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Andrea Jubé: Em política, fundo do poço tem mola

Grupo de Renan venceu Alcolumbre em palco secundário

As velhas raposas do Congresso ensinam que se pode cobrar quase tudo de um político no cemitério: que conforte a viúva, segure uma das alças do caixão, encomende a coroa de flores. Só não se pode exigir desse político que pule no buraco e se aconchegue do lado do morto.

Político tem instinto de sobrevivência como os animais. Um decano do Congresso ilustra, por exemplo, um erro de articulação de amador cometido pelo ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia (DEM-RJ), ao tentar atrair deputados para o bloco de Baleia Rossi (MDB-SP) no papel de franco atirador contra o presidente Jair Bolsonaro.

Este político veterano lembra que os deputados no segundo biênio do mandato estão focados na reeleição. Por isso, não querem confronto com o governo - qualquer governo.

Ao contrário, procuram afinar a relação com o Executivo para assegurar emendas para sua base eleitoral, fidelizar prefeitos, e assim, pavimentar o caminho para o sucesso nas urnas.

Convencer um parlamentar a brigar com o governo a dois anos de sua reeleição é o mesmo que convidá-lo para saltar no buraco e se aconchegar ao morto dentro do caixão. Na vida real, discurso de independência na relação com o Executivo é conversa para boi dormir.

Um dos políticos mais experientes da cena política, o ex-senador Heráclito Fortes, do DEM do Piauí - um quadro que conviveu com figuras como Ulysses Guimarães e Eduardo Campos - costuma lembrar que, em política, fundo de poço - ou de buraco - tem mola.

Seu partido agonizou na era Lula, e emergiu como uma das principais forças políticas do último pleito. Independente do embate público entre Rodrigo Maia e ACM Neto, o DEM voltou com protagonismo ao palco político.

A metáfora do poço com mola no fundo vale para o MDB de Renan Calheiros (AL) no Senado. O observador distraído dirá que a bancada perdeu pela segunda vez a luta contra Davi Alcolumbre (DEM-AP) pela presidência da Casa. Mas um observador atento alertará que Renan ganhou a revanche contra Alcolumbre no fundo do palco.

O grupo de Renan derrotou um importante aliado de Alcolumbre na eleição para a primeira vice-presidência, o segundo cargo na hierarquia do Senado.

Num segundo “round”, o grupo liderado por Renan mira mais dois cargos estratégicos, com poder de fogo para elevar a pressão contra o governo: a presidência da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), cobiçada por Alcolumbre; e a presidência da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Saúde.

Nas articulações pelo apoio à candidatura de Rodrigo Pacheco (DEM-MG), um astuto Alcolumbre prometeu a primeira vice-presidência ao PSD e também ao MDB. Os emedebistas dobraram a aposta e levaram a disputa para o voto. Ao fim, Veneziano do Rêgo (MDB-PB) derrotou o aliado de Alcolumbre, o senador Lucas Barreto (PSD-AP), por 40 votos contra 33.

A vitória de Veneziano simboliza a revanche do MDB contra Alcolumbre, ainda que num palco menor, porque o senador da Paraíba representa o grupo autêntico de Renan e José Sarney. Apesar da passagem pelo PSB, Veneziano é um emedebista-raiz, irmão do ex-senador Vital do Rêgo, hoje ministro do Tribunal de Contas da União (TCU), e aliado de berço de Renan. Vital foi alçado ao TCU pelo voto de 63 senadores em 2014, e mantém até hoje vínculos com a Casa. Vital encabeçou ao lado de Renan a articulação do jantar de reconciliação entre o ministro da Economia, Paulo Guedes, e o então presidente Rodrigo Maia no começou de outubro.

Nos próximos “rounds”, o grupo de Renan quer nocautear Alcolumbre na disputa pela presidência da CCJ. E senadores ouvidos pela coluna não descartam que Renan assuma um cargo na CPI da Saúde: a presidência ou a relatoria.

Outro candidato a cargo de direção da CPI é o líder do MDB, Eduardo Braga, senador do Amazonas, e aliado de Renan, que tem demonstrado profunda indignação com o descontrole da pandemia em sua base eleitoral.

Com o MDB com fôlego renovado, Rodrigo Pacheco terá de demonstrar a mesma destreza que utilizou para atrair o PT para sua candidatura.

Completando uma semana no cargo, vai sofrer dupla pressão nos próximos dias. A pressão de 31 senadores - inclusive Renan e Braga - pela leitura do requerimento de criação da CPI da Saúde, que abre caminho para a instalação do colegiado.

Autor do requerimento da CPI da Saúde, o líder da Rede, senador Randolfe Rodrigues (AP), receia que Pacheco tentará adiar a leitura do requerimento até a realização da audiência para ouvir o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, na esperança de que a temperatura baixe até lá.

O governo ainda pode agir para retirar assinaturas da CPI até meia-noite do dia da leitura, mas Randolfe não acredita em recuo dos senadores que apoiaram a investigação dos erros e responsabilidades das autoridades no enfrentamento da pandemia, em especial no Amazonas. “Quem retirar a assinatura vai pagar um preço além do comum junto à sociedade”, diz Randolfe.

Em outro foco de pressão sobre Pacheco, Bolsonaro tem de decidir até o fim do mês sobre o pedido da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) de veto ao artigo que fixou prazo de cinco dias para que a agência se manifeste sobre uso emergencial das vacinas, e possa chancelá-las, caso tenham sido autorizadas por uma das nove autoridades sanitárias estrangeiras relacionadas na lei.

Se o veto se consumar, o Congresso já está armado para derrubá-lo, em sessão que será presidida por Pacheco.

Se há controvérsia em torno da eleição da deputada Bia Kicis (PSL-DF) para a presidência da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), está praticamente certa a nomeação do deputado Darci de Matos (PSD-SC) para relatar a PEC da reforma administrativa no colegiado. O presidente Arthur Lira (PP-AL) já elencou a proposta entre os itens prioritários da agenda econômica. Mudando regras apenas para os futuros servidores, lideranças da Casa acreditam que a matéria pode avançar.


Gustavo Loyola: O ano que não quer acabar

A extensão da renda emergencial não substitui o enfrentamento sério da crise sanitária

A economia brasileira deve se manter praticamente estagnada no primeiro trimestre do ano. Infelizmente, as expectativas de uma recuperação mais rápida e forte da atividade estão se frustrando, em razão principalmente dos sérios equívocos nas políticas de enfrentamento da pandemia da covid-19. A realidade dá uma dura lição a um país onde o presidente da República e parte de sua elite dirigente acreditaram (e, pasmem, acreditam ainda) que o caminho mais rápido para evitar a recessão econômica seria ignorar as medidas de distanciamento social e encorajar o fim das restrições de mobilidade adotada pela maioria dos governos locais.

O agravamento, a partir do final do ano passado, da disseminação da doença e do aumento do número de hospitalizações e óbitos, ao lado do aparecimento de novas cepas de vírus mais transmissíveis, não apenas está levando ao retorno a fases mais estritas de distanciamento social, mas também tem impactado as expectativas dos agentes econômicos, indivíduos e empresas, minando a confiança, com efeitos negativos sobre as decisões de investimento e consumo, vitais para a sustentação da retomada da atividade econômica. Tais incertezas são mais ainda amplificadas pela percepção de que nem sequer há, no curtíssimo prazo, disponibilidade suficiente de vacinas para o Brasil imunizar os grupos populacionais prioritários.

Não bastasse tudo isso, a nova fase de agravamento da pandemia coincide com o término da maioria dos programas governamentais de estímulo que, no ano passado, atenuaram de maneira relevante os efeitos negativos da pandemia, em particular o auxílio emergencial que evitou consequências sociais mais desastrosas sobre as populações mais vulneráveis.

Estivessem as contas públicas brasileiras numa situação fiscal confortável, e houvesse margem de manobra para corte de despesas menos prioritárias, não haveria muita discussão a respeito da necessidade de extensão dos estímulos fiscais no mínimo por mais um semestre. Países como os Estados Unidos estão agindo dessa forma. Contudo, como fazê-lo aqui, onde, em consequência do enfrentamento da pandemia no ano passado, a dívida pública saiu de 75,8% do PIB para 90,7% do PIB e o déficit primário esperado para 2021 é de cerca de 2% do PIB?

O descolamento da moeda brasileira - excessivamente depreciada em relação ao dólar no contexto do enfraquecimento global da moeda americana e de alta do preço das commodities - é consequência direta da percepção do risco fiscal numa conjuntura que requer expansão do gasto para lidar com a pandemia sem que haja espaço nas contas públicas para tanto.

Uma decisão de simplesmente prorrogar o auxílio emergencial e outras medidas de estímulo tenderia a piorar ainda mais essa percepção negativa, agravando os problemas para a economia, como, por exemplo, a aceleração da inflação que resultaria da queda ainda maior do valor do real, pela piora do risco-país. O aumento da inflação, como vimos o ano passado, prejudicaria mais fortemente as camadas mais pobres da população, agravando um cenário que já lhes é extremamente desfavorável com a pandemia.

Por outro lado, o Banco Central já cogita iniciar o ajuste para cima da taxa referencial de juros, retirando ao menos parte do estímulo monetário que pratica desde o início da pandemia da covid -19 no ano passado. A ata da última reunião do Copom deixa claro que alguns diretores da instituição consideram que o grau de estímulo ora em vigor não é desejável, até porque as projeções de inflação se elevaram nas últimas semanas e se aproximam do centro da meta. Embora compatível com o regime de metas, o movimento de alta dos juros pelo BC, em meio a pandemia e simultaneamente à retirada dos estímulos fiscais tenderia a tirar ainda mais fôlego da economia.

