandeiras da oposição, com a reformulação do Bolsa Família, inaugurações de obras da transposição do rio São Francisco ou a ampliação do acesso à água.

Na opinião desse especialista, sem novas ideias, dinheiro e boa gestão, resta ao presidente aproximar-se das marcas de outros governos. “Ele provoca danos cognitivos fortes não só no seu eleitorado, mas no público médio” com o vai e vem de seu discurso e essa confusão narrativa, apontou a fonte. “Ele faz uma subversão da linguagem e dos significados”, completou, citando como exemplo o fato de se cogitar a entrada do presidente no Partido da Mulher Brasileira (PMB). Em 2018, ele foi alvo de ampla campanha negativa do público feminino, que levantou a "hashtag" #elenão. Sua filiação à sigla poderia lhe garantir uma espécie de vacina contra estratégia semelhante.

Outra notícia negativa para Bolsonaro é a capacidade de mobilização de Lula, num momento em que o presidente corre o risco de ver crescer os panelaços ou até mesmo movimentos de rua.

Ele pode insistir no discurso de que existe o risco de o Brasil virar uma Argentina ou uma Venezuela, se a esquerda voltar ao poder. No entanto, o exemplo de outro vizinho deveria gerar maiores preocupações, neste momento, no Palácio do Planalto: o presidente do Paraguai, aliado de Bolsonaro, tenta conter protestos e escapar de um processo de impeachment por suposta negligência no combate à covid-19. “O que existe não é um sentimento de letargia. É um acúmulo depressivo que vai ser vomitado uma hora”, concluiu o especialista. O acirramento do ambiente não ajudará o país a solucionar os seus problemas.


César Felício: Lula está de volta ao jogo

Anulação das condenações do petista, em tese, poderia ser comemorada pelo presidente Jair Bolsonaro

A decisão do ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, de anular as condenações do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na 13ª Vara Federal recoloca o petista na vida pública, deve levá-lo à sexta candidatura presidencial em 2022 e, em tese, poderia ser comemorada pelo presidente Jair Bolsonaro.

Ficaria desde já praticamente definido o segundo turno da eleição. Lula, com alta rejeição, concorrendo virtualmente sem alianças. Bolsonaro, com alta rejeição e a sustentação do centrão, por conveniência política, e do mercado, por exclusão.

Nestas circunstâncias - a da eleição se converter em um duelo de rejeições - Bolsonaro tem mais margem de manobra, por contar com todo o instrumental disponível a um presidente candidato à reeleição.

A carreira política de Lula é tão longa que o ex-presidente já encarnou vários papéis. Ele já foi o artífice do aliancismo, em 2002 e 2006, quando se compôs com setores do empresariado e da política presidencial. Já teve uma aliança limitada à esquerda, em 1998, quando Leonel Brizola se rendeu a ser vice em sua chapa. Caprichou na veia messiânica em 1994, antes de ser atropelado pelo Plano Real e por Fernando Henrique como a solução de todos os males do país. E viveu a fase radical em 1989, na sua primeira tentativa.

O Lula de 2022 tende a ser mais parecido com o do início da sua caminhada. Não pelo radicalismo, mas pelo isolamento. É uma candidatura em primeiro lugar de resgate histórico, de fazer prevalecer a narrativa que o país foi vítima de golpes entre 2016 e 2018 para alijá-lo da cena política.

Dele pode se repetir em parte o que Talleyrand falou a respeito de Luis XVIII, o Bourbon restaurado no trono da França após a queda de Napoleão Bonaparte: nada esqueceu e nada aprendeu. Que nada esqueceu é o que tudo indica. O ex-presidente, pelas suas colocações desde que saiu da prisão, parece mais disposto a promover um ajuste de contas do que promover uma conciliação nacional. Nada aprender, no sentido dado por Tallleyrand, é repetir as mesmas práticas que levaram à sua derrocada. Isso o tempo ainda dirá.


Sergio Lamucci: Economia caminha para um semestre perdido

Primeira metade do ano deverá ser marcada pela combinação de atividade fraca e inflação ainda elevada

A economia brasileira terá mais um ano difícil em 2021, especialmente no primeiro semestre, marcado pela combinação de atividade fraca e inflação ainda elevada. Com o avanço do número de casos e mortes pela covid-19 e a vacinação lenta, a adoção de medidas mais rigorosas de isolamento social se tornou necessária em muitos Estados e municípios, o que vai afetar especialmente o setor de serviços. Além disso, a volta do auxílio emergencial demorou, prejudicando a demanda nos primeiros três meses do ano, e não foi acompanhada de iniciativas mais firmes para controlar a expansão dos gastos públicos obrigatórios, o que mantém o câmbio sob pressão, num momento de alta dos preços de commodities. Em resposta à inflação mais elevada, o Banco Central (BC) deverá começar neste mês um ciclo de aumento dos juros, apesar da falta de fôlego da economia.

Além do ambiente doméstico difícil, o cenário externo pode ficar menos favorável para países emergentes como o Brasil. A alta das taxas de retorno dos títulos de 10 anos do Tesouro americano aponta para um quadro complicado para esse grupo de economias. A expectativa de um ritmo forte de crescimento nos EUA pode resultar numa elevação precoce da inflação, levando o Federal Reserve a retirar parte dos estímulos monetários antecipadamente, ainda que esse não seja o cenário com que trabalham os dirigentes do BC americano. O risco de um quadro externo mais adverso é causar uma desvalorização adicional do real, que segue muito mais depreciado do que sugerem fatores como os termos de troca (a diferença entre preços de exportação e importação) e a situação das contas externas.