Desse modo, o caminho sensato a percorrer é o de trocar a elevação emergencial e temporária da despesa pública - em razão da persistência dos efeitos da pandemia - por reformas que ajudem a ancorar as finanças públicas no médio e longo prazo, evitando que a dívida pública entre numa trajetória insustentável. Em razão da carência de recursos, os estímulos devem ser focados na população mais vulnerável e mais duramente atingida pela pandemia, não podendo ter a abrangência observada em 2020. Uma solução dessa natureza poderia ao mesmo tempo contribuir para a mitigação dos efeitos da covid-19 e aumentar a confiança dos agentes econômicos, reduzindo os prêmios de risco e aliviando a pressão sobre o câmbio.

A questão é que uma negociação do gênero com o Congresso esbarra nas dificuldades da articulação política do governo, em grande parte devidas à agenda ideológica do presidente da República, mais inclinado a satisfazer seguidores radicais do que forjar consensos em prol da governabilidade.

Finalmente, é preciso não cultivar falsas ilusões. A extensão da renda emergencial e de outras medidas paliativas de estímulo econômico jamais substituirá o enfrentamento competente, sério e enérgico da crise sanitária, principalmente por meio da imunização abrangente e rápida de parcela relevante da população brasileira.

*Gustavo Loyola, doutor em Economia pela EPGE/FGV. Ex-presidente do Banco Central 


Bruno Carazza: Dinheiro na mão é vendaval

Do ponto de vista eleitoral, auxílio emergencial foi efêmero

Foram R$ 293 bilhões injetados no bolso de quase 70 milhões de pessoas. A maior transferência direta de recursos federais para o cidadão brasileiro na história rendeu dividendos fugazes para Bolsonaro. Foi só anunciar o fim dos pagamentos do auxílio emergencial que a sua reprovação voltou a subir.

É bem verdade que existem outros fatores para explicar a queda de popularidade neste início de ano. Houve também o recrudescimento das mortes pelo coronavírus, o colapso no sistema de saúde de Manaus e os erros do governo no começo da vacinação.

Mas há algumas evidências de que o auxílio emergencial influenciou bastante o humor da população durante a pandemia. Comparando-se o pior momento de Bolsonaro, em junho passado, quando o país sofria a primeira onda da covid-19 em sua força máxima, com dezembro (mês do pagamento da última parcela do benefício para a maior parte dos contemplados), a rejeição ao presidente reduziu-se significativamente em todos os segmentos sociais.

Entre os que se enquadravam como seu público-alvo, porém, o efeito foi mais intenso, com as notas de ruim e péssimo caindo mais fortemente entre os nordestinos (de 52% para 34%), as pessoas que recebem até 2 salários (de 44% para 27%) e quem possui apenas o ensino fundamental (de 40% para 26%). Porém, como diria o príncipe do samba, “dinheiro na mão é vendaval”.

Não se passou um mês do fim do alívio financeiro, e com algumas pessoas ainda recebendo um rescaldo de pagamentos atrasados, o apoio a Bolsonaro voltou a cair fortemente junto ao grupo que foi mais contemplado com os desembolsos. A avaliação negativa de seu governo em janeiro/2021 voltou a piorar junto aos mais pobres (41% de ruim/péssimo), menos escolarizados (35%) e no Nordeste (43%). Entre os desempregados, a desaprovação ao governo já bate em 48%; para se ter uma ideia, há um mês ela estava em 31%.

A deterioração repentina na imagem do presidente junto ao eleitorado aumenta a pressão por uma nova fase da ajuda governamental. Mas não é só isso: as perspectivas de demora na vacinação e as aterrorizantes notícias sobre as novas cepas do coronavírus indicam que a tal recuperação está mais para W do que para V. Assim, independentemente de quem vença as eleições para as mesas diretoras da Câmara e do Senado logo mais, o auxílio emergencial voltará a ser destaque na ordem do dia.

Três possibilidades parecem estar colocadas para Bolsonaro: I) obter um novo decreto de calamidade pública e contratar o gasto extra para reativar o benefício; II) conceder uma nova rodada tendo como contrapartida uma mini-reforma fiscal, aprovando a PEC Emergencial; e III) retomar a ideia inicial de Paulo Guedes, lançando um novo programa de transferência de renda com a extinção de políticas públicas já existentes.

Simplesmente repetir em 2021 a mesma tática do ano passado, como prevê a primeira opção, seria plantar vento para colher tempestade às vésperas do início da campanha para a reeleição. Com a dívida pública batendo em 89,3% do PIB, o espaço fiscal ficou extremamente limitado. Racionalmente, os potenciais efeitos sobre o câmbio, a inflação e aos juros nos próximos meses não justificam a concessão de novas prestações que, como vimos, têm efeitos efêmeros sobre a avaliação do governo.

Na última semana começou-se a discutir a alternativa de condicionar uma nova fase de transferência de renda, mais delimitada e diluída no tempo, à aprovação da PEC Emergencial. Essa opção, contudo, esbarra na falta de credibilidade do presidente em tomar medidas impopulares, como reduzir carga horária e cortar salários de servidores públicos para alocar recursos para o auxílio emergencial 2.0.

Restaria, então, a possibilidade de retomar a ideia inicial de Paulo Guedes, realocando recursos hoje comprometidos com programas sociais menos eficientes (como o auxílio-defeso, o abono salarial e a farmácia popular) num programa mais focalizado e perene que seria chamado de Renda Brasil ou Renda Cidadã. Apesar de Bolsonaro ter torpedeado a ideia em seu nascedouro, avisando que não iria “tirar dos pobres para dar aos paupérrimos”, essa poderia ser uma estratégia viável caso pretenda chegar forte em 2022 e sem explodir o teto. E ele não seria o primeiro a seguir esse caminho.

No final de 2003, Lula empacotou três políticas sociais assistenciais criadas ainda no governo FHC - Bolsa Escola, Bolsa Alimentação e Auxílio-Gás, cada qual com regras próprias, públicos-alvo diferentes e órgãos de execução distintos -, e as consolidou num único benefício social permanente: o Bolsa Família.

Graças a essa mudança - impulsionada também pela política de valorização do salário mínimo -, o líder petista conseguiu fazer a mais impressionante migração de eleitorado da história brasileira. Se no pleito de 2002 Lula extraiu a maioria dos seus votos das regiões metropolitanas do Centro-Sul, onde a população é mais rica e escolarizada, quatro anos depois seus eleitores estavam localizados entre os mais pobres, com menos anos de estudo e moradores do interior do Norte e do Nordeste do país.

Não por acaso, é justamente no público com perfil de beneficiário do Bolsa Família que Bolsonaro tem mais dificuldade de penetração - e onde a ajuda emergencial mais fez diferença.

Na semana passada, o colunista do New York Times Ezra Klein, analisando os desafios do governo Biden, escreveu que, em geral, um presidente nunca é reeleito por políticas que o eleitor não sabe que foi ele quem fez. Acredito que esse pensamento caiba perfeitamente na discussão sobre o dilema da ajuda aos mais atingidos pela pandemia. Um programa permanente, nos moldes de um Bolsa Família turbinado, seria muito mais bem avaliado pela população do que uma miríade de benefícios dispersos, como existem hoje.

Ao lançar-se abertamente na direção do Centrão, Bolsonaro demonstra que, para vencer em 2022, decidiu render-se ao pragmatismo. Ouvir a equipe econômica nesta questão do auxílio-emergencial deveria ser o próximo passo.


Cristiano Romero: No reino das estatais

Com tantos assuntos mais prementes, é difícil entender por que as privatizações são o tema que gera as discussões mais acaloradas

Não há tema que provoque discussões mais acaloradas neste país do que o das privatizações. É difícil entender o porquê, uma vez que existem dezenas de assuntos muito mais prementes. Aliás, basta fazer esta afirmação para que o interlocutor imediatamente nos acuse de ter interesses escusos.

Seria desnecessário citar as mazelas nacionais que demandam enfrentamento urgente, uma vez que todos as conhecemos, afinal, elas integram a paisagem nacional desde sempre - entre outras, o racismo estrutural, a extrema violência decorrente dessa chaga secular, a desigualdade de renda, a discriminação contra mulheres, LGBT, indígenas, pobres, nordestinos e imigrantes de países não europeus, a concentração de renda, a baixíssima qualidade do ensino básico e fundamental prestado por escolas públicas, a apropriação do orçamento público por grupos de interesse específico e a falta de saneamento básico para a maioria da população.

Empresas estatais parecem povoar o "inconsciente coletivo" do brasileiro, tamanha é a sensibilidade da discussão sobre o status quo nessa área. No entanto, sabemos que é falsa a ideia de que a maioria dos 210 milhões de brasileiros seja favorável à manutenção do modelo estatal que começou a ser erigido na década de 1930 e atingiu o ápice na década de 1970, decaiu depois em consequência da falência do modelo estatizante evidenciada pela crise da dívida em 1982 e voltou a crescer durante os dois governos do PT (de 2003 a 2016).

Como a Ilha de Vera Cruz é repleta de contradições, Dilma Rousseff (PT), presidente mais afeita ao estatismo desde a redemocratização, privatizou os maiores aeroportos, em meio a protestos de sindicatos ligados a seu partido e à estatal Infraero. Registre-se, também, que a presidente teve coragem de levar ao Congresso e aprovar o projeto de lei que criou o Funpresp, o fundo de pensão dos funcionários públicos federais, iniciativa que, finalmente, regulamentou a reforma da Previdência aprovada em 2003, destinada a igualar as regras de aposentadoria do funcionalismo com as do INSS.

O que a reforma da Previdência tem a ver com privatização? Os dois tópicos vão na direção de desafogar o Estado brasileiro de compromissos injustificáveis como bancar a aposentadoria integral de funcionários públicos e construir e administrar coisas como aeroportos, algo que pode ser feito de maneira eficiente pelo setor privado, sob a regulação do setor público. A criação do Funpresp e a concessão de aeroportos ocorreram no primeiro mandato de Dilma (2010-2014) e isso não impediu sua reeleição.

A resistência às privatizações vem de setores das classes média e alta que pautam ou interditam o debate nacional. Curiosamente, a força do discurso contrário à desestatização aparece, inclusive, na agenda de movimentos sociais que tratam de temas prementes mencionados aqui. É como se o sucesso de itens dessa agenda, como a luta para que o Estado brasileiro torne o combate ao racismo o item número 1 de sua atuação, dependesse da manutenção da Petrobras, da Eletrobras e do Banco do Brasil como empresas estatais. Isso não faz o menor sentido. Não é com estatais que se enfrentam ignomínias como o racismo, mas, sim, com um Estado forte e implacável na defesa e na implantação dos direitos e garantias fundamentais, inscritos na Constituição de 1988 como cláusulas pétreas.

A Ilha de Vera Cruz não foi estatizante desde tempos imemoriais. Até 1930, as empresas que administravam a maioria dos serviços públicos eram privadas e de capital estrangeiro. Com a ascensão de Getúlio Vargas ao poder, em 1930, isso começou a mudar. Floresceu, então, o discurso nacionalista, embora Vargas procurasse conciliar, de forma pragmática, interesses nacionais e estrangeiros, de forma que os investimentos, principalmente em infraestrutura, fossem realizados. O nacionalismo, porém, prevaleceu.

Em 1930, segundo dados oficiais, o país tinha 17 estatais. Nas décadas de 1950 e 1960, o nacionalismo ganhou força em meio à Guerra Fria. Instigados por lideranças civis, os militares derrubaram em 1964 o presidente João Goulart e promoveram uma série de reformas econômicas de cunho liberal. Isso não alterou a marcha estatizante iniciada com a criação da Petrobras em 1954.

No fim dos anos 60, havia pouco mais de cem estatais no país. No fim da década seguinte, por causa do modelo de substituição de importações, o número subiu para 300. Em 1980, com as finanças públicas já colapsadas e inadimplente com os credores externos, a Ilha de Vera Cruz ampliou a carteira de estatais para 382.

Nos anos seguintes, diante da insustentabilidade de empresas que se tornaram cabides de emprego, instrumento de uso político em favor de poucos e fontes de corrupção, o primeiro governo civil depois de 21 anos de ditadura e, na sequência, os três primeiros presidentes eleitos começaram a vender e fechar estatais. Mas, haja contradição: na Guerra Fria, o país a que chamamos de Brasil estava alinhado aos Estados Unidos; seu regime econômico, todavia, assemelhava-se ao do bloco soviético-comunista. Isso fez com que, mesmo depois de 31 anos da derrubada do Muro de Berlim e de oficialmente nunca ter deixado de ser um país “capitalista”, este canto do planeta seja o terceiro mais estatizante (ver tabela acima). Esta coluna voltará ao tema nas próximas semanas.


Fernando Exman: Obstáculos à proposta de autonomia do BC

Agenda liberal terá novo desafio a partir de fevereiro

A agenda liberal da equipe econômica passará em fevereiro por um novo teste de estresse, para usar um termo familiar aos agentes do mercado e também ao Banco Central - interessado direto no assunto.

Tão logo seja definida a sucessão de Rodrigo Maia (DEM-RJ) na presidência da Câmara dos Deputados, haverá mais clareza em relação ao futuro do projeto que dá autonomia formal ao BC. Ele é visto como prioridade pela equipe econômica e o próprio presidente Jair Bolsonaro apoiou em público a iniciativa quando seu mandato chegou ao centésimo dia. Na ocasião, inclusive, enviou seu próprio projeto à Câmara. Era um tempo em que a ala liberal do governo tinha mais prestígio.

O problema é que a proposta nunca foi popular na ala desenvolvimentista, que vem dando sinais diários de força, e ela acabará sendo debatida em meio a um cenário de possível alta de juros. Isso coloca um novo ingrediente na discussão, que corre o risco de se tornar mais passional. O ambiente já está acirrado. No Brasil de hoje, enquanto os efeitos devastadores da crise continuam presentes no dia a dia do cidadão, as forças políticas têm preferido usar até seringas e vacinas para inocular o vírus da politização e dividir a população.

Num contexto como este, ganha sempre aquele que prefere interditar o diálogo. A visita de um presidente do BC ao Palácio do Planalto em dia de reunião do Copom pode acabar gerando críticas à autoridade monetária, embora esse tipo de encontro tenha ocorrido em outras gestões da mesmíssima maneira.

A tramitação da proposta se dará ao ritmo da batuta do novo presidente da Casa, o grande responsável pela definição da pauta, mas não terá como avançar se o governo não incentivá-la com assertividade.

Antes mesmo das eleições municipais, dizia-se no Palácio do Planalto que essa deveria ser uma das prioridades da agenda legislativa na Câmara. O projeto era citado na companhia do marco regulatório da cabotagem e do programa Casa Verde e Amarela. Ambos foram aprovados pelos deputados. O projeto de autonomia do BC, no entanto, ficou de fora da pauta.

Um acordo entre a Câmara e o Senado, com apoio do governo, delegou aos senadores a missão de aprová-lo primeiro. E ela foi cumprida em novembro.

Naquele momento, uma obstrução travava os trabalhos da Câmara. A disputa pela presidência da Casa já atrapalhava a produção legislativa. Ademais, Maia defendia que havia outras questões mais urgentes a serem atacadas, como projetos relativos ao combate da pandemia e seus efeitos socioeconômicos e a reforma do sistema tributário nacional.

Justo. Mais do que compreensível. Agora, contudo, o horizonte ficou mais incerto.

Seus aliados, aliás, acreditam que foi cometido um erro tático, o qual pode acabar tirando o país do radar de investidores estrangeiros num momento de liquidez no mercado internacional.

Esta não é a única notícia negativa. O ano começou com o governo interferindo no Banco do Brasil e gerando dúvidas em relação à política de reajuste dos preços dos combustíveis conduzida pela Petrobras. Na sequência, aumentaram os questionamentos quanto ao compromisso do Executivo com o programa de privatizações defendido há mais de dois anos pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, e sua equipe.

A mudança do presidente da Eletrobras não traz, até este momento, boas notícias para quem pretendia ver a estatal passando para as mãos da iniciativa privada.

Em relação às privatizações, deve-se levar em conta, ainda, o atual cenário da disputa pelas mesas diretoras do Legislativo. Em recente entrevista ao Valor, o senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG) demonstrou indisposição de abrir caminho, no curto prazo, para medidas que reduzam a presença do Estado em setores considerados estratégicos.

Na Câmara, já havia pressão para que uma eventual desestatização da Eletrobras fosse compensada com investimentos na revitalização do rio São Francisco. É preciso lembrar, neste caso, que o candidato governista, Arthur Lira (PP), é um dos representantes de Alagoas no Parlamento. Ele só não esteve em novembro numa solenidade ao lado de Bolsonaro na cidade histórica de Piranhas, uma das bases para a visitação dos imperdíveis cânions do São Francisco, por estar em isolamento e se recuperando da covid-19.

Isso sem falar da resistência de auxiliares do presidente advindos das Forças Armadas, o mesmo grupo que sempre viu com grandes ressalvas o projeto que formaliza a autonomia do BC. Eles não têm tanto poder para influenciar a tramitação da proposta no Congresso, mas possuem amplo acesso ao presidente e espaço para defender eventuais vetos. A ala desenvolvimentista agradeceria, assim como a política. Afinal, apesar de agradar ao mercado, a sanção total do projeto poderia ser usada contra Bolsonaro na campanha à reeleição. O PT já explorou o tema contra Marina Silva (Rede).

Agora, contudo, as maiores dúvidas em relação às chances de aprovação do projeto residem na própria Câmara, onde a oposição promete fazer de tudo para tentar barrá-lo.

O relator da proposta, deputado Celso Maldaner (MDB-SC), diz que já articula para que seu parecer seja colocado em pauta o mais rápido possível. Segundo descreveu, conversou com o deputado Baleia Rossi (MDB-SP) sobre o assunto. Sua expectativa é que a votação ocorra de forma célere, no máximo em março, caso seu correligionário vença a eleição. “Isso tem que acontecer antes das reformas tributária e administrativa”, argumenta. “É a grande prioridade para dar segurança jurídica e estabilidade”, acrescentou o parlamentar, segundo quem o governo é a favor da proposta e o Brasil precisa acertar os passos agora para assegurar a retomada do crescimento econômico.

O relatório está pronto. A opção de Maldaner foi manter o texto aprovado no Senado, para que a proposta possa ser remetida diretamente ao Planalto em caso de aprovação. Ele diz ser secundário o risco de uma vitória de Arthur Lira acabar levando à sua substituição no posto de relator. “O importante é colocar em votação.”