O governo federal é o grande responsável pelo cenário negativo. A economia só terá chance de deslanchar com a vacinação em ritmo acelerado. Com a falta de planejamento na compra de imunizantes pelo Ministério da Saúde, o processo avança lentamente, custando milhares de vidas e atrasando a normalização da economia. Na semana passada, o país teve mais de 10 mil mortes por covid-19. Enquanto isso, o presidente Jair Bolsonaro minimiza a gravidade da crise sanitária, desdenha de medidas como o uso de máscaras e se opõe a decisões de maior isolamento social, apesar da escalada do número de casos e de óbitos, num momento em que o sistema de saúde de diversos Estados se aproxima do colapso.

A Tendências Consultoria projeta um crescimento de 2,9% em 2021, menos que a herança estatística que o ano passado deixou para este ano, de 3,6%. Isso significa que, se PIB não crescer nada em relação ao fim de 2020, a expansão será da magnitude do carregamento estatístico. “Ainda estamos trabalhando nos números trimestrais, mas a projeção de 2,9% embute a perspectiva de contração no primeiro semestre”, diz a economista Alessandra Ribeiro, sócia e diretora de macroeconomia e análise setorial da consultoria.

Em relatório da Tendências, os economistas Thiago Xavier e Lucas Assis destacam os fatores que contribuem para interromper a retomada da economia no começo do ano. “Do ponto de vista qualitativo, o contexto é de elevação de casos de covid-19, já superando os patamares registrados no auge do contágio em 2020, de redução do arsenal de políticas fiscal e monetária anticíclicas e de persistência da relativa pressão inflacionária corrente.” Segundo eles, é um ambiente especialmente difícil para os vetores fundamentais para a recuperação sustentável da economia no curto prazo, como a demanda das famílias, a atividade de serviços, o mercado de trabalho e a confiança do consumidor.

Os dois notam que a suspensão do auxílio emergencial desde janeiro é “uma limitação importante” para o consumo das famílias e para o PIB. O benefício vai voltar, mas num valor mais baixo e para um público menor, devendo vigorar por um período de quatro meses. O volume total do auxílio em 2020 superou R$ 293 bilhões, o que representa 4% do PIB total e 6% do PIB das famílias, observam os analistas da Tendências. Em tese, o auxílio neste ano estará limitado a R$ 44 bilhões, dadas as restrições fiscais.

O cenário para o investimento também se turva. O descontrole da doença gera tanto efeitos diretos, ao impedir a retomada do mercado de trabalho da construção civil e limitar a demanda por bens industriais, quanto efeitos indiretos, uma vez que a persistência de um quadro complicado para a pandemia é fonte expressiva de incertezas, afetando as decisões das empresas de investir, dizem Xavier e Assis. “Ao final, não há saída na direção de uma recuperação econômica sem superar inevitavelmente a pandemia da covid-19”, resumem eles.

Também atrapalham a retomada a taxa de câmbio excessivamente desvalorizada e os juros futuros elevados, pressionados pelas incertezas no campo fiscal e por fatores como a atitude mais intervencionista de Bolsonaro na economia. A volta do auxílio é necessária, mas deveria ser acompanhada por medidas mais consistentes de ajuste das contas públicas, como de controle dos gastos com pessoal. A versão da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) Emergencial aprovada na sexta-feira pelo Senado não tirou o Bolsa Família do teto de gastos, mas não embute regras mais duras de consolidação fiscal num prazo mais curto. Nesta semana, a Câmara dos Deputados deverá analisar o texto.

O dólar está próximo de R$ 5,70, afetando a inflação num quadro de alta forte das commodities. Para piorar, as taxas mais elevadas dos títulos de longo prazo dos EUA são preocupantes para emergentes como o Brasil - o rendimento dos papéis do Tesouro americano de 10 anos está perto de 1,6% ao ano, depois de começar 2021 em 0,93%. A aprovação do pacote de estímulo fiscal nos EUA, de US$ 1,9 trilhão, deve ajudar a manter essas taxas em nível alto.

Ao comentar o ambiente externo, Alessandra diz que, “de um lado, há crescimento mais expressivo nas principais economias e alta de commodities, o que seria positivo para o Brasil”, mas, de outro, há uma expectativa antecipada de aumento dos juros, com o receio de inflação maior. “Esse cenário pode ser mais difícil para emergentes, em especial para aqueles com fundamentos mais frágeis”, afirma ela. “No Brasil, o risco é um câmbio mais depreciado, maiores pressões inflacionárias, alta mais expressiva dos juros futuros e o BC tendo que ser mais agressivo no processo de normalização da política monetária”. Se concretizado, esse quadro vai afetar ainda mais o ritmo da economia brasileira, minando uma eventual retomada no segundo semestre, que depende primordialmente de um processo mais rápido de vacinação.


Bruno Carazza: São todos coniventes

O silêncio cúmplice dos pré-candidatos diante da pandemia

Há exatamente um ano, 45 pessoas - incluindo ministros, assessores, parlamentares e empresários - acompanharam o encontro de Jair Bolsonaro com o então presidente dos Estados Unidos Donald Trump.

O jantar no famoso resort de Mar-a-Lago, na Flórida, não trouxe nenhum resultado concreto em termos diplomáticos ou comerciais. Em compensação, 23 integrantes da comitiva brasileira retornaram contaminados com o novo coronavírus. Começava ali uma longa história de negativa da doença, dos seus efeitos e dos métodos cientificamente comprovados para combatê-la.

Bolsonaro é insensível à morte. Ao ordenar, na quinta-feira, “chega de frescura e mimimi”, nosso governante mais uma vez desrespeitou o luto nacional permanente em que vivemos desde o início do ano passado.

Logo no dia seguinte, porém, ao sair do Palácio do Alvorada, assegurou: “Até o final do ano acabou o vírus já, com toda a certeza". Essa frase deixa claro que há um cálculo bastante racional por trás de toda a sua psicopatia.