Fernando Abrucio: Não verás país nenhum com Bolsonaro

Seguindo essa toada, o Brasil aprofundará a sua crise e passará por uma longa travessia de pelo menos dois anos

O Brasil está à deriva e deverá passar por uma longa travessia até o fim do governo Bolsonaro, com provável piora de sua situação. Dois fatos levam a esta constatação. De um lado, a crise já era grave em 2018 e aprofundou-se nos últimos dois anos, numa proporção gigantesca. O país precisaria mudar muitas coisas, algo que só é possível com um diagnóstico preciso dos problemas, trabalho árduo de equipes bem preparadas e muito diálogo político e social. E aqui entra o outro lado do cenário atual: o presidente não está preparado para combinar essas qualidades. O pior é que praticamente não há chance de ele modificar seu estilo de governar.

Esmiuçando melhor este diagnóstico geral, cabe inicialmente mostrar o tamanho do buraco em que o país está. Há uma combinação de crise sanitária, estagnação econômica, aumento da desigualdade social, redução da legitimidade dos políticos junto aos cidadãos e uma piora gigantesca de políticas públicas essenciais. Parte desse processo foi uma herança deixada para o atual governo. Todavia, Bolsonaro não só não conseguiu avançar no combate desses problemas, como piorou a situação geral e trouxe novas dificuldades. Por este caminho, o Brasil estará pior daqui a dois anos, no fim de seu mandato.

A afirmação de que a manutenção do modelo bolsonarista empurrará todos ladeira abaixo precisa de melhor qualificação. Vamos aos fatos. Primeiro, Bolsonaro foi uma tragédia no combate à pandemia. Isso pode ser constatado pelo número absurdo de casos e mortes, inclusive em perspectiva comparada, bem como pelas medidas preconizadas e pelas lacunas governamentais. Nenhum governante mundial foi tão contundente na defesa do negacionismo. A vacinação demorará para ter impacto no Brasil e os próximos meses deverão de ser de crescimento da covid-19. Casos trágicos como o de Manaus poderão se repetir.

A situação econômica ainda pode ter uma chance de melhorar, especialmente no ano que vem. Menos pelo que o país tem feito e mais pelas políticas expansionistas que os Estados Unidos e a China deverão adotar. Eis aí uma notícia auspiciosa. Não obstante, o Brasil poderá aproveitar bem menos essa bonança, porque não há grandes perspectivas de melhora, até 2022, da produtividade, da taxa de investimento e do consumo da população.

Não me parece que o governo será capaz de fazer uma mudança fiscal mais ampla do que o atual feijão com arroz que o teto de gastos gera. O ministro Paulo Guedes tem enviado uma série de propostas ao Congresso, mas poucas são aprovadas. Geralmente, a última metade do mandato não é o melhor momento para dar uma arrancada em reformas estruturais, especialmente porque Bolsonaro tem mais apetite por outros tipos de mudança legislativa, como a ampliação do uso de armas pela população e o Estatuto da Família. Esta é a agenda para a qual usará sua influência política, com muitos cargos e verbas ao Centrão.

Para completar esse panorama econômico, o desemprego tende a continuar alto, talvez com algum alento no mercado informal, que gera menos renda. Parte dos ganhos do país virá da exportação de commodities, como tem ocorrido há 20 anos. Mas, diferentemente de outros momentos do passado, como no Plano Real e no governo Lula, definitivamente não somos a bola da vez para os investidores internacionais. Alguma coisa pode vir das concessões em infraestrutura. Só que a imagem internacional do Brasil sob Bolsonaro atrapalha esse movimento. Os erros em políticas ambientais e de direitos humanos, bem como o isolacionismo diplomático, vão custar caro.

A crise social tende a aumentar nos próximos dois anos. O auxílio emergencial foi uma tábua de salvação inventada pelo Congresso que caiu no colo de Bolsonaro. Terminado o Orçamento de Guerra, caberia ao governo federal pensar em uma estratégia mais ampla de combate à desigualdade social. Pelo tipo de pensamento mágico que orienta a cabeça do presidente, não há perspectiva de se ter um plano estruturado para as políticas sociais. O aumento da desigualdade nos principais centros urbanos vai criar um cenário distópico, típico de filmes como “Mad Max”.

Políticas públicas essenciais para o país também estão à deriva. O MEC vive seu pior momento em 30 anos e a abstenção recorde no Enem revela uma política educacional trágica, que vai aumentar a desigualdade entre os alunos. O Ministério do Meio Ambiente é contrário à política ambiental. Com o atual titular, não há chances de melhora, até porque o bolsonarismo prometeu a madeireiros e garimpeiros que eles teriam tudo aquilo que os “ecologistas” tiraram deles nas últimas décadas. Sobre a política indigenista é melhor não comentar. Marechal Rondon deve estar se remexendo no túmulo.

No plano político, duas trajetórias suicidas foram traçadas. No âmbito externo, a política internacional levou o Brasil a um isolacionismo inédito, particularmente depois da vitória de Joe Biden nos Estados Unidos. Quem são nossos aliados? De um modo ou de outro, China, União Europeia, os vizinhos latino-americanos e agora os EUA, no mínimo, desconfiam do governo brasileiro e, na pior das hipóteses, mantida a lógica bolsonarista, vão certamente nos retaliar.

Desde o fim da ditadura militar, nunca um presidente ameaçou tanto a democracia como Bolsonaro. Num dia, propõe o voto impresso para tumultuar o jogo político e acusar os outros de fraude, já preparando um possível golpe caso perca a eleição. Noutro, diz que as Forças Armadas são o alicerce do regime democrático, quando qualquer manual de ciência política diria que o povo e as instituições é que dão legitimidade à ação dos militares, e não o contrário. O bolsonarismo não acredita nos valores básicos democráticos, como o pluralismo, a crença nas regras do jogo e os freios e contrapesos entre os poderes. Em seu comportamento mais benigno, Bolsonaro aceita o apoio de políticos medíocres que se deixam comprar por cargos e verbas, contanto que eles não interrompam sua estratégia autoritária mais profunda.

A rota do bolsonarismo pode ser interrompida, com o presidente mudando seu estilo de governar, diriam alguns. Os mesmos que acreditaram que Paulo Guedes faria privatizações em massa e reformas profundas no Estado; que Sergio Moro seria o guardião do republicanismo de todos, inclusive da família Bolsonaro; que o general Santos Cruz garantiria uma participação parcimoniosa das Forças Armadas no poder, que nunca aceitariam obedecer ordens absurdas como receitar cloroquina em massa para uma população que nem oxigênio tinha; e, como última esperança dos ingênuos, que o Centrão evitaria que o presidente trilhasse por caminhos autoritários. Sinto informar: a era da esperança pela mudança da natureza do bolsonarismo acabou.

O núcleo duro das crenças de Bolsonaro o leva a preferir a guerra cultural, uma política populista e autoritária, como também ser mais fiel ao seu eleitorado mais radical. Na linha contrária, ele não vai optar claramente por políticas públicas baseadas em evidências e na opinião dos especialistas, nem por um estilo político baseado no diálogo e na moderação. Crises políticas maiores podem resultar em concessões e alguns recuos, como aconteceu em junho do ano passado, após a prisão de Fabrício Queiroz. Mas quanto mais as eleições presidenciais se aproximam, mais o presidente acredita que precisa manter a aliança com seus alicerces básicos, em termos de ideias, grupos políticos e modos de atuação.

Em outras palavras, o roteiro básico daqui para frente tende a ser de poucas reformas profundas - se houver alguma -, conflito constante com os possíveis adversários políticos, inclusive fortalecendo o gabinete do ódio, discursos e propostas moralistas para agradar ao eleitorado conservador e, sobretudo, ameaçar a todos que o criticarem. É possível que haja algum populismo fiscal para distribuir alguma renda aos mais pobres e obras para o clientelismo do Centrão, mas o essencial para Bolsonaro é montar um exército de apoiadores entre trabalhadores informais, policiais militares, evangélicos e milicianos puros, sempre dizendo que as Forças Armadas estarão com ele em qualquer situação.

Seguindo essa toada, o Brasil aprofundará a sua crise e passará por uma longa travessia de pelo menos dois anos. O momento é similar ao do governo Figueiredo, quando o projeto dos militares já tinha fracassado, porém as forças em prol da democracia não tinham força suficiente para mudar a lógica do poder. Foi nesse momento, em 1981, que Ignácio de Loyola Brandão escreveu o livro “Não Verás País Nenhum”, uma ficção distópica que caracterizava o Brasil como um país marcado pelo autoritarismo, pela tragédia ambiental e pauperização da população, tudo isso ambientado numa São Paulo caótica. Nada mais atual do que essa história.

O Brasil sofreu muito, inclusive com atentados terroristas de milicianos incrustados no Estado autoritário, mas superou aquele momento autoritário. Para isso, precisou da aliança de muita gente diferente, como mostram as fotos dos comícios das Diretas-Já, com Montoro, Lula, FHC, Brizola e Ulysses abraçados e unindo-se pela mudança. O país provavelmente terá de fazer isso daqui a dois anos, embora possa fazê-lo agora em nome de um impeachment que tem razões de sobra para ocorrer, em especial a garantia da sobrevivência do país.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas


Claudia Safatle: Um país à deriva

Como se fosse uma sina, aqui faz-se de tudo para dar errado

Há fortes indicações de que a recuperação em V foi curta, durou dois trimestres (terceiro e quarto trimestres de 2020) e perdeu fôlego. Um voo de galinha já bem conhecido dos brasileiros, animado pelo vigoroso programa de auxílio emergencial que beneficiou mais de 70 milhões de pessoas e que se encerrou em dezembro.

Segundo os prognósticos da economista Silvia Matos, coordenadora do Boletim Macro do Ibre/FGV, o cenário desenhado para este novo ano é ruim para o primeiro semestre, quando a atividade ainda estará em contração, mas melhora no segundo, de maneira que o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) encerraria o exercício em 3,5% - percentual insuficiente para repor a recessão estimada de 4,5% no ano passado. Como o carregamento estatístico responde por cerca de 2,5%, o efetivo crescimento este ano, segundo as previsões do Ibre, deverá ser de apenas 1%.

Tudo vai depender, porém, do sucesso (ou fracasso?) da vacinação contra a covid-19. Quanto mais incerta e demorada for, maior será a perda de PIB (Produto Interno Bruto). Os dados acima foram calculados com base em um processo de vacinação que envolveria grande parte da população no primeiro semestre. A partir do meio do ano, a situação seria de normalidade. As informações de atraso na obtenção do insumo necessário para a preparação das vacinas coloca mais dúvidas sobre o que poderá acontecer com o nível de atividade.

Há, ainda, uma grande heterogeneidade na performance dos diversos setores da economia, sobretudo o de serviços. Os serviços prestados às famílias e os serviços públicos, com o peso de educação e saúde - que respondem por quase um quarto do PIB -, com a pandemia estão contraindo muito em relação a 2019. No último trimestre de 2020, houve uma queda da atividade de 2,8%, segundo as previsões da economista, sobre igual período do ano anterior, com indústria crescendo, mas serviços caindo. Estes estão 25% menores do que eram antes da propagação da covid-19.

“Falta perspectiva de superação da pandemia. Eu esperava uma normalização no segundo semestre, com vacinação em massa, mas agora não sei”, disse ela.

Com o repique da pandemia e a possibilidade de voltarem algumas restrições ao funcionamento das cidades, o mercado de trabalho, que já está péssimo, pode piorar. Empresas que aderiram aos programas de manutenção do emprego podem, agora, optar por demitir caso não vejam perspectivas de recomposição e expansão da demanda.

A confiança de consumidores e empresários está em queda. “Já esperávamos um crescimento muito baixo no início do ano, com o fim do auxílio emergencial e com o mercado de trabalho fraco”, contou ela. A intensificação da doença deixa a economia sujeita a um novo perigo, de o “V” se transformar em um “W”, com o temível duplo mergulho da atividade.

“A vacina é o melhor investimento para a atividade econômica”, ressaltou Silvia. Pena que o presidente Jair Bolsonaro parece ter imensa dificuldade de compreender essa simples correlação.

A triste constatação, diante do bate-cabeças que está o governo, é de que o país não se preparou para um prolongamento da pandemia. Gastou o que tinha e não há mais, no Orçamento, recursos para prover renda para os trabalhadores informais e para os desvalidos; e destratou a China, que é o principal fornecedor do insumo da vacina, o Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA).

Silvia acredita que o mercado até compraria um aumento do gasto social se o governo entregar alguma reforma que reduza a despesa obrigatória. Para fazer isso, porém, seria preciso que o país tivesse uma liderança forte, um programa tecnicamente bem feito de renda mínima e um programa de governo apoiado pelas forças políticas do Congresso Nacional.

“Ficar à deriva e com ausência total de liderança em um momento em que o país está em situação frágil é muito difícil. É trágico!”, lamentou.

Um dos sinais de que estamos fazendo escolhas erradas é que os preços das commodities sobem, mas a taxa de câmbio não se valoriza. Isso traz o perigo de desancoragem da inflação e de elevação da taxa de juros.

É curioso que estejamos em situação difícil em um momento em que as condições externas são boas: há enorme liquidez disponível no mundo, as taxas de juros são negativas e os preços das commodities agrícolas e minerais que o Brasil exporta aumentam. Mas, como se fosse uma sina, aqui faz-se de tudo para dar errado.


Cristiano Romero: Encruzilhada fiscal e social

Retomada desigual do PIB e fim do auxílio fomentam crise social

Não é desprezível o risco de o país enfrentar nos próximos meses uma grave crise social. Todos sabemos que 2020 só não foi mais trágico, do ponto de vista econômico, porque o Congresso Nacional e o governo federal agiram rapidamente para instituir novo mecanismo de transferência de renda e, assim, compensar o fato de que, devido à pandemia, milhões de trabalhadores formais e informais perderam subitamente seu ganha-pão

O auxílio emergencial funcionou razoavelmente bem e impediu que a contração da economia fosse muito superior à esperada. Muitos analistas chegaram a projetar queda acima de 9% para o Produto Interno Bruto (PIB) em 2020. Segundo cálculos do Boletim Macro do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre), da FGV-Rio, o PIB pode ter caído 4,7% no ano passado e crescerá 3,6% em 2021.

O que evitou um mergulho maior do PIB foram os bilhões de reais transferidos a pouco menos de 70 milhões de brasileiros entre abril e dezembro. Uma parte significativa desse contingente - cerca de 45 milhões de pessoas - é beneficiária do programa Bolsa Família e, por essa razão, continua recebendo o benefício, embora num valor bem inferior ao do auxílio emergencial - aproximadamente, R$ 150 por pessoa, em vez de R$ 600 (quantia paga entre abril a setembro) e R$ 300 (de outubro a dezembro).

O auxílio expirou em 31 de dezembro. Neste mês, ainda há um resíduo a ser transferido, mas, depois disso, acaba. Enquanto isso, assistimos, apreensivos, ao recrudescimento da pandemia no país. Seus efeitos negativos sobre a economia logo aparecerão, comprometendo a recuperação esperada. Grosso modo, 30 milhões de cidadãos viverão doravante sem renda alguma.

A equipe econômica do governo alega que a situação fiscal do país já era claudicante antes da pandemia e tornou-se desesperadora ao longo de 2020. O setor público consolidado, isto é, as contas de União, dos Estados e municípios, registrou déficit primário, nos 12 meses acumulados até novembro, de R$ 664,6 bilhões (8,93% do PIB).

Chama-se esse conceito de “primário” porque não inclui a despesa com juros da dívida. É a diferença entre o que o Estado arrecada por meio de tributos e o que gasta. Desde 2014, essa diferença é negativa. No ano passado, por causa da pandemia, é compreensível que, por causa do enfrentamento da pandemia, o rombo tenha aumentado.

Bem, se o setor público da Ilha de Vera Cruz não consegue arrecadar o suficiente para cobrir as despesas do Estado, como faz para honrar despesas como aposentadoria e pensões de mais de 30 milhões de brasileiros, salários do funcionalismo e gastos obrigatórios com saúde e educação? Ora, endividando-se.

Nos 12 meses até novembro de 2021, o déficit nominal, conceito que inclui o serviço da dívida, isto é, a despesa com juros, alcançou R$ 978,0 bilhões (13,14% do PIB). A Dívida Bruta do Governo Geral (DBGG), que compreende governo federal, INSS e governos estaduais e municipais, alcançou R$ 6,559 trilhões em novembro (88,1% do PIB). Em apenas um ano, cresceu mais de dez pontos percentuais de PIB.

Ninguém em sã consciência dirá que a situação fiscal deste país não é grave. O problema é justificar o fim da ajuda humanitária a quem precisa com o argumento de que, se houver deterioração adicional das finanças públicas, o país quebrará, investidores (nacionais e estrangeiros) fugirão daqui, a cotação do dólar visitará a estratosfera, haverá calote da dívida...

Não se tente convencer um pai de família desempregado a entender esse argumento ou de que sua situação é esta por não ter estudado) ele pode mostrar que, felizardo (porque a maioria não chega tão longe), estudou, sim, em escola pública durante toda a sua vida, ganhou bolsa do Fies para cursar ensino “superior” em faculdades com ação na bolsa e sócio estrangeiro, mas de péssima qualidade, e ainda assim está na miséria, como outros milhões de compatriotas neste momento terrível do país e da humanidade.

Por que não se usa o mesmo argumento fiscal para “convencer” grupos de interesse específico a entregar parte do butim, que faz deste imenso território um lugar rico habitado por uma minoria rica e uma maioria esmagadora, pobre?

“O Brasil chega a 2021 mais enredado do que nunca nas complexidades e contradições de múltiplas expectativas e demandas. É preciso voltar a crescer, mas também há que se responder a uma teia cada vez mais ampla de direitos democráticos em temas como saúde, segurança, transporte de qualidade, meio ambiente, combate ao racismo, empoderamento feminino, reconhecimento de identidades de gênero etc.”, observa Luiz Guilherme Schymura, presidente do Ibre-FGV.

Há uma visão, diz Schymura, segundo a qual, a retomada do crescimento seria suficiente para que os rendimentos do mercado de trabalho preenchessem a lacuna deixada pelo fim do auxílio emergencial. O impacto social, portanto, não seria dramático. O problema é que, talvez, muitos dos que acreditam nessa possibilidade não tenham considerado dois fatores: o aumento exponencial dos casos de covid-19, algo que pode obrigar prefeitos e governadores a reinstituir regras de isolamento social, e o fato, inacreditável, de que o governo Bolsonaro simplesmente não planejou a vacinação dos 210 milhões de viventes que moram neste canto do planeta. Sem vacina e imunização planejada, não teremos recuperação econômica. Teremos, sim, o agravamento da crise sanitária que já ceifou a vida de 210 mil brasileiros.

Há um terceiro problema. A economista-chede do Ibre, Sílvia Matos, conta que a retomada pós choque econômico da pandemia é muito desigual. “Chegou-se a criar a expressão ‘recuperação em k’ para se referir ao fato de que, enquanto a indústria e o comércio saíram na frente, os serviços, mais afetados pelo distanciamento social, ainda dão sinais de fraqueza”, diz Schymura.