Na lógica macabra do presidente, mais dia, menos dia a maioria da população será vacinada e em outubro de 2022 o pior terá passado. Com um pouco de sorte - a manutenção das baixas taxas de juros internacionais, um novo boom de commodities e um generoso bônus estatístico depois das quedas de 2020 e do primeiro semestre de 2021 -, o candidato à reeleição poderá até se vangloriar de uma boa taxa de crescimento do PIB durante a campanha.

Com um exército de milhões de seguidores nas redes sociais e uma teia de grupos de WhatsApp com capilaridade em todo o Brasil, editoriais da imprensa, manchetes negativas na TV e notas de repúdio não o comovem - pelo contrário, lhe servem de alimento e incentivo.

Adorado por 30% do eleitorado, blindado pelo Ministério Público e com o Supremo Tribunal Federal acuado, não lhe interessa se morrem a cada dia mil, duas mil ou cinco mil pessoas.

Na sua desastrosa gestão da pandemia, só houve um episódio em que o presidente foi obrigado a recuar na irresponsabilidade. No início do ano, ameaçado duplamente pela possibilidade, ainda que remota, de aceitação de um pedido de impeachment por Rodrigo Maia e pelo marketing agressivo de João Doria com a vacina do Butantã, optou por moderar o discurso e tratou de acelerar os processos de aprovação e obtenção dos imunizantes.

Contudo, afastado o risco político com a vitória de Lira e Pacheco no Congresso e vislumbrando que Doria não decolou nas pesquisas, a morbidez voltou a ditar o rumo das ações presidenciais.

Esse episódio demonstra que Bolsonaro não se importa se ao final serão 300, 400 ou 500 mil brasileiros mortos - o que o move é o instinto de sobrevivência para permanecer no Palácio do Planalto até 2026.

Está cada vez mais claro que não há outro caminho para o governo adotar um comportamento responsável no combate à covid-19 se não for pela política. E tão chocante quanto a postura de Bolsonaro é a inação dos seus potenciais adversários nas próximas eleições.

No PT, Lula e Haddad concentram todos os seus esforços na reversão das condenações dos integrantes do partido na Lava-Jato. Enquanto isso, Ciro Gomes atira em todas as direções com o objetivo único de ser a alternativa da esquerda num eventual segundo turno em 2022.

Sergio Moro, por sua vez, submergiu diante das novas atividades profissionais como diretor de empresa que presta consultoria jurídica para empreiteiras envolvidas com corrupção.

Quanto a Luciano Huck, há quatro anos continua seu chove-não-molha de tuítes e artigos publicados em jornais, repletos de belas palavras e ótimas ideias, mas carentes da coragem de assumir-se como um verdadeiro político.

Cada um à sua maneira, todos parecem apostar na velha estratégia do “quanto pior, melhor”. Ao torcerem para a pandemia e a crise econômica corroerem a popularidade de Bolsonaro até as eleições, indiretamente Lula, Haddad, Ciro, Moro e Huck se mostram coniventes com as centenas de milhares de mortes pela covid-19.

O caos que se dissemina nas ruas, hospitais e cemitérios de todo o país exige que cada eventual candidato saia do conforto das suas contas de Twitter, onde criticam os descalabros do atual mandatário para seus seguidores, e assumam desde já a postura de liderança que prometem exercer a partir de 1º de janeiro de 2023.

Não se trata aqui da defesa de uma utópica formação de uma “frente ampla” com a definição antecipada de uma chapa única para concorrer à Presidência em 2022.

Há várias ações que os principais pré-candidatos poderiam tomar em conjunto para encurralar Bolsonaro politicamente e, assim, forçá-lo a combater seriamente a pandemia, a começar por uma intensa campanha na mídia tradicional e nas redes sociais em que todos se colocariam lado a lado na defesa da vacinação, do uso de máscaras e de ações efetivas de distanciamento social.

No Congresso, os pré-candidatos também poderiam se lançar num processo articulado com vistas, pelo menos, à aprovação de uma CPI mista para investigar as responsabilidades do governo federal pelas mortes pela covid.

Unidos, os aspirantes ao Planalto também poderiam empreender um giro internacional buscando alertar os demais países da gravidade da situação brasileira e dos riscos que ela representa para o mundo em termos de novas variantes do vírus, tentando assim acelerar a obtenção de novas doses das vacinas.

Em botânica, existe um outro sentido para o termo “conivente”. Trata-se de estruturas que na base são separadas, mas cujos ápices se inclinam e se aproximam até se contactarem, mas sem se fundir - como certas flores, em que filetes independentes se unem para tornar mais eficiente o processo de polinização.

Lula, Haddad, Ciro, Moro, Huck, Doria e qualquer um que queira se lançar candidato no ano que vem têm diante de si a escolha de qual significado darão para sua “conivência”: se, pela omissão, serão sócios de Bolsonaro na morte de outros milhares de brasileiros ou se, juntos, abrem mão de diferenças pessoais e ideológicas para pressionar o governo a pôr fim ao estado de calamidade em que nos encontramos.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


Cristiano Romero: 'O Brasil é administrado por um software'

Vinculação de receitas foi instituída na hiperinflação

Durou poucos dias, menos de uma semana, a chance de o Congresso Nacional analisar a possibilidade de desvincular receitas orçamentárias. O relator da PEC Emergencial no Senado, Marcio Bittar, tirou a proposta da emenda, antes mesmo de levá-la à votação. Quem perde são justamente aqueles que os maiores defensores das vinculações dizem representar: os mais pobres, os que, na "corrida" de oportunidades da democracia, largam atrás dos ricos, dos corporativistas, dos donos do Estado, enfim, dos donos do poder.

As vinculações orçamentárias existem há muito no tempo não só na Ilha de Vera Cruz, mas em muitos outros países. No caso brasileiro, o atual sistema de vinculação foi instituído pela Constituição de 1988. Esta, lembremo-nos, foi debatida e formulada na saída de uma longa ditadura, quando, naturalmente, a sede de justiça social neste território marcado secularmente pela iniquidade social estava reprimida.

A Assembleia Nacional Constituinte reuniu as mais díspares forças políticas para escrever a Carta Magna da democracia que teríamos dali em diante. Nasceu, então, a Constituição "cidadã", como a batizou a principal liderança política da Nova República, o deputado Ulysses Guimarães, então presidente da Câmara, morto num acidente de helicóptero em 1992.

Se por um lado, aproximou-nos de um projeto de civilização ao consagrar como cláusulas pétreas direitos e garantias fundamentais a igualdade entre nós, independentemente da etnia, da origem, do sexo, da idade etc, bem como ao acabar com a censura e ao dar a todos acesso universal gratuito à educação e à saúde, a Constituição de 1988 acolheu interesses de grupos específicos, acostumados historicamente a receber mais do Estado do que a maioria.

A Constituição de 1988 foi elaborada em meio a um contexto macroeconômico aterrador: o descontrole inflacionário, a hiperinflação, as sucessivas derrotas do país no enfrentamento do mal que vinha desorganizando o sistema produtivo nacional, concentrando renda e sabotando o futuro.

É evidente que, num ambiente como aquele, criou-se terreno fácil para a adoção de dispositivos de caráter populista, como a fixação de um limite para a taxa de juros (12% ao ano), a vinculação de receitas para obrigar os governantes a aplicarem recursos em educação e saúde, a indexação do piso da Previdência Social à variação do salário mínimo e a concessão de benefícios impagáveis ao funcionalismo, como a aposentadoria integral, estabilidade no emprego para todas as categorias e a paridade de reajuste salarial entre servidores públicos da ativa e aposentados.

O texto constitucional determina que a União aplique, anualmente, nunca menos de 18%, e os Estados, o Distrito Federal e os municípios, 25%, no mínimo, da receita resultante de impostos, incluída aquela proveniente de transferências, "na manutenção e desenvolvimento do ensino". Segundo os dados oficiais, a União tem se mantido com folga acima do patamar indicado, e o texto de gastos, instituído por emenda constitucional em 2017, não alterou isso.

A vinculação, talvez, tenha tido seu mérito nos primeiros pós-1988 porque, de fato, era preciso ter mais recursos para cumprir uma das metas fixadas pela nova Constituição: universalizar o acesso das crianças ao ensino fundamental (o antigo 1º grau). No fim da década de 1980, o índice de matrícula nessa faixa estava em 80%, um vexame em qualquer lugar, mas, especialmente, num país que figurava entre as dez maiores economias do planeta. No fim da década de 1990, a taxa subiu para 97%, certamente, uma conquista comemorada por todos.

Nota do redator: em 1953, ano da campanha popular "O Petróleo é Nosso", que resultou no ano seguinte na fundação da estatal Petrobras, detentora de monopólio na exploração de petróleo nos 44 anos seguintes, apenas 25% das crianças estavam na escola. Isso mostra como, na Ilha de Vera Cruz, os mais pobres nunca são consultados sobre quais devem ser as prioridades do país.

O que vemos hoje, porém, é o desgaste do modelo de vinculações orçamentárias. A despesa da União com previdência está hoje em torno de 60% das receitas orçamentárias. Atribua-se a maior parte dessa conta às benesses concedidas ao funcionalismo e o atrelamento do piso do INSS ao salário mínimo, ambos previstos na Constituição de 1988. Some-se a isso as vinculações com saúde e educação, o gasto com pessoal, outras vinculações menores e o sem-número de incentivos fiscais e subsídios concedidos a grupos de interesse específico, o que se tem é um orçamento engessado, onde apenas 5% das receitas são discricionariamente gastas a partir de decisões tomadas pelo presidente eleito pela maioria dos eleitores. A rigidez se repete, evidentemente, nos orçamentos de Estados e municípios.

"O Brasil é administrado por um software", disse, antes de deixar o cargo de secretário do Tesouro Nacional, Mansueto Almeida, numa feliz referência à rigidez orçamentária que nos governa.

A primeira reação ao debate da desvinculação de receitas é: "Os governantes não investirão mais nada em educação e saúde". Ora, isso é uma enorme bobagem, afinal, a despesa deixará de existir? É claro que não! Hoje, a vinculação é um incentivo perverso ao gasto ineficiente, ao desperdício e à corrupção.

No interior do Ceará, modelo de avanço nos índices de atendimento e qualidade na educação fundamental, os municípios com melhor desempenho no Ideb são os que têm desembolsado recursos abaixo da vinculação. Como explicar isso?

Dias e Ferraz (2020) demonstram que pode haver ganhos, ainda que modestos, no número de votos para prefeitos candidatos à reeleição em municípios em que o Ideb foi divulgado e em que houve algum aumento nos índices de qualidade em educação. Da mesma forma, para municípios com escolas com pior desempenho, a divulgação da informação levou a uma redução na proporção de votos recebida pelo prefeito incumbente.


Fernando Exman: Agenda da retomada deixada para depois

Relação federativa enfrenta novas dificuldades

Na primeira quinzena de 2021, talvez ainda comovidos com as festividades de fim de ano e o novo ciclo que se iniciava, alguns governadores demonstravam relativo otimismo em relação ao primeiro semestre.