Exemplo da heterogeneidade no próprio setor de serviços. Os que são prestados às famílias e que empregam bastante, medidos pela Pesquisa Mensal de Serviços (PMS), estavam em outubro 32% abaixo do nível pré-pandemia, em fevereiro do ano passado. Já os serviços de tecnologia da informação registraram avanço de 12% na mesma comparação, beneficiados pelo trabalho em casa, a comunicação a distância.

“É nessa encruzilhada extremamente difícil que se encontra o país neste início de 2021, e não se deve nutrir a esperança de que a retomada econômica pós covid resolverá os muitos dilemas e impasses. Mais do que nunca, será preciso um grande entendimento nacional para que se encontre um caminho viável que evite simultaneamente crises agudas no campo fiscal e social”, comenta Schymura.


Fernando Exman: Estados cobram novo auxílio emergencial

Plano de vacinação dá horizonte para fim da ajuda social

Mesmo que sob risco de tornar-se ainda mais minoritária na reforma ministerial prevista para depois de fevereiro, a ala fiscalista do governo submergiu. Seria prudente que pelo menos se recolocasse no debate sobre a necessidade de implementação de uma nova fase do auxílio emergencial. A ala política do Executivo está deixando rolar a discussão, que tem permeado os contatos entre os governadores e os candidatos a presidente da Câmara e do Senado. E pode sair fortalecida do recesso do Congresso.

A equipe econômica, por sua vez, corre o risco de chegar à mesa de negociação já com o prato feito e sendo servido. Neste caso, teria pouco a dizer, além de reiterar a premissa de que a conta precisa respeitar o teto de gastos.

A situação no Amazonas, que vive uma segunda onda de covid-19 com consequências tenebrosas, aumentou a preocupação de diversos governadores. O episódio evidenciou a necessidade de o Estado assegurar os meios para se combater o coronavírus e também os efeitos da crise, com a preservação de empregos e da renda do cidadão mais pobre.

“Vamos ter um crescimento do desemprego e da miséria muito grande. É preciso o auxílio direto e também a prorrogação do programa que reduz a jornada e o salário”, ponderou um governador, citando a iniciativa formulada pelo Ministério da Economia que, segundo a pasta, já promoveu a celebração de acordos entre 1,5 milhão de empresas e 9,8 milhões de trabalhadores.

Isso não é pouco. Todas as partes envolvidas fizeram sacrifícios e certamente estariam em piores condições, se a medida não tivesse sido implementada. Outras iniciativas da área econômica foram positivas, mas os governadores querem mais.

“O Brasil gastou muito durante a pandemia, mas o estrago poderia ser muito maior”, resume outra liderança, também influente no Parlamento e entre seus colegas governadores. Para essa fonte, o risco de recrudescimento da crise tem nome e sobrenome: caos social.

Aliás, autoridades do governo federal também citavam esse perigo no início da pandemia, mas a expressão foi caindo em desuso na Esplanada dos Ministérios e no Planalto.

Um outro chefe de Executivo estadual argumenta que parcelas adicionais do auxílio emergencial seriam essenciais para dar tranquilidade até uma retomada mais perceptível da atividade econômica, o que agora se torna mais factível em razão do início da vacinação contra a covid-19. “É fundamental que se restabeleça o auxílio. A vacina é o início do fim, mas é o início. Não é o fim. O governo federal precisa avaliar isso até para que continuemos a preservar a economia, enquanto salvamos vidas.”

O tema está presente nas reuniões de governadores com os candidatos a cargos nas mesas diretoras do Legislativo. Alguns dos postulantes, inclusive, já levantaram a bandeira e prometem colocar em votação proposta de recriação de um novo auxílio financeiro emergencial, de R$ 300 mensais, já a partir de fevereiro.

A portas fechadas, até mesmo os candidatos governistas dizem estar sensíveis aos apelos de que o Parlamento tome a dianteira. Eles sinalizam fidelidade ao presidente Jair Bolsonaro, e não ao ministro da Economia, Paulo Guedes, pois é o presidente da República quem está colocando em jogo seu prestígio político ao entrar na campanha para fazer os sucessores de Rodrigo Maia (DEM-RJ) na presidência da Câmara e do presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP). Até por isso a equipe econômica deveria estar mais ativa nas negociações, as quais não tiraram férias.

Nesta equação, o início da vacinação se tornou um novo fator a ser considerado. Governadores passaram a argumentar que, como o programa de imunização já começou para valer, uma possível saída seria manter o auxílio até a conclusão da vacinação do grupo prioritário, o que ocorreria em abril. Agora existe, pelo menos, um horizonte.

Eles têm algumas contas na ponta do lápis. Até abril, 25% da população seria vacinada, abrindo espaço para a reabertura de diversas atividades econômicas. Além disso, mais parcelas da população poderiam ser vacinadas rapidamente, se o país tiver todos os insumos necessários e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) liberar a distribuição dos imunizantes fabricados dentro do país. Isso porque, de saída, a produção nacional de vacinas contra covid-19 poderia chegar a 80 milhões de doses por mês. A conta leva em consideração uma capacidade de produção do Instituto Butantan de 30 milhões de doses por mês, outras 30 milhões de doses pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e ainda 20 milhões de unidades da Sputnik pela União Química.

Enquanto isso, a definição da pauta de votações permanece sendo objeto das negociações. O ano legislativo nem começou para valer e o Palácio do Planalto já sinalizou aos seus aliados no Congresso que não apoiará nenhuma medida que possa prejudicar a camada mais pobre da população. Mesmo que seja alguma iniciativa defendida pela área econômica.

A queda da popularidade do presidente serviu de alerta e tende a fortalecer os argumentos da ala política do governo. Se o atual presidente do Senado tornar-se mesmo ministro depois de emplacar Rodrigo Pacheco (DEM-MG) como seu sucessor, este grupo dentro do Executivo ficará ainda mais forte. Principalmente se o ministro Rogério Marinho, atualmente na pasta do Desenvolvimento Regional, assumir algum cargo de primeiro escalão dentro do Palácio do Planalto.

Quando um país do porte do Brasil precisa pedir socorro a um governo aliado para poder transportar oxigênio a uma unidade da federação, é preciso refletir sobre a eficácia dos esforços de integração nacional e também sobre a falta de aeronaves capazes de executar missões desse tipo. O que ocorreu no Amazonas reforça os argumentos do Ministério da Defesa de que todo corte no orçamento de projetos estratégicos das Forças Armadas envolve riscos à segurança nacional.


José Luis Oreiro: Presidente do Ipea quer que o Brasil volte a ser uma grande fazenda

Na entrevista concedida hoje ao jornal Valor Econômico, o presidente do IPEA, o economista Carlos Von Doellinger, disse que “a gente precisa se conscientizar que o Brasil precisa apostar em suas vantagens comparativas, suas vantagens competitivas. Não somos bons em produzir materiais de transporte, não somos bons nisso (….) nosso caminho não é a indústria manufatureira, a não ser aquela ligada a beneficiamento de produtos naturais, minérios”.

O Presidente do IPEA, fiel a tradição liberal brasileira de Bulhões et caterva acha que indústria é algo que está acima da capacidade cognitiva dos brasileiros. Ele diz que devemos nos contentar com nossas vantagens comparativas na produção de soja e minério de ferro (até porque a vantagem competitiva na produção de café já perdemos para outros países, para ver isso é só passar numa loja da Nespresso e ver quantas linhas de cápsulas de café são produzidas com café brasileiro). Esse é um argumento rídiculo e totalmente contrário a evidência empírica disponível. Entre 1930 e 1980 o Brasil cresceu a uma taxa média de 8% a.a. puxado pelo crescimento do setor manufatureiro, que ampliou a sua participação no PIB de 16% em 1948 para 27% em 1974 (vide figura abaixo).

O período de redução do crescimento e posterior estagnação da economia brasileira coincidiu precisamente com a desindustrialização, ou seja, a perda de participação da indústria de transformação na economia brasileira. Além disso, vantagens competitivas não são um dado da “natureza”; mas são construídas ao longo do tempo a medida que se acumula conhecimento técnico e científico (complexidade econômica) e o crescimento do tamanho do mercado interno permite a obtenção de economias estáticas e dinâmicas de escala, as quais levam a redução do custo marginal de produção dos produtos manufaturados (A esse respeito ver Ros, 2013, capitulos 7 e 8). Eventualmente o tamanho do mercado interno se torna insuficiente para o desenvolvimento da indústria de transformação, o que exige que o país passe da fase de industrialização por substituição de importações para a fase de industrialização liderada pela exportação de produtos manufaturados (Kaldor, 1967).