O programa nacional de imunização contra a covid-19 acabava de ser apresentado pelo Ministério da Saúde, após pressão do Judiciário e intensos embates entre o Executivo, governadores e prefeitos. Havia a esperança de que seria realizada, a curto prazo, uma reunião com o presidente Jair Bolsonaro e seus auxiliares para a discussão não só de como rapidamente imunizar a população, mas do reaquecimento da economia.

Embora hoje essa ideia pareça tão distante quanto a imunização total da população brasileira, à época a expectativa era até justificável. Ainda se acreditava na possibilidade de confirmação da tal recuperação em formato de “V”, tão prometida pelas autoridades federais e que depois foi sendo substituído no discurso oficial para algo como “o símbolo da Nike”. Ou seja, uma retomada menos vigorosa, após o fundo do poço ter sido atingido. Ainda se aguarda a concretização desse rebote.

A rápida recriação do auxílio emergencial era vista, pelos governadores, como um pressuposto para que melhores perspectivas surgissem no horizonte. Isso sem contar o fato de que a economia local e a arrecadação de Estados e municípios também dependeriam da manutenção do poder de compra da população. Os governadores estavam confiantes que não haveria muitas dificuldades para o repasse de novas parcelas de R$ 300 para as contas das famílias mais miseráveis do país.

Na sequência, seria natural que governo federal, governadores e prefeitos debatessem em conjunto formas de melhor direcionar o investimento público. Não só as verbas discricionárias dos ministérios, mas também os recursos sob os cuidados dos Estados e municípios, de modo a otimizar esforços, gerar empregos e rapidamente melhorar a imagem do Brasil entre os investidores estrangeiros. Constaria da pauta, ainda, formas de destravar concessões e parcerias-público-privadas (PPPs) - iniciativas que não representariam riscos ao teto de gastos e, ao mesmo tempo, colocariam novamente as engrenagens da economia para se mover nas mais diversas regiões do país.

Era o plano. E o gatilho que gerava esse sentimento entre os governadores era justamente a apresentação do aguardado programa nacional de imunização. Não é de surpreender, portanto, que esse planejamento inicial não se confirmou.

O conflito entre o presidente da República e os governadores voltou à pauta extrapolando os limites antes delineados por Bolsonaro. Seus ataques não se direcionam mais apenas aos governadores que poderiam lhe representar algum risco direto nas eleições de 2022, como João Doria ou Wilson Witzel. Passaram a ser horizontalizados. Colocaram todos os governadores, de partidos aliados inclusive, na linha de tiro.

Primeiro o presidente enviou ao Legislativo um projeto de lei complementar propondo mudanças no cálculo do ICMS sobre combustíveis, uma das fontes de arrecadação dos Estados. O objetivo é dar mais estabilidade aos preços, facilitando principalmente a vida dos caminhoneiros, categoria alinhada a Bolsonaro.

A equipe econômica argumenta que o projeto não gera necessariamente perdas aos Estados e ao Distrito Federal, pois estes manteriam autonomia para fixar alíquotas e garantir os atuais patamares de arrecadação. Por outro lado, o simples ato de apresentar a proposição já gerou um ônus político aos governadores, que irão se ver obrigados a explicar aos eleitores por que o governo federal estaria sozinho na busca para reduzir os preços dos combustíveis. O projeto tenta ressuscitar uma ideia que já foi bombardeada duas vezes no Congresso e acabou não prosperando, mas para o presidente o que interesse mesmo é um álibi a apresentar durante a campanha à reeleição.

Mais deselegante foi a recente postagem de Bolsonaro detalhando repasses federais para cada Estado, entre elas transferências obrigatórias. A publicação incluiu valores para a saúde, a suspensão ou a renegociação de dívidas, até o auxílio emergencial cujo valor foi elevado após pressão dos congressistas. Novamente os governadores ficaram politicamente expostos, mas desta vez o interesse deles se uniu a um movimento já em andamento em Brasília.

Entre a linha de tiro e os alvos do presidente, posicionou-se o Congresso. Bolsonaro ajudou a acelerar as articulações entre os governadores e a nova cúpula do Legislativo, que vem intensificando os esforços para que deputados e senadores tenham cada vez mais poder sobre o manejo das verbas orçamentárias. O que os parlamentares querem acabar é justamente com a personificação das benesses resultantes da execução do Orçamento-Geral da União na figura do chefe do Poder Executivo. Bolsonaro pode acabar facilitando a vida dos defensores da ideia.

Essa aliança tática pode gerar ainda outros constrangimentos a Bolsonaro. Deputados e senadores insistem, por exemplo, no estabelecimento de prazos para a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovar as vacinas, na liberação da compra dos imunizantes pela iniciativa privada e podem aliviar a situação dos Estados e dos municípios na PEC emergencial.

O governo precisará de apoio para que o programa nacional de imunização, o plano gerido pelo Ministério da Saúde, seja o único instrumento de imunização da sociedade. As discussões sobre “lockdown”, que Bolsonaro tenta evitar, necessariamente passarão por eles.

Prefeitos e empresários pressionam o Congresso para que isso seja flexibilizado. Laboratórios estão sendo procurados para que importem ou produzam de forma autônoma as vacinas o mais rápido possível, inclusive unidades veterinárias que poderiam rapidamente ser adaptadas. Os gestores estaduais também se preparam para os debates que a pandemia fomentará em 2022 e com certeza cobrarão a falta de resposta à agenda de retomada.


Cristiano Romero: Desvinculação pode fortalecer democracia

Pandemia não mudou viés liberal da agenda econômica

Em novembro de 2018, definida a vitória de Jair Bolsonaro na eleição presidencial, Paulo Guedes, escolhido para ser o ministro da Economia do novo governo, foi a Brasília tomar pé da real situação fiscal do país. Foi recebido no Palácio do Planalto pelo então presidente Michel Temer, o ministro Moreira Franco (articulação política), o presidente do Senado, Eunício Oliveira (MDB-CE) e o líder do governo no Senado, Romero Jucá (MDB-RR). Temer queria saber de Guedes que plano ele tinha para a então 7 economia do planeta.

Os encontros não se limitaram aos integrantes da cúpula do governo e do Congresso. O atual ministro se reuniu também, na ocasião, com o presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli. Com o entusiasmo típico de quem chega a Brasília achando que, a bordo de suas (boas) ideias, a Ilha de Vera Cruz finalmente saltará do século XIX para o XXI, Guedes disse a todos, com sinceridade desconcertante, o que discorrera a Temer.

"Olha, vocês têm uma vida muito difícil hoje porque 96% do orçamento está carimbado. Vocês são eleitos, têm que tentar pegar cargos nas estatais para desviar recursos para financiamento de campanha, que é assim que financiamento político é feito no Brasil. Aí, vocês têm que fugir do [juiz] Sérgio Moro por dois, três, quatro anos. Se tudo der certo, vocês são reeleitos. Quando vocês são reeleitos, o jogo político é 'voltem para a casa 1 [do tabuleiro]'. Vocês, então, começam tudo de novo. Mas, aí, no terceiro ou quarto mandato, serão presos", observou Guedes, segundo depoimento de participantes daqueles convescotes.

"Por exemplo, o Aécio Neves, a Dilma Rousseff e o Lula estão acossados. Quase pegaram o senhor, presidente Temer. Os senhores acham que essa é uma forma razoável de viver?", indagou o ministro para, na sequência, expor aos interlocutores seu plano mais ambicioso. "O que nós queremos é devolver os orçamentos e a responsabilidade dos orçamentos para a classe política. Para quê? Para não ter que fazer um financiamento lateral [de campanha], tortuoso, todo equivocado. Vocês têm que ser eleitos porque fizeram boas coisas com suas decisões e não porque desviaram mais recursos [públicos] para seus financiamentos de campanha", prosseguiu Guedes, colhendo dos poucos espectadores um silêncio profundo, "ensurdecedor" para quem não acha palavras nem argumentos racionais que desembaracem o constrangimento generalizado.

Temer, o mais eloquente dos ouvintes, disse apenas: "Ousado. Teria todo o meu apoio se eu estivesse aqui". Quebrando um liturgia do cargo de primeiro mandatário da República, o entãio presidente levou Paulo Guedes ao elevador e o acompanhou até o térreo.

Três dias depois, Guedes foi convidado para almoçar com os então presidentes do TCU, José Múcio Monteiro, do STF, Dias Toffoli, e do STJ, João Otávio Noronha. O ministro repetiu sua pregação pela desvinculação das receitas _ como obriga a Constituição nos casos da saúde e da educação _ e a desindexação das despesas, como os benefícios da previdência.

Guedes expôs, então, a ideia de criação do Conselho Nacional da República, que reuniria, a cada três meses, os chefes do três poderes da República para discutir a situação fiscal do país, uma ideia, de fato, fabulosa, embora inexequível para país dominado por uma chaga secular chamada "pa-tri-mo-ni-a-lis-mo", a mais vil de todas as correntes da corrupção e a mais intocada, aceita e defendida de peito aberto pelos donos do poder nesta Ilha de Vera Cruz desde a invasão dos europeus, em 1500.

Nota do redator: se alguém necessita de desenho para entender o que é patrimonialismo, segue aqui humilde sugestão _ é a ideia de os usuários do poder, em todas as suas categorias (funcionalismo público, políticos, empregados de estatais, sindicatos patronais e de trabalhadores e empresas privadas fornecedoras de bens e serviços para o Estado), sejam _ ou se sintam e se comportem como _ donos da coisa pública. Sãos os donos, literalmente, daquilo que chamamos de República.

Entusiasmadíssimo com a explanação do futuro ministro da Economia, Toffoli reagiu da seguinte maneira: "Nós vamos para a História se tivermos essa coragem. Vamos dormir no Brasil e acordar nos Estados Unidos, na Alemanha, em qualquer país desenvolvido do mundo porque é isso o que acontece”.

O Plano Guedes, que já foi chamado de Plano Mansueto, morreu com a pandemia, mas renasce agora com a vontade política decisiva de um presidente da Câmara, Arthur Lira, disposto a brigar por ideias polêmicas.

Ontem, na “Live do Valor”, Lira detalhou a agenda econômica ambiciosa que pretende votar até o fim deste ano. Entre os temas mencionados, constam, nesta ordem de importância, a PEC Emergencial que institui regras para o "shutdown" da União, dos Estados e municípios, isto é, os mecanismos que os entes da Federação poderão usar para enfrentar crises fiscais provocadas, por exemplo, por situações de calamidade pública, como a pandemia.

O ponto mais importante e polêmico da PEC, porém, é a proposta de desvinculação de receitas _ como as existentes na educação e na saúde, fixadas na Constituição _ e a desindexação de algumas despesas. Lira tem convicção de que a desvinculação, que vem sendo debatida desde o governo Collor (1990-1992) _ tem chance de ser aprovada pelo Senado, onde tramita a emenda neste momento, e depois pela Câmara.

O presidente da Câmara sustentou que a rigidez orçamentária, decorrente da vinculação de receitas, provoca ineficiência nos gastos, e a educação comprovaria isso, uma vez que o país desembolsa hoje algo em torno de 6% do PIB, mas a qualidade do ensino público básico e fundamental só piora.