Austrália, Canadá e Nova Zelândia foram países que passaram por um processo de industrialização, mas cuja elevada renda per-capita e elevada acumulação de capital humano permitiram a transição para uma economia de serviços sofisticada. Sobre o caso de como a Austrália e a Nova Zelândia conseguiram escapar da “maldição dos recursos naturais” sugiro a leitura deste excelente post de meu colega Paulo Gala (Austrália, Nova Zelândia e Canadá conseguiram escapar da maldição dos recursos naturais – Paulo Gala / Economia & Finanças)

A desindustrialização ocorrida na economia brasileira não é um fenômeno natural, mas precoce, como argumentei no artigo ” Deindustrialization, economic complexity and exchange rate overvaluation: the case of Brazil (1998-2017)” publicado no numero de dezembro da prestigiosa PSL Quarterly Review (os interessados podem obter o artigo em ( 3d45ce8fcb6c3444952951dea88388c7dc012729.pdf (joseluisoreiro.com.br). Além disso a evidência empírica disponível, publicada em diversas revistas científicas que o presidente do IPEA parece desconhecer, mostra que a participação da indústria de transformação no PIB tem um impacto positivo e estatisticamente significativo sobre a taxa de crescimento da renda per-capita de uma amostra de países. Com efeito, na tabela 2 abaixo reproduzida no artigo “MANUFACTURING, ECONOMIC GROWTH, AND REAL EXCHANGE RATE: EMPIRICAL EVIDENCE IN PANEL DATA AND INPUT-OUTPUT MULTIPLIERS” escrito por Luciano Ferreira Gabriel, Luiz Carlos de Santana Ribeiro, Frederico Gonzaga Jayme Jr e José Luis Oreiro e publicado no número de março da PSL quarterly Review (ver Manufactoring, economic growth, and real exchange rate: Empirical evidence in panel data and input-output multipliers | Gabriel | PSL Quarterly Review (uniroma1.it) observa-se que para uma amostra de 84 países (desenvolvidos e em desenvolvimento) para o período 1990-2011 a variável participação da manufatura no PIB (vamanu) mostrou ter um impacto positivo e estatisticamente significativo tanto na amostra ampla, como nas amostras recortadas pelo nível de hiato tecnológico, sendo mais forte no caso dos países com nível intermediário de hiato tecnológico como é o caso do Brasil.

Table 2 – Dynamic Panel Estimations (GMM) – Arellano and Bond (Diff GMM – two steps Robust) with Windmeijer (2005) standard errors, years 1990-2011

Primary and ManufacturingAll sectors
GDPpcgBroad sampleIntermediate Technological GapHigh Technological GapVery High Technological GapDeveloping Countries
l.GDPpcg0.0120-0.02020.146-0.266-0.00585-0.0713
(0.36)(-0.49)(1.81)(-0.64)(-0.15)(-1.70)
      
l.misxrate7.103***6.404***6.681*7.538*5.558***7.662***
(5.44)(4.34)(2.55)(2.48)(3.78)(4.48)
      
misxrate-4.038-4.160-1.342-0.803-3.624*-5.231**
(-0.56)(-0.79)(-0.40)(-0.28)(-2.36)(-2.83)
      
gaptec-0.0520*-0.0494**-0.165***-0.0330*-0.0616**-0.0936***
(-2.56)(-2.87)(-3.58)(-2.02)(-2.90)(-3.78)
      
vaserv    -0.156*-0.109*
    (-2.10)(-2.03)
      
vamanu0.214**0.661**0.223**0.198**0.112**0.0868**
(2.94)(2.71)(2.63)(2.69)(2.82)(2.65)
      
vaprim-0.115*-0.0810**-0.0630**-0.0369-0.312***-0.210**
(-2.04)(-2.72)(-2.92)(-0.74)(-4.40)(-2.60)
      
humank-0.0152-0.02850.08290.0749-0.0263-0.0342
(-0.55)(-1.12)(0.53)(0.29)(-0.81)(-1.03)
      
infla-0.00249**0.000307-0.131**-0.0352***-0.001530.000332
(-3.39)(0.10)(-2.62)(-3.81)(-0.37)(0.09)
      
ainv0.261***0.342***0.0304***0.253***0.200***0.265***
(6.84)(7.53)(4.70)(4.15)(5.24)(6.72)
      
govexp-0.444***-0.489***-0.0910*-0.233*-0.376***-0.269**
(-5.15)(-4.01)(-2.57)(-2.45)(-4.25)(-2.84)
      
ttrade-0.00999-0.00381-0.0422**-0.000792-0.00999-0.00171
(-1.13)(-0.35)(-3.12)(-0.06)(-1.07)(-0.15)
      
pop-0.944**-1.414***-0.146**-0.686**-0.692*-1.207**
(-2.76)(-3.33)(-2.81)(-2.92)(-1.99)(-2.90)
      
eci     0.0149
     (0.12)
Temporal DummyYesYesYesYesYesYes
Arellano and Bond’s test for AR(1) – Az = -14.14  Pr > z =  0.000z = -10.04  Pr > z =  0.000z = -13.34  Pr > z =  0.000z =  -9.02  Pr > z =  0.000z = -10.58  Pr > z =  0.000z = -11.17  Pr > z =  0.000
Arellano and Bond’s test for AR(2) – Az =  -0.32  Pr > z =  0.752z =  -1.53  Pr > z =  0.126z =   0.07  Pr > z =  0.942z =   1.43  Pr > z =  0.154z =   1.77  Pr > z =  0.176z = -0.99  Pr > z =  0.323
Sargan’s test for over-identified restrictions  – BProb > chi2 =  0.571Prob > chi2 =  0.231Prob > chi2 =  0.113Prob > chi2 =  0.757Prob > chi2 =  0.571Prob > chi2 =  0.205
N1256673181135987778

Notest (s) statistics in brackets; * p<0.05, ** p<0.01, *** p<0.001. In A – The null hypothesis: there is no “n” order correlation in the residues. In B – The null hypothesis: the model is correctly specified, and all over-identifications are correct. Results generated using the xtabond2 command in Stata, and assuming exogeneity of time dummies (see Roodman 2005),REPORT THIS AD

Os economistas estruturalistas Raul Prebish e Celso Furtado, considerados como (sic) “comunistas” pela corja de incompetentes e ignorantes sobre princípios elementares de economia que comanda a política econômica hoje no Brasil, advertiam nos anos 1940 e 1950 que a industrialização e a consequente diversificação da pauta exportadora era absolutamente necessária ao desenvolvimento econômico sustentado. Isso porque produtos primários como soja e minério de ferro possuem uma baixa elasticidade renda da demanda, ao passo que os produtos manufaturados possuem uma elevada elasticidade renda da demanda. Assim se a renda mundial crescer, digamos, 3% a.a as exportações de produtos primários deverão crescer, no longo-prazo algo como 1,5 a 2% a.a porque a elasticidade renda da demanda é inferior a um. Já se a renda doméstica de um país exportador de produtos primários crescer 4% a.a (como deseja o Presidente do IPEA), as importações de manufaturados irão crescer entre 5 a 7% a.a, dado que a elasticidade renda da importação é muito superior a um. Dessa forma, um ritmo de crescimento de 4% a.a é insustentável no longo-prazo porque implica num aumento das importações num ritmo superior ao das exportações e, consequentemente, num aumento do déficit em conta-corrente; o que irá implicar num aumento do endividamento externo. Ao contrário do endividamento interno, o qual é feito na moeda corrente do país, existem limites estreitos para o endividamento externo, como bem nos lembra a crise da dívida externa de 1980, a qual deu origem a “década perdida”.

Em suma, se queremos que o Brasil volte a crescer de forma sustentada a um ritmo de 4% a.a (o que é bem diferente de crescer 4% em 2021, valor que eu acho superestimado, mas que embute um carregamento estatístico de 2,6% do ano de 2020, sendo portanto bem menos impressionante do que o presidente do IPEA nos quer levar a acreditar), não há outra alternativa do que a reindustrialização do país. Nesse contexto, a única reforma que pode atuar nesse sentido é a proposta de reforma tributária baseada no estudo do Centro de Cidadania Fiscal, elaborada, entre outros, pelo economista Bernard Appy. O que o Presidente do IPEA defende é o retorno do Brasil ao período pré-1930, o período da República Velha, no qual os bancos, o capital estrangeiro e os grandes fazendeiros controlavam, com mão de ferro, os destinos desse país. Cabe aos bons brasileiros impedir tamanho retrocesso.

Referências

Kaldor N. (1967), Strategic factor in economic development. Ithaca, NY: New York State School of Industrial and Labor Relations, Cornell University.

Ros, J. (2013). Rethinking Economic Development, Growth and Institutions. Oxford University Press: Oxford.


César Felício: A ditadura dos fatos

Presidente da Câmara pode muito, mas não tudo

Presidente da Câmara entre 2005 e 2007, o ex-deputado Aldo Rebelo jogou um papel importante na sobrevivência do governo Lula ao mensalão. Em dois meses de crise, a administração petista estava nas cordas, até que Severino Cavalcante, que comandava a casa legislativa dos deputados, foi denunciado por receber propina de um cantineiro. Ele renunciou e Aldo bateu o oposicionista José Thomaz Nonô em uma disputa apertadíssima. Não se falou mais em impeachment de Lula.

O impeachment de Dilma Rousseff tornou-se um assunto no país assim que Eduardo Cunha foi eleito presidente da Câmara por 367 votos, derrotando Arlindo Chinaglia, em fevereiro de 2015. A correlação entre os fatos de 2005 e 2015 é irresistível. Muito mais que garantir avanço de agenda de governo, que na realidade não existe, o presidente da Câmara dá ou tira blindagem.

Distante hoje do calor dos fatos, Aldo é reverente a eles. O ex-deputado, por muitos anos integrante do Partido Comunista do Brasil, reconhece o protagonismo da presidência da Câmara como escudo ou espada, mas lembra dos limites nesta ação. “O presidente da Câmara pode muita coisa, mas muito mais podem os fatos. O avanço de um impeachment ou o seu bloqueio depende de circunstâncias políticas. Não acho que o presidente Jair Bolsonaro obterá proteção absoluta.”

O presidente da República está envolvido até o tutano dos ossos na operação para eleger ao comando da Câmara o deputado Arthur Lira (PP-AL). Presidente nacional do MDB, partido que foi um artífice tanto do impeachment de Collor em 1992 quanto do de Dilma em 2016, Baleia Rossi (SP) concorre com apoio da oposição.