O deputado informou que, se o Senado aprovar a PEC ainda nesta semana, a Câmara poderá usar rito sumário para votar a PEC, uma vez que as comissões da Casa ainda não foram instaladas _ o regimento permite que, neste caso, a matéria (a PEC) possa ser votada sem ter que percorrer todo o caminho tradicional (admissibilidade pela Comissão de Constituição e Justiça, apreciação por comissão especial criada para essa finalidade etc).


César Felício: As buscas por uma nova narrativa

Uma história que pare em pé é o que o mercado quer ouvir

As eleições de Arthur Lira e Rodrigo Pacheco desviaram os olhos dos protagonistas do mercado para o lado direito da Praça dos Três Poderes: é sobre o presidente Jair Bolsonaro que recaem todas as atenções e é dele que se espera palavras e atitudes que mantenham o país dentro da canaleta cavada pela praça financeira.

Ou o ímpeto de agradar o mercado partirá de Bolsonaro, ou não haverá nada. É dura a vida: fica agora uma missão difícil para o Bolsonaro e o mercado. O primeiro terá a tarefa de ser um guardião da racionalidade econômica e o segundo precisará acreditar nisso.

Para gente que opera forte na Faria Lima, Lira e Pacheco só representam ganho em relação a Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre por serem menos conflitivos em relação ao presidente. Deixam, portanto, a pista livre para que Bolsonaro demonstre se tem algum compromisso com a agenda liberal e de reformas ou não. No tempo de Maia era admissível pensar em uma pauta reformista com o presidente jogando contra ou até atrapalhando, e a votação da emenda da Previdência mostrou isso. Com Lira essa hipótese é inconcebível.

O presidente ganhou pontos com a banca no fim do ano passado, quando deixou o auxílio morrer. Outros eram os tempos, porém. A popularidade de Bolsonaro estava em alta, a segunda onda da covid-19 ainda não tinha começado e a eleição das Mesas não estava definida.

É com o dedo no gatilho, portanto, que operadores assistem a discussão sobre a recriação do auxílio emergencial. A depender da condução do tema, pode ser desencadeada uma queda de confiança, com retirada de capitais, depreciação da moeda, baixa na Bolsa etc.

Aceita-se como um fato consumado a necessidade de se estabelecer uma ajuda temporária de R$ 200. É quase certo, contudo, que este valor vai subir quando chegar ao Parlamento. Ontem o presidente confirmou que a nova injeção de óleo canforado começa em março, dura “três ou quatro meses”, mas nada falou sobre o montante.

Aguarda-se com ansiedade que Bolsonaro compre a tese de negociar com o Congresso o estabelecimento de contrapartidas, que necessariamente serão impopulares. A PEC do Orçamento de guerra, com dispositivos de corte de gastos, pode entrar na estratégia em que o governo entrega à vista a despesa social, pagando o auxílio já, em troca de controle de gastos à prazo, com a aprovação de medidas legislativas.

Não é propriamente um ajuste, é uma sinalização, mas bastaria isso para segurar em um primeiro momento o descontrole das expectativas frustradas. Como disse um gestor de fundos, seria “uma historinha que para em pé”. O problema é não ter nem isso, e não se sente no Congresso Nacional garantia de que isso haverá. Aí agentes do mercado financeiro podem chegar à desagradável conclusão que Rodrigo Maia podia se estapear com os bolsonaristas, mas entregava mais para a banca. Lira é mais silencioso, porém pode ser menos efetivo.

Sergio Moro

O triste fim da Lava-Jato prenuncia a provável suspeição de Sergio Moro no STF e o restabelecimento da elegibilidade do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Petista de longa data e ator privilegiado de toda voragem política que convulsionou o Brasil por uns anos, o ex-ministro da Justiça José Eduardo Martins Cardozo assiste de camarote.

“A estrutura de combate à corrupção não nasceu com a Lava-Jato e nem terminou com ela. Assim como seria ingenuidade achar que o abuso ao estado de direito começou e terminou ali”, comentou.

Cardozo foi ministro da Justiça entre 2011 e 2016. À frente da pasta, viu a Lava-Jato nascer e não interferiu em seu funcionamento. Dá a entender que não havia condições políticas para tal. “Se tivéssemos interferido na Polícia Federal como Bolsonaro fez no ano passado, teríamos apressado o processo de impeachment. Ficaria configurado o crime de responsabilidade”, afirmou. Naquele tempo, na visão de Cardozo, “ as abusividades tinham grande apelo popular”.

O avanço de Bolsonaro sobre a Polícia Federal foi possível, segundo o petista, porque se deu em uma circunstância de perda de expressão do Moro.

“A ida de Moro para o Ministério da Justiça foi o ponto inicial para se enxergar a politização da operação. Até então a presença dele na magistratura bloqueava essa percepção. O escândalo do vazamento das mensagens com os procuradores fez o desgaste avançar”. Ou seja, Moro já estava em plano inclinado quando entrou em colisão com o presidente. O artífice do vendaval que sacudiu o país teria plantado, assim, a semente da própria destruição.

Como a estrutura de combate à corrupção no Brasil não foi desarmada, na visão de Cardozo, Bolsonaro corre riscos em sua aliança com o Centrão. Não agora, mas em um futuro ainda remoto. “A história pode mostrar que há certas vitórias que são derrotas. Michel Temer se blindou no Congresso, mas não se livrou de problemas ao sair do cargo. Dilma Rousseff poderia ter problemas semelhantes se fizesse o mesmo. Há preços que não se podem pagar”, comentou.

Ele se refere, claramente, à barganha que o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, buscou estabelecer em dezembro de 2015. Se Dilma e o PT o apoiassem no Conselho de Ética, onde enfrentava um processo de cassação do mandato decorrente das revelações da Lava-Jato, Cunha engavetaria o pedido de impeachment. “O governo teria sido preservado, mas a que custo? A um custo que cobraria sua fatura mais adiante”.