Aldo respeita a capacidade de articulação política de ambos e não se arrisca a nenhum prognóstico, mas ressalta: “Um impeachment não se cria, ele aparece quando o sistema quer se livrar de um governante. Quando se unem a classe política, a mídia, o mercado, contra um governante, acabou. Nem o Lira e nem ninguém segura. Se arquivar o pedido, a pressão vêm por outros meios.” Do mesmo modo, Aldo não acredita que Baleia represente ameaça a Bolsonaro se estes fatores não estiverem postos.

O ex-deputado vê alguns trincamentos na sustentação de Bolsonaro, mas não enxerga impeachment no horizonte. “Ele não é mais o homem que permite uma agenda de mercado; Bolsonaro por onde anda diz que essa não é mais a agenda dele e não há outra para por no lugar. Mas quando olham para o Mourão, não vêem uma alternativa. No Temer, viam.”

O importante nesse momento para quem faz oposição, segundo Aldo, é desideologizar a disputa pelas mesas diretoras. “Não há corte ideológico. A questão a responder é se querem derrotar o governo ou não. Lira vencendo fortalece Bolsonaro, mesmo se viesse do Sendero Luminoso. Baleia ganhando enfraquece, mesmo se viesse da TFP. Em 2005, MDB, DEM e PSDB estavam divididos sobre Lula. Em 2015, estavam unidos em relação a Dilma. Agora podem se unir de novo. É importante observar esse movimento.”

Não há como deixar de notar nas eleições da Câmara um fenômeno: desde a vitória de Cunha, portanto há seis anos, a esquerda deixou de ser competitiva na disputa pela Mesa Diretora, mesmo com a fragmentação da centro-direita e com o PT se mantendo como a maior ou a segunda maior bancada desde então. O isolamento da esquerda no debate político brasileiro é inegável.

Quando um país tem uma vacina do governo e outra da oposição, é porque está perdido, no sentido literal e figurado. O duelo político entre o governador de São Paulo, João Doria, e o presidente Jair Bolsonaro rondou perigosamente o abismo, ao potencializar um questionamento indevido à Coronavac. O negacionismo do presidente e a ânsia do governo paulista ao divulgar os resultados da vacina, apenas em coletivas de imprensa atropeladas e com dados parciais, estimulou o erro que pode ser corrigido este domingo, com a análise da Anvisa do uso emergencial da Coronavac e da AstraZeneca.

Uma vacina com 50% de eficácia geral, aplicada de forma massiva, pode reduzir a pressão sobre o sistema de saúde e consequentemente o número de mortes? Retardar o início da vacinação, para se ter disponibilidade de uma vacina mais eficaz é uma opção? Há um relativo consenso científico de que a primeira alternativa é a correta.

A discussão é observada com perplexidade pelo médico Ricardo Parolin Schnekenberg, que reside em Londres e integra o grupo do Imperial College que acompanha os dados do Brasil. “Uma decisão de vacinação é coletiva, jamais individual. Jamais a população deve opinar sobre a vacina que vai tomar. Como ninguém questiona que vacina está tomando para qualquer outra doença”, diz.

No Reino Unido, com 66 milhões de habitantes, já foram aplicadas 3 milhões de doses de três tipos de vacinas, distribuídas pelo país conforme questões logísticas. A da Pfizer, por exemplo, tem um descarte alto, por ser muito perecível. Só é fornecida em grandes hospitais. A da AstraZeneca, que está entrando agora, mais resistente, está nos pontos de vacinação com menor fluxo.

O mesmo modelo deve ser aplicado no Brasil, mas com o desgaste de um debate desnecessário que derivou para uma absurda discussão sobre a obrigatoriedade da vacina, sem que ela estivesse assegurada.

Parolin relata que os erros do primeiro-ministro Boris Johnson no combate à pandemia foram muitos. O Reino Unido acumula 84,9 mil mortos, o maior número da Europa, sobretudo por resistir ao isolamento social, segundo o médico.

Em março, ainda se apostava em uma forma mitigada de restrição de atividades. A quantidade de testes era mínima. O próprio Parolin contraiu covid-19 e não foi testado. Quando Johnson fez o lockdown, procurou sair dele de forma prematura. O verão britânico foi quase de vida normal, relata.

A fatura chegou em setembro, com uma explosão de casos. A reação do governo foi a de fazer abordagens regionalizadas. Não funcionou.

O que Boris Johnson nunca fez foi correr atrás de uma ema com uma caixa de cloroquina, como lembra Parolin. Houve erro de estratégia, mas não mistificação.


Ribamar Oliveira: Um país viciado em subsídios

Só com o setor automotivo, o gasto será de R$ 5,9 bi

O lamentável comunicado da empresa Ford, de que vai encerrar suas atividades produtivas no Brasil depois de mais de um século, recoloca uma questão essencial para os dias de hoje, em que o setor público está quebrado, como informou o presidente Jair Bolsonaro, referendado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes. Até quando a sociedade brasileira vai conviver com um nível tão elevado de subsídios ao setor produtivo, estimados pela Receita Federal em R$ 307,9 bilhões neste ano, pouco abaixo de 4% do Produto Interno Bruto (PIB). Somente com o setor automobilístico, a previsão que consta da proposta orçamentária de 2021 é de um gasto de R$ 5,9 bilhões.

O gasto tributário ocorre quando o Poder Público concede anistia para determinada empresa ou setor, quando adia o pagamento de impostos ou contribuições, quando concede isenções de caráter não geral, quando reduz a alíquota de um tributo ou muda sua base de cálculo para conceder um tratamento preferencial a um grupo de contribuintes específico. Nestes casos, há uma renúncia de receita. Ou seja, o governo deixa de arrecadar.

Bolsonaro disse que a Ford não informou o verdadeiro motivo de sua saída do Brasil. Segundo o presidente, a empresa americana deixou o país porque o governo não aceitou dar a ela mais subsídios. Ele afirmou que, ao longo do tempo, a empresa recebeu R$ 20 bilhões dos cofres públicos sob a forma de incentivos. A verdade é que, desde que a indústria automobilística se instalou por aqui, ela fez pressão contínua sobre os dirigentes do país por benefícios tributários e creditícios que lhe garantissem a rentabilidade.

Dados da Receita Federal mostram que, de 2011 a 2020, o gasto tributário com o setor automotivo alcançou R$ 42,5 bilhões em valores correntes ou R$ 50,2 bilhões a preços de dezembro de 2020. Se a previsão para este ano for incluída na conta, o total sobe para R$ 48,5 bilhões, em valores correntes, ou R$ 56,1 bilhões, a preços de dezembro de 2020. O valor é quase duas vezes o que o governo gasta por ano com o programa Bolsa Família, que atende mais de 14 milhões de famílias carentes.

As empresas do setor automobilístico de qualquer região podem usufruir do programa Rota 2030, que prevê a dedução do Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) do valor correspondente à aplicação da alíquota do IRPJ e da CSLL sobre até 30% dos dispêndios realizados no país, desde que sejam classificáveis como despesas operacionais e aplicados em pesquisa e desenvolvimento. Adicionalmente, podem realizar, com isenção, a importação de partes, peças, componentes, conjuntos, subconjuntos, acabados e semiacabados, e pneumáticos, todos novos e sem capacidade de produção nacional equivalente, destinados à industrialização de produtos automotivos.

As empresas montadoras e fabricantes de veículos automotores instaladas nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste fazem jus a crédito presumido do Imposto sobre Produto Industrializado (IPI) como ressarcimento do PIS/Pasep e da Cofins, desde que apresentem projetos que contemplem novos investimentos e a pesquisa para o desenvolvimento de novos produtos ou novos modelos.

Vale lembrar que esses são apenas os gastos tributários federais. Muitas dessas empresas receberam vultuosos benefícios estaduais e municipais, desde vantagens relacionadas ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) até doações de terrenos para a instalação de suas unidades produtivas.

A montanha de subsídio não foi suficiente para evitar a atual crise por que passa o setor automobilístico brasileiro. Ao contrário, como disse ontem o economista Marcos Lisboa, em entrevista à “Folha de S. Paulo”, a crise no setor vem de longa data e era previsível que várias unidades se tornariam inviáveis. “Só não eram antes pela quantidade de subsídios, então ficamos reféns de dar incentivos para preservar a produção de algo não eficiente no país”, afirmou.

O setor automotivo não é, no entanto, o único a receber uma enxurrada de subsídios. Na verdade, nem sequer ocupa as primeiras posições. Há benefícios tributários em profusão para todos. Medicamentos, produtos farmacêuticos e equipamentos médicos recebem subsídios, assim como embarcações, aeronaves, gás natural, todos os produtos da cesta básica, biodiesel, motocicletas e água mineral, para citar alguns. São subsídios com prazos indefinidos e, a maior parte deles, sem avaliações conhecidas sobre os seus resultados.

O gasto com benefícios tributários passaram de 2% do PIB, em 2003, para 4,5% do PIB em 2015. De lá para cá, o governo tem obtido pequenas reduções, pois eles ficaram em 4,3% do PIB em 2018. Para 2021, o governo estima que eles fiquem pouco abaixo de 4% do PIB, embora ainda não tenha explicado como isso ocorrerá.

Desde 2018, os parlamentares tentam forçar o governo a definir uma estratégia de redução dos subsídios. A Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2019, por exemplo, determinou que o governo apresentasse um plano de revisão dos subsídios, com um cronograma de redução de cada benefício para, no prazo de dez anos, diminuir a renúncia de receita para 2% do PIB. O plano foi apresentado ao Congresso, mas, até hoje, não foi divulgado oficialmente.