Cardozo hoje se dedica apenas à advocacia, mas opina sobre 2022. Afirma que nunca esteve tão afastado da vida partidária como agora, desde que se tornou secretário municipal de governo, na gestão Erundina, aos 27 anos. “O que o PT quer é a candidatura do Lula, isso é o ideal. Porque representa um resgate histórico. Não há como fugir dele”.


Cristiano Romero: País convive com herança estatal do II PND

Apesar das polêmicas, todo governo reduz Estado na economia

Embora não tenham desmontado inteiramente, até os dias atuais, o modelo nacional desenvolvimentista que faliu durante a crise da dívida, em 1982, todos os presidentes, desde então, diminuíram a participação do Estado brasileiro na economia. Praticamente todos privatizaram ou concederam ao setor privado a gestão de serviços públicos como rodovias, telefonia e aeroportos, algo, ainda hoje, impensável para os defensores de um Estado utópico, provedor de bens e serviços de qualidade.

O fato de todos os governos terem vendido estatais significa que o modelo de desenvolvimento exauriu-se, isto é, tornou-se insustentável do ponto de vista de seu financiamento tanto fiscal (recursos públicos) quanto externo (dívida bancária). O negacionismo dessa realidade - o pior defeito de um governante - por setores da burocracia estatal, do empresariado, da classe média e do meio político à esquerda e à direita produziu nas décadas seguintes a ruína econômica, traduzida pelo advento da hiperinflação, pela queda brutal da taxa média de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB), pela deterioração da infraestrutura, pela forte contração das taxa de investimento dos setores público e privado etc.

O II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND) foi lançado em 1974, no governo Geisel (1974-1979), como resposta à crise internacional provocada pela primeira crise do petróleo. O objetivo, conforme anunciou o então presidente na ocasião, era evitar que a Ilha de Vera Cruz caísse numa recessão.

Bem, o II PND não foram medidas tópicas, conjunturais, como redução de impostos, corte de juros ou oferta de crédito oficial subsidiado, mas, sim, um amplo conjunto de iniciativas, envolvendo o governo, o setor privado e o capital externo. Foi a maior intervenção do Estado na economia na história deste território. O objetivo do II PND era dotar o país de infraestrutura comparável à de nações ricas, de um poderoso setor de bens de produção (nos setores siderúrgico, de química pesada, metais não ferrosos e minerais não metálicos) e de energia (petróleo e derivados, energia hidroelétrica e fontes alternativas como etanol e energia nuclear).

Foram durante aqueles anos que o número de estatais atingiu o ápice (382, segundo estudo da OCDE de 2017, realizado a partir de dados fornecidos pelo governo brasileiro). Toda a estratégia só seria viável se a taxa de juros, o custo dos quase US$ 100 bilhões que o país tomou emprestado na década de 1970, jamais subisse aqui e no mercado, “eppur si muove” (mas, ela se move).

Com a segunda crise do petróleo, deflagrada em 1979, a inflação americana escalou degraus até chegar a 20% e, para abaixá-la, o Federal Reserve (Fed, o banco central dos Estados Unidos) moveu as taxas de juros com a mesma intensidade.

Uma continha rápida, grosso modo, evidentemente: no início daquela década, o país chamado Brasil devia pouco mais de US$ 6 bilhões ao exterior e o juro no mercado internacional era negativo; no início da década de 1980, a dívida estava em US$ 100 bilhões, e a taxa de referência do Fed, acima de 20%. Que tal?

A crise da dívida, “a mãe de todas as crises”, se deu em 1982, quando o presidente era o general João Baptista Figueiredo, o último da longa ditadura militar (1964-1985) instaurada por aqui. Já movido pela necessidade de desidratar o Estado criado pelo II PND, Figueiredo instituiu o Programa Nacional de Desburocratização (Decreto n 83.740/79), liderado por Hélio Beltrão e o que mais fez pela “causa”, e criou a Secretaria Especial de Controle das Empresas Estatais (SEST).

“Foi a primeira manifestação concreta de uma preocupação com o gigantismo estatal, com o claro objetivo de introduzir uma primeira agenda de reforma do Estado”, diz Luiz Chrysostomo de Oliveira Filho, especialista no tema das privatizações, tendo trabalhado na modelagem de algumas operações quando trabalhou no BNDES. “A primeira Comissão de Especial de Desestatização foi criada em 1981 [Decreto Presidencial 86215/1981] e fixou normas para transferência e desinvestimentos das empresas controladas, identificando na ocasião 140 prontas para serem vendidas.”

No governo Sarney (1985-1990), o tema privatização começou a ser discutido e, pela primeira vez, associou-se a venda de estatais à redução do endividamento público interno e externo (via conversão de dívida). Até hoje, alguns críticos fazem muxoxo em relação a isso, esquecendo-se de um fato importante: aquela miríade de estatais foi criada às custas do endividamento interno e externo do país. Nada mais justo e razoável que o dinheiro arrecadado com a venda seja destinado à amortização da dívida.

O governo Sarney tentou, com a edição de vários decretos, ampliar o alcance do programa de venda das empresas, observa Chrysostomo, mas foi muito pressionado por grupos de interesses privados a não privatizar nada.

“O Brasil vem realizando diversas desestatizações há mais de 30 anos, incluindo-se modelos de venda de controle, vendas de participação minoritária, concessões públicas e parcerias público-privadas (administrativas ou patrocinadas), presentes em todos os entes da federação”, conta Chrysostomo, que trata do assunto no livro “Reforma do Estado no Brasil” (Atlas, 2020), organizado pelo economista Fabio Giambiagi